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RESUMO: Realiza uma análise teórica acerca de decisões, sendo uma de cunho jurídico proveniente do aparato
estatal, leia-se Poder Judiciário e outra meramente administrativa, advinda de entidade privada, as quais, de
alguma maneira, limitaram manifestações artísticas relacionadas às temáticas de gênero e da sexualidade humana
em virtude de argumentos religiosos fundamentalistas e entidades que promovem discursos de ódio e como estes
resultaram na violação à Constituição Federal no tocante às liberdade de expressão artística e intelectual, bem
como reforçam o preconceito e a discriminação contra pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais,
caracterizados pela sigla LGBT. Objetiva-se identificar as possíveis motivações que contribuíram para a limitação
dos, principalmente, dois atos de manifestação artística ocorridos nos Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul,
sendo o primeiro a apresentação da peça teatral “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu” e o segundo
trata-se do encerramento prematuro da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”.
A pretensão é verificar de que forma suas práticas de cerceamento relacionam-se com a constitucionalidade da
liberdade de expressão artística no País e de que forma elas contribuem para ações preconceituosas contra LGBTs,
possibilitando a construção de um diagnóstico, a partir do respaldo que tais atitudes limitadoras tiveram na
sociedade, acerca da perpetuação de estigmas e violências para populações politicamente minoritárias, mesmo
diante das garantias e direitos expressos nos textos legislativos constitucionais, isto é, a Carta da República. Sendo
assim, revela-se a metodologia baseada numa análise documental da legislação maior do Brasil e de obras
doutrinárias com relevância para o tema dos direitos culturais, além de breve contextualização das imposições
religiosas sobre os indivíduos menos favorecidos socialmente, propiciando a livre interpretação do trabalho pelos
leitores com a finalidade de trazer ao âmbito acadêmico uma mescla entre os direitos culturais e à população LGBT
em virtude da grande evidência tomada na sociedade em face dos escassos estudos universitários.
1. INTRODUÇÃO
Na maioria das tentativas, abordar um tema pouco trabalhado dentro do leque temático
que um estudante do curso de Direito possui é uma tarefa complexa. Entretanto, pode-se
constatar que diante das mais variadas experiências extensionistas dentro e fora do ambiente
universitário, especialmente associadas aos direitos humanos, é possível confluir o debate
1
Artigo apresentado ao curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semiárido, campus Mossoró, como
exigência da disciplina Metodologia da Pesquisa Jurídica, sob orientação da Prof. Msa. Gilmara Joane Macêdo de
Medeiros.
2
Estudante do 3º período do curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, campus Mossoró e
Extensionista do Centro de Referência em Direitos Humanos do Semiárido.
1
relacionado aos estudos de gênero e sexualidade humana com nuances do direito constitucional,
a exemplo da legislação referente à liberdade tanto de um modo geral como particularizada à
expressão artística e intelectual das pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros
(LGBT).
Ante qualquer abordagem feita aqui, vale salientar a conjuntura nacional de retirada ou
desrespeito aos direitos e garantias das chamadas minorias políticas, sendo assim nomeadas em
virtude da falta de representação diante das instâncias de poder dentro do Estado brasileiro. É a
essa supressão de garantias individuais com a justificativa de periculosidade à nação, possuindo
aspecto fluído nas dimensões internas e externas no ordenamento basilar, que estudiosos
denominaram como Estado de Exceção3, e é dentro dele que, afunilando ainda mais a óptica
analítica, pretende-se analisar algumas práticas do Estado que, de forma direta ou indireta, tolhe
os direitos da população LGBT4.
Diante da grande complexidade que é trabalhar os diversos casos de violação dos direitos,
obtidos através das lutas de pessoas LGBT nos campos sociais e jurídicos, dá-se notoriedade
para casos relacionados aos direitos fundamentais, isto é, os direitos humanos reconhecidos e
tutelados pela Constituição Federal de 1988. Objetivando realizar uma associação da questão
LGBT aos direitos fundamentais, restringiu-se à análise dos direitos à liberdade de expressão
artística e de pensamento, haja vista a grande participação dessa população nos mais diversos
setores vinculados às artes e também como se percebeu como tais violações nas modalidades
ainda são pouco discutidas nos âmbitos jurídicos e universitários.
Destarte, o trabalho realiza sua análise a partir de dois casos ocorridos no do ano de 2017,
que possuem relação com a conexão temática realizada. São eles: o cancelamento, por via
judicial, da apresentação teatral intitulada “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu”
na cidade de Jundiaí/SP e; a decisão administrativa proferida pelo Santander Cultural, centro
multifuncional sediado na cidade de Porto Alegre/RS de suspensão da exposição “Queermuseu
– Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. Ambos os casos se destacam por duas razões:
neles, de alguma forma, haviam forte expressão da cultura LGBT, em virtude da abordagem de
temas como a sexualidade (a exibição de variadas obras de arte expressando a diversidade da
3
Conceito dado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, em sua obra “Homo Sacer O Poder Soberano e a Vida
Nua”.
4
Sigla que designa as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais ou Transgêneros, sendo esta última categoria formada
pelos indivíduos travestis e transexuais.
2
sexualidade humana e a atuação de uma mulher trans 5 na peça teatral) e, em razão das
justificativas e fundamentos que subsidiaram as medidas de interrupção das exibições, no
primeiro caso, a peça foi suspensa sob as justificativas de desrespeito à dignidade cristã. No
segundo caso, o banco optou pela suspensão da exposição em virtude de protestos e boicotes
advindos de grupos religiosos e movimentos políticos brasileiros que têm por características a
intolerância perante temas associados ao movimento LGBT, como gênero e sexualidade.
Para atingir o objetivo proposto nos moldes de apresentação deste trabalho, é feita,
inicialmente, uma amostragem de conceitos juridicamente necessários para que se caracterize
sua cientificidade, perpassando pelo campo dos direitos fundamentais, mais precisamente com
relação às liberdades e como ela se apresenta indispensável para o regime democrático, o qual
sofre com turbulências em virtude do estado de exceção previamente mencionado. É trazido
também o conceito de censura, haja vista sua contribuição para compreender melhor os ideais
da liberdade presente na democracia e a contradição existente entre sua vedação expressa
perante a CF de 88 e os relatos em que se afirma a sua prática decorrido o desrespeito
proveniente de determinados grupos sociais. Desta forma, realizar-se-á uma minuciosa análise
dos casos introdutoriamente supracitados visando interpretar como se constitui o cerceio das
5
Mulher trans (abreviatura para transgênero) é caracterizada, de acordo com estudos acerca da sexualidade
feitos pela socióloga brasileira Berenice Bento, como sendo a pessoa que reivindica a categoria de gênero
destoante do seu sexo biológico, haja vista a concepção de gênero como sendo a “rede de expectativas” geradas
sobre a genitália das pessoas a partir do momento que nascem.
3
liberdades individuais dentro dos regimentos estatais de poder e também fora dele, uma vez que
as transgressões a determinados direitos também podem ter conivência social, possibilitando as
considerações acerca da influência que tais ocorrências exercem, de maneira mais ou menos
incisiva, na perduração de condutas desrespeitosas para com as pessoas LGBT.
4
Dentro de tais princípios, nota-se a relevância de elencar os que dizem respeito às
liberdades previstas constitucionalmente, sendo, não somente, elas a de expressão do
pensamento e manifestação artística e intelectual, contidas no artigo 5º, incisos IV e IX. Partindo
do pressuposto constitucional que cada indivíduo detentor de direitos possui ampla permissão
para se expressar, surge a importância de mencionar o caput do próprio artigo que inicia o título
II da CF, o qual serve não apenas de garantidor da liberdade de expressão, mas também de
limitação da mesma ao dizer que a igualdade é universal perante à lei e que não há lugar para
distinções de quaisquer naturezas. Cabe, ainda, fazer menção a um outro inciso presente no
artigo 5º do ordenamento constitucional: o inciso VIII, que diz respeito à privação de direitos
decorrentes de crenças, sejam de cunho religioso ou de convicção político-filosófica. Ao
anteceder a parte que fala sobre as liberdades destacadas anteriormente, percebe-se que apesar
das liberdades deterem um viés abrangente, elas também possuem um dimensionamento, isto
é, um limite, no qual pode ser facilmente confundido com a prática de censura, que será
abordada mais adiante.
Por mais que esse termo, bem como sua prática sejam dignos de uma compreensível
abominação, especialmente por parte da sociedade, tendo em vista o histórico nacional de
práticas limitadoras das liberdades que hoje são previstas pela constituição, a censura detém
certa relevância para que se possa compreender a relação paradoxal entre a livre manifestação
do pensamento e da arte com a limitação da própria liberdade. Entretanto, apesar da grande
possibilidade de condutas que poderiam ser justificadas sob o prisma jurídico das liberdades
constitucionais, tal princípio não é absoluto e ilimitado, o que pode gerar confusão acerca do
que é dimensionamento da liberdade e o que é censura.
