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“A legião dos rejeitados”: controle, incertezas e

exclusões no contexto da política migratória no


Brasil, 1930 – 19501
Pedro Jardel Fonseca Pereira
Doutorando em História
Universidade Federal de Juiz de Fora
E-mail: pedrojