Você está na página 1de 20

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661

Conheça nossa nova página: www.ibccrim.org.br


Editorial | Editorial

As agruras da execução criminal


Memórias de milícias
Vera Malaguti Batista______________2

no Brasil: solução por via O conversador da praça da Sé


Alvino Augusto de Sá______________4

inconstitucional? Promoção de fins por meio de


normas penais: possíveis mecanismos
de um necessário controle
O Tribunal de Justiça de São Paulo tomou a aplicação do devido processo legal, evitando a criação
Raquel Lima Scalcon_______________6
iniciativa, tendo em vista os problemas atinentes de tribunais “ad hoc”, ou tribunais de exceção –
ao sistema de execução de penas no Estado, de observando-se, assim, o princípio do juiz natural. A O estágio inicial de implementação
propor à Assembleia Legislativa projeto de lei com imparcialidade necessária ao exercício da jurisdição é do monitoramento eletrônico no
o objetivo de modificar substancialmente a estrutura resguardada pelos concursos de promoção e remoção
administrativa da magistratura, no que concerne à Brasil
previstos na legislação estadual.
jurisdição da execução penal. Bernardo de Azevedo e Souza________8
Só está a salvo de pressões, para o exercício
Este Projeto de Lei Complementar 69/2011, de consciente e sereno de seu ofício, com total Os crimes digitais e as Leis 12.735/2012
iniciativa do próprio Tribunal – já aprovado pelo independência e sem controle que não seja o derivado e 12.737/2012
Órgão Especial em 23 de janeiro último –, prevê, entre da própria atividade recursal, o juiz que não possa ser
outras questões: (i) a regionalização e centralização Marcelo Xavier de Freitas Crespo_____9
afastado de onde exerce sua jurisdição por critérios de
da execução penal; (ii) a desvinculação das unidades conveniência administrativa ou política. O Supremo Tribunal Federal, a
prisionais com as respectivas regiões de execução;
Ademais, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) restrição ao habeas corpus e o marido
(iii) a nomeação de juízes para a execução penal por
prevê, em seu art. 2.º, a legalidade da jurisdição na traído
indicação do presidente do Tribunal e chancela do
execução penal, da mesma forma como está prevista Tiago Abud da Fonseca e
Conselho da Magistratura do Estado.
para todo o ordenamento jurídico, sem exceções.
A nova legislação pretende criar o Departamento Henrique Guelber de Mendonça____ 11
Segundo o Código de Processo Penal, não é possível
de Execuções do Estado de São Paulo e prevê, em a indicação de juízes para locais específicos da Um lapso momentâneo da razão no
seu primeiro artigo, que se crie o Departamento de jurisdição. Para cada vaga em aberto deve haver
Execuções e que “o Conselho Superior da Magistratura Supremo
concurso de promoção e remoção, de acordo com a
designará os juízes que atuarão nos Departamentos Lucas Costa Santos e
vontade e liberdade de cada magistrado candidato.
aludidos no caput deste artigo, a partir de indicação Otávio Dias de Souza Ferreira______ 13
do Presidente do Tribunal de Justiça”. Desvincular o juiz competente pela execução
do local onde a pena é executada acarretará imensas Breve análise dogmática do Decreto
O projeto substitutivo tem sérios problemas e
deficiências e dificuldades. O juiz, estando fisicamente Presidencial 7.873/2012 (que concede
tende a levantar a bandeira da necessidade de que
distante, terá menor percepção dos problemas a
se faça alguma coisa a qualquer custo. Importante indulto e comutação de penas)
serem solucionados nos presídios. Famílias – a
que se reafirme que o sistema de execução penal no Patricia Borin Ribeiro e
maioria desprovida de meios para tanto – enfrentarão
Estado de São Paulo, e mesmo em todo o país, sofre Thiago Pedro Pagliuca dos Santos___ 14
verdadeiro périplo para conseguir visitar o preso e
pela ineficiência e descontrole da situação carcerária.
De outro revés, não se pode aceitar que a patologia obter informações sobre o processo de execução,
Mulheres visitantes em unidades
seja medicada com a criação de outros cancros no assim como os advogados e defensores, que terão de
se desdobrar entre as duas localidades. Levando em prisionais: da invisibilidade ao
próprio sistema.
consideração os déficits já existentes nessa seara, tudo tertium genus social. Ainda o Direito
De se ver que, já em seu introito, o projeto de indica que o projeto debilitará ainda mais o exercício Penal do Inimigo
lei despreza garantias previstas pela Constituição dos direitos dos presos.
Federal, que não podem ser tocadas por qualquer Saulo Dutra de Oliveira____________16
legislação, muito menos por legislação estadual Não é legítimo que se pretenda solucionar a
infraconstitucional. Não é legítimo que se pense em morosidade e a lentidão do sistema de execução de | DESCASOS
um departamento de execução penal, absolutamente penas com a destituição de garantias constitucionais
Soon-Yi
desvinculado do local da execução e protagonizado por consagradas ao longo da história do País, que
estabelecem um processo penal racional, centrado na Alexandra Lebelson Szafir__________18
juízes indicados pelo próprio Presidente do Tribunal de
São Paulo. Juízes estes, portanto, desprovidos de parte imparcialidade e objetividade do magistrado.
das garantias instituídas pela Constituição para garantir A situação da execução penal, por si só, já é | Caderno de Jurisprudência
sua imparcialidade. A legislação proposta no Estado de preocupante. Contudo, mais preocupante do que isso é | O DIREITO POR QUEM O FAZ_____ 1637
São Paulo implica possibilidade de destituição do juiz observar que são as nossas próprias casas legislativas,
de seu cargo por ato do Conselho da Magistratura e impulsionadas pelo Tribunal de Justiça do Estado, que | JURISPRUDÊNCIA ANOTADA
por indicação do Presidente do Tribunal, o que poderá pretendem resolvê-la valendo-se do descumprimento
ocorrer a qualquer tempo e, quiçá, em virtude de Supremo Tribunal Federal___ 1641
de regras constitucionais. A retórica do discurso
alguma decisão indesejada ou mal recebida. utilitarista não deve ser – mais uma vez – responsável Superior Tribunal de Justiça___ 1642
A certeza acerca da titularidade do exercício por frustrar a expectativa de melhora da condição
Tribunal Regional Federal___ 1643
perene do cargo, ou seja, a garantia constitucional da carcerária no país. Precisamos, sim, de medidas
inamovibilidade do juiz justifica-se para assegurar a eficazes, legítimas, e, acima de tudo, constitucionais. Tribunal de Justiça__________ 1644
Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Memórias de milícias
Vera Malaguti Batista
A tentativa de resolver problemas político-sociais gravíssimos denominamos “o grande encarceramento”, a maior expansão carcerária
mediante o aumento das penas é um recurso amplamente utilizado na da história do Brasil e do mundo ocidental.
contemporaneidade. A gestão da miséria no neoliberalismo(1) produziu O clamor popular é por mais segurança, mais pena e mais polícia,
uma gigantesca onda punitiva que se espalhou à direita e à esquerda estabelecendo um novo ciclo de autoritarismo na “democracia”: o
do panorama político. Nilo Batista afirma que a pena é um fetiche Estado de polícia.(5) Assistimos a uma profunda “policização” das
que encobre a conflitividade social com suas sombras, produzindo nossas vidas: do Judiciário à academia, cria-se um coro acrítico e
catarses midiáticas que na verdade não só afetam a administração dos ululante. Todos querem um pedaço da cena, principalmente a classe
problemas como costumam agravá-los. Foi um pouco desse espírito política que vai pontificar nos períodos eleitorais com novas propostas
que norteou em 1988 a inclusão na nova Constituição da categoria de de endurecimento para o macabro circo da segurança. Esse mercado,
crimes hediondos “nascida de uma quizila estúpida entre deputados no público e no privado, vai recrutar quantidades inimagináveis
aparentemente antagônicos, porém essencialmente acordes na política de trabalhadores nos dois fronts da guerra. É um circuito brutal e
criminal”,(2) produzindo na realidade brasileira um gigantesco território brutalizante que pontua o cotidiano da vida de todos, mas, em especial,
de exceção que se amplia a cada crime transmitido ao vivo e a cores a vida dos pobres que atravessarão rios de sangue, esquivando-se de
pelas telas onipresentes. muitas cabeças cortadas, educados agora por um cotidiano de terror e
Podemos pensar historicamente, na longa duração, que o Brasil tem truculência.
uma tradição autoritária que permanece apesar de breves hiatos em que A policização da vida faz circular o conteúdo bélico das metáforas:
conjunturas especiais demandam mais controle do poder punitivo. Foi conquista de território, guerra, combate, cruzada. A guerra contra o
assim na saída da ditadura que se enraizou depois do golpe de 1964: crack tem produzido cenas de truculência que são motivo de espanto
“Na transição da ditadura para a ´democracia´ (1978-1988), em todas as redes de saúde coletiva do mundo. Esse retrocesso ou
com o deslocamento do inimigo interno para o criminoso comum, com regressão das utopias democráticas que acalentávamos na saída da
o auxílio luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta a ditadura tem efeitos perturbadores: a desmanicomialização, conquista
estrutura de controle social, com mais e mais investimentos na ´luta das reformas psiquiátricas na década de 1980, está sendo revertida por
contra o crime´. E, o que é pior, com as campanhas maciças de pânico um serviço social totalmente policizado com a prática e a discussão
social, permitiu-se um avanço sem precedentes na internalização do desqualificada das internações compulsórias.
autoritarismo. Podemos afirmar sem medo de errar que a ideologia No Rio de Janeiro rebelde, laboratório de experiências autoritárias
do extermínio é hoje muito mais massiva e introjetada do que nos anos e palco da remilitarização da segurança pública, surge um processo
imediatamente posteriores ao fim da ditadura”.(3) que se inicia com as gratificações faroeste (os policiais ganhavam
A lenta reconstrução do inimigo interno se deu na produção do bônus pelo número de execuções) na década de 1990. Nesse mesmo
2 grande medo e do encobrimento da discussão sobre a questão criminal, período, Carlos Magno Nazareth Cerqueira escreveu um artigo
substituída pelas receitas fáceis vendidas pela indústria do controle do profético em que analisava os novos rumos do trabalho da polícia
crime como pacotes fechados e distantes da realidade nacional: modelos na democracia.(6) Aqueles “esquadrões da morte” ou “grupos de
de polícia, tecnologias de vigilância, prisões high tech, armas letais e extermínio”, desarticulados pelos esforços das primeiras eleições
não letais, enfim, o lixo da “guerra fria”, agora reciclado para o grande diretas para governador, começam a ser incensados pelos governantes
e sustentável “combate ao crime”. O formato de guerra permaneceu (em especial um prefeito) e pela grande mídia como grupos de
incólume, redirecionado aos novos alvos, os escombros da mão de autorresistência contra o grande inimigo, o “narcotráfico”. Passam
obra rejeitados pelo capital vídeo-financeiro que realmente se enraíza a ser chamados milícias, o que lhes confere um novo status e uma
no Brasil a partir dos anos 90. Passadas duas décadas “perdidas”, os relegitimação. Cabe aqui um parêntese: naquele hiato democrático,
trabalhadores sem trabalho se atiraram aos difíceis ganhos fáceis dos logo após o fim da ditadura, tramitou na Assembleia Legislativa
circuitos ilegais e perigosos. A política criminal de drogas, imposta do Rio de Janeiro um projeto de lei que regularizava o segundo
pelos Estados Unidos na conjuntura do golpe, vai cobrando vidas, emprego do policial. Atacado pela direita autoritária e pela esquerda
recursos econômicos e espaço na mídia, o que vai minando as redes de messiânica, o projeto se inscrevia naquilo que Rosa del Olmo refletia
resistência à truculência policial, forjadas nas lutas contra a ditadura. sobre as políticas criminais de drogas do nosso continente, a ideia
O traficante se converte no inimigo público número um, essa do controle pela legalidade. Em várias partes do mundo o policial
espécie de herege que quer a alma das nossas crianças.(4) A guerra realiza trabalhos fora da sua jornada institucional, uniformizado
contra as drogas é localizada: nas favelas, periferias e nos campos e registrado em sua base, tendo que prestar contas também de suas
de nosso país. Suas mortes são celebradas pela opinião pública tarefas extraturno. A ilusão de que mais e mais policiais resolveriam
com declarações que passam a naturalizá-las: fulano foi morto pela a intensa conflitividade social foi ampliando o problema, junto com
polícia, ele era trabalhador, não era traficante... O medo do crime e sua glamorização. Mal-pagos e sem controle nenhum as (agora)
da letalidade dos mercados proibidos vai produzindo uma colossal milícias se multiplicam produzindo novos terrores e constituindo-se
demanda por mais pena, mais prisões, mais polícia. Nas polícias, em profecias autorrealizáveis. A partir dos anos 2000, no Rio de
aquelas forças especiais antes limitadas começam a se expandir em Janeiro, novas experiências (agora com a entrada dos sociólogos
número, armamento, letalidade e, principalmente, em adesão subjetiva. colaboracionistas) dobram os autos de resistência da década de
É aí que surge a legião de caveiras e camisas pretas, como ecos das 1990. O Estado de polícia não é mais uma metáfora e a guerra ao
polícias do nazifascismo, e nossos âncoras inquisitoriais, escravistas tráfico é intensificada com mais mortes e mais licenças para matar.
e genocidas. A política criminal de drogas foi o maior vetor do que Por ingenuidade ou ignorância, a guerra às drogas no século XXI

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


se concentra contra uma das “empresas” do varejo, a mais histórica segurança no sentido da defesa civil, diante das catástrofes anunciadas
e menos misturada com o segundo emprego da polícia. Qualquer pela devastação do planeta. Seria uma maneira de agregar muita gente
estudante de economia inferiria que, ao atacar uma só empresa, estar- que pode ser necessária sem recorrer ao aparentemente fácil recurso
se-ia fortalecendo a concorrência. Afinal, qual impedimento ético da sobrecriminalização. Olhar para a nossa população carcerária com
evitaria a passagem da administração do gás e do gatonet(7) para a “olhos de ver” e ter a coragem de acabar com o proibicionismo seriam
tomada do valioso mercado de drogas? Quando as autoridades se deram medidas complementares. Hoje podemos observar, da criminologia, o
conta, as milícias já tomavam a região da zona oeste, enfrentando as dano irreversível que o conceito de crime organizado produziu no debate
forças públicas, seus pares e configurando novos mapas de domínio da nacional. Zaffaroni demonstrou como essa categorização é falha.(9)
economia popular. O delegado Fernando Villas Boas comprovou como esse conceito mais
As UPPs(8) retomam, a partir do modelo norte-americano e confundiu do que esclareceu alguma coisa para o trabalho policial.(10)
israelense de retomada de território inimigo, essa economia popular Diante desse quadro aterrador, que não aponta para nenhum bom
que, antes demonizada, converteu-se no eixo central do capital vídeo- futuro, recordo a pergunta de um menino de uma área “pacificada”
financeiro. para a pesquisadora Fernanda Goulart Lamarão: “Doutora, quem
O mais preocupante da escalada penal contra as milícias é a nos protege agora da polícia?”.
repetição de um olhar demonizante que dificulta a compreensão dos
fatos e, por isso, nos impede de dar um passo adiante em relação à Notas
macabra letalidade que nos assombra. Nunca se colocou na mesa (1) Wacquant, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
de debate a história do surgimento das facções no Rio de Janeiro e Unidos [A onda punitiva]. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
no Brasil. Era mais fácil associá-las ao inimigo político da ocasião. (2) Batista, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro – I. Rio de
Janeiro: Revan, 2002. p. 269. Sobre crimes hediondos, a obra de referência
Todas as ditas facções nasceram das opressões penitenciárias, desde 1991: Franco, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: RT, 1991.
estabelecendo redes de proteção para as populações encarceradas e (3) Batista, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis. Drogas e juventude pobre no
suas famílias. A demonização que precede o combate e a guerra santa Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 134.
não ajudou a desfazer os nós centrais da questão: os efeitos perversos (4) Batista, Nilo. Matrizes... cit, p. 238.
do proibicionismo como os mercados paralelos, sua brutalidade, sua (5) Batista, Vera Malaguti. O alemão é muito mais complexo. In: _______
capacidade de recrutamento nas décadas perdidas, os acertos com a (Org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
base da polícia. Na superfície, não se negocia; nas profundezas do (6) Cerqueira, Carlos Magno Nazareth. Remilitarização da segurança pública:
cotidiano, todos os acertos são possíveis diante de uma política criminal a operação Rio. Revista Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade.
n. 1, p. 141-168, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
que já dura mais de 40 anos e tem o fracasso como principal marca.
(7) Ligações clandestinas de TV a cabo.
Outra repetição preocupante é aquela que homogeneiza grupos locais
(8) Cf. Batista, Vera Malaguti. O alemão... cit.
heterogêneos, com histórias próprias, na categoria-factoide de milícia.
(9) Zaffaroni, Eugenio Raúl. “Crime Organizado”: uma categorização
 A estratégia de ampliar os tipos penais conquista o público, a frustrada. Revista Discursos Sediciosos... cit., p. 45-68.
direita e principalmente a esquerda punitiva, heróis e figurantes de (10) Villas Bôas Filho, Fernando Alves Martins. Crime organizado e repressão
filmes como Tropa de Elite. O fenômeno de expansão das milícias policial no estado do Rio de Janeiro: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
é completamente associado ao Estado de polícia, aos milhares de Lumen Juris, 2007.
homens atirados aos trabalhos brutalizantes de limpar as nossas
3
cidades da “sujeira  do tráfico”. As primeiras reações aumentaram o Vera Malaguti Batista
problema: prisões e expulsão de policiais que realimentam a economia Professora de Criminologia da UERJ.
das milícias, agora como “bichos soltos”. Secretária Geral do Instituto Carioca de Criminologia.
Em um modesto trabalho proponho que construamos um projeto Diretora da Revista Discursos Sediciosos:
de desarmamento das polícias e sua transformação em corpos de Crime, Direito e Sociedade.

Fundado em 14.10.92
DIRETORIA DA GESTÃO 2013/2014
DIRETORIA EXECUTIVA CONSELHO CONSULTIVO
Presidente: Mariângela Gama de Magalhães Gomes Ana Lúcia Menezes Vieira
1ª Vice-Presidente: Helena Regina Lobo da Costa
Ana Sofia Schmidt de Oliveira
2º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna
1ª Secretária: Heloisa Estellita Diogo Rudge Malan
2º Secretário: Pedro Luiz Bueno de Andrade Gustavo Henrique Righy Ivahi Badaró
1º Tesoureiro: Fábio Tofic Simantob Marta Saad
2º Tesoureiro: Andre Pires de Andrade Kehdi
Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais
e Estaduais: Eleonora Rangel Nacif OUVIDOR
Assessor da Presidência: Rafael Lira Paulo Sérgio de Oliveira

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

O conversador da Praça da Sé
Alvino Augusto de Sá
Dias atrás, eu e Mariana Borgheresi Duarte, minha orientanda vivo. Portanto, não são os títulos outorgados pela Academia e demais
de mestrado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP, instituições que me garantem a continuidade na vida. O título que me
estávamos na Praça da Sé, à entrada da estação do metrô, por volta das garante a continuidade na vida é o de conversador da Praça da Sé. Aliás,
16h00, discutindo algumas questões da rotina acadêmica. Percebi que se nem se trata de título, mas de um modo de ser, de agir, de viver. A vida
acercava de nós, em cambaleios e balbuciando palavras consigo mesmo, não necessita de títulos. A vida é uma grande obra, mas uma obra sem
um indivíduo um tanto embriagado e maltrajado, com toda certeza morador títulos. Às vezes, os títulos podem até colocá-la em risco.
de rua. Como reação primeira e espontânea, senti-me desconfortável ante Ser conversador é não se esquivar da aproximação, do contato. Ser
sua aproximação. A tal ponto que cheguei a virar-me um pouco de lado, conversador é vencer as resistências internas e externas e buscar a todo
para evitar a abordagem. No entanto, ele, segurando suas calças, que custo o diálogo, ainda que em meio à violência. Dar dinheiro é muito
ameaçavam cair, postou-se à nossa frente, e me disse com voz rouca e fácil. Dar rapidamente dinheiro ao pedinte pode ser uma forma sutil de
palavras entrecortadas: “Doutor, me arruma aí uns 15 ou 20 centavos”. dispensá-lo e evitar sua aproximação. O difícil é conversar. Conversar
(Vale esclarecer que eu estava vestido de terno e gravata). é dialogar, é se expor ao outro, é ouvir o outro e valorizá-lo, é buscar
Nisto, deixei de ver naquele interlocutor um indivíduo maltrajado e compreender suas razões e até mesmo as razões de sua violência e
embriagado e passei a ver uma pessoa que pedia minha atenção e meus ameaças. Mas isso é por demais difícil. Muito mais fácil, no caso de
favores, bem como a atenção de minha orientanda. Ofereci-lhe uma violência, é revidá-la e, consequentemente, incrementá-la, com a falsa
nota de dois reais e lhe disse: “Dois reais servem?” Ele pegou a nota, sensação de que estamos seguros e tranquilos por trás de nossos títulos e
respondeu que serviria bastante, agradeceu e me perguntou: “O senhor... de uma máscara de justiça.
o que é? Advogado ou juiz de Direito?” Ocorre que a injustiça é que motiva a violência. Qual injustiça? O que
Em questão de “frações de segundo”, procurei encontrar uma resposta é justiça? As respostas a estas intrigantes indagações, quando referentes
que não fosse mentirosa, por respeito à pessoa que a mim se dirigia, e que às situações dramáticas de violência, não serão encontradas nos livros,
tivesse algum sentido para ele. Não sou advogado, nem juiz de Direito. nos códigos, na doutrina, na filosofia, na moral, na religião, nas ideologias
Se eu lhe respondesse que sou professor de Criminologia da Faculdade de (de esquerda ou de direita), mas na fala das pessoas envolvidas com
Direito do Largo São Francisco, isto não lhe faria sentido algum. E, num a violência. Porém, na fala das pessoas de todos os segmentos, pois
relance de intuição, respondi-lhe, meio que para buscar saber qual seria cada segmento terá suas próprias vivências e respostas sobre o que é
a sua reação: “Eu sou um conversador da Praça da Sé”. Diante de minha ser injustiçado: policiais e seus familiares, agentes penitenciários e seus
colocação, ele, um tanto pensativo, resmungou: “Conversador da Praça familiares, membros da sociedade – vítima, moradores de periferia,
da Sé...”. Em seguida, voltando-se de vez para a Mariana, e já fazendo moradores dos morros, integrantes do chamado crime organizado ou
menção de se retirar, continuou: “É por isso que ele está vivo até hoje”. E das chamadas facções criminosas.(2) E a fala significativa das pessoas
afastou-se na praça, sem rumo, certamente à espera de encontrar um lugar envolvidas com a violência acontece na conversa, na conversa sem
onde pudesse desfrutar de seus dois reais, e sempre segurando com a mão títulos, na conversa entre iguais, que se processa na praça pública.
4 esquerda suas calças, que continuamente ameaçavam cair.
Para as pessoas que se sentem injustiçadas, violentadas em sua
Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje. história, não interessa o que dizem os códigos, a moral, a ética, a filosofia
Gostaria muito de discutir com nosso interlocutor o que ele quis dizer sobre o que é justiça e o que é violência, mas sim o que elas sentem
com esse seu resmungo, mas infelizmente ele se retirou, certamente na pele e o que diz a sua própria história. Trata-se de litígio histórico.
porque não se tratava de uma resposta dele, mas unicamente de uma O enfrentamento saudável do litígio histórico não se dá por seu
reflexão, um resmungo dele consigo mesmo. Comentei com a Mariana acirramento, mas pela compreensão mútua das partes litigantes.
o sentido profundo que aquelas palavras poderiam ter, e ficamos os dois
Muitas violências têm sido praticadas em nossas ruas, com inúmeras
em silêncio por segundos. Permito-me fazer a seguir algumas reflexões
mortes, execuções sumárias, incêndio de ônibus etc. Violências
a partir do resmungo de nosso interlocutor, muito provavelmente um
frequentemente atribuídas ao chamado crime organizado, ou, em outros
morador de rua, um morador da Praça da Sé.(1)
termos, às facções criminosas. Esta não é a primeira onda de violências
Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje. que nos assombra a todos. E todos se perguntam: será a última? Quando,
Ou seja, fosse eu um advogado, um juiz de Direito, ou outro profissional como e contra quem será a próxima? Mas a pergunta que mais angustia
engravatado, que unicamente transita pela praça, mas indiferente a ela a todos e se transforma no grande desafio para políticos e autoridades é
e até aversivo às pessoas que ali estão, talvez eu não estivesse mais esta: afinal, qual é o caminho de solução para esse clima de guerra?
Os políticos e autoridades apressam-se em providenciar, ou melhor, em
“Dar rapidamente dinheiro ao pedinte improvisar soluções, em dar respostas que satisfaçam a opinião pública.
Aliás, a bem da verdade, não improvisam absolutamente nada, pois todas
pode ser uma forma sutil de dispensá-lo e e quaisquer soluções apresentadas, em termos de providências imediatas,
são sempre as mesmas, aquelas conhecidas de sempre e de todos: novas
evitar sua aproximação. O difícil é conversar. prisões, transferências de presos para presídios federais, trocas de
Conversar é dialogar, é se expor ao outro, secretários ou de outros titulares de postos de comando, prisão de policiais
envolvidos em (supostas) execuções de (supostos) criminosos, entre
é ouvir o outro e valorizá-lo, é buscar outras. No âmbito legislativo, as providências reclamadas e proclamadas
são sempre as mesmas: criação de novos tipos penais, agravamento de
compreender suas razões e até mesmo as penas, endurecimento das regras para a concessão de benefícios. Todas
razões de sua violência e ameaças.” essas ditas soluções têm um traço em comum: prescindem de qualquer
reflexão, de qualquer trabalho intelectual sério de aprofundamento na

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


análise do problema, que se apresenta profundo, complexo e histórico. As pessoas que necessitam se identificar com seus títulos, inclusive o
Em outras palavras: prescindem de qualquer inteligência. Os que as criminoso, ali na praça elas temem perder sua identidade. Na praça, as
propõem e implantam, se tiverem inteligência (e a gente até supõe que a pessoas devem aprender a redescobrir sua identidade intrínseca e nela
tenham), não usam absolutamente nada dela nessa delicada tarefa. encontrar sua segurança.
Como falar em compreensão mútua das partes litigantes, quando de É muito mais fácil conversar a partir do parlamento monocrático, das
uma delas diz se tratar de crime organizado? Como falar em compreensão leis, dos gabinetes, escritórios, a partir dos cargos e títulos, da filosofia,
mútua das partes litigantes, quando de uma delas diz se tratar de uma da moral e de valores previamente definidos, da constituição (com letra
sociedade indefesa, refém e vítima histórica de violências? Talvez o minúscula) interpretada e aplicada com escandalosa parcialidade. Nos
primeiro passo na busca da compreensão fosse tentar evitar os rótulos, parlamentos monocráticos, gabinetes e academias, os títulos e cargos
a começar pelo de crime organizado. A se manter esse rótulo, não terá têm como primeira finalidade a de brindar as pessoas com prestígio,
início conversa alguma, e, consequentemente, entendimento algum. Se prerrogativas, direitos e privilégios.
considerarmos os que integram o chamado crime organizado, também Já na praça pública, os títulos não brindam ninguém com prestígios,
para eles a sociedade é organizada em suas forças repressivas, em suas prerrogativas, direitos e privilégios, mas oneram a todos com obrigações,
forças excludentes, em seus preconceitos e em todo seu poder de mídia, compromissos, ainda que, paradoxalmente, sempre em uma relação
de formulação e prática de leis seletivas e injustas, enfim, em seu poder totalmente simétrica com os demais. Lá é o lugar onde justiça e injustiça
de dominação em geral. Também o rótulo vítima deveria ser evitado, pois, têm outras definições. Ou melhor, não têm definição alguma, mas são
tratando-se de litígio histórico, todas as partes litigantes se sentem vítimas. simplesmente vividas e expressas.
A compreensão mútua supõe a aproximação entre as partes. A Em não havendo conversa na praça, haverá violência, que perdurará
aproximação supõe o diálogo, a conversa. E a conversa, para se processar através de seus ciclos. Uma guerra cíclica, sem vencedores. Uma
e progredir, supõe o afastamento de rótulos, assim como também de violência na qual todos são perdedores. A violência pode levar à morte,
títulos. Trata-se de conversa na praça pública, na Praça da Sé, que a todos até repentina, aqueles que dela são vítimas. Por outro lado, porém, poderá
pertence por igual, na qual todos são iguais. Não existe, de um lado, o levar à morte também aqueles que a praticam, ainda que uma morte
crime organizado, assim como não existe, do outro lado, a sociedade interior, paulatina, pouco perceptível, mas nem por isso necessariamente
organizada, a sociedade – vítima. O que existe é um todo conflitivo, a menos sofrida.
sociedade, da qual todos os litigantes fazem parte. É muito difícil ser conversador da Praça da Sé. É muito mais fácil
Dizer isso talvez soe dizer nada mais do que o óbvio. Mas é um dar dois reais a quem nos pede 15 centavos, porque assim a gente o
óbvio que não se impõe, ao qual todos nós resistimos em reconhecer, dispensa logo e evita conversar. Eu gostaria muito de, juntamente com
qualquer que seja o segmento rotulado a que pertencemos, ou do crime a Mariana, encontrar novamente aquele interlocutor na praça, e, sem
organizado, ou da sociedade organizada. Se quisermos construir uma lhe dar dinheiro algum, trocar ideias sobre o que ele nos resmungou,
conversa entre as partes litigantes, este é o ponto de partida fundamental enquanto segurava suas calças. Mas reconheço que isso é praticamente
e inevitável: todos os litigantes estão na mesma praça, todos integram impossível. Não porque nós não o encontremos mais, mas porque o
uma mesma sociedade, pelo que o litígio é um componente que integra a diálogo, as conversas dificilmente se retomam ou se repetem. Elas
própria sociedade e traduz conflitos inerentes a ela, aos quais ela, como geralmente prosseguem, só que em novos contextos e, portanto, com
um todo, deve enfrentar. E eu me arriscaria a dizer que o instrumento novos significados. Na praça, todos devem se preocupar em aproveitar
fundamental, básico, inicial para esse enfrentamento é a conversa, a ao máximo possível o momento da conversa, simplesmente porque o
conversa na praça pública, que a todos pertence por igual. momento não se repete; ele é sempre único.
5
Certa feita, perguntei a um líder de facção, em um presídio: “Até Em todo caso, mesmo assim, eu e Mariana gostaríamos muito de
quando você acha que vai essa onda de violências entre as facções e o prosseguir uma conversa, uma discussão com nosso interlocutor sobre o
Estado?” Respondeu-me ele: “No dia em que o Estado atender a todos que ele quis (ou quer) dizer com seu resmungo: Conversador da Praça
os direitos legítimos dos presos, quem sabe, nesse dia, as facções não da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje.
tenham mais razão de ser”. Observe-se que ele não disse “nesse dia a
gente abre mão das facções”, mas “as facções não tenham mais razão Única referência “bibliográfica”
de ser”. Portanto, não é se combatendo as facções, não é guerreando
Autor: O Interlocutor da Praça da Sé. Obra: A conversa. Autor sem
contra elas que elas se dissolverão. Esse líder (que certamente não quer
nome, obra sem título, publicação sem editora. A obra está disponível
abrir mão de sua liderança, de seu poder, e, portanto, não quer abrir
para todos, de todos os segmentos sociais, não para ser lida, mas para
mão da facção) nos dá a chave da solução: as facções não mais existirão
quem quiser experimentá-la e vivê-la em qualquer praça que seja. Preço:
simplesmente quando elas não tiverem mais razão de ser. E elas não
variável, podendo ser bastante custoso ou prazeroso, dependendo de
terão mais razão de ser quando o seu papel não tiver mais sentido, ou,
cada conversador, mas sempre será profundamente compensador.
quando elas não tiverem mais espaço para desempenharem seu papel. A
saber, quando o Estado for o legítimo e real protagonista do atendimento
às necessidades e direitos legítimos dos candidatos à seletividade penal Notas
e da população carcerária. (1) Cumpre dizer que o episódio acima se deu na época em que vinham
acontecendo cenas de violência na cidade de São Paulo, com ataques a
E quais são essas necessidades? Quais as demandas? Quais as
ônibus e assassinatos.
frustrações? Como atendê-las? Todas essas questões estão cravadas
(2) Argumentando pelo extremo, até mesmo o grande latifundiário que se sente
em litígios e conflitos históricos, componentes da própria textura da injustiçado e violentado por ter tido uma de suas diversas fazendas invadida
sociedade: conflitos entre ter e não ter, entre pertencer e não pertencer, e desapropriada para fins de assentamento, até ele deve ser respeitado em sua
entre ser e não ser. As respostas a elas, ou melhor, sua discussão será fala sobre o que é injustiça e violência. O entendimento não amadurecerá e
processada de forma construtiva por meio da conversa na praça pública. não criará raízes, sem que sua fala também seja ouvida e processada, dentro
de um diálogo que será sempre e sempre paradoxal e jamais concluído.
Ora, como é difícil ter uma conversa construtiva na praça pública!
Sim, porque ali é o lugar sem títulos, por vezes até sem nomes, em que
todos se igualam, ninguém é doutor ou professor. Lá é o lugar onde o Alvino Augusto de Sá
juiz não é juiz, o promotor não é promotor, o advogado não é advogado, Professor de Criminologia na Faculdade de
o parlamentar não é parlamentar e onde o criminoso não é criminoso. Direito do Largo São Francisco – USP.

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Promoção de fins por meio de normas penais:


possíveis mecanismos de um necessário controle
Raquel Lima Scalcon
Um questionamento acerca dos fins ou das finalidades no Direito rica e problemática. É, concomitantemente, a mais capaz de gerar
Penal não é algo propriamente novo, seja em relação à categoria do crime, importantes soluções, mas também a mais propensa a permitir e a
seja em relação à da pena. Exemplificativamente, Franz von Liszt já justificar arbitrariedades e violações a direitos fundamentais.
falava, em seu Tratado de direito penal, acerca da necessária orientação Por conseguinte, dada a indispensabilidade do reconhecimento
da pena a uma eficaz prevenção geral(1) e especial.(2) Todavia, defende-se de fins como parte integrante do Direito Contemporâneo, é preciso
que no contexto atual de elaboração, de vigência e de aplicação da norma investigar de que maneira deve ocorrer tal inserção. Assim, tendo como
penal, o sentido de uma indagação acerca das finalidades jurídico-penais local de concretização da problemática explicitada o Direito Penal,
revela-se muito distinto. defende-se a necessidade de um triplo controle: (i) controle finalístico;
Fato é que a realidade do Direito Penal – assim como do Direito (ii) controle de limites; e (iii) controle de eficácia.
em geral – na qual estava historicamente situado Liszt, sujeitava-se a O primeiro teria por objeto as próprias finalidades perseguidas. Em
um paradigma científico muito particular: o Positivismo Naturalista. outros termos, perquirir-se-ia sobre a sua conformação constitucional.(7)
Contexto, esse, que reputava por verdadeiro somente o que fosse O segundo, por sua vez, indagaria se a promoção de tais fins, embora
passível de controle objetivo pela experiência sensível e, portanto, livre legítima a priori, não geraria restrições insuportáveis a direitos
de influências arbitrárias da “vontade” (leia-se: subjetivismo). fundamentais contrapostos. Nesse momento, buscar-se-ia definir quais
A exigência de precisão e de certeza, ideal anteriormente próprio os limites da atuação do Estado quando ele objetiva promover fins
apenas às ciências da natureza (Naturwissenschaft), ganhou autonomia relevantes. Em tal exame, de robusta complexidade, enfrentar-se-iam,
e importância, tornando-se traço definidor do que poderia – ou não – ser ainda, problemas referentes à proporcionalidade da medida, à inocorrência
qualificado como científico. Dessa maneira, a preocupação de conformar de proibição de excesso e à superação de intenções consequencialistas.
a Ciência Jurídica com tais exigências era tamanha, que impulsionou Vencidas as análises anteriores, dever-se-ia, finalmente, empreender
pensadores da época, como Hans Kelsen, a elaborar obras ao estilo a última investigação, a qual teria por objeto os instrumentos de aferição
da Teoria pura do direito (Reine Rechtslehre, 1934), cujo horizonte de do real alcance da finalidade buscada a partir da norma penal. Ora, nada
sentido era justamente o de “limpá-lo” de interferências externas. impede que o fim promovido seja legítimo e que não gere restrições
Nesse pano de fundo, conquanto não se negasse que a aplicação das intoleráveis a direitos fundamentais contrapostos, mas que, concretamente,
normas jurídicas gerava consequências concretas, bem como que visava não se verifique – ou pouco se verifique – o seu efetivo atingimento.
a uma série de finalidades empíricas, sustentava-se que tais efeitos e Esse controle é fundamental, haja vista que a constatação da plena
objetivos não poderiam (nem deveriam) integrar o objeto de estudo do – ou quase plena – inocuidade fática do meio empregado (norma penal)
Direito. Tratava-se, pois, de problemas de ordem social, econômica, pode conduzir à invalidade de sua utilização, na medida em que enseja
política, filosófica, histórica etc., mas não de questões jurídicas. restrições a direitos fundamentais sem contrapartida alguma. Nesse
6 Mesmo Liszt, que já falava em fins preventivos da pena, relegava, sentido, Zaffaroni já advertiu, com propriedade, que o “dever ser” nada
todavia, o seu exame à Criminologia, assim como a definição de mais é do que um “ser que ainda não é”, mas que “deve ser”.(8) Com
metas e de objetivos à Política Criminal. O Direito Penal era, na sua essa assertiva, o referido autor pretendeu salientar que a legitimidade
famosa expressão, exclusivamente a “Magna Charta do criminoso”. do discurso jurídico-penal (dever ser penal) depende não apenas da
A Dogmática, portanto, deveria estar imune a problemas concretos, sua coerência interna (plano deontológico), mas principalmente da sua
atuando como um “muro de contenção” desses influxos, os quais não operatividade social (plano ontológico).
poderiam adentrar, sob pena de corrompê-la. Noutros termos, por mais consistente que seja o sistema penal
Um tal paradigma ressoou por muitos anos no Direito (em sentido lato), em âmbito normativo, é preciso verificar a sua efetiva capacidade de
o qual se absteve – ao menos explicitamente – de estudar, pesquisar, conformar a realidade. Um discurso jurídico-penal estruturado sobre
questionar e examinar categorias como: fins, consequências empíricas, um “dever ser” que é incapaz de se traduzir futuramente em um ser,
eficácia e eficiência sociais. No que tange ao Direito Penal, foi Claus Roxin isto é, de produzir as alterações fáticas prometidas, revela-se, conforme
quem teve o inegável mérito (e também a notável ousadia) de defender Zaffaroni, falso e perverso, pois “engana, ilude e alucina” (9) – é um
que essa segmentação tão estanque não mais se sustentava. Eficiência dever ser que nunca será.
na prevenção e no alcance de objetivos político-criminais não apenas A gravidade da problemática exposta por tal autor justifica a relevância
deveriam integrar, sim, o objeto de estudo do Direito Penal, como a do presente questionamento. Ao elaborar uma norma penal, o legislador
própria construção das suas categorias dogmáticas deveria servir à sempre visa a atingir determinado objetivo em termos político-criminais.
promoção e ao atingimento de tais fins (teoria funcionalista do delito).(3) É inegável que uma normativa existe primordialmente – mas não só – para
Do exposto, verificam-se duas relações muito diversas entre o Direito concretizar um apontado fim. Portanto, deve-se, urgentemente, indagar as
Penal e as finalidades de Política Criminal: uma de desconfiança e não reais – e não retóricas – condições de possibilidade de as normas penais
inclusão (o Direito Penal é a “barreira intransponível”(4) da Política promoverem as finalidades às quais estão dirigidas, considerando que é
Criminal) e outra de inserção e subserviência (o Direito Penal é “a forma bastante plausível que elas simplesmente não sejam capazes de fazê-lo.
através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas Se assim for, ter-se-á de admitir que cada vez mais se justificam
para o modo de vigência jurídica”(5)). Pois bem, o presente ensaio tem restrições a direitos fundamentais por meio de um discurso que se
como objeto de análise o alcance e a promoção de fins de Política Criminal revela falso. Falso porque afirma criminalizar uma conduta, processar
por meio de normas penais no contexto da segunda relação descrita. um indivíduo e executar uma sanção penal “para” atingir determinado
E esse é o lugar do qual se fala não apenas porque a primeira das objetivo (em regra, fala-se em “tutela de bens jurídicos”), embora,
relações é falsa – o Direito não deve estar alheio a questões político-sociais, concretamente, pouco ou nada o alcance.
nem seria capaz de fazê-lo(6) –, mas também porque a segunda é mais Para ilustrar o até aqui exposto, utilizar-se-á como exemplo a

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Lei 12.683/2012, a qual alterou alguns dispositivos da Lei de Lavagem devem ser unidas numa síntese” (Roxin, Claus. Política criminal e sistema
de Capitais (Lei 9.613/1998). A finalidade buscada pela nova lei é tão jurídico-penal. Traduzido por Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
p. 20. Tradução de: Kriminalpolitik und Strafrechtssystem).
clara que está inclusive positivada em seu art. 1.º: “esta Lei altera a
Lei n. 9.613/98 [...] para tornar mais eficiente a persecução penal dos (4) A expressão original é “unübersteigbare Schranke” (Liszt, Franz von.
Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge. Reimp. Berlim: Guttentag, Walter de
crimes de lavagem de dinheiro”. Sendo assim, pergunta-se: e se a nova Gruyter, 1970. v. 2, publicação original de 1893, p. 80).
lei, em que pese aumente penas e amplie o rol dos crimes antecedentes (5) Roxin, Claus. Op. cit., p. 82.
simplesmente não tornar, faticamente, mais eficiente a persecução (6) A esse respeito, explica Muñoz Conde: “desde el momento en que el
penal dos crimes de lavagem de capitais, todo esse aumento punitivo Derecho Penal es un instrumento de configuración política y social, es
ainda encontraria justificativa? Será que não se estaria, nesta hipótese necesario que también se tengan en cuenta en su elaboración sistemática
(e em muitas outras), prendendo mais pessoas e por mais tempo sem los fines y funciones que se pretenden conseguir con él” (Muñoz Conde,
contrapartida real alguma, para além do mero efeito simbólico? E se Francisco. La relación entre sistema del derecho penal y política criminal:
historia de una relación atormentada. Revista de Estudos Criminais, Porto
assim se constatasse, qual a consequência em termos de validade
Alegre, n. 27, ano VII, p. 9-41, out.-dez. 2007, p. 12).
constitucional da norma penal em questão? (10)
(7) Conforme Hassemer, uma proibição penal apenas se justifica quando
Pois bem, tendo em conta o exposto e diante de uma atual atividade “persegue de forma adequada uma finalidade admitida” (Hassemer,
legislativa, no Brasil, assumidamente orientada a um aumento punitivo, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal?
bem como em franca expansão horizontal, englobando mais e mais In: Hefendehl, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de
legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid:
bens jurídico-penais como objeto de tutela, é de se perquirir acerca Marcial Pons, 2007. p. 99 – grifado).
da capacidade de o Direito Penal cumprir tão vasta e extensa pauta de
(8) Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Deslegitimación
encargos. Defende-se, de plano, uma posição bastante cética quanto à y dogmática jurídico-penal. 2. ed. Bogotá: Temis, 1990. p. 9.
possibilidade de ele corresponder às expectativas que lhe são dirigidas. (9) Idem, ibidem.
Tal ceticismo não decorre de uma leviana crença na suposta (10) Respondendo a indagação semelhante, Albrecht sustenta que a mera alusão
“ineficiência patológica” do Direito Penal, mas da percepção – já advertida à “luta contra a criminalidade” não confere legitimidade ao Direito Penal
por Faria Costa(11) – de que lhe pedimos hoje o que ele jamais poderá um quando “os resultados das práticas repressivas são demasiado pobres e
completamente contraproducentes” (Albrecht, Peter-Alexis. El derecho
dia nos dar. Ou, ainda, na exata constatação de Mia Couto: “no conflito penal en la intervención de la política populista. In: Instituto de Ciencias
entre expectativa e realidade, é comum o sentimento de desapontamento Criminales de Frankfurt (ed.). Área de Derecho Penal de la Universidad de
que faz pensar que, no passado, o futuro já foi melhor”.(12) Pompeu Fabra (ed. española). La insostenible situación del Derecho Penal.
Granada: Editorial Comares, 2000. p. 482).
(11) Faria Costa, José Francisco de. Reflexões mínimas e tempestivas sobre o
Notas direito penal de hoje. In: ______. Direito penal e globalização. Reflexões
(1) Conforme Listz, a execução da pena incide “sobre os cidadãos em geral não locais e pouco globais. Coimbra: Coimbra Ed. e Wolters Kluwer
porque, de um lado, pela sua força de intimidação, refreia as tendências Portugal, 2010. p. 19.
criminosas (prevenção geral) e, por outro lado, mantendo o direito, firma (12) Couto, Mia. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções. Lisboa:
e fortalece o sentimento jurídico dos cidadãos” (Liszt, Franz von. Tratado Caminho, 2009. p. 128.
de direito penal allemão. Traduzido por José Hygino Duarte Pereira. Rio de
Janeiro: F. Briguiet & C, 1899. t. I, p. 99 e s.).
(2) A pena, para Liszt, incidiria “especialmente sobre o delinquente mesmo. Raquel Lima Scalcon
Conforme a natureza e a extensão do mal da pena, diferente pode ser o centro
de gravidade do efeito exercido”, isto é, ou haveria sua “intimidação”, ou,
Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS.
mais intensamente, sua “inocuização” (Liszt, Franz von. Op. cit., p. 100). Graduada em Direito pela UFRGS.
(3) Conforme Roxin, “submissão ao direito e adequação a fins político-criminais Professora Substituta de Direito Penal e Criminologia na 7
(Kriminalpolitische Zweckmäβigkeit) não podem contradizer-se, mas Faculdade de Direito da UFRGS (Graduação).

BOLETIM IBCCRIM - ISSN 1676-3661 - Hugo Leonardo, Ilana Martins Luz, Jacqueline do Illg, Milene Mauricio, Mônica Tavares, Nathália Oliveira,
Prado Valles, Jamil Chaim Alves, José Carlos Abissamra Nathália Rocha de Lima, Natasha Tamara Praude Dias,
COORDENADOR- CHEFE: Filho, Jovacy Peter Filho, Karlis Mirra Novickis, Larissa Orlando Corrêa da Paixão, Paulo Alberto Gonzales
Rogério Fernando Taffarello Palermo Frade, Leopoldo Stefanno Gonçalves Leone Godinho, Priscila Pamela dos Santos, Renan Macedo
COORDENADORES ADJUNTOS: Louveira, Marcel Figueiredo Gonçalves, Marco Aurélio Villares Guimarães, Renato Silvestre Marinho, Renato
Cecilia de Souza Santos, Florêncio Filho, Maria Jamile José, Matheus Silveira Watanabe de Morais, Ricardo Stuchi Marcos, Roberta
José Carlos Abissamra Filho, Pupo, Milene Maurício, Nathália Rocha de Lima, Pedro Werlang Coelho, Suzane Cristina da Silva, Thaís Tanaka e
Matheus Silveira Pupo e Beretta, Rafael Carlsson Gaudio Custódio, Rafael Fecury Thaísa Bernhardt Ribeiro.
Rafael Lira Nogueira, Rafael Lira, Renato Stanziola Vieira, Rodrigo
Nascimento Dall´Acqua, Tatiana de Oliveira Stoco, PROJETO GRÁFICO:
CONSELHO EDITORIAL: Theodoro Balducci de Oliveira e Vinícius Lapetina. Lili Lungarezi - lililungarezi@gmail.com
Alberto Alonso Muñoz, Alexandre Pacheco Martins, COLABORADORES DE PESQUISA DE JURISPRUDÊNCIA: PRODUÇÃO GRÁFICA:
Alexandre Soares Ferreira, Ana Elisa Liberatore S. Allan Aparecido Gonçalves Pereira, Ana Elisa L. Bechara, Editora Planmark - Tel.: (11) 2061-2797
Bechara, Anderson Bezerra Lopes, Andre Adriano André Adriano Nascimento Silva, Andrea D’Angelo, Bruna planmark@editoraplanmark.com.br
Nascimento da Silva, André Azevedo, André Ricardo Torres Caldeira Brant, Camila Austregesilo Vargas do Impressão: Ativaonline - Tel.: (11) 3340-3344
Godoy de Souza, Andre Pires de Andrade Kehdi, Andrea Amaral, Cássia Fernanda Pereira, Cássio Rebouças de O Boletim do IBCCRIM circula exclusivamente entre os associados e
Cristina D´Angelo, Átila Pimenta Coelho Machado, Moraes, Cecilia Tripodi, Chiavelli Facenda Falavigno, membros de entidades conveniadas.
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Bruno Redondo, Carlos Daniel Del Cid, Débora Thaís de Melo, Eduardo O conteúdo dos artigos publicados expressa a opinião dos autores,
Roberto Isa, Caroline Braun, Cecilia Tripodi, Cláudia pela qual respondem, e não representa necessariamente a opinião
Samoel Fonseca, Eduardo Velloso Roos, Érica Santoro deste Instituto.
Barrilari, Christiany Pegorari, Conrado Almeida Corrêa Lins Ferraz, Fabiano Yuji Takayanagi, Felipe Bertoni,
Gontijo, Daniel Allan Burg, Daniel Del Cid, Danilo Tiragem: 11.000 exemplares
Fernanda Carolina de Araujo, Giancarlo Silkunas Vay,
Dias Ticami, Danyelle da Silva Galvão, Douglas Lima Gustavo Teixeira, Indaiá Lima Mota, Isabella Leal Pardini, ENDEREÇO DO IBCCRIM:
Goulart, Eduardo Augusto Paglione, Eleonora Rangel Jacqueline do Prado Valles, João Henrique Imperia, Rua Onze de Agosto, 52 - 2º andar
Nacif, Fabiana Zanatta Viana, Felipe Mello de Almeida, José Carlos Abissamra Filho,  Leopoldo Stefanno Leone CEP 01018-010 - S. Paulo - SP
Fernanda Carolina de Araújo, Fernando Gardinali, Louveira, Luís Fernando Bravo de Barros, Marcela Tel.: (11) 3111-1040 (tronco-chave)
Flávia Guimarães Leardini, Guilherme Lobo Marchioni, Venturini Diorio, Marcos de Oliveira, Matias Dallacqua www.ibccrim.org.br

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

O estágio inicial de implementação do


monitoramento eletrônico no Brasil
Bernardo de Azevedo e Souza
O debate sobre o monitoramento eletrônico (ME) no Brasil é término do processo licitatório para implementar o ME.
recente, muito embora o sistema venha sendo utilizado efetivamente Em Roraima, o ME vem sendo obstaculizado em virtude da
nos Estados Unidos desde o início dos anos 80.(1) As primeiras propostas expressiva vegetação existente em algumas regiões (sobretudo as
legislativas, de autoria dos deputados Marcus Vicente (PL nº 4.342) periféricas), que não são atingidas pelo sinal de satélite e de telefonia
e Vittorio Medioli (PL nº 4.834), confirmavam já existir, em 2001, a móvel. Apenas as áreas centrais roraimenses são, assim, contempladas
preocupação do Congresso Nacional com a realidade do nosso sistema com o sinal, o que dificulta o processo de implementação em relação
prisional, que, à época, contava com mais de 230 mil presos. O ano às demais. Já no Amapá, uma das principais dificuldades enfrentadas
de 2007 foi marcado pelo advento de mais cinco projetos legislativos concerne à inexistência de banda larga de Internet para assegurar maior
(PL nº 337, 510 e 641 e PLS nº 165 e 175), que, por tratarem de matérias
eficiência no funcionamento do sistema de ME.
idênticas, acabaram sendo condenados em um único: o PL 1.288/2007.
Enviado para sanção presidencial, o projeto, após sofrer alguns vetos, Distrito Federal e Rio Grande do Norte estão avaliando a relação
acabou sendo transformado na Lei 12.258/2010. custo-benefício das tecnologias de controle eletrônico existentes no
mercado, solicitando, para tanto, orçamentos a empresas antes de
Restrito inicialmente à execução penal (nas hipóteses de saída
adquirir os equipamentos de ME.
temporária do preso em regime semiaberto e no âmbito da prisão
domiciliar), o ME adquiriu nova roupagem com o advento da Estados que já implantaram o ME, como Alagoas e Pernambuco,
Lei 12.403/2011 (como medida alternativa à prisão preventiva), tendo apresentaram dificuldades associadas à operacionalidade, salientando
sua utilização estendida aos indiciados (durante o inquérito policial) haver necessidade de se criar normativas para impor regras aos
e aos acusados (durante o curso da ação penal), de modo a impedir o monitorados, bem como legislação específica para punir aqueles que
encarceramento destes antes do trânsito em julgado da sentença penal violam a medida.
condenatória. A investigação constatou um significativo avanço no processo de
Apesar de transcorridos mais de dois anos da Lei 12.258/2010 implementação do ME no país desde julho de 2011, de três estados
(e mais de um ano da Lei 12.403/2011), denota-se, em verdade, que (Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo) para sete (Acre, Alagoas, Ceará,
a maioria dos estados ainda não colocou em prática o sistema de ME. Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo), configurando,
Em levantamento realizado pelo Portal de Notícias da Globo (G1)(2), desse modo, um aumento de 11 para 26%. Contudo, apesar da melhoria
foi constatado que, até 04 de julho de 2011, apenas três estados haviam deste quadro, é importante destacar que nosso país ainda pode evoluir
implementado o ME (Rio de Janeiro, Rondônia e São Paulo). (e muito) no âmbito do ME. Destacam-se, aqui, os estudos da
8 A curiosidade acadêmica advinda das investigações realizadas no Conférence Permanente Européenne de la Probation (CEP)(4), os
âmbito do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e quais constituem importante referencial a ser observado pelo Brasil
Administração da Justiça Penal (GPESC) da Pontifícia Universidade para aprimorar cada vez mais o uso da medida, ainda que o verdadeiro
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bem como a constatação aprendizado resida, de fato, na prática do cotidiano.
de que apenas 11% da totalidade do país estava utilizando o sistema
até então, me estimulou a delinear um panorama mais abrangente e Notas
atualizado do processo de implementação. Assim, durante os meses de (1) Sobre as origens do ME, ver AZEVEDO E SOUZA, Bernardo de.
setembro, outubro e novembro de 2012 entrei em contato (quase que O panóptico virtual: como dois irmãos gêmeos, o musical West Side Story,
diariamente) com as Secretarias de Administração Penitenciária(3) de o Homem-Aranha e um juiz de direito contribuíram para o nascimento
cada um dos estados da Federação, no intuito de saber: (a) quais deles do monitoramento eletrônico. São Paulo: IBCCRIM, ano 20, n. 241,
dez 2012, pp. 10-12.
já haviam implementado o sistema de ME e (b) quais as principais
(2) Disponível em: <http://migre.me/cbCM8>. Acesso em: 13 set 2012.
dificuldades encontradas no processo de implementação.
(3) Muito embora se tenha optado por uma denominação genérica, destaca-se
Com base nas respostas fornecidas, pude verificar que, até que o nome das secretarias responsáveis pelo ME varia de estado para
novembro de 2012, sete estados já haviam implementado o ME: Acre, estado. Além disso, em alguns estados existem departamentos específicos,
Alagoas, Ceará, Pernambuco, Rondônia, Rio de Janeiro e São Paulo. vinculados ou não às secretarias, que se incumbem do ME.
O levantamento também permitiu aferir as principais dificuldades (4) Trata-se de um importante foro de discussão entre países que já adotam
o ME. A CEP organiza conferências e workshops em que se reúnem
enfrentadas pelos estados no processo de implementação do ME. Passo
acadêmicos, profissionais da Justiça Criminal e profissionais da probation
a destacar algumas delas. e serviços semelhantes em toda a Europa, visando a compartilhar os
Amazonas, Mato Grosso e Piauí, por exemplo, apresentaram resultados que estão sendo obtidos pelo uso do sistema de ME, bem
como debater (e aprimorar) as principais dificuldades encontradas.
certa resistência para implementar o sistema de ME. Não obstante os Mais informações em: <www.cep-probation.org>.
avanços tecnológicos e as experiências realizadas em outros países,
há a concepção de que a medida é ineficaz e fomenta a impunidade,
diante da possibilidade de rompimento da pulseira ou tornozeleira Bernardo de Azevedo e Souza
eletrônica pelo monitorado a qualquer tempo. Alguns estados, como Mestrando em Ciências Criminais (PUC-RS).
Minas Gerais e Rio Grande do Sul, muito embora já tenham realizado Especialista em Ciências Penais (PUC-RS).
testes experimentais com tornozeleiras eletrônicas, ainda aguardam o Advogado.

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Os crimes digitais e as Leis 12.735/2012 e
12.737/2012
Marcelo Xavier de Freitas Crespo
Há tempos ouve-se dizer que a Internet carece de regulamentação e parte do tráfego de dados na internet advém de equipamentos móveis.(3)
que, justamente pela inexistência de normas específicas, inviabiliza-se a Este tipo penal exige, ainda, o especial fim de agir: apenas se
persecução penal de ilícitos praticados no âmbito tecnológico. Todavia, poderá cogitar do crime em comento se tiver o agente, ao invadir o
tendo-se em consideração a classificação dos crimes digitais próprios dispositivo informático, a finalidade de obter, adulterar ou destruir dados
(ou puros) e, ainda, dos crimes digitais impróprios (ou mistos),(1) tal ideia ou informações ali armazenadas, instalar vulnerabilidades ou obter
se mostra equivocada na medida em que muitas ações havidas no âmbito vantagem ilícita.(4) Note-se que o crime é formal, sendo despiciendo o
da tecnologia já podiam ser alvo de investigação e processo penal, resultado para que reste consumado. Além disso, é fundamental apontar
como eram os casos dos crimes contra a honra e aqueles relacionados à que a invasão por si só, ainda que com violação de mecanismos de
pornografia infantil, por exemplo. segurança, não recebeu reprimenda do legislador.
Ocorre que o contexto de punição relativo à prática dos crimes Não haverá também que cogitar de crime nas hipóteses de realização
digitais recentemente sofreu alteração pelo advento das Leis 12.735 de penetration tests, isto é, os métodos de avaliação das vulnerabilidades
e 12.737. Publicadas em 3 de dezembro de 2012, com vacatio legis de um sistema por meio de simulações de ataques, normalmente ultimadas
de 120 dias, foram apelidadas respectivamente de “Lei Azeredo” e pelo departamento de T.I.5 das próprias empresas, ou por consultorias
“Lei Carolina Dieckmann” em alusões ao relator do projeto e, também, especializadas contratadas para tal fim. Aliás, isso decorre da própria
à atriz global protagonista de episódio em que teve fotos com conteúdo
interpretação do tipo penal, que exige, para sua consumação, que a invasão
de nudez divulgadas por toda Internet no último mês de maio. Assim, os
ocorra sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo.
crimes digitais, que têm presença cada vez mais frequente no cotidiano,
passaram a contar com mais algumas normas que tipificam condutas antes Saliente-se, ademais, que a vantagem pretendida pelo agente, isto é,
irrelevantes para o Direito Penal. Nesse sentido, pretendeu-se criminalizar qualquer benefício, ganho ou lucro, deve ser ilícita, indevida, seja ela
a criação e disseminação de vírus computacional, os ataques tipo econômica ou não. Do contrário, caso não almeje o agente obter uma
Denial of Service (DoS) e, ainda, o chamado hacking (invasão a sistemas), vantagem, mas tão somente deixar o dispositivo da vítima desprotegido,
entre outras condutas. Vejamos os principais pontos das mencionadas leis. não se caracterizará este delito.
A “Lei Dieckmann” (12.737/2012), que modificará o Código Penal Relativamente às penas, sendo as máximas cominadas no caput
para inserir os arts. 154-A e 154-B criou o tipo penal de “invasão de e no § 3.º do art. 154-A não superiores a dois anos, classificam-se as
dispositivo informático” e regulamentou sua ação penal.(2) Segundo o condutas como infrações de menor potencial ofensivo (art. 61 da
art. 154-A, ter-se-á “invasão” quando alguém “Invadir dispositivo Lei 9.099/1995). Assim, a competência para seu processamento e
informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante julgamento será dos Juizados Especiais Criminais, excetuados os casos
violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, em que a complexidade ou circunstância dos fatos imponham sua remessa
adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ao juízo comum. Julga-se, entretanto, que isso ocorrerá com frequência,
tendo-se em vista que a materialidade desses ilícitos será quase sempre
9
ou tácita do titular do dispositivo, instalar vulnerabilidades ou obter
vantagem ilícita”. Sua inserção se localiza no Capítulo VI – Dos Crimes comprovada por meio de perícias computacionais. A complexidade dessa
contra a Liberdade Individual, do Título I – Dos Crimes contra a Pessoa, prova não se coaduna com os princípios da informalidade, celeridade e
do Código Penal, de forma que poderá advir questionamento no tocante à simplicidade, norteadores dos procedimentos em curso perante o Juizado
sujeição passiva das pessoas jurídicas ao delito. Entretanto, considerando-se Especial (art. 62 da Lei 9.099/1995). Também o trâmite dos autos perante
o âmbito de proteção da norma (obtenção, adulteração ou destruição a Justiça Comum, por ser em tese mais lento e conjugado às possíveis
de dados), esta discussão muito provavelmente não subsistirá. Parece, demoras em se concluírem as perícias, propiciará mais facilmente a
então, que o tipo penal, muito mais que a “liberdade individual”, busca ocorrência da prescrição em razão de as penas serem diminutas.
tutelar a segurança dos sistemas, o que, aliás, é fundamental. Afinal, sem Ainda quanto ao art. 154, seu §1.º incrimina conduta “assemelhada”,
que pudéssemos neles confiar jamais alcançaríamos o atual patamar de visando punir a conduta daqueles que fabricam, oferecem, distribuem
desenvolvimento nos diversos ramos do conhecimento. ou vendem a terceiros, ou simplesmente difundem aleatoriamente
Quanto à redação do art. 154-A, o núcleo “invadir” significa penetrar dispositivos ou programas de computador que possam ser utilizados
em um determinado lugar e ocupá-lo pela força, abusivamente; conquistar. por terceiros para invadirem dispositivos informáticos ou neles instalar
Tem-se, portanto, a ideia de que o acesso ao dispositivo informático deve vulnerabilidades.(6) Pretendeu aqui o legislador punir a conduta de quem
necessariamente ocorrer mediante a transposição de uma barreira, de um instala malwares em dispositivos informáticos para, sub-repticiamente,
mecanismo de segurança (como um firewall ou senhas de acesso) sem obter informações e dados que lhes possam trazer uma vantagem ilícita.
os quais não haveria falar em “invasão”, mas de acesso. Redundante, É o caso dos famigerados trojans e keylloggers, quase sempre instalados
portanto, a menção a “violação indevida de mecanismo de segurança”. para obter senhas de banco dos usuários.(7)
Frise-se que haverá crime impossível por impropriedade do objeto, caso No § 2.º do art. 154-A há previsão de causa de aumento de pena de
o dispositivo se encontre desprotegido. um sexto a um terço caso das condutas decorra prejuízo econômico. A
O objeto da conduta, o alvo do devassamento, são os “dispositivos lei previu, ainda, penas mais rigorosas no § 3.º para os casos em que, da
informáticos”, o que abrange não apenas os computadores, mas invasão, resulte a obtenção de informações sensíveis, como o conteúdo
telefones celulares, tablets, pen drives, entre outros. Antes que se de comunicações eletrônicas privadas armazenadas nos dispositivos
critique a amplitude da norma neste particular, é preciso ressaltar que, informáticos da vítima. Não se confunde, todavia, essa conduta, com
caso a redação tivesse sido mais restrita, mencionando, por exemplo, o conhecimento das comunicações em simultaneidade à sua realização
“computador” em lugar do “dispositivo informático”, condutas de entre os interlocutores, o que ensejaria a aplicação do art. 10 da
invasão que atingissem outros aparelhos não poderiam ser punidas, Lei 9.296/1996, por se configurar interceptação telemática. Este mesmo
tornando a tipificação pouco útil em uma sociedade em que grande parágrafo (3.º) pune a obtenção de segredos comerciais ou industriais,

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

sendo desnecessário que sejam utilizados para qualquer finalidade que continha – especialmente pela previsão de guarda dos logs pelos
específica. Por fim, esta norma também incriminou o controle remoto provedores de Internet(10)–, acabou esvaziada após acordo celebrado na
não autorizado do dispositivo invadido. Saliente-se, contudo, que a Câmara dos Deputados, sendo aprovada com apenas quatro artigos. Teve,
manutenção remota de sistemas por empresas prestadoras de serviço ainda, vetados dois deles de forma que o texto apenas determina que
não caracteriza o crime, salvo quando ultrapassar a finalidade ínsita ao “os órgãos da polícia judiciária estruturarão, nos termos de
serviço e desdobrar-se para uma velada e escusa obtenção, adulteração regulamento, setores e equipes especializadas no combate à ação
ou destruição de dados ou informações do dispositivo em manutenção. delituosa em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou
Por seu turno, no § 4.º há causa de aumento de pena de um a dois sistema informatizado”, além de introduzir dispositivo para obrigar que a
terços sempre que houver “divulgação, comercialização ou transmissão a prática, a indução ou incitação de discriminação ou preconceito de raça,
terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos, se o fato não cor, etnia, religião ou procedência nacional, praticados por intermédio
constitui crime mais grave”. Trata-se de uma necessária complementação dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza,
ao parágrafo anterior porque, normalmente, a obtenção de informações tenham a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas,
sigilosas e de segredos comerciais ou industriais visa a um proveito eletrônicas ou da publicação por qualquer meio.
econômico para o agente, o qual será obtido com a comercialização ou Concluindo, para fins de repressão aos crimes digitais, era certa
transmissão a terceiros, ou a um prejuízo para o concorrente, o que se a necessidade de melhor regulamentação de condutas praticadas no
dará na hipótese de indevida divulgação para o mercado. A divulgação e âmbito e com o uso da tecnologia. Esperava-se, no entanto, que as leis
a exploração econômica desses dados ou informações podem caracterizar trouxessem conceitos mais precisos, penas mais adequadas à gravidade
também o crime de concorrência desleal previsto no art. 195, XII, da das condutas e, ainda, a contemplação dos ataques Denial of Service
Lei 9.279/1996.(8) Porém, pode-se sustentar que, por ser posterior, a contra os particulares em geral.
Lei 12.737 prevalecerá nas modalidades “divulgação” e “exploração”.
No § 5.º, que encerra as disposições do art. 154-A, prevê-se que as
Notas
penas serão aumentadas de um terço até a metade nos casos em que os
crimes forem praticados em detrimento de autoridades públicas, haja (1) Crimes digitais próprios ou puros são também conhecidos como delitos de
risco informático. O bem jurídico tutelado é precipuamente a segurança dos
vista a natural maior gravidade de uma violação de informações que lhes sistemas. Crimes digitais impróprios ou mistos são aqueles cujo envolvimento
digam respeito pela função de que estão investidas. com a tecnologia se resume à utilização de meios digitais como meio para sua
A“Lei Dieckmann” pretendeu, ainda, incriminar a interferência em prática. Para maior detalhamento, vide o nosso Crimes digitais (São Paulo:
Saraiva, 2011).
sistemas ultimada pelos ataques Denial of Service ou, no vernáculo,
(2) Será condicionada à representação como regra e, no caso de prática em
denegação de serviço. Por tal razão acrescentou um parágrafo ao desfavor da Administração Pública, será pública incondicionada.
art. 266, que recebeu o nomen juris de “Interrupção ou perturbação (3) Tráfego de dados móveis no mundo terá crescimento de 50% até 2018. Disponível
de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de em: <http://imasters.com.br/noticia/trafego-de-dados-moveis-no-mundo-tera-
informação de utilidade pública”. Cumpre salientar que o Código Penal crescimento-de-50-ate-2018>. Vide, também, Tráfego de dados móveis no
já havia tipificado a conduta do art. 266, caput, cujo objeto jurídico é Brasil crescerá 19 vezes até 2016. Disponível em: <http://convergenciadigital.
uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=29224&sid=17>. Ambos com
a incolumidade pública, e cujo objeto material se restringia então aos acesso em: 20.02.2013, às 12h35min.
serviços de telegrafia, radiotelegrafia e telefonia. Ao acrescentar o § 1.º se (4) Aqui há uma impropriedade técnica da redação, tendo-se em vista que
pretendeu também resguardar o serviço telemático ou de informação de “vulnerabilidades” não são instaladas, mas sim exploradas.
utilidade pública, tipificando a conduta de quem o interrompe por meio (5) Tecnologia da Informação.
do Denial of Service, impede ou dificulta-lhe o restabelecimento. Faz-se (6) Um malware (vírus) não é propriamente um “dispositivo informático”
(periférico), mas um software, um programa de computador.
10 necessário, portanto, que o serviço afetado seja público, ainda quando
(7) São espécies de vírus computacionais – malwares.
exercido por empresa concessionária (autorizatária ou permissionária).
Logo, atividades privadas de comércio eletrônico que não sejam de (8) “Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (…) XII – divulga,
explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a que se
utilidade pública não estão protegidas pela lei, pelo que, com a tipificação refere o inciso anterior [dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou
advinda pela inserção do § 1.º não se resolve o problema dos ataques de prestação de serviços], obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante
denegação de serviço contra particulares. fraude. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.”
Por fim, a “Lei Dieckmann” previu uma alteração nos crimes de (9) “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é
por este absorvido.”
falso, precisamente no art. 298 (falsificação de documento particular). (10) Logs são registros de atividades gerados por programas de computador. Por
Assim, o parágrafo único passará a equiparar a falsificação de cartão de exemplo, registros da conexão de uma máquina na Internet, como dia, hora,
crédito ou débito à falsificação de documento particular. Ressalta-se, no local etc.
entanto, que por diversas vezes este falso é um meio para a obtenção de
vantagem indevida, caso em que essa conduta restará absorvida pelo crime
de estelionato, nos termos da Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça.(9) Marcelo Xavier de Freitas Crespo
Não obstante, caso o agente venha, agora, apenas a falsificar os cartões, sem Doutor e Mestre pela USP.
a eles pessoalmente conferir algum uso, será punido pelo crime autônomo. Pós-graduado em Direito Penal pela
No que tange à “Lei Azeredo” (Lei 12.735/2012), que enquanto Universidade de Salamanca.
projeto foi chamado de “AI-5 digital” por conta dos pontos polêmicos Advogado.

ENTIDADES QUE RECEBEM O BOLETIM


AMAZONAS MATO GROSSO DO SUL RIO GRANDE DO SUL
Associação dos Magistrados do Amazonas - Amazon Associação dos Defensores Públicos do Mato Grosso do Sul Associação dos Delegados de Polícia do Estado do
PARANÁ Rio Grande do Sul - ASDEP
DISTRITO FEDERAL
Associação dos Magistrados do Distrito Federal e Territórios - Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná SÃO PAULO
AMAGIS/DF RIO DE JANEIRO Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP
Defensores Públicos do Distrito Federal - ADEPDF Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro/ CEJUR Associação dos Delegados de Polícia de São Paulo - ADPESP

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


O Supremo Tribunal Federal, a restrição ao
habeas corpus e o marido traído
Tiago Abud da Fonseca e Henrique Guelber de Mendonça
1. Introdução Todavia, a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afasta
tal interpretação, na medida em que, por força do Pacto de San José da
No ano de 2012, a partir de agosto, a Suprema Corte brasileira, ao
Costa Rica e de sua reconhecida hierarquia no ordenamento jurídico
julgar os feitos distribuídos sob os números 109.956 e 111.909, alterou
pátrio, edita a Súmula Vinculante 25, impossibilitando a prisão civil do
o seu entendimento jurisprudencial e firmou posição no sentido da
depositário infiel. O Supremo Tribunal, por inúmeras vezes, assentou
impossibilidade de impetração de habeas corpus quando previsto no
que tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário sobre direitos
ordenamento jurídico brasileiro recurso que vise atacar a decisão objeto humanos possuem uma hierarquia mínima chamada de intermediária,(1)
do remédio heroico. que é supralegal, conquanto infraconstitucional.
Percebe-se, lamentavelmente, que a Corte Suprema acaba por prestar Acrescente-se que o Min. Celso de Mello,(2) ecoando respeitada
um desserviço à causa da liberdade em homenagem à diminuição dos doutrina, afirma que, por si só, tratados sobre direitos humanos têm
feitos em tramitação naquele órgão jurisdicional. dignidade constitucional.
Nas linhas que se seguem, pretende-se enfocar tal postura da Ora, se a Convenção Americana de Direitos Humanos tem força
cúpula do Poder Judiciário brasileiro sob a ótica de ofensa à própria suficiente para impedir a prisão civil do depositário infiel, não pode ser
Constituição da República, além de se buscar demonstrar, utilizando-se outra a interpretação quanto à limitação do uso do habeas corpus, que
uma metáfora, que se preferiu jogar a sujeira por debaixo do tapete a não pela sua inconstitucionalidade.
enfrentar o verdadeiro problema que assoberba a justiça pátria.
Conclui-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal, ao nosso
juízo, trilhou o caminho da inconstitucionalidade ao limitar o manejo
2. A violação à Constituição da República pelo seu guardião do habeas corpus, seja pelo próprio atrofiamento do instituto, quando
A Constituição da República, em seu art. 5.º, LXVIII, dispõe que exige a inexistência de recurso próprio para que seja admitido, seja
será concedido habeas corpus sempre que alguém estiver sofrendo ou se porque, na prática, eventual recurso não é possível de ser deduzido em
achar prestes a sofrer coação a sua liberdade ambulatorial por ilegalidade juízo por quem não detenha capacidade postulatória, quer porque não
é cabível recurso ordinário contra decisão tomada em outro recurso
ou abuso de poder.
ordinário.
De plano, pela singela leitura do dispositivo invocado se percebe
que não há restrição alguma ao remédio na disposição constitucional,
de modo que vincular a impetração de habeas corpus à inexistência de
3. Efeito prático da orientação jurisprudencial adotada pelo STF
recurso previsto no ordenamento jurídico, hábil a atacar tal decisão, A orientação jurisprudencial da Corte Suprema foi adotada para
soa como odiosa restrição à utilização do habeas, amputando-lhe o seu diminuir o número de feitos distribuídos para as Cortes Superiores. 11
manejo. Incrementou-se a restrição prevista na Súmula 691, da Casa.
De outro viés, a Constituição da República estabelece que os Entretanto, tal orientação tem possível efeito devastador quanto
direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes dos às decisões adotadas perante o primeiro grau de jurisdição em
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja matéria criminal. No processo de conhecimento, excepcionando-se
parte, além de prever que os tratados e convenções que versem sobre os embargos de declaração, dois são os recursos cabíveis contra as
direitos humanos, preenchidos os requisitos estabelecidos pela Carta decisões proferidas pelo juízo criminal de primeiro grau: recurso em
Republicana, tem status de emenda constitucional (art. 5.º, §§ 2.º e 3.º). sentido estrito e apelação, sendo certo que quando não há previsão legal
de interposição do primeiro, é cabível a apelação supletiva prevista no
É do conhecimento geral, que o Brasil é signatário do Pacto de
art. 593, II, do CPP.
San José da Costa Rica ou, caso prefiram, da Convenção Americana
de Direitos Humanos. No art. 7.6 do referido Pacto Internacional está Em suma, a prevalecer o entendimento do Supremo Tribunal Federal,
cravado que “Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer dificilmente seria caso de impetração de habeas corpus contra decisão
a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, do juízo de primeiro grau criminal no processo de conhecimento, já que
sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se ora caberia recurso em sentido estrito, ora a apelação.
a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis Não seria diferente na execução penal, já que a Lei 7.210/1984
prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua prevê como recurso cabível, contra as decisões proferidas quanto ao
liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim cumprimento da sanção e seus incidentes, o agravo.
de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não Em outras palavras, embora não tenha sido este o objetivo, vingando
pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela o posicionamento atual do Pretório Excelso – que se espera seja revisto
própria pessoa ou por outra pessoa”. com brevidade – o capítulo do habeas corpus no Código de Processo
Alguns sustentarão, para limitar a incidência da Convenção Penal para as decisões proferidas pelo juízo criminal de primeiro grau
Americana de Direitos Humanos sobre o ordenamento jurídico brasileiro, será verdadeira letra morta, vez que sem aplicação, tamanha a restrição
que o decreto que a aprovou não obedeceu ao quórum exigido pelo ao remédio heroico.
art. 5.º, § 3.º, cuja redação foi dada pela Emenda Constitucional 45/2004, Perceba-se que, concernente ao Superior Tribunal de Justiça, lá se
além de pregarem que tal aprovação pelo Congresso Nacional é anterior vai uma enxurrada de habeas corpus inadmitidos, notadamente no final
a referida emenda e, portanto, sem status constitucional. do último ano, mercê de aplicar a nova orientação da Corte Maior.(3)

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

4. O verdadeiro problema da Justiça Criminal brasileira prolação de decisões contrárias aos posicionamentos desta Corte e do
Supremo Tribunal Federal é um grande e grave fator – desnecessário –
A bem da verdade, lamenta-se na nova posição jurisprudencial do a concorrer para a demora na concretização da prestação jurisdicional,
STF a perda da chance de enfrentar a verdadeira razão da mazela da causado pelos próprios Juízes das instâncias antecedentes”.
Justiça Criminal brasileira.
Como se percebe, concessa maxima venia, melhor teria andado o
Aliás, antes de limitar garantia fundamental,(4) poderia ter trilhado Supremo Tribunal Federal se, ao revés de bitolar o habeas corpus, tivesse
a Suprema Corte o caminho de restringir o acesso à justiça do próprio caminhado na direção de averiguar a razão pela qual tal remédio é tanto
Estado brasileiro, principal descumpridor da lei produzida por ele utilizado, chegando-se à fácil constatação de que a sua jurisprudência
mesmo e que ainda assim tem para si uma “justiça” própria para resolver não é lá muito seguida quando se trata de reconhecer direitos às pessoas
os seus problemas (justiça federal e juízos fazendários estaduais), com processadas criminalmente.
incontáveis recursos.
Fosse diferente, não teria o próprio Supremo Tribunal Federal
Não é esse o campo próprio para tal debate, que poderia servir, concedido 35% dos habeas corpus lá impetrados,(5) mesmo quando não o
inclusive, para sugerir a ampliação do número de ministros nos Tribunais conhece e paradoxalmente o concede de ofício, atestando a existência de
Superiores (por que não?), prestigiando-se aqui em discutir o problema ilegalidade ao direito de ir e vir e, em última análise, a suma importância
da Justiça Criminal no Brasil. do habeas.
Com efeito, ao nosso singelo juízo, tudo passa por saber o verdadeiro
papel do Juiz Criminal, se paladino da defesa social ou se garantidor dos 5. Conclusão
direitos fundamentais.
A toda evidência, quando o Estado chama para si a tarefa de julgar Uma anedota conhecida dá conta de que o marido, vendo sua esposa
e cria o processo como forma de solução de conflitos, assim o faz para traí-lo com o amante no sofá, prefere se desfazer do objeto, a mandar
reconhecer o direito do débil (o acusado) em oferecer resistência à embora a traidora, como que impondo a culpa da traição ao divã.
pretensão do titular do direito de ação em exercer o ius puniendi. Não fosse Fica nessa interpretação do Supremo Tribunal Federal, ao menos
para isso, não seria necessário o processo, deixando o débil à própria sorte para o operário do Direito, a ideologia do marido traído.
e sob o jugo da supremacia de força do próprio Estado Acusador. A Suprema Corte se enveredou por limitar a utilização do
Como corolário de tal conclusão, o Juiz Criminal deve ser o garante habeas corpus, a bem da estatística e das prateleiras vazias, como se a
dos direitos fundamentais, buscando assim fazer justiça em contrapartida culpa do excesso de feitos distribuídos nas Cortes Superiores pudesse ser
ao justiçamento feito pelos Juízes da Defesa Social. atribuída ao acusado no processo criminal ou a sua defesa, esquecendo-se
O Superior Tribunal de Justiça, em liminar concedida pela Ministra de enfrentar as causas da ilegalidade ao direito de liberdade, como se esta
Laurita Vaz no HC 254.034, já teve a oportunidade de perceber que é não tivesse sendo cometida.
grande o número de magistrados e tribunais que tem prestigiado a defesa Como quer que seja, ainda é tempo de se divorciar dessa visão
social e, em nome dela, desatendido a jurisprudência dos Tribunais deturpada, em homenagem ao direito de liberdade. Espera-se que seja
Superiores quando pródiga em garantir direitos. logo.
Pela importância do tema, vale a transcrição de parte da decisão
mencionada: Notas
“No mais, no caso é nítida a afronta do Juízo de primeiro grau e (1) HC 97.256/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Brito, j. 01.09.2010.
12 do Tribunal de origem aos posicionamentos deste Superior Tribunal, (2) HC 96.772/SP, 2.ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 09.06.2009.
o qual, ao editar a súmula acima mencionada, pacificou seu próprio (3) São exemplos as decisões relatadas pelos Ministros Campos Marques
entendimento acerca da controvérsia, e cumpriu seu relevante papel (convocado), Marco Aurélio Belizze, e Marilza Maynard (convocada),
de unificador da interpretação das leis federais. Da mesma forma, há respectivamente, HC 251.303/SP, AgRg no HC 254.399 e HC 169.556/RJ.
ofensa à autoridade da Suprema Corte. (4) A racionalização do acesso ao Supremo Tribunal Federal, tônica tradicional
e angustiante do processo civil, abre suas asas de forma robusta sobre o
Relembre-se ao Magistrado de piso e à Corte origem que a edição processo penal, apegando-se a uma lógica que, ao revés de conformar
de súmulas é apenas o último passo do longo processo de uniformização princípios constitucionais, privilegia o resultado, diga-se, o julgamento em
da jurisprudência, o que se dá após inúmeras discussões e divergências menor tempo e o conhecimento de um menor número de ações ou recursos,
acerca do sentido e alcance de dispositivos dentre os próprios ministros, em detrimento dos também princípios constitucionais do devido processo
legal, formal e substancial, da ampla defesa e do contraditório, enfim, do
em diversos órgãos julgadores. acesso à ordem jurídica justa. O pano de fundo dos julgamentos mencionados
O acolhimento de posições pacificadas ou sumuladas pelos é esse: o de se privilegiar a tempestividade da prestação da atividade,
tribunais superiores ou pelo Supremo Tribunal Federal – vinculantes, ignorando-se os reais vilões do abarrotamento da Corte. Erradamente, com
o respeito devido, empresta-se maior valia ao princípio mais recentemente
ou não – está longe de significar um ‘engessamento’ dos Magistrados introduzido no texto da Constituição em detrimento daqueles obrados pelo
de instâncias inferiores. O desrespeito, porém, em nada contribui constituinte originário.
para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Sequer provoca (5) Disponível em: <www.stf.jus.br>. Notícia: STF concede 35% dos
a rediscussão da controvérsia da maneira devida, significando, habeas corpus analisados. Quase 30% em favor de pessoas de baixa renda.
tão somente, indesejável insegurança jurídica, e o abarrotamento Publicado em 22.05.2009.
desnecessário dos órgãos jurisdicionais de superposição.
Em verdade, ao assim agirem, as jurisdições anteriores desprestigiam Tiago Abud da Fonseca
o papel desta Corte de unificador da Jurisprudência dos Tribunais Mestre em Direito.
Pátrios, e contribuem para o aumento da sobrecarga de processos que
Professor de Processo Penal da Universidade Estácio de Sá.
já enfrenta este Sodalício, além de ensejar grande descrédito à atividade
Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro.
jurisdicional, como um todo.
Por isso, devem os Julgadores de hierarquia jurisdicional ínfera
compreender que, neste Superior Tribunal de Justiça, onde apenas dez Henrique Guelber de Mendonça
ministros têm a hercúlea tarefa de julgar habeas corpus impetrados Mestre e Doutorando em Direito Processual pela UERJ.
contra Tribunais de apelação de todo o país, a contraproducente Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro.

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Um lapso momentâneo da razão no Supremo
Lucas Costa Santos e Otávio Dias de Souza Ferreira
Em 20.04.2010, o então presidente do Supremo Tribunal Federal,
Ministro Gilmar Mendes, editou a Resolução 427 com o fim de regulamentar Número de HCs distribuídos por ano no STF:
pesquisa por registro de autuação entre 01.agosto e 31.julho no www.stf.jus.br
o processo eletrônico no tribunal. Entre diversas providências tomadas, 7000
logo após exigir que o habeas corpus fosse processado exclusivamente
6000
pelo peticionamento eletrônico, determinou o seguinte:
5000
“Art. 20. Os pedidos de ‘habeas corpus’ impetrados em causa
4859 4977
própria ou por quem não seja advogado, defensor público ou procurador 4000 4569 4609
poderão ser encaminhados ao STF em meio físico, mas deverão ser 3000 3479 Resoluão
digitalizados antes da autuação para que tramitem de forma eletrônica”. 2989
2000 2749 427/2010
Esse dispositivo, que ficou vigente por quase dois anos – sendo
1799
recentemente reformado pela Resolução 489, em 28.06.2012 –, significou 1000
874 1044 1100 1218
uma grave restrição do direito de acesso à Justiça no mais alto tribunal 0
do país -, pois todo advogado que tivesse de impetrar um habeas corpus

2000-2001

2001-2002

2002-2003

2003-2004

2004-2005

2005-2006

2006-2007

2007-2008

2008-2009

2009-2010

2010-2011

2011-2012
naquela Corte precisaria obrigatoriamente da utilização do sistema de
peticionamento eletrônico. Para tanto, é exigida uma certificação eletrônica,
que não é gratuita, e algumas habilidades com as novas tecnologias.
Essa inusitada restrição ao uso de habeas corpus é incompatível – figura “indispensável à administração da justiça” (art. 134 da CRFB) –,
com a realidade fática de muitos advogados brasileiros e compromete cujo ofício na esfera penal consiste sobretudo na garantia do Direito
princípios basilares da normativa nacional e internacional. Constitucional de defesa técnica.
Uma das primeiras curiosidades ao se deparar com o estudo do tema Quando o inc. LV do art. 5.º da Constituição pretende assegurar a ampla
foi a de investigar eventual impacto no número de impetrações dirigidas defesa “com os meios e recursos a ela inerentes”, inclui evidentemente o
à Corte. Na elaboração de uma linha de tendência da história recente direito a uma defesa técnica que supõe a assistência de um profissional
desde 2000, dez anos antes da norma, percebe-se uma súbita redução de com conhecimentos teóricos do direito e que possa trazer um equilíbrio na
autuação de habeas corpus nos dois anos seguintes à entrada em vigor relação entre acusação e defesa. Nesse sentido, Aury Lopes Jr. afirma que
da Resolução 427, em 1.º.08.2010 (vide gráfico). Mas é possível que a defesa técnica promove uma “acertada presunção de hipossuficiência
existam outras variáveis contribuindo para explicar o fenômeno, não do sujeito passivo, de que não tem conhecimentos necessários e suficientes
havendo uma exclusiva relação causal. parar resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com
Praticamente impossível será aferir quantas ordens de habeas corpus o acusador” (Lopes Jr., Aury. Introdução crítica ao processo penal. Rio
foram afetadas devido à incidência dessa norma. Há aquelas que foram de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 233 e ss.).
rejeitadas de imediato na triagem. Algumas podem ter sido reelaboradas Além de o dispositivo ter ferido vários preceitos normativos, não 13
e, depois de algum tempo, processadas pela via digital ou assinadas condiz absolutamente com a realidade social brasileira.
por pessoas que não fossem advogados. Outras tantas devem ter sido
O peticionamento eletrônico ainda não está plenamente instituído
abandonadas. Para umas e outras a prestação do direito de acesso
em todos os tribunais do território nacional e a certificação eletrônica
à justiça foi prejudicada, mesmo que pela falta de celeridade para
corrigir situações potenciais de graves violações de direitos a demandar ainda não é um instrumento de trabalho indispensável ao exercício da
providências imediatas. advocacia. Os tribunais inferiores e até mesmo o Superior Tribunal de
Justiça não preveem semelhante restrição para o habeas corpus.
Nesse contexto, é bom se ter em mente que, conforme declarações do
próprio Ministro Gilmar Mendes, nossa Corte Suprema tem apresentado O acesso à internet e à realidade digital ainda não se universalizou no
índices elevados de deferimento de habeas corpus, em torno de um Brasil. Segundo pesquisa engendrada pelo Ibope Nielsen Online,(2) 73,9
terço.(1) milhões de brasileiros têm acesso à Internet, número que corresponde
Muitos advogados que não se adequaram às novas exigências talvez a apenas 38% da população do país. Muitos dos advogados ainda não
tenham desistido de cogitar a impetração de novas ordens. E deve haver se adaptaram às tecnologias digitais da contemporaneidade. A exclusão
também aqueles que ainda nem sabem que o fatídico dispositivo foi digital atinge bons advogados, sobretudo aqueles de idade mais avançada
reformado, restaurando a normalidade constitucional. ou mais desprovidos de recursos econômicos, que teriam capacidade de
oferecer uma boa defesa técnica.
O mais inquietante, todavia, é que essa norma provocou lesão
substantiva ao Direito Civil de acesso à justiça em sua garantia mais A parcela da população que mais necessita da ação constitucional de
fundamental. Ofendeu gravemente o inc. LXXVII do art. 5.º da CRFB habeas corpus para a tutela de sua liberdade é justamente aquela que mais
sobre a gratuidade do habeas corpus. Na normativa internacional o carece de condições econômicas para arcar com um advogado particular.
dispositivo violou prescrições da Declaração Universal dos Direitos Quando conseguem contratar um, é mediante grande sacrifício. E muitos
Humanos (art. VIII), do Pacto Internacional de Direitos Civis e desses advogados que se dedicam à defesa na esfera criminal dessa
Políticos (art. 5, I; e art. 9, I), do Pacto de San José da Costa Rica população mais fragilizada sobrevivem também com dificuldades e
(arts. 7.º, 3 e 6; 8.º, 2, c e d) e na jurisprudência do Sistema privações materiais.
Interamericano seguiu na contramão da Opinião Consultiva OC-9/87 e A despeito da imposição do art. 134 da Constituição da República,
da decisão sobre o caso Hermanas Serrano Cruz vs. El Salvador. a Defensoria ainda é manifestamente deficitária em todo o País. No
A restrição ao princípio da gratuidade do habeas corpus é mais mais das vezes, no lugar de uma Defensoria Pública bem estruturada
indevida se considerarmos que ela é feita justamente para o advogado e operante, funcionam os mambembes convênios com a OAB, pelos

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

quais advogados cadastrados atuam no lugar da Defensoria e, ao final, Notas


recebem do Erário um valor bastante modesto.
(1) Esses dados correspondem ao balanço da atuação do Tribunal em 2007 e
Contudo, o desempenho do Ministro Gilmar Mendes na função 2008, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
atípica de legislar não foi nada promissor nessa Resolução 427, de modo asp?idConteudo=101208> , acesso em: 03.11. 2012.
que, em menos de dois anos, foi necessária a elaboração de pelo menos (2) Divulgada no dia 18.03.2011. Vide notícia no portal “G1”: <http://g1.globo.
com/tecnologia/noticia/2011/03/acesso-rede-no-brasil-cresce-96-em-2010-
outras três Resoluções (442, 476 e 489) para corrigir ou revogar vários e-chega-739-de-internautas.html>, acesso em: 03.11.2012.
de seus dispositivos, sendo o famigerado art. 20 certamente aquele que
gerou mais indignação. Sua redação foi enfim reformulada para a seguinte
forma: “Os pedidos de ‘habeas corpus’ poderão ser encaminhados ao Lucas Costa Santos
STF em meio físico, caso em que serão digitalizados antes da autuação, Especialista em Direito Penal e
para que tramitem de forma eletrônica”. Processual Penal pela PUC-SP.
Ao cabo de um período de quase dois anos restaurou-se razão nesse Advogado.
ponto do ordenamento, momentaneamente desflorada em uma prescrição
aparentemente singela, mas capaz de gerar graves consequências para a Otávio Dias de Souza Ferreira
vida de muitas pessoas, de cujos direitos mais caros restaram desprovidos Mestrando em Ciências Sociais pela UNIFESP.
de sua proteção jurídica mais básica e essencial. Advogado.

Breve análise dogmática do Decreto


Presidencial 7.873/2012 (que concede indulto e
comutação de penas)
Patricia Borin Ribeiro e Thiago Pedro Pagliuca dos Santos
Breve introdução os requisitos estipulados no decreto presidencial estão ou não preenchidos.
O indulto é causa de extinção de pena (art. 107, II, do CP). Já há Contudo há forte tendência de alguns juízes (poucos, é verdade(3))
muitos anos é tradição do chefe do Poder Executivo federal expedir a usurparem aquela competência constitucional. Em vez de simplesmente
decreto, em data próxima ao natal, concedendo indulto a quem preenche verificarem se há o preenchimento dos requisitos do decreto, inovam
determinados requisitos. No último ano não foi diferente. O Decreto ilegalmente na ordem jurídica com a estipulação de outros, como
7.873/2012 inclusive inovou, em relação aos anteriores, em vários “merecimento”, “boa conduta”, “gravidade do crime” etc.(4)
14 Por essa razão, o art. 9.º, de maneira cristalina, prevê algo que
aspectos. Por exemplo, trouxe o inédito art. 1.º, XVI, que visa a atingir
os condenados por crime patrimonial não violento cujo prejuízo não seja poderia causar perplexidade – pela sua redundância – ao intérprete
superior a um salário mínimo. que desconhece aquela tendência usurpadora de alguns juízes:
Além do indulto, a comutação (que reduz substancialmente a pena “Para a declaração do indulto e comutação das penas é suficiente o
do sentenciado) também é prevista no decreto, em seu art. 2.º. preenchimento dos requisitos previstos neste Decreto”.
Os operadores do Direito que atuam na execução penal não podem
desconhecer os decretos presidenciais que dispõem sobre indulto e Restrição aos condenados por crimes hediondos e equiparados, e
comutação. A leitura do art. 1.º, por exemplo, é obrigatória, mas, por àqueles que cometeram falta grave nos doze meses anteriores à
razões metodológicas, seus incisos não serão objeto do presente texto.(1) publicação do decreto
Passemos à análise de alguns aspectos relevantes do Decreto 7.873/2012.
Ainda que preencha todos os requisitos de qualquer dos incisos do
art. 1.º e do caput do art. 2.º, o sentenciado não faz jus ao indulto ou à
Irrelevância de existência de processos em andamento comutação de pena em duas hipóteses:
É certo que o art. 5.º (que dispõe que sobre a irrelevância de a) se lhe tiver sido aplicada “sanção, homologada pelo juízo
processos penais em andamento para o reconhecimento do indulto) competente, em audiência de justificação, garantido o direito ao
não traz qualquer novidade; sua redação é idêntica desde o Decreto contraditório e à ampla defesa, por falta disciplinar de natureza
7.420/2010. Mas sua importância não pode ser desdenhada e o operador grave, prevista na Lei de Execução Penal, cometida nos doze meses de
do Direito deve ficar atento, pois é comum, em alguns lugares, que a pena cumprimento da pena, contados retroativamente à data de publicação
resultante de sentença penal condenatória não transitada em julgado seja deste Decreto” (art. 4.º, caput).
somada, na guia de execução penal, àquela resultante de sentença penal b) se a condenação for por qualquer dos crimes listados no
condenatória irrecorrível, sem qualquer ressalva, quando, em verdade, art. 8.º (crimes hediondos, equiparados e outros).
não deve ser levada em consideração para o cálculo.(2)
É errado, no entanto, dizer que nesses dois casos o indulto está
vedado por completo. Não está. O indulto humanitário (art. 1.º, X) e o
Impossibilidade de se exigir “merecimento” do sentenciado indulto da medida de segurança (art. 1.º, XI) são cabíveis em qualquer
A competência constitucional privativa para indultar penas ou comutá-las hipótese (art. 4.º, § 2.º e art. 8.º, parágrafo único).
é da chefa do Poder Executivo, conforme art. 84, XII, da CF. A nobre Ademais, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado – mas
função do juiz da execução penal é, nesse ponto, tão somente verificar se desde que o outro óbice, da falta grave, não exista –, é possível o indulto

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


pelo art. 1.º, IX (extinção da pena de multa se a privativa de liberdade já Consequências da natureza declaratória da decisão do juiz da
tiver sido integralmente cumprida) e pelo art. 1.º, XII. Esse último trata execução penal
de sentenciado que tenha tido sua pena privativa de liberdade substituída
por restritiva de direitos (ou com aplicação de sursis). Sua finalidade é A natureza jurídica da decisão do juiz da execução penal é
clara: atingir quem foi condenado por tráfico privilegiado e teve sua pena declaratória, e não constitutiva (STJ, 5.ª T., Rel. Laurita Vaz, HC 233.348,
privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos.(5) Ainda que se 05.06.2012), o que traz consequências absolutamente relevantes.
considere o tráfico privilegiado crime hediondo (tese de que discordamos), Imagine-se que, em 26.12.2012, o sentenciado esteja em livramento
não é inconstitucional essa hipótese de indulto porque a Constituição veda, condicional e faltem três anos para que termine de cumprir o período de
no art. 5.º, XLIII, tão somente a graça (que é individual) e não o indulto prova. Em meados de 2013, comete crime e é condenado, em sentença
(que é coletivo), a autores de crimes hediondos e equiparados. irrecorrível, à pena privativa de liberdade. Em tese, o livramento
Referidas as exceções, voltemos às restrições. condicional deverá ser revogado (art. 86, I, do CP), e o prazo em que
Em relação à primeira situação (sanção disciplinar por falta grave ficou solto sequer será descontado na pena (art. 88 do CP).
homologada em juízo), para que incida a restrição, a falta grave deve Digamos, porém, que esse indivíduo preenchesse, em 26.12.2012
ter ocorrido entre o dia 27.12.2011 (trata-se de prazo penal, incidindo (data da publicação do decreto), os requisitos de qualquer dos incisos
o art. 10 do CP) e 26.12.2012 (data da publicação do decreto). Faltas do art. 1.º do Decreto, mas, por um lapso, não tenha requerido ao juiz da
graves anteriores ao dia 27.12.2011, ainda que a homologação judicial execução penal que reconhecesse o seu direito ao indulto.
tenha ocorrido no período referido, não podem ser consideradas para
Se se tratasse de decisão com natureza constitutiva, a prática posterior
prejudicar o sentenciado. Aliás, elas sequer servem para interromper o
de crime poderia impedir o reconhecimento do indulto; caso entenda se
lapso temporal exigido para o indulto, conforme disposição expressa
tratar de natureza declaratória, não há tal óbice.
do art. 3.º, parágrafo único, do Decreto. Faltas graves cometidas
posteriormente à publicação do decreto também não vedam o indulto Ora, a natureza declaratória da decisão decorre do próprio
ou a comutação (art. 4.º, § 1.º), o que ressalta a natureza declaratória da art. 84, XII, da CF. Se cabe privativamente ao chefe do Poder Executivo
decisão do juiz da execução penal. federal conceder indulto, é evidente que o juiz da execução penal não
A falta grave, por óbvio, só terá o condão de vedar o indulto ou a tem essa competência.
comutação se a sanção disciplinar houver sido homologada judicialmente, Ademais, se não houve o reconhecimento do indulto antes da prática
com respeito ao contraditório e à ampla defesa. do novo crime foi por falha exclusiva do Estado, pois o art. 10 do Decreto
Pode surgir a interessante situação na qual haja suspeita de ter havido dispõe que a responsabilidade para encaminhar ao juiz da execução a
cometimento de falta grave durante o período mencionado, mas ainda lista das pessoas que fazem jus ao indulto ou à comutação cabe, entre
não tenha havido pronunciamento judicial a respeito. O decreto poderia outros, aos órgãos da execução penal (art. 61 da LEP).
ter disciplinado melhor a questão. Poderia, por exemplo, ter se inspirado Se os órgãos da execução penal tivessem cumprido corretamente sua
no Código Penal e vedado ao juiz da execução que se pronunciasse sobre função e encaminhado o nome do sentenciado o mais breve possível
o indulto até que houvesse decisão judicial sobre a sanção disciplinar.(6) ao juiz da execução, sua punibilidade teria sido extinta e não haveria
Semelhante vedação, no entanto, inexiste. Seria um absurdo possibilidade de o livramento condicional ser revogado por crime
recorrer à analogia com o art. 89 do CP para prejudicar a situação ocorrido posteriormente. É justo que o sentenciado pague pela ineficácia
do sentenciado (o princípio da legalidade veda a analogia in malam do Estado? Claro que não.
partem em matéria penal).
Assim, ainda no exemplo citado, mesmo que o sentenciado não
O art. 4.º, § 1.º, do decreto deixa bem explícito que a prática de tenha requerido ao juiz da execução o reconhecimento do indulto, pode 15
falta grave “sem a devida apuração nos termos do caput não impede a
fazê-lo a qualquer momento e a decisão terá natureza declaratória.
obtenção do indulto ou comutação de penas”.
Declarará que sua pena foi extinta em 26.12.2012 pela ocorrência do
Assim, se no momento de se pronunciar sobre o indulto a falta grave indulto, impossibilitando, dessarte, que ocorra revogação do livramento
estiver pendente de apreciação judicial, ela não poderá obstar os direitos
condicional por crime ocorrido após aquela data.
do sentenciado previstos no decreto.
Em relação à restrição do art. 8.º (crimes hediondos, equiparados e
outros), há alguns comentários a serem feitos. Processamento do feito: prazo peremptório para o Conselho
O inc. II, ao tratar do tráfico de drogas, ampliou indevidamente a Penitenciário
restrição do indulto aos crimes dos arts. 34 a 37 da Lei 11.343/2006 Problema prático sempre enfrentado foi o da demora na apreciação
(que, com exceção do art. 36, não são equiparados a hediondo). dos pedidos de indulto, visto que havia, até o Decreto 7.648/2011, a
Interessante notar que o mesmo inciso II não faz referência ao necessidade de manifestação do Conselho Penitenciário (que só não é
art. 33, § 4.º (mas exclusivamente ao caput e ao § 1.º, como, aliás, já necessária nas hipóteses do art. 1.º, IX, X e XI, conforme art. 10, § 3.º),
vinham fazendo os decretos anteriores(7)), podendo-se daí concluir que o que às vezes demorava meses.
ao tráfico privilegiado não incide a proibição de indulto e comutação. Tal exigência é, com a devida vênia, esdrúxula, pois os requisitos
Finalmente, do art. 8.º, III, pode-se extrair que é possível a concessão do decreto são todos objetivos. Qualquer um tem a possibilidade de
de indulto ou comutação àqueles sentenciados que praticaram crime analisar se estão preenchidos ou não. Não há necessidade prática de um
hediondo ou equiparado antes de o delito ser rotulado como tal, em conselheiro penitenciário proceder a tal análise, até porque já há um
respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal in pejus.(8) Assim, se defensor, um promotor e um juiz para fazer isso.
o sentenciado praticou homicídio qualificado antes de 6 de setembro de
Em boa hora o Decreto 7.873/2012 previu o inédito § 5.º no art. 10,
1994, por exemplo, não incide a restrição. Quanto ao crime de estupro
para dar um basta às demoras prolongadas: “Findo o prazo previsto no
simples (e ao antigo atentado violento ao pudor), há correto entendimento
jurisprudencial, ainda que minoritário, no sentido de ter se tornado § 4.º [de 15 dias], com ou sem a manifestação do Conselho Penitenciário,
hediondo apenas com o advento da Lei 12.015/2009.(9) Até porque se o juízo da execução determinará vista dos autos ao Ministério Público e,
já fosse hediondo antes dessa lei não haveria a mínima necessidade de em seguida, à defesa, para, ao final, proferir decisão”.
ser estipulado no decreto, de maneira expressa, que ele não se aplica Em suma, hoje permanece apenas a obrigação de se dar vista de foto
às “pessoas condenadas por [...] crime hediondo, praticado após a cópia ou cópia digital dos autos ao Conselho Penitenciário (art. 10, § 4.º),
publicação das Leis [...] 12.015, de 7 de agosto de 2009” (art. 8.º, III). mas sua manifestação efetiva não é requisito de validade da decisão.

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Notas Penal 0194935-26.2012.8.26.0000, 18.12.2012). Curioso é que essa decisão


se refere ao Decreto 7.648/2011, que também previa, no art. 9.º, ser suficiente
(1) Para auxiliar os operadores do Direito da execução penal, há programa – para a declaração do indulto ou da comutação o preenchimento dos requisitos
ainda em fase de teste –, que pode ser útil, no site: <www.osmiseraveis. previstos naquele decreto.
org/indulto>. (5) Lembrando que a proibição da “conversão” da pena privativa de liberdade
(2) Por exemplo: a pena total constante da guia de execução é de 7 anos de reclusão: por restritiva de direitos não mais subsiste no ordenamento jurídico a partir da
6 referentes à execução definitiva e 1 à execução provisória. O sentenciado Resolução 5/2012 do Senado Federal.
já cumpriu 2 anos. Caso fosse levado em consideração o tempo total de (6) Mutatis mutandis é o que prevê o art. 89 do CP em relação à declaração de
pena, ele não preencheria os requisitos do art. 1.º, I. Porém, excluindo-se extinção da pena quando o sentenciado, em livramento condicional, passa a
aquela “pena” de 1 ano (pois a sentença que a impôs ainda não transitou em responder processo por crime supostamente ocorrido durante o período de
julgado), a situação muda por completo. prova: “O juiz não poderá declarar extinta a pena, enquanto não passar
(3) A jurisprudência tranquila do Superior Tribunal de Justiça é no seguinte em julgado a sentença em processo a que responde o liberado, por crime
sentido: “Preenchidos os requisitos estabelecidos no Decreto-Presidencial, cometido na vigência do livramento”. Caso o resultado do processo seja a
não há como impedir a concessão da comutação da pena ao sentenciado, absolvição, extingue-se a pena; caso seja a condenação à pena privativa de
por falta de requisitos de ordem subjetiva, uma vez que a sentença nesse liberdade, revoga-se o livramento condicional.
caso, tem natureza jurídica meramente declaratória” (5.ª T., Rel. Laurita Vaz, (7) Por exemplo, art. 8.º, II, do Decreto 7.648/2011.
HC 233.348, 05.06.2012). (8) Cf., por exemplo, STJ, 6.ª T., HC 213.526, Rel. Maria Thereza de Assis
(4) Confira-se, nesse sentido, trecho do voto do Des. Fernando Simão (TJSP): Moura, 20.11.2012: “O Decreto Presidencial que veda o indulto para os
“Assim, não obstante tenha o sentenciado, por um lado, preenchido o condenados por crime hediondo não inviabiliza a concessão do benefício
requisito objetivo caracterizado pelo elemento corporal, constata-se, por para aquele que cometeu crime, à época, não considerado como tal.
outro lado, que o requisito subjetivo caracterizado pelo elemento de ordem Na espécie, ao crime equiparado ao de homicídio qualificado, por ter sido
social, não restou convincente a fim de que o agravante mereça o benefício cometido antes da Lei 8.930/1994, que alterou a Lei 8.072/1990, não incide
almejado, levando-se em consideração que se está discutindo o perdão parcial a vedação do Decreto n. 6.706/2008, não podendo o benefício da comutação
para indivíduo que praticou delitos graves. O Decreto Presidencial não é ser negado sob esse fundamento, sob pena de violação ao princípio da
auto-executável, traduzindo-se em expectativa de direito até que se apure a irretroatividade da novatio legis in pejus”.
existência de condições pessoais necessárias para a sua concessão, cabendo
(9) Nesse sentido: “Ementa: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ESTUPRO [...].
à autoridade judiciária analisar tais condições, caso a caso, abrangendo todo
Os fatos ocorreram há mais de uma década, não se cogitando, pois, em
o período a ela antecedente, antes e depois da publicação do decreto. Assim,
atualidade no abalo à ordem pública, destacando-se, também, que não
o benefício deve ser destinado ao condenado em condições de merecê-lo,
há falar em hediondez do delito de estupro praticado antes da vigência
proporcionando-lhe condições para a harmônica integração social, mesmo
da Lei 12.015/2009” (TJRS, Recurso em Sentido Estrito 70050564830,
porque a finalidade da benesse é incentivar a ressocialização do preso e não
5.ª Câmara Criminal, Rel. Francesco Conti, j. 10.10.2012).
a de assegurar a impunidade, ou prestigiar a conduta incompatível com a
ordem e disciplina dos estabelecimentos prisionais. E, na hipótese dos autos,
o atestado de bom comportamento carcerário não se mostra suficiente para
a constatação da existência de mérito por parte do reeducando, ou seja, do Patricia Borin Ribeiro
seu interesse na absorção da terapêutica prisional. Aliás, seria até injusto Bacharel em Direito pela PUC-SP.
para com os demais sentenciados, que não praticaram nenhuma falta grave
ao longo de toda a execução da pena, conceder a comutação indistintamente Advogada.
e automaticamente a todos aqueles que não cometeram falta grave durante
um determinado período. Portanto, a fim de se não violar a individualização
da pena (art. 5.º, inciso VLVI, alínea a, da CF) e transformar o juiz em mero Thiago Pedro Pagliuca dos Santos
homologador de atestado administrativo, em evidente desvirtuamento das Mestrando em Direito Penal pela USP.
funções do Estado-Juiz, impõe-se reconhecer que o reeducando não possui
mérito pessoal para ser beneficiado com a comutação de penas, tendo em Bacharel em Direito pela PUC-SP.
vista a gravidade dos crimes a que fora condenado” (Agravo em Execução Defensor Público.

16

Mulheres visitantes em unidades prisionais:


da invisibilidade ao tertium genus social.
Ainda o Direito Penal do Inimigo
Saulo Dutra de Oliveira
Consoante Angotti “Lombroso apresentou dificuldades em mapear Para além dos postulados da antropologia criminal italiana, cuja
as características degenerativas em mulheres criminosas natas e investigação das causas da criminalidade feminina indicou ser menos
prostitutas”.(1) Lombroso e Ferrero apontam que “a criminosa feminina é aferível (havendo uma relação de continuidade menos nítida entre as
menos típica fisiologicamente que os homens criminosos, uma vez que ela figuras da mulher delinquente, da mulher prostituta e da mulher normal)
é menos essencialmente criminosa, já que todas as formas de degeneração o novel perfil criminológico da mulher visitante resultou de fácil detecção
fazem com que a criminosa se desvie a um patamar mais próximo que para a autoridade judiciária.
os homens, pois sendo organicamente conservadora (há pouca variedade Aos 18 de dezembro de 2012, adveio decisão liminar nos autos do
e evolução) ela mantém as características do tipo ‘normal’ mesmo Habeas Corpus coletivo 0269428-71.2012.6.26.0000 do Tribunal de
quando desvia dele; e finalmente porque a beleza, sendo para ela de uma Justiça de São Paulo, que suspendeu os procedimentos de revista íntima
necessidade suprema, resiste aos assaltos da degenerescência”.(2) invasiva nas unidades prisionais sujeitas às atividades correcionais da
Mulher delinquente; mulher prostituta; mulher normal. A seguir, Vara de Execuções Criminais de Taubaté/SP.(3) A decisão jogou luz
em breves linhas, pretende-se demonstrar o despertar da tentativa sobre o problema do tratamento desumano que vem sendo dispensado
de um moderno mapeamento judicial da predisposta criminalidade aos familiares, às amigas e às companheiras de pessoas presas, sob a
feminina, que ressoa os pressupostos etiológicos e discriminatórios da justificativa mais ou menos expressa da presunção de periculosidade
criminologia de matriz tradicionalmente médico-psicológica: a mulher dessas mulheres, muitas vezes com a anuência do Poder Judiciário.
visitante, em unidades prisionais. A ação fora proposta pela Defensoria Pública do Estado em face da

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


autorização dada pelo Juízo da Corregedoria de presídios. A decisão de princípios, perdesse todo o controle. Nos ‘excessos’ dos suplícios se
1.º grau sustentou a plena legalidade da retirada de objetos dos corpos investe toda a economia do poder”.(7)
dos visitantes, mesmo sem o consentimento da pessoa suspeita; com Essa espoliação diária recebe ainda o reflexo das péssimas condições
fundamento no art. 244 do CPP, sufragou juízo geral de legalidade de trabalho às quais são submetidos os servidores do Estado: da irrisão
das provas colhidas nos pressupostos estados flagranciais;(4) a seguir, salarial à falta de preparação técnica do corpo funcional, o Estado cultua a
impingiu aos médicos a obrigação da retirada dos objetos, com ou sem prisão como o não lugar até mesmo para os seus.
consentimento da pessoa, sob pena de responsabilização criminal; e, Exaspera o cenário inumano do não lugar o seu condão de retirar do
finalmente, determinou à autoridade policial a formalização dos autos de sujeito de direitos a individualidade, onde todos passam a ser vistos como
prisão em flagrante. suspeitos. O parente visitante, assim, de um invisível social na titularização
A decisão acoimou as pessoas suspeitas de verdadeiros inimigos, de direitos, transmuda-se no quase delinquente, esse elemento prestes a
mediante a criação de feixes de incidência e de não incidência do perder sua humanidade e se transformar em mais uma não pessoa. De
fundamento normativo da dignidade da pessoa humana, de acordo com porta social de contato do preso com o mundo exterior, todos passam a
o titular: ressuscitando um adágio midiático excludente de que direitos potenciais mulas do tráfico ou de outros objetos.
humanos são para humanos direitos, a dignidade da pessoa humana só se
A economia do poder marginal – na qual poder disciplinar e suplício
aplicaria aos seres humanos dignos.
se justapõem – cobra do quase delinquente a sua dignidade: na suposta
No caso, o vetor interpretativo constitucional da dignidade sucumbiu debilidade ou pressuposta ausência dos meios de controle oficiais e dignos,
diante da qualidade da pessoa suspeita. Conforme a decisão: “tal princípio, os dispositivos de poder no cárcere celebram sua (in)eficiência com o
realmente, é de fundamental importância na vida em sociedade e deve ser toque íntimo e degradante na mulher.
prestigiado sempre que se depare – por óbvio – com o sujeito de direito a
Ocorre que a extensão do poder repressivo, como qualquer outro,
ser tutelado, qual seja, o indivíduo digno. E não parece que isso ocorra
encontra limites traçados pela Constituição Federal, pelas Convenções
no caso em que a pessoa se disponha a ocultar material proibido em sua
e Tratados internacionais, pela legislação infraconstitucional; até pela
genitália a fim de introduzi-lo em uma unidade prisional, assumindo as
própria Resolução da Secretaria de Administração Penitenciária.(8) Todos,
consequências socialmente e sabidamente nocivas daí advindas, máxime
reflexos da concretização da dignidade humana, como norma jurídica.
em se tratando de ambiente carcerário”.(5)
A Corregedoria de Justiça do TJSP havia confirmado os termos da O maniqueísmo decisionista esbarra, a seguir, na máxima da
decisão, revelando, ademais, a sucumbência do comando normativo da proporcionalidade. Em nome da perpetuação ilusionista da existência do
dignidade humana em face da suposta necessidade de preservação da bem e do mal, a utilização do Direito Penal para a resolução do problema
segurança, da ordem e da disciplina, nas unidades prisionais. fático posto ultrapassou limites judicantes: o poder-dever de fiscalização
nas prisões já viabiliza a proibição de ingresso de pessoas, que portem
A decisão recorrida publiciza que um Estado assustadoramente
objetos suspeitos, flagrados pelos instrumentos tecnológicos, a culminar
penal tem sido forjado mediante a subjugação dos seres humanos, com
ainda na suspensão do direito do visitante em ingressar futuramente nas
o enraizamento de pechas classificatórias neolombrosianas. A figura dos
unidades prisionais do Estado. Tudo isso nos termos da Resolução, fundada
visitantes, em unidade prisionais – essencialmente mulheres – pode estar
em elementos de Direito Administrativo.(9) Há, portanto, juridicidade
a evidenciar um novel estereótipo para fins penais: um ser situado entre a
explícita em comando normativo que retira a legitimidade do Direito
pessoa (não delinquente) e o delinquente (não pessoa). “O cárcere é o não
Penal. Ultima ratio, concretamente aplicada.
lugar da sociedade moderna. No passado pôde ser – foi efetivamente –
um lugar, lugar de castigo e de mortificação, de encerro moral ou Ainda assim, nas perífrases judiciais, a submissão à coleta da prova
economicamente produtivo, de reforma, de intentos mais ou menos sinceros manifestamente ilícita, sem o consentimento do quase delinquente, mesmo
de transformação das pessoas ou de defender um certo estado de coisas: em que provisoriamente suspensa nos autos do HC coletivo, atemoriza esse
suma, um lugar onde se punham em jogo princípios filosóficos ou propósitos tertium genus social, invisível para os direitos, porém clamado pelo 17
sociais, embora agora aqueles hajam perdido parte de sua vigência e estes Direito Penal.
não possam ser verificados empiricamente. Hoje, sem ideais e sem discurso Em nome da segurança pública, da ordem e da disciplina, ou qualquer
que os justifiquem através de alguma forma de utilidade social, conquanto outro termo generalizante, de difícil limitação combativa, a vontade do
seja de maneira indireta, o cárcere é o não lugar, aonde se atiram não soberano Estado Penal reveste-se em vontade geral e no atual medievo
homens, para que agora e no futuro não sejam”.(6) “não é bastante que os maus sejam justamente punidos. É preciso, se
Afinal, o Estado tem convivido bem com o processo de separação possível, que eles mesmos se julguem e se condenem”.(10)
entre a pessoa e o delinquente. Basta analisar o processo de coisificação Por fim, evidencia-se o Juízo da Vara de Execuções Criminais por não
nas unidades prisionais, responsável por destinar os seres humanos ter padecido da síndrome de Pilatos: ao não lavar suas mãos, mesmo com
à condição de não pessoa: o cárcere é o não lugar; o preso é a não as manchas da decretação explícita da indignidade dos quase delinquentes,
pessoa. O não lugar é legitimado a vilipendiar a dignidade: não fornece viabilizou análise judicial revisora, com efeitos coletivos, de um tema
tratamento de saúde adequado; péssima qualidade da alimentação; extramente velado: declarou a legitimidade dos procedimentos abusivos,
racionamento no fornecimento de água potável; superlotação; que são continuamente reproduzidos pelos dispositivos de poder no cárcere.
seletividade; marginalização. Falecem as tentativas de revitalização da Afinal, a revista íntima vexatória e invasiva se mostrava indiretamente
qualidade humana dos encarcerados e o caminho parece querer antecipar discutida nas Cortes judiciais por intermédio de recursos ou habeas corpus
e estender o juízo de inumanidade. individuais, que buscavam a exclusão da prova conquistada ilicitamente
A pena de prisão, nesse Estado de Direito Penal, tornou-se um instituto em face dos já primevamente condenados: aqui, a não pessoa já é o
de efeitos coletivos. Para aquém e além do princípio da individualização traficante, o preso, o mal, o perverso, o outro. O pré-juízo é evidente.
da pena, as marcas da segregação carcerária tatuam estigmas nas famílias Agora cabe ao Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentar somente a
dos cativos, que têm a dignidade diuturnamente violada nas revistas questão. O resultado não pode ser outro que a sedimentação da dignidade
vexatórias produzidas nas unidades prisionais. Mesmo com a presença humana como suporte da mantença da qualidade de pessoa dos visitantes,
de instrumentos tecnológicos (detectores de metal, aparelhos de raios-X, proscrevendo de vez essa prática dura, cruel e degradante de vigilância
por exemplo), muitos ainda convivem com o revirar de seus alimentos; a estatal, fundada na invasão do corpo, principalmente da mulher – sem
defloração da intimidade; a nudez coletiva; os agachamentos; as revistas adjetivações.
íntimas táteis. A hodierna ostentação dos suplícios. Concluíra Foucault
que “o suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal:
é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado Notas
para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não (1) Angotti, Bruna. Entre as leis da ciência, do estado e de deus – O surgimento
é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2012. p. 153.

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

(2) Lombroso, Cesare; Ferrero, Guglielmo. Criminal woman, the prostitute, (6) Prólogo de Virgolini, Julio E. S. In: Buján, Javier Alejandro; Ferrando,
and the normal woman. Durham: Duke University Press, 2004. Apud Victor Hugo. La Cárcel Argentina. Una perspectiva crítica. Buenos Aires:
Angotti, Bruna. Op. cit., p. 153. Ad-Hoc, 1998, p. 20.
(3) A Corregedoria de presídios da Vara de Execuções Criminais de Taubaté (7) Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel
irradia competência judicial a 8 unidades prisionais: Centro de Detenção Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 36.
provisória de Taubaté; Penitenciárias masculinas I e II de Tremembé; (8) Resolução 144 da Secretaria da Administração Penitenciária, de 29 de junho
Penitenciárias femininas I e II de Tremembé; Penitenciárias masculinas I e de 2010, que institui o regimento interno padrão das unidades prisionais do
II de Potim; Centro de Progressão Penitenciária de Tremembé. Nas unidades Estado de São Paulo. Seu art. 157, § 1.º, veda a “revista interna, visual ou
estão segregadas 9.041 pessoas, conforme <www.sap.sp.gov.br>, acesso tátil do corpo do indivíduo”. Disponível em: <www.sap.sp.gov.br>. Acesso
em: 03.01.2013. em: 03.01.2013.
(4) Art. 244 do CPP: “A busca pessoal independerá de mandado, no caso de (9) Art. 149 ao art. 158 da Resolução 144 da SAP.
prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse
de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou (10) Ayrault, P. L’odre, formalité et Instruction Judiciaire, 1576, L. I. cap. 14
quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”. Apud Foucault, Michel. Op. cit., p. 39.
(5) Trecho da decisão exarada nos autos do Expediente 007/2011, da 1.ª Vara
das Execuções Criminais de Taubaté/SP, que respondeu consulta feita pela
Direção da Penitenciária I masculina de Tremembé/SP, sobre o procedimento
Saulo Dutra de Oliveira
a ser adotado em face de mulheres visitantes, suspeitas de portarem objetos Defensor Público do Estado de São Paulo
ocultos em partes íntimas, para ingresso na unidade prisional. Coordenador das Execuções Criminais – Regional Taubaté.

Descasos

Soon-Yi
Alexandra Lebelson Szafir
Soon-Yi(1) é sul-coreana, mas vive em São Paulo desde a infância. modo algum me prepararam para dois fatos bizarros que vieram a seguir.
Para quem a vê pela primeira vez, ela, desde logo, chama a atenção pela O primeiro ocorreu no dia do julgamento. Enquanto eu dava uma olhada
beleza e pelo temperamento doce. Com o tempo, essa primeira impressão final nos autos, fui abordada por uma estagiária da impetrante, dizendo que
se fortalece. Ela definitivamente não deveria estar em uma prisão, mas foi esta sempre tivera a intenção de fazer a sustentação oral (intenção esta
lá que a conheci. jamais comunicada na conversa telefônica mencionada acima) e que eu
A história é trágica. Apesar de viver em um ambiente moderno estaria incorrendo em infração ética. A empáfia daquela moça fez com que
– cursava uma faculdade de psicologia – convivia também com as o sangue me subisse à cabeça!
tradições do seu povo, uma delas o casamento arranjado pelas famílias. Respondi-lhe que seria um prazer ouvir a sustentação da procuradora e
Já antes do casamento, seu noivo a espancava. A perspectiva de passar indaguei onde ela estava. O fato é que, apesar de mandar a assessora dizer
a vida ao lado dele a aterrorizava, mas parecia ser a única que se lhe aqueles absurdos, ela não se dignara a comparecer à sessão de julgamento!
apresentava, pois ideias de rompimento do compromisso ou mesmo de fuga Antes de sustentar, fiz questão de indagar dos desembargadores se havia
18 eram soterradas por ameaças dele aos pais dela. infração ética, apenas para que a fedelha ouvisse a resposta negativa.
Acuada, armou um plano para matá-lo. Atingiu seu objetivo, mas como A sustentação oral acabou sendo de extrema importância, pois o Relator,
estava longe de ser uma profissional do crime, a autoria foi descoberta quase por seu voto, denegava a ordem. O Procurador de Justiça, contrariando o
que imediatamente. parecer escrito, manifestou-se pela concessão da ordem, e acabamos vencendo
Olhando o processo, descobri que ela se manteve calada, não contou sua por 2 a 1, contra o voto do Relator. Tenho para mim que, se não fossem os
história. Acabou condenada a 12 anos de reclusão. debates ensejados pela sustentação oral, essa vitória jamais ocorreria.
Quando a conheci, ela já tinha obtido a progressão para o regime O segundo fato bizarro aconteceu quando um Promotor de Justiça
semiaberto. Trabalhava e estudava, quando, como é praxe no caso de se manifestou contra a saída temporária de Soon-Yi, unicamente por ela
condenados estrangeiros, sobreveio o decreto de expulsão do País, a ter ser estrangeira. Tendo em vista que isso contrariava a decisão proferida
efeito somente depois de cumprida a pena. O decreto não fazia menção, e no habeas corpus, despachei uma petição com o Juiz Corregedor, o qual
nem poderia, a qualquer modificação na forma de cumprimento da pena, a determinou a vinda imediata dos autos ao seu gabinete.
qual, é lógico, é regida pela Lei de Execuções Penais. Como a definição do termo “imediata” do Cartório das Execuções
Mas o juiz responsável pela Execução da pena de Soon-Yi tinha Criminais de São Paulo é diferente da do dicionário, tive que discutir
iniciativa. Decidiu, ao arrepio da lei, proibir o trabalho externo e as saídas longamente para que a ordem fosse cumprida. Enquanto isso, uma moça me
temporárias dela. É claro que as hipóteses em que essa proibição pode observava, sem oferecer qualquer ajuda. Só depois de o problema resolvido,
ocorrer estão em um rol taxativo na Lei de Execuções Penais, e o decreto ela se apresentou como “dona” do habeas corpus: suas palavras exatas
de expulsão não está entre elas. Mas o que importa a lei diante da opinião foram “esse HC é meu”. Resisti bravamente a perguntar por que ela não me
do juiz? Aparentemente nada para aquele magistrado. E na opinião dele, o ajudara e ficara só olhando enquanto eu brigava pelo HC “dela”. Mas não
decreto de expulsão inviabilizava as saídas, ainda que, repita-se, a expulsão resisti a fazê-la admitir que foi um trabalho conjunto, pois sem a sustentação
só tivesse efeito após o término do cumprimento da pena. oral, dificilmente ganharíamos.
O caminho era impetrar um habeas corpus. Descobri, entretanto, Hoje, Soon-Yi está casada com um funcionário da penitenciária onde
que já havia um em andamento, muito bem escrito, por sinal, impetrado esteve presa, e tem uma linda filha. A expulsão foi revogada.
pela Procuradoria de Assistência Judiciária (não havia ainda a Defensoria
Pública em São Paulo). Notas
Entrei em contato com a Procuradora que escrevera o writ, dizendo que, a (1) Nome fictício.
pedido de Soon-Yi, eu pretendia sustentá-lo oralmente no dia do julgamento
e pedindo que, na qualidade de impetrante, ela me desse uma procuração
para fazê-lo. Ela se recusou, dizendo que, como não era uma defensora Alexandra Lebelson Szafir
constituída, isso era desnecessário. Foi uma conversa muito cordial, que de Advogada. (aleszafir@uol.com.br)

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


IBCC_Drogas_anuncio_FINAL.pdf 1 20/02/13 14:23

SEMINÁRIOIBERO-AMERICANO
SOBREDROGAS
8 e 9 de maio de 2013
Local: Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
A ideia central do encontro é ampliar o debate no Brasil sobre as mudanças na política de drogas ocorridas nos últimos anos,
com ênfase nos modelos existentes em Portugal e na Espanha, especialmente na Comunidade Autônoma do País Vasco,
além da análise da conjuntura em alguns países da América Latina, nos quais o tema vem ganhando a agenda política. Todas
as iniciativas recentes de descriminalização ou que apontem para uma perspectiva de tolerância serão abordadas.

Palestrantes Confirmados
Jorge Quintas | PORTUGAL
C
Martin Barriuso | ESPANHA Maurício Fiore
M
Xabier Arana | ESPANHA Maurides de Melo Ribeiro
Y Cristiano Avila Maronna Pedro Abramovay
CM Daniela Skromov de Albuquerque Paulo Teixeira
Dartiu Xavier da Silveira Sérgio Seibel
MY
PARCERIA:
CY
Luciana Boiteux Instituto Manoel Pedro Pimentel
CMY
Luciana Guimarães
K 19
Palestra de Martin Barriuso Palestra de Xabier Arana
08.05.2013 - 09h30 às 10h40 09.05.2013 - 09h30 às 10h40
Primeira Mesa - 11h às 12h30 Terceira Mesa - 11h às 12h30
Internação em Massa Políticas de Drogas
Daniela Skromov de Albuquerque e Luciana Boiteux e Maurício Fiore
Dartiu Xavier da Silveira
Palestra de Paulo Teixeira
Palestra de Jorge Quintas 09.05.2013 - 19h às 20h05
08.05.2013 - 19h às 20h05 Quarta Mesa - 20h15 às 21h45
Segunda Mesa - 20h15 às 21h45 Interface entre Drogas e Segurança Pública
Redução de Danos Luciana Guimarães, Pedro Abramovay e Cristiano Avila Maronna
Maurides de Melo Ribeiro e Sérgio Seibel

PARTICIPE DESSE ENCONTRO.


DESCONTO PARA ASSOCIADOS AO IBCCRIM E MEMBROS DO INSTITUTO MANOEL PEDRO PIMENTEL
Inscrições abertas e informações no Portal IBCCRIM www.ibccrim.org.br.

Saiba como ser patrocinador do Seminário Ibero-Americano sobre Drogas.


Informações na Seção de Comunicação e Marketing: (11) 3111-1040 ou comunicacao@ibccrim.org.br VAGAS LIMITADAS!

ANO 21 - Nº 244 - MARÇO/2013 - ISSN 1676-3661


Publicação Oficial do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

seu talento aliado À melhor


ferramenta jurídica
u Atualização permanente u Navegação fácil e precisa
em caso de alteração pela estrutura das obras
legislativa NOVIDADE
Imagem ilustrativa

Doutrinas Essenciais, Pareceres e


Legislação Comentada.
u Links para a legislação e
jurisprudência citadas u Mais de 700 pareceres
de renomados autores

• Suporte online: www.rtonline.com.br Entre em contato conosco e comprove como a


www.rtonline.com.br • E-mail: sac@revistadostribunais.com.br REVISTA DOS TRIBUNAIS ONLINE® pode trazer excelentes
• Telefone: 0800 702 24 33, em dias úteis das 8h às 20h resultados para o seu negócio.

BEST SEllErS
Imagens ilustrativas

Comentários Curso de Direito Manual de Direito


ao Código Penal Internacional Público Penal
8. edição
a
7.a edição 9.a edição
Luiz Regis Prado Valerio de Oliveira Mazzuoli Guilherme de Souza Nucci

Lançamento Lançamento
Imagens ilustrativas

Manual de Leis Penais e Leis Penais e


Processo Penal Processuais Penais Processuais Penais
e Execução Penal Comentadas – V. 1 Comentadas – V. 2
10.a edição 7.a edição 7.a edição
Guilherme de Souza Nucci Guilherme de Souza Nucci Guilherme de Souza Nucci

Televendas 0800-702-2433
São Paulo • São Paulo • Rio De JaneiRo • Rio de Janeiro • Niterói • Campos dos Goytacazes • Minas geRais • Belo Horizonte
• Paraná • Curitiba • Cascavel • Fórum Estadual • Londrina • Maringá • Pato Branco • Ponta Grossa • Umuarama • santa
CataRina • Florianópolis • Chapecó • Criciúma • Joinville • DiStrito FeDeral • Brasília • goias • Goiânia • Anápolis • Rio Verde
• Pernambuco • Recife • alagoas • Maceió
www.livrariart.com.br endereços completos em: www.rt.com.br/lojas ou www.livrariart.com.br/lojas

Anuncio_boletim_IBCCRIM_março_2013.indd 1 20/02/13 16:36

Você também pode gostar