Mas, afinal, o que é a prática de censura, uma vez que ela não corresponde ao
dimensionamento das liberdades, mas determinadas atitudes limitadoras podem conter
elementos censuradores? De acordo com o senso comum, a prática de censura está diretamente
ligada com a ação estatal sobre os meios de comunicação em tempos de exceção (como já
mencionado). Tal conceito não está completamente equivocado, todavia esta é apenas uma das
nuances em que a censura se apresenta. O jurista Jairo José Gênova6 contribui para tal percepção
através da classificação em que descreve as espécies censoras nos vieses políticos e jurídicos,
6
Professor titular no curso de graduação e no programa de Mestrado do Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM) e
promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo.
5
sendo o primeiro decorrente do poder (geralmente ditatorial) sobre os veículos de comunicação,
anuindo apenas com os ideais correligionários à ditadura; o segundo, por sua vez, trata-se da
censura judicial, que como o nome já presume, provém do Poder Judiciário que age também
sobre os meios comunicativos que ameaçam ou transgridam os direitos individuais previstos
pela Constituição, subentendendo que esta última tenha legitimidade em detrimento das demais.
7
Semântica proveniente da era vitoriana, segundo sites de pesquisa rápida.
8
Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e atual docente da disciplina de
Direito Constitucional da FANOR, na cidade de Fortaleza/CE.
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contrário, compõem o rol dos chamados Direitos Culturais, um segmento que obteve bastante
visibilidade, especialmente no presente século, haja vista o advento e o desenvolvimento, por
vezes desenfreado, dos meios de comunicação como a internet, principal ferramenta de
informações para qualquer pessoa que a deseje e possa acessá-la.
De antemão, busca-se entender mais precisamente onde atuam os direitos culturais para
que estejam contidos expressamente no ordenamento mais importante da nação. Logicamente,
falar sobre a manutenção da ordem não cabe aqui pois, além de não contribuir de forma
relevante para a análise pretendida, desvia o intuito de apresentar as garantias fundamentais
presentes nos artigos 5º e 215 da Constituição Federal como sendo um mecanismo de manter o
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Segundo o site da instituição, trata-se de um “centro independente de pesquisa focado na produção de
conhecimento e soluções estratégicas nas áreas de economia crítica, direito e inovação tecnológica” (grifos do
original)
7
regime democrático, defendido, em regra, por todos os cidadãos brasileiros. Entretanto, é válido
questionar a quem compete a defesa de tais direitos dentro de uma sociedade tão diversificada
quanto a do Brasil. Daniela de Lima Almeida, com propriedade, dirá:
Em uma sociedade democrática esse papel deve ser deixado nas mãos exclusivas do
Poder Judiciário? O próprio artista deve ser o responsável? É papel do indivíduo ou
do grupo que se sente lesado? Em que circunstâncias são cabíveis edições de leis?
Para essa discussão é possível partir de alguns pressupostos: 1. A liberdade de
expressão artística é essencial ao Estado Democrático de Direito; 2. A liberdade de
expressão artística não é um salvo-conduto ou absolvição antecipada de quaisquer
prejuízos que dela possam resultar; 3. No Estado Democrático de Direito não se
admite a censura prévia, com competência discricionária de um órgão censor; e 4. A
Constituição de 1988, sistematicamente interpretada, possibilita o dimensionamento
dessa liberdade que pode ser verificado com a atuação judicial, tendo por requisitos a
aplicação direta dos Direitos Fundamentais, ou a indireta, por ocorrer com suporte na
legislação infraconstitucional. (ALMEIDA, 2016, p. 17-18)
8
Na realidade brasileira, o controle dos meios de comunicação de massa está
concentrado nas mãos de grupos pequenos de pessoas, reunidos em um eixo territorial,
com pouca diversidade, em contraposição às dimensões continentais do país. Por isso,
é questionada a concentração da propriedade privada dos meios de comunicação e sua
interferência na liberdade de expressão, tendo em vista que afeta a pluralidade de
fontes e a diversidade de conteúdo, os quais são pilares da democracia. (ALMEIDA,
2016, p. 45)
9
cautela do intérprete e aplicador da norma constitucional. Considera-se, entretanto, que, no
presente trabalho, é possível identificar elementos da censura nas duas situações a serem
analisadas e, apesar do termo provocar uma reação negativa ao intelecto e remeter a uma
semântica de extremismo, tendo em vista o já mencionado histórico brasileiro, com um longo
período ditatorial e altamente repressivo, especialmente para com grupos divergentes daqueles
considerados padrões, relatado na sua historiografia, é plenamente correto o seu emprego nas
situações estudadas, uma vez que os atos repressores às expressões artísticas e culturais
voltavam-se, notavelmente, para a população LGBT, a qual trata de temas ainda considerados
polêmicos para a sociedade, como gênero e sexualidade.
Para que seja caracterizado como censura a prática de limitação imposta a determinada
expressão artística, é crível ser válida a indagação acerca do próprio conceito de arte. Em tempos
de relativização, seria possível destacar um conceito mais sólido e, ainda mais, categorizar o
que é ou não arte? A resposta é: Talvez. Mesmo com toda a problematização feita, é cabível
fazer menção ao exposto por Ariano Suassuna, o qual considerava a atividade artística como
viés provocativo de divergências com a moralidade (SUASSUNA, 2008). Há, também, de ser
constatado e relembrado que este conceito não é universal, muito pelo contrário, a conceituação
10
Movimento político no cenário brasileiro que defende ideias do liberalismo econômico e promove ações de
reforma nos setores basilares da sociedade, incluindo saúde, educação e política.
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Dentre algumas das propostas do MBL, acessíveis em seu sítio eletrônico, estão a de legalização do chamado
homeschooling (traduzido livremente para “escola em casa”) e a apresentação do Projeto de Lei “Escola sem
Partido”, caracterizado como sendo uma forma de transmitir conhecimento nas instituições de ensino sem a
apresentação de seus posicionamentos políticos.
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de arte é muito mais fluida que sólida, apesar de ser plenamente possível categorizar as diversas
expressões artísticas.
Por mais abrangente que seja o conceito de arte, o Estado brasileiro tem o dever de
promover o reconhecimento da diversidade nas manifestações artísticas. Essa conduta
promotora é bastante visível diante das legislações, tanto constitucionais como
infraconstitucionais, é o caso da Lei nº 9.394, de 1996, a qual põe o ensino da arte,
especialmente em suas expressões regionais, como componente curricular das diretrizes e bases
da educação nacional. Essa e outras normas presentes no ordenamento são de relevante
importância para compreendermos a necessidade de exercer os preceitos contidos nas normas
que regem o País. Daí surge a amostra dos casos supervenientemente levantados para analisar
como a sociedade e o próprio ente estatal, às vezes, descumpre as prerrogativas relacionadas
com as liberdades individuais.
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que a ofensa se deve ao fato de Jesus Cristo ser encenado por uma travesti12, uma vez que o
símbolo cristão é designado, majoritariamente, como homem.
É cabível identificar que não tenha existido qualquer manifestação desrespeitosa por
parte da peça, uma vez que a liberdade de pensamento e expressão permitia que a diretora
pudesse entender que a figura religiosa não teria apenas um fenótipo, pois como a própria Bíblia
cita “a imagem e semelhança do homem”, da qual é possível depreender que não se trata,
absolutamente, do sexo masculino, mas sim do gênero humano, o qual possui uma diversidade
de formas, sexos, gêneros e interpretações. Além disso, a peça teatral era dirigida para um
público que aprecia a arte, com o intuito de expressar através de uma figura religiosa a empatia
para com a população LGBT, não se tratando de uma manifestação pública que incitasse o ódio
ou a intolerância a uma determinada religião, cabendo indagar até que ponto, isto é, se assim o
faz, a peça atinge a liberdade religiosa, tendo em vista que símbolos religiosos são utilizados
em manifestações artísticas desde sempre, confrontando, muitas vezes, os próprios padrões
estabelecidos socialmente, bem como feito pelo Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do
Céu.
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Segundo a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), Travesti é uma pessoa que não se identifica com o
gênero biológico e se veste e se comporta como pessoas de outro sexo.
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A prática limitadora imposta pelo Estado de São Paulo permite pressupor um
posicionamento mais definido, religiosamente falando, do que uma expressão laica, tendo em
vista que a religiosidade mencionada, ao meu entendimento, não foi atacada, mas sim
ressignificada através da peça teatral, não rendeu argumentos jurídicos “fortes” o suficiente para
que se justificasse a suspensão ocorrida no SESC Jundiaí, evidenciando, assim, um mecanismo
censurador das liberdades constitucionais previstas e, por que não?, uma inconstitucionalidade
na decisão judicial tomada. Tal atitude com relação à peça supracitada não ocorreu apenas
pontualmente na cidade de Jundiaí/SP, sendo possível encontrar ocorrências semelhantes em
outras localidades do País, como na cidade de Caruaru/PE. A partir disto, permite-se o
entendimento de que a censura judicial com relação às expressões artísticas feitas para e por
pessoas LGBT são muito mais comuns do que se pensa ou é falado nos espaços públicos.
