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Memórias de milícias
Vera Malaguti Batista
A tentativa de resolver problemas político-sociais gravíssimos denominamos “o grande encarceramento”, a maior expansão carcerária
mediante o aumento das penas é um recurso amplamente utilizado na da história do Brasil e do mundo ocidental.
contemporaneidade. A gestão da miséria no neoliberalismo(1) produziu O clamor popular é por mais segurança, mais pena e mais polícia,
uma gigantesca onda punitiva que se espalhou à direita e à esquerda estabelecendo um novo ciclo de autoritarismo na “democracia”: o
do panorama político. Nilo Batista afirma que a pena é um fetiche Estado de polícia.(5) Assistimos a uma profunda “policização” das
que encobre a conflitividade social com suas sombras, produzindo nossas vidas: do Judiciário à academia, cria-se um coro acrítico e
catarses midiáticas que na verdade não só afetam a administração dos ululante. Todos querem um pedaço da cena, principalmente a classe
problemas como costumam agravá-los. Foi um pouco desse espírito política que vai pontificar nos períodos eleitorais com novas propostas
que norteou em 1988 a inclusão na nova Constituição da categoria de de endurecimento para o macabro circo da segurança. Esse mercado,
crimes hediondos “nascida de uma quizila estúpida entre deputados no público e no privado, vai recrutar quantidades inimagináveis
aparentemente antagônicos, porém essencialmente acordes na política de trabalhadores nos dois fronts da guerra. É um circuito brutal e
criminal”,(2) produzindo na realidade brasileira um gigantesco território brutalizante que pontua o cotidiano da vida de todos, mas, em especial,
de exceção que se amplia a cada crime transmitido ao vivo e a cores a vida dos pobres que atravessarão rios de sangue, esquivando-se de
pelas telas onipresentes. muitas cabeças cortadas, educados agora por um cotidiano de terror e
Podemos pensar historicamente, na longa duração, que o Brasil tem truculência.
uma tradição autoritária que permanece apesar de breves hiatos em que A policização da vida faz circular o conteúdo bélico das metáforas:
conjunturas especiais demandam mais controle do poder punitivo. Foi conquista de território, guerra, combate, cruzada. A guerra contra o
assim na saída da ditadura que se enraizou depois do golpe de 1964: crack tem produzido cenas de truculência que são motivo de espanto
“Na transição da ditadura para a ´democracia´ (1978-1988), em todas as redes de saúde coletiva do mundo. Esse retrocesso ou
com o deslocamento do inimigo interno para o criminoso comum, com regressão das utopias democráticas que acalentávamos na saída da
o auxílio luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta a ditadura tem efeitos perturbadores: a desmanicomialização, conquista
estrutura de controle social, com mais e mais investimentos na ´luta das reformas psiquiátricas na década de 1980, está sendo revertida por
contra o crime´. E, o que é pior, com as campanhas maciças de pânico um serviço social totalmente policizado com a prática e a discussão
social, permitiu-se um avanço sem precedentes na internalização do desqualificada das internações compulsórias.
autoritarismo. Podemos afirmar sem medo de errar que a ideologia No Rio de Janeiro rebelde, laboratório de experiências autoritárias
do extermínio é hoje muito mais massiva e introjetada do que nos anos e palco da remilitarização da segurança pública, surge um processo
imediatamente posteriores ao fim da ditadura”.(3) que se inicia com as gratificações faroeste (os policiais ganhavam
A lenta reconstrução do inimigo interno se deu na produção do bônus pelo número de execuções) na década de 1990. Nesse mesmo
2 grande medo e do encobrimento da discussão sobre a questão criminal, período, Carlos Magno Nazareth Cerqueira escreveu um artigo
substituída pelas receitas fáceis vendidas pela indústria do controle do profético em que analisava os novos rumos do trabalho da polícia
crime como pacotes fechados e distantes da realidade nacional: modelos na democracia.(6) Aqueles “esquadrões da morte” ou “grupos de
de polícia, tecnologias de vigilância, prisões high tech, armas letais e extermínio”, desarticulados pelos esforços das primeiras eleições
não letais, enfim, o lixo da “guerra fria”, agora reciclado para o grande diretas para governador, começam a ser incensados pelos governantes
e sustentável “combate ao crime”. O formato de guerra permaneceu (em especial um prefeito) e pela grande mídia como grupos de
incólume, redirecionado aos novos alvos, os escombros da mão de autorresistência contra o grande inimigo, o “narcotráfico”. Passam
obra rejeitados pelo capital vídeo-financeiro que realmente se enraíza a ser chamados milícias, o que lhes confere um novo status e uma
no Brasil a partir dos anos 90. Passadas duas décadas “perdidas”, os relegitimação. Cabe aqui um parêntese: naquele hiato democrático,
trabalhadores sem trabalho se atiraram aos difíceis ganhos fáceis dos logo após o fim da ditadura, tramitou na Assembleia Legislativa
circuitos ilegais e perigosos. A política criminal de drogas, imposta do Rio de Janeiro um projeto de lei que regularizava o segundo
pelos Estados Unidos na conjuntura do golpe, vai cobrando vidas, emprego do policial. Atacado pela direita autoritária e pela esquerda
recursos econômicos e espaço na mídia, o que vai minando as redes de messiânica, o projeto se inscrevia naquilo que Rosa del Olmo refletia
resistência à truculência policial, forjadas nas lutas contra a ditadura. sobre as políticas criminais de drogas do nosso continente, a ideia
O traficante se converte no inimigo público número um, essa do controle pela legalidade. Em várias partes do mundo o policial
espécie de herege que quer a alma das nossas crianças.(4) A guerra realiza trabalhos fora da sua jornada institucional, uniformizado
contra as drogas é localizada: nas favelas, periferias e nos campos e registrado em sua base, tendo que prestar contas também de suas
de nosso país. Suas mortes são celebradas pela opinião pública tarefas extraturno. A ilusão de que mais e mais policiais resolveriam
com declarações que passam a naturalizá-las: fulano foi morto pela a intensa conflitividade social foi ampliando o problema, junto com
polícia, ele era trabalhador, não era traficante... O medo do crime e sua glamorização. Mal-pagos e sem controle nenhum as (agora)
da letalidade dos mercados proibidos vai produzindo uma colossal milícias se multiplicam produzindo novos terrores e constituindo-se
demanda por mais pena, mais prisões, mais polícia. Nas polícias, em profecias autorrealizáveis. A partir dos anos 2000, no Rio de
aquelas forças especiais antes limitadas começam a se expandir em Janeiro, novas experiências (agora com a entrada dos sociólogos
número, armamento, letalidade e, principalmente, em adesão subjetiva. colaboracionistas) dobram os autos de resistência da década de
É aí que surge a legião de caveiras e camisas pretas, como ecos das 1990. O Estado de polícia não é mais uma metáfora e a guerra ao
polícias do nazifascismo, e nossos âncoras inquisitoriais, escravistas tráfico é intensificada com mais mortes e mais licenças para matar.
e genocidas. A política criminal de drogas foi o maior vetor do que Por ingenuidade ou ignorância, a guerra às drogas no século XXI
Fundado em 14.10.92
DIRETORIA DA GESTÃO 2013/2014
DIRETORIA EXECUTIVA CONSELHO CONSULTIVO
Presidente: Mariângela Gama de Magalhães Gomes Ana Lúcia Menezes Vieira
1ª Vice-Presidente: Helena Regina Lobo da Costa
Ana Sofia Schmidt de Oliveira
2º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna
1ª Secretária: Heloisa Estellita Diogo Rudge Malan
2º Secretário: Pedro Luiz Bueno de Andrade Gustavo Henrique Righy Ivahi Badaró
1º Tesoureiro: Fábio Tofic Simantob Marta Saad
2º Tesoureiro: Andre Pires de Andrade Kehdi
Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais
e Estaduais: Eleonora Rangel Nacif OUVIDOR
Assessor da Presidência: Rafael Lira Paulo Sérgio de Oliveira
O conversador da Praça da Sé
Alvino Augusto de Sá
Dias atrás, eu e Mariana Borgheresi Duarte, minha orientanda vivo. Portanto, não são os títulos outorgados pela Academia e demais
de mestrado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP, instituições que me garantem a continuidade na vida. O título que me
estávamos na Praça da Sé, à entrada da estação do metrô, por volta das garante a continuidade na vida é o de conversador da Praça da Sé. Aliás,
16h00, discutindo algumas questões da rotina acadêmica. Percebi que se nem se trata de título, mas de um modo de ser, de agir, de viver. A vida
acercava de nós, em cambaleios e balbuciando palavras consigo mesmo, não necessita de títulos. A vida é uma grande obra, mas uma obra sem
um indivíduo um tanto embriagado e maltrajado, com toda certeza morador títulos. Às vezes, os títulos podem até colocá-la em risco.
de rua. Como reação primeira e espontânea, senti-me desconfortável ante Ser conversador é não se esquivar da aproximação, do contato. Ser
sua aproximação. A tal ponto que cheguei a virar-me um pouco de lado, conversador é vencer as resistências internas e externas e buscar a todo
para evitar a abordagem. No entanto, ele, segurando suas calças, que custo o diálogo, ainda que em meio à violência. Dar dinheiro é muito
ameaçavam cair, postou-se à nossa frente, e me disse com voz rouca e fácil. Dar rapidamente dinheiro ao pedinte pode ser uma forma sutil de
palavras entrecortadas: “Doutor, me arruma aí uns 15 ou 20 centavos”. dispensá-lo e evitar sua aproximação. O difícil é conversar. Conversar
(Vale esclarecer que eu estava vestido de terno e gravata). é dialogar, é se expor ao outro, é ouvir o outro e valorizá-lo, é buscar
Nisto, deixei de ver naquele interlocutor um indivíduo maltrajado e compreender suas razões e até mesmo as razões de sua violência e
embriagado e passei a ver uma pessoa que pedia minha atenção e meus ameaças. Mas isso é por demais difícil. Muito mais fácil, no caso de
favores, bem como a atenção de minha orientanda. Ofereci-lhe uma violência, é revidá-la e, consequentemente, incrementá-la, com a falsa
nota de dois reais e lhe disse: “Dois reais servem?” Ele pegou a nota, sensação de que estamos seguros e tranquilos por trás de nossos títulos e
respondeu que serviria bastante, agradeceu e me perguntou: “O senhor... de uma máscara de justiça.
o que é? Advogado ou juiz de Direito?” Ocorre que a injustiça é que motiva a violência. Qual injustiça? O que
Em questão de “frações de segundo”, procurei encontrar uma resposta é justiça? As respostas a estas intrigantes indagações, quando referentes
que não fosse mentirosa, por respeito à pessoa que a mim se dirigia, e que às situações dramáticas de violência, não serão encontradas nos livros,
tivesse algum sentido para ele. Não sou advogado, nem juiz de Direito. nos códigos, na doutrina, na filosofia, na moral, na religião, nas ideologias
Se eu lhe respondesse que sou professor de Criminologia da Faculdade de (de esquerda ou de direita), mas na fala das pessoas envolvidas com
Direito do Largo São Francisco, isto não lhe faria sentido algum. E, num a violência. Porém, na fala das pessoas de todos os segmentos, pois
relance de intuição, respondi-lhe, meio que para buscar saber qual seria cada segmento terá suas próprias vivências e respostas sobre o que é
a sua reação: “Eu sou um conversador da Praça da Sé”. Diante de minha ser injustiçado: policiais e seus familiares, agentes penitenciários e seus
colocação, ele, um tanto pensativo, resmungou: “Conversador da Praça familiares, membros da sociedade – vítima, moradores de periferia,
da Sé...”. Em seguida, voltando-se de vez para a Mariana, e já fazendo moradores dos morros, integrantes do chamado crime organizado ou
menção de se retirar, continuou: “É por isso que ele está vivo até hoje”. E das chamadas facções criminosas.(2) E a fala significativa das pessoas
afastou-se na praça, sem rumo, certamente à espera de encontrar um lugar envolvidas com a violência acontece na conversa, na conversa sem
onde pudesse desfrutar de seus dois reais, e sempre segurando com a mão títulos, na conversa entre iguais, que se processa na praça pública.
4 esquerda suas calças, que continuamente ameaçavam cair.
Para as pessoas que se sentem injustiçadas, violentadas em sua
Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje. história, não interessa o que dizem os códigos, a moral, a ética, a filosofia
Gostaria muito de discutir com nosso interlocutor o que ele quis dizer sobre o que é justiça e o que é violência, mas sim o que elas sentem
com esse seu resmungo, mas infelizmente ele se retirou, certamente na pele e o que diz a sua própria história. Trata-se de litígio histórico.
porque não se tratava de uma resposta dele, mas unicamente de uma O enfrentamento saudável do litígio histórico não se dá por seu
reflexão, um resmungo dele consigo mesmo. Comentei com a Mariana acirramento, mas pela compreensão mútua das partes litigantes.
o sentido profundo que aquelas palavras poderiam ter, e ficamos os dois
Muitas violências têm sido praticadas em nossas ruas, com inúmeras
em silêncio por segundos. Permito-me fazer a seguir algumas reflexões
mortes, execuções sumárias, incêndio de ônibus etc. Violências
a partir do resmungo de nosso interlocutor, muito provavelmente um
frequentemente atribuídas ao chamado crime organizado, ou, em outros
morador de rua, um morador da Praça da Sé.(1)
termos, às facções criminosas. Esta não é a primeira onda de violências
Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje. que nos assombra a todos. E todos se perguntam: será a última? Quando,
Ou seja, fosse eu um advogado, um juiz de Direito, ou outro profissional como e contra quem será a próxima? Mas a pergunta que mais angustia
engravatado, que unicamente transita pela praça, mas indiferente a ela a todos e se transforma no grande desafio para políticos e autoridades é
e até aversivo às pessoas que ali estão, talvez eu não estivesse mais esta: afinal, qual é o caminho de solução para esse clima de guerra?
Os políticos e autoridades apressam-se em providenciar, ou melhor, em
“Dar rapidamente dinheiro ao pedinte improvisar soluções, em dar respostas que satisfaçam a opinião pública.
Aliás, a bem da verdade, não improvisam absolutamente nada, pois todas
pode ser uma forma sutil de dispensá-lo e e quaisquer soluções apresentadas, em termos de providências imediatas,
são sempre as mesmas, aquelas conhecidas de sempre e de todos: novas
evitar sua aproximação. O difícil é conversar. prisões, transferências de presos para presídios federais, trocas de
Conversar é dialogar, é se expor ao outro, secretários ou de outros titulares de postos de comando, prisão de policiais
envolvidos em (supostas) execuções de (supostos) criminosos, entre
é ouvir o outro e valorizá-lo, é buscar outras. No âmbito legislativo, as providências reclamadas e proclamadas
são sempre as mesmas: criação de novos tipos penais, agravamento de
compreender suas razões e até mesmo as penas, endurecimento das regras para a concessão de benefícios. Todas
razões de sua violência e ameaças.” essas ditas soluções têm um traço em comum: prescindem de qualquer
reflexão, de qualquer trabalho intelectual sério de aprofundamento na
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sendo desnecessário que sejam utilizados para qualquer finalidade que continha – especialmente pela previsão de guarda dos logs pelos
específica. Por fim, esta norma também incriminou o controle remoto provedores de Internet(10)–, acabou esvaziada após acordo celebrado na
não autorizado do dispositivo invadido. Saliente-se, contudo, que a Câmara dos Deputados, sendo aprovada com apenas quatro artigos. Teve,
manutenção remota de sistemas por empresas prestadoras de serviço ainda, vetados dois deles de forma que o texto apenas determina que
não caracteriza o crime, salvo quando ultrapassar a finalidade ínsita ao “os órgãos da polícia judiciária estruturarão, nos termos de
serviço e desdobrar-se para uma velada e escusa obtenção, adulteração regulamento, setores e equipes especializadas no combate à ação
ou destruição de dados ou informações do dispositivo em manutenção. delituosa em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou
Por seu turno, no § 4.º há causa de aumento de pena de um a dois sistema informatizado”, além de introduzir dispositivo para obrigar que a
terços sempre que houver “divulgação, comercialização ou transmissão a prática, a indução ou incitação de discriminação ou preconceito de raça,
terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos, se o fato não cor, etnia, religião ou procedência nacional, praticados por intermédio
constitui crime mais grave”. Trata-se de uma necessária complementação dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza,
ao parágrafo anterior porque, normalmente, a obtenção de informações tenham a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas,
sigilosas e de segredos comerciais ou industriais visa a um proveito eletrônicas ou da publicação por qualquer meio.
econômico para o agente, o qual será obtido com a comercialização ou Concluindo, para fins de repressão aos crimes digitais, era certa
transmissão a terceiros, ou a um prejuízo para o concorrente, o que se a necessidade de melhor regulamentação de condutas praticadas no
dará na hipótese de indevida divulgação para o mercado. A divulgação e âmbito e com o uso da tecnologia. Esperava-se, no entanto, que as leis
a exploração econômica desses dados ou informações podem caracterizar trouxessem conceitos mais precisos, penas mais adequadas à gravidade
também o crime de concorrência desleal previsto no art. 195, XII, da das condutas e, ainda, a contemplação dos ataques Denial of Service
Lei 9.279/1996.(8) Porém, pode-se sustentar que, por ser posterior, a contra os particulares em geral.
Lei 12.737 prevalecerá nas modalidades “divulgação” e “exploração”.
No § 5.º, que encerra as disposições do art. 154-A, prevê-se que as
Notas
penas serão aumentadas de um terço até a metade nos casos em que os
crimes forem praticados em detrimento de autoridades públicas, haja (1) Crimes digitais próprios ou puros são também conhecidos como delitos de
risco informático. O bem jurídico tutelado é precipuamente a segurança dos
vista a natural maior gravidade de uma violação de informações que lhes sistemas. Crimes digitais impróprios ou mistos são aqueles cujo envolvimento
digam respeito pela função de que estão investidas. com a tecnologia se resume à utilização de meios digitais como meio para sua
A“Lei Dieckmann” pretendeu, ainda, incriminar a interferência em prática. Para maior detalhamento, vide o nosso Crimes digitais (São Paulo:
Saraiva, 2011).
sistemas ultimada pelos ataques Denial of Service ou, no vernáculo,
(2) Será condicionada à representação como regra e, no caso de prática em
denegação de serviço. Por tal razão acrescentou um parágrafo ao desfavor da Administração Pública, será pública incondicionada.
art. 266, que recebeu o nomen juris de “Interrupção ou perturbação (3) Tráfego de dados móveis no mundo terá crescimento de 50% até 2018. Disponível
de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de em: <http://imasters.com.br/noticia/trafego-de-dados-moveis-no-mundo-tera-
informação de utilidade pública”. Cumpre salientar que o Código Penal crescimento-de-50-ate-2018>. Vide, também, Tráfego de dados móveis no
já havia tipificado a conduta do art. 266, caput, cujo objeto jurídico é Brasil crescerá 19 vezes até 2016. Disponível em: <http://convergenciadigital.
uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=29224&sid=17>. Ambos com
a incolumidade pública, e cujo objeto material se restringia então aos acesso em: 20.02.2013, às 12h35min.
serviços de telegrafia, radiotelegrafia e telefonia. Ao acrescentar o § 1.º se (4) Aqui há uma impropriedade técnica da redação, tendo-se em vista que
pretendeu também resguardar o serviço telemático ou de informação de “vulnerabilidades” não são instaladas, mas sim exploradas.
utilidade pública, tipificando a conduta de quem o interrompe por meio (5) Tecnologia da Informação.
do Denial of Service, impede ou dificulta-lhe o restabelecimento. Faz-se (6) Um malware (vírus) não é propriamente um “dispositivo informático”
(periférico), mas um software, um programa de computador.
10 necessário, portanto, que o serviço afetado seja público, ainda quando
(7) São espécies de vírus computacionais – malwares.
exercido por empresa concessionária (autorizatária ou permissionária).
Logo, atividades privadas de comércio eletrônico que não sejam de (8) “Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (…) XII – divulga,
explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se
utilidade pública não estão protegidas pela lei, pelo que, com a tipificação refere o inciso anterior [dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou
advinda pela inserção do § 1.º não se resolve o problema dos ataques de prestação de serviços], obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante
denegação de serviço contra particulares. fraude. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.”
Por fim, a “Lei Dieckmann” previu uma alteração nos crimes de (9) “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é
por este absorvido.”
falso, precisamente no art. 298 (falsificação de documento particular). (10) Logs são registros de atividades gerados por programas de computador. Por
Assim, o parágrafo único passará a equiparar a falsificação de cartão de exemplo, registros da conexão de uma máquina na Internet, como dia, hora,
crédito ou débito à falsificação de documento particular. Ressalta-se, no local etc.
entanto, que por diversas vezes este falso é um meio para a obtenção de
vantagem indevida, caso em que essa conduta restará absorvida pelo crime
de estelionato, nos termos da Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça.(9) Marcelo Xavier de Freitas Crespo
Não obstante, caso o agente venha, agora, apenas a falsificar os cartões, sem Doutor e Mestre pela USP.
a eles pessoalmente conferir algum uso, será punido pelo crime autônomo. Pós-graduado em Direito Penal pela
No que tange à “Lei Azeredo” (Lei 12.735/2012), que enquanto Universidade de Salamanca.
projeto foi chamado de “AI-5 digital” por conta dos pontos polêmicos Advogado.
4. O verdadeiro problema da Justiça Criminal brasileira prolação de decisões contrárias aos posicionamentos desta Corte e do
Supremo Tribunal Federal é um grande e grave fator – desnecessário –
A bem da verdade, lamenta-se na nova posição jurisprudencial do a concorrer para a demora na concretização da prestação jurisdicional,
STF a perda da chance de enfrentar a verdadeira razão da mazela da causado pelos próprios Juízes das instâncias antecedentes”.
Justiça Criminal brasileira.
Como se percebe, concessa maxima venia, melhor teria andado o
Aliás, antes de limitar garantia fundamental,(4) poderia ter trilhado Supremo Tribunal Federal se, ao revés de bitolar o habeas corpus, tivesse
a Suprema Corte o caminho de restringir o acesso à justiça do próprio caminhado na direção de averiguar a razão pela qual tal remédio é tanto
Estado brasileiro, principal descumpridor da lei produzida por ele utilizado, chegando-se à fácil constatação de que a sua jurisprudência
mesmo e que ainda assim tem para si uma “justiça” própria para resolver não é lá muito seguida quando se trata de reconhecer direitos às pessoas
os seus problemas (justiça federal e juízos fazendários estaduais), com processadas criminalmente.
incontáveis recursos.
Fosse diferente, não teria o próprio Supremo Tribunal Federal
Não é esse o campo próprio para tal debate, que poderia servir, concedido 35% dos habeas corpus lá impetrados,(5) mesmo quando não o
inclusive, para sugerir a ampliação do número de ministros nos Tribunais conhece e paradoxalmente o concede de ofício, atestando a existência de
Superiores (por que não?), prestigiando-se aqui em discutir o problema ilegalidade ao direito de ir e vir e, em última análise, a suma importância
da Justiça Criminal no Brasil. do habeas.
Com efeito, ao nosso singelo juízo, tudo passa por saber o verdadeiro
papel do Juiz Criminal, se paladino da defesa social ou se garantidor dos 5. Conclusão
direitos fundamentais.
A toda evidência, quando o Estado chama para si a tarefa de julgar Uma anedota conhecida dá conta de que o marido, vendo sua esposa
e cria o processo como forma de solução de conflitos, assim o faz para traí-lo com o amante no sofá, prefere se desfazer do objeto, a mandar
reconhecer o direito do débil (o acusado) em oferecer resistência à embora a traidora, como que impondo a culpa da traição ao divã.
pretensão do titular do direito de ação em exercer o ius puniendi. Não fosse Fica nessa interpretação do Supremo Tribunal Federal, ao menos
para isso, não seria necessário o processo, deixando o débil à própria sorte para o operário do Direito, a ideologia do marido traído.
e sob o jugo da supremacia de força do próprio Estado Acusador. A Suprema Corte se enveredou por limitar a utilização do
Como corolário de tal conclusão, o Juiz Criminal deve ser o garante habeas corpus, a bem da estatística e das prateleiras vazias, como se a
dos direitos fundamentais, buscando assim fazer justiça em contrapartida culpa do excesso de feitos distribuídos nas Cortes Superiores pudesse ser
ao justiçamento feito pelos Juízes da Defesa Social. atribuída ao acusado no processo criminal ou a sua defesa, esquecendo-se
O Superior Tribunal de Justiça, em liminar concedida pela Ministra de enfrentar as causas da ilegalidade ao direito de liberdade, como se esta
Laurita Vaz no HC 254.034, já teve a oportunidade de perceber que é não tivesse sendo cometida.
grande o número de magistrados e tribunais que tem prestigiado a defesa Como quer que seja, ainda é tempo de se divorciar dessa visão
social e, em nome dela, desatendido a jurisprudência dos Tribunais deturpada, em homenagem ao direito de liberdade. Espera-se que seja
Superiores quando pródiga em garantir direitos. logo.
Pela importância do tema, vale a transcrição de parte da decisão
mencionada: Notas
“No mais, no caso é nítida a afronta do Juízo de primeiro grau e (1) HC 97.256/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Brito, j. 01.09.2010.
12 do Tribunal de origem aos posicionamentos deste Superior Tribunal, (2) HC 96.772/SP, 2.ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 09.06.2009.
o qual, ao editar a súmula acima mencionada, pacificou seu próprio (3) São exemplos as decisões relatadas pelos Ministros Campos Marques
entendimento acerca da controvérsia, e cumpriu seu relevante papel (convocado), Marco Aurélio Belizze, e Marilza Maynard (convocada),
de unificador da interpretação das leis federais. Da mesma forma, há respectivamente, HC 251.303/SP, AgRg no HC 254.399 e HC 169.556/RJ.
ofensa à autoridade da Suprema Corte. (4) A racionalização do acesso ao Supremo Tribunal Federal, tônica tradicional
e angustiante do processo civil, abre suas asas de forma robusta sobre o
Relembre-se ao Magistrado de piso e à Corte origem que a edição processo penal, apegando-se a uma lógica que, ao revés de conformar
de súmulas é apenas o último passo do longo processo de uniformização princípios constitucionais, privilegia o resultado, diga-se, o julgamento em
da jurisprudência, o que se dá após inúmeras discussões e divergências menor tempo e o conhecimento de um menor número de ações ou recursos,
acerca do sentido e alcance de dispositivos dentre os próprios ministros, em detrimento dos também princípios constitucionais do devido processo
legal, formal e substancial, da ampla defesa e do contraditório, enfim, do
em diversos órgãos julgadores. acesso à ordem jurídica justa. O pano de fundo dos julgamentos mencionados
O acolhimento de posições pacificadas ou sumuladas pelos é esse: o de se privilegiar a tempestividade da prestação da atividade,
tribunais superiores ou pelo Supremo Tribunal Federal – vinculantes, ignorando-se os reais vilões do abarrotamento da Corte. Erradamente, com
o respeito devido, empresta-se maior valia ao princípio mais recentemente
ou não – está longe de significar um ‘engessamento’ dos Magistrados introduzido no texto da Constituição em detrimento daqueles obrados pelo
de instâncias inferiores. O desrespeito, porém, em nada contribui constituinte originário.
para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Sequer provoca (5) Disponível em: <www.stf.jus.br>. Notícia: STF concede 35% dos
a rediscussão da controvérsia da maneira devida, significando, habeas corpus analisados. Quase 30% em favor de pessoas de baixa renda.
tão somente, indesejável insegurança jurídica, e o abarrotamento Publicado em 22.05.2009.
desnecessário dos órgãos jurisdicionais de superposição.
Em verdade, ao assim agirem, as jurisdições anteriores desprestigiam Tiago Abud da Fonseca
o papel desta Corte de unificador da Jurisprudência dos Tribunais Mestre em Direito.
Pátrios, e contribuem para o aumento da sobrecarga de processos que
Professor de Processo Penal da Universidade Estácio de Sá.
já enfrenta este Sodalício, além de ensejar grande descrédito à atividade
Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro.
jurisdicional, como um todo.
Por isso, devem os Julgadores de hierarquia jurisdicional ínfera
compreender que, neste Superior Tribunal de Justiça, onde apenas dez Henrique Guelber de Mendonça
ministros têm a hercúlea tarefa de julgar habeas corpus impetrados Mestre e Doutorando em Direito Processual pela UERJ.
contra Tribunais de apelação de todo o país, a contraproducente Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro.
2000-2001
2001-2002
2002-2003
2003-2004
2004-2005
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2008-2009
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2010-2011
2011-2012
naquela Corte precisaria obrigatoriamente da utilização do sistema de
peticionamento eletrônico. Para tanto, é exigida uma certificação eletrônica,
que não é gratuita, e algumas habilidades com as novas tecnologias.
Essa inusitada restrição ao uso de habeas corpus é incompatível – figura “indispensável à administração da justiça” (art. 134 da CRFB) –,
com a realidade fática de muitos advogados brasileiros e compromete cujo ofício na esfera penal consiste sobretudo na garantia do Direito
princípios basilares da normativa nacional e internacional. Constitucional de defesa técnica.
Uma das primeiras curiosidades ao se deparar com o estudo do tema Quando o inc. LV do art. 5.º da Constituição pretende assegurar a ampla
foi a de investigar eventual impacto no número de impetrações dirigidas defesa “com os meios e recursos a ela inerentes”, inclui evidentemente o
à Corte. Na elaboração de uma linha de tendência da história recente direito a uma defesa técnica que supõe a assistência de um profissional
desde 2000, dez anos antes da norma, percebe-se uma súbita redução de com conhecimentos teóricos do direito e que possa trazer um equilíbrio na
autuação de habeas corpus nos dois anos seguintes à entrada em vigor relação entre acusação e defesa. Nesse sentido, Aury Lopes Jr. afirma que
da Resolução 427, em 1.º.08.2010 (vide gráfico). Mas é possível que a defesa técnica promove uma “acertada presunção de hipossuficiência
existam outras variáveis contribuindo para explicar o fenômeno, não do sujeito passivo, de que não tem conhecimentos necessários e suficientes
havendo uma exclusiva relação causal. parar resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com
Praticamente impossível será aferir quantas ordens de habeas corpus o acusador” (Lopes Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal. Rio
foram afetadas devido à incidência dessa norma. Há aquelas que foram de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 233 e ss.).
rejeitadas de imediato na triagem. Algumas podem ter sido reelaboradas Além de o dispositivo ter ferido vários preceitos normativos, não 13
e, depois de algum tempo, processadas pela via digital ou assinadas condiz absolutamente com a realidade social brasileira.
por pessoas que não fossem advogados. Outras tantas devem ter sido
O peticionamento eletrônico ainda não está plenamente instituído
abandonadas. Para umas e outras a prestação do direito de acesso
em todos os tribunais do território nacional e a certificação eletrônica
à justiça foi prejudicada, mesmo que pela falta de celeridade para
corrigir situações potenciais de graves violações de direitos a demandar ainda não é um instrumento de trabalho indispensável ao exercício da
providências imediatas. advocacia. Os tribunais inferiores e até mesmo o Superior Tribunal de
Justiça não preveem semelhante restrição para o habeas corpus.
Nesse contexto, é bom se ter em mente que, conforme declarações do
próprio Ministro Gilmar Mendes, nossa Corte Suprema tem apresentado O acesso à internet e à realidade digital ainda não se universalizou no
índices elevados de deferimento de habeas corpus, em torno de um Brasil. Segundo pesquisa engendrada pelo Ibope Nielsen Online,(2) 73,9
terço.(1) milhões de brasileiros têm acesso à Internet, número que corresponde
Muitos advogados que não se adequaram às novas exigências talvez a apenas 38% da população do país. Muitos dos advogados ainda não
tenham desistido de cogitar a impetração de novas ordens. E deve haver se adaptaram às tecnologias digitais da contemporaneidade. A exclusão
também aqueles que ainda nem sabem que o fatídico dispositivo foi digital atinge bons advogados, sobretudo aqueles de idade mais avançada
reformado, restaurando a normalidade constitucional. ou mais desprovidos de recursos econômicos, que teriam capacidade de
oferecer uma boa defesa técnica.
O mais inquietante, todavia, é que essa norma provocou lesão
substantiva ao Direito Civil de acesso à justiça em sua garantia mais A parcela da população que mais necessita da ação constitucional de
fundamental. Ofendeu gravemente o inc. LXXVII do art. 5.º da CRFB habeas corpus para a tutela de sua liberdade é justamente aquela que mais
sobre a gratuidade do habeas corpus. Na normativa internacional o carece de condições econômicas para arcar com um advogado particular.
dispositivo violou prescrições da Declaração Universal dos Direitos Quando conseguem contratar um, é mediante grande sacrifício. E muitos
Humanos (art. VIII), do Pacto Internacional de Direitos Civis e desses advogados que se dedicam à defesa na esfera criminal dessa
Políticos (art. 5, I; e art. 9, I), do Pacto de San José da Costa Rica população mais fragilizada sobrevivem também com dificuldades e
(arts. 7.º, 3 e 6; 8.º, 2, c e d) e na jurisprudência do Sistema privações materiais.
Interamericano seguiu na contramão da Opinião Consultiva OC-9/87 e A despeito da imposição do art. 134 da Constituição da República,
da decisão sobre o caso Hermanas Serrano Cruz vs. El Salvador. a Defensoria ainda é manifestamente deficitária em todo o País. No
A restrição ao princípio da gratuidade do habeas corpus é mais mais das vezes, no lugar de uma Defensoria Pública bem estruturada
indevida se considerarmos que ela é feita justamente para o advogado e operante, funcionam os mambembes convênios com a OAB, pelos
16
(2) Lombroso, Cesare; Ferrero, Guglielmo. Criminal woman, the prostitute, (6) Prólogo de Virgolini, Julio E. S. In: Buján, Javier Alejandro; Ferrando,
and the normal woman. Durham: Duke University Press, 2004. Apud Victor Hugo. La Cárcel Argentina. Una perspectiva crítica. Buenos Aires:
Angotti, Bruna. Op. cit., p. 153. Ad-Hoc, 1998, p. 20.
(3) A Corregedoria de presídios da Vara de Execuções Criminais de Taubaté (7) Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel
irradia competência judicial a 8 unidades prisionais: Centro de Detenção Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 36.
provisória de Taubaté; Penitenciárias masculinas I e II de Tremembé; (8) Resolução 144 da Secretaria da Administração Penitenciária, de 29 de junho
Penitenciárias femininas I e II de Tremembé; Penitenciárias masculinas I e de 2010, que institui o regimento interno padrão das unidades prisionais do
II de Potim; Centro de Progressão Penitenciária de Tremembé. Nas unidades Estado de São Paulo. Seu art. 157, § 1.º, veda a “revista interna, visual ou
estão segregadas 9.041 pessoas, conforme <www.sap.sp.gov.br>, acesso tátil do corpo do indivíduo”. Disponível em: <www.sap.sp.gov.br>. Acesso
em: 03.01.2013. em: 03.01.2013.
(4) Art. 244 do CPP: “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de (9) Art. 149 ao art. 158 da Resolução 144 da SAP.
prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse
de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou (10) Ayrault, P. L’odre, formalité et Instruction Judiciaire, 1576, L. I. cap. 14
quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”. Apud Foucault, Michel. Op. cit., p. 39.
(5) Trecho da decisão exarada nos autos do Expediente 007/2011, da 1.ª Vara
das Execuções Criminais de Taubaté/SP, que respondeu consulta feita pela
Direção da Penitenciária I masculina de Tremembé/SP, sobre o procedimento
Saulo Dutra de Oliveira
a ser adotado em face de mulheres visitantes, suspeitas de portarem objetos Defensor Público do Estado de São Paulo
ocultos em partes íntimas, para ingresso na unidade prisional. Coordenador das Execuções Criminais – Regional Taubaté.
Descasos
Soon-Yi
Alexandra Lebelson Szafir
Soon-Yi(1) é sul-coreana, mas vive em São Paulo desde a infância. modo algum me prepararam para dois fatos bizarros que vieram a seguir.
Para quem a vê pela primeira vez, ela, desde logo, chama a atenção pela O primeiro ocorreu no dia do julgamento. Enquanto eu dava uma olhada
beleza e pelo temperamento doce. Com o tempo, essa primeira impressão final nos autos, fui abordada por uma estagiária da impetrante, dizendo que
se fortalece. Ela definitivamente não deveria estar em uma prisão, mas foi esta sempre tivera a intenção de fazer a sustentação oral (intenção esta
lá que a conheci. jamais comunicada na conversa telefônica mencionada acima) e que eu
A história é trágica. Apesar de viver em um ambiente moderno estaria incorrendo em infração ética. A empáfia daquela moça fez com que
– cursava uma faculdade de psicologia – convivia também com as o sangue me subisse à cabeça!
tradições do seu povo, uma delas o casamento arranjado pelas famílias. Respondi-lhe que seria um prazer ouvir a sustentação da procuradora e
Já antes do casamento, seu noivo a espancava. A perspectiva de passar indaguei onde ela estava. O fato é que, apesar de mandar a assessora dizer
a vida ao lado dele a aterrorizava, mas parecia ser a única que se lhe aqueles absurdos, ela não se dignara a comparecer à sessão de julgamento!
apresentava, pois ideias de rompimento do compromisso ou mesmo de fuga Antes de sustentar, fiz questão de indagar dos desembargadores se havia
18 eram soterradas por ameaças dele aos pais dela. infração ética, apenas para que a fedelha ouvisse a resposta negativa.