A segunda exemplificação, não menos importante que a primeira no que tange os fins
deste trabalho, revela que a limitação imposta à expressão artística LGBT não é praticada
somente pelo Estado e Sociedade, mas também pelas associações privadas, muitas delas
beneficiárias de incentivos, principalmente financeiros, dados pelas entidades públicas de
administração. É o caso do Santander Cultural, espaço multifuncional de propriedade do banco
homônimo, que na data de 10 de setembro de 2017, optou pelo encerramento prematuro da
exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, a qual dispunha de 270
trabalhos de 85 artistas de grande relevância para o cenário artístico, e que estava prevista para
acontecer entre os dias 15 de agosto e 8 de outubro do mesmo ano. O fechamento aconteceu em
virtude aos protestos realizados por pessoas e entidades que caracterizaram a exposição como
ofensiva, alegando ofensividade na utilização de símbolos cristãos e a difusão de “pedofilia 13”
e “zoofilia 14” em algumas das obras expostas. A onda reacionária contra a exposição ganhou
notória intensidade após manifestações nas redes sociais pelo Movimento Brasil Livre (MBL),
o qual juntamente com outras associações religiosas e seguidores promoveram uma série de
ataques verbais aos visitantes da exposição e até mesmo pichações nas agências bancárias que
abrigavam as obras de arte, causando danos ao patrimônio da entidade que captou cerca de 800
mil reais para a viabilização do evento.
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Caracterizada como sendo um transtorno da sexualidade humana, na qual a satisfação sexual só é obtida por
meio de atos envolvendo crianças ou adolescentes.
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Também considerada um desvio da sexualidade humana, conceituada pela atração sexual por animais.
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Segundo a curadoria da exposição, a decisão de encerramento foi tomada
unilateralmente pelo Santander e que mesmo depois de tentativas, inclusive por meio de litígio
impetrado judicialmente, não logrou êxito até que houve a mudança da exposição para a cidade
do Rio de Janeiro/RJ no segundo semestre do presente ano, sendo novamente alvo de críticas e
tentativas de impedimento tanto por parte da população como pelo prefeito da cidade, Marcelo
Crivella (PRB15), mostrando mais uma vez a relação de atuações estatais limitadoras aos direitos
culturais, previstos nos Artigos 5º e 215 da Constituição Federal.
Diversas opiniões emitidas através de revistas eletrônicas se posicionaram em
contrariedade à conduta do Banco Santander, uma vez que caracterizavam como “desafiador”
o trabalho de incorporar a diversidade humana numa sociedade que ainda se apoia nos valores
da moralidade religiosa, evidenciando a necessidade de trazer ainda mais trabalhos que
provoquem a reflexão no público, sem que, de forma alguma, atinja seus direitos e garantias
individuais.
É possível perceber que a pressão social feita pelos movimentos opositores à exibição
caracteriza-se como preocupante, uma vez que eles conseguiram arquitetar uma intensa
mobilização de boicote ao banco e ao Queermuseu. Entretanto, é novamente vislumbrado o
desrespeito aos preceitos fundamentais da liberdade de expressão artística e do pensamento,
uma vez que as obras presentes na exposição eram da autoria de nomes classificados como
brilhantes para o cenário artístico, tais como Lygia Clark, Cândido Portinari e Adriana Varejão.
Além disso, não se pode alegar o desrespeito à religiosidade alheia apenas pela utilização de
símbolos em pinturas, quadros, fotografias etc. pois é notável que um dos objetivos da arte é
permitir releituras de conceitos, valores, coisas e pessoas já limitadas a uma determinada
perspectiva, o que corresponde às obras expostas. Não se trata, neste caso, de um ataque à
dignidade e liberdade religiosa, mas sim de uma fática censura aos diferentes pensamentos sobre
determinados assuntos como, inclusive, a religião, a qual pode ser, por muitas vezes, tida como
imutável e qualquer dissonância dos seus princípios, especialmente os mais tradicionais, é
caracterizado como equívoco. É o que dizia Foucault, previamente citado, quando falou sobre
a política da censura decorrente do poder das relações sociais, em que tratando-se da
sexualidade, principalmente aquelas destoantes da heterossexual, essa passou do status
pecaminoso para o patológico, inviabilizando estudos e provocando uma prática constante de
discriminação para com as pessoas que hoje identificam-se com o movimento LGBT.
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Sigla para Partido Republicano Brasileiro.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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cidadania, como a liberdade de expressão e liberdade religiosa, propugna-se, desta forma, que
a diversidade de religiosidade, sexual, étnica ou quaisquer outras existentes não sirvam de
prerrogativas para atos transgressores da liberdade humana, mas sim de incentivo para a
construção de uma sociedade mais “livre, justa e solidária”, bem como pretende a Constituição
Federal brasileira.
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