Acuada, armou um plano para matá-lo. Atingiu seu objetivo, mas como A sustentação oral acabou sendo de extrema importância, pois o Relator,
estava longe de ser uma profissional do crime, a autoria foi descoberta quase por seu voto, denegava a ordem. O Procurador de Justiça, contrariando o
que imediatamente. parecer escrito, manifestou-se pela concessão da ordem, e acabamos vencendo
Olhando o processo, descobri que ela se manteve calada, não contou sua por 2 a 1, contra o voto do Relator. Tenho para mim que, se não fossem os
história. Acabou condenada a 12 anos de reclusão. debates ensejados pela sustentação oral, essa vitória jamais ocorreria.
Quando a conheci, ela já tinha obtido a progressão para o regime O segundo fato bizarro aconteceu quando um Promotor de Justiça
semiaberto. Trabalhava e estudava, quando, como é praxe no caso de se manifestou contra a saída temporária de Soon-Yi, unicamente por ela
condenados estrangeiros, sobreveio o decreto de expulsão do País, a ter ser estrangeira. Tendo em vista que isso contrariava a decisão proferida
efeito somente depois de cumprida a pena. O decreto não fazia menção, e no habeas corpus, despachei uma petição com o Juiz Corregedor, o qual
nem poderia, a qualquer modificação na forma de cumprimento da pena, a determinou a vinda imediata dos autos ao seu gabinete.
qual, é lógico, é regida pela Lei de Execuções Penais. Como a definição do termo “imediata” do Cartório das Execuções
Mas o juiz responsável pela Execução da pena de Soon-Yi tinha Criminais de São Paulo é diferente da do dicionário, tive que discutir
iniciativa. Decidiu, ao arrepio da lei, proibir o trabalho externo e as saídas longamente para que a ordem fosse cumprida. Enquanto isso, uma moça me
temporárias dela. É claro que as hipóteses em que essa proibição pode observava, sem oferecer qualquer ajuda. Só depois de o problema resolvido,
ocorrer estão em um rol taxativo na Lei de Execuções Penais, e o decreto ela se apresentou como “dona” do habeas corpus: suas palavras exatas
de expulsão não está entre elas. Mas o que importa a lei diante da opinião foram “esse HC é meu”. Resisti bravamente a perguntar por que ela não me
do juiz? Aparentemente nada para aquele magistrado. E na opinião dele, o ajudara e ficara só olhando enquanto eu brigava pelo HC “dela”. Mas não
decreto de expulsão inviabilizava as saídas, ainda que, repita-se, a expulsão resisti a fazê-la admitir que foi um trabalho conjunto, pois sem a sustentação
só tivesse efeito após o término do cumprimento da pena. oral, dificilmente ganharíamos.
O caminho era impetrar um habeas corpus. Descobri, entretanto, Hoje, Soon-Yi está casada com um funcionário da penitenciária onde
que já havia um em andamento, muito bem escrito, por sinal, impetrado esteve presa, e tem uma linda filha. A expulsão foi revogada.
pela Procuradoria de Assistência Judiciária (não havia ainda a Defensoria
Pública em São Paulo). Notas
Entrei em contato com a Procuradora que escrevera o writ, dizendo que, a (1) Nome fictício.
pedido de Soon-Yi, eu pretendia sustentá-lo oralmente no dia do julgamento
e pedindo que, na qualidade de impetrante, ela me desse uma procuração
para fazê-lo. Ela se recusou, dizendo que, como não era uma defensora Alexandra Lebelson Szafir
constituída, isso era desnecessário. Foi uma conversa muito cordial, que de Advogada. (aleszafir@uol.com.br)
SEMINÁRIOIBERO-AMERICANO
SOBREDROGAS
8 e 9 de maio de 2013
Local: Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
A ideia central do encontro é ampliar o debate no Brasil sobre as mudanças na política de drogas ocorridas nos últimos anos,
com ênfase nos modelos existentes em Portugal e na Espanha, especialmente na Comunidade Autônoma do País Vasco,
além da análise da conjuntura em alguns países da América Latina, nos quais o tema vem ganhando a agenda política. Todas
as iniciativas recentes de descriminalização ou que apontem para uma perspectiva de tolerância serão abordadas.
Palestrantes Confirmados
Jorge Quintas | PORTUGAL
C
Martin Barriuso | ESPANHA Maurício Fiore
M
Xabier Arana | ESPANHA Maurides de Melo Ribeiro
Y Cristiano Avila Maronna Pedro Abramovay
CM Daniela Skromov de Albuquerque Paulo Teixeira
Dartiu Xavier da Silveira Sérgio Seibel
MY
PARCERIA:
CY
Luciana Boiteux Instituto Manoel Pedro Pimentel
CMY
Luciana Guimarães
K 19
Palestra de Martin Barriuso Palestra de Xabier Arana
08.05.2013 - 09h30 às 10h40 09.05.2013 - 09h30 às 10h40
Primeira Mesa - 11h às 12h30 Terceira Mesa - 11h às 12h30
Internação em Massa Políticas de Drogas
Daniela Skromov de Albuquerque e Luciana Boiteux e Maurício Fiore
Dartiu Xavier da Silveira
Palestra de Paulo Teixeira
Palestra de Jorge Quintas 09.05.2013 - 19h às 20h05
08.05.2013 - 19h às 20h05 Quarta Mesa - 20h15 às 21h45
Segunda Mesa - 20h15 às 21h45 Interface entre Drogas e Segurança Pública
Redução de Danos Luciana Guimarães, Pedro Abramovay e Cristiano Avila Maronna
Maurides de Melo Ribeiro e Sérgio Seibel
BEST SEllErS
Imagens ilustrativas
Lançamento Lançamento
Imagens ilustrativas
Televendas 0800-702-2433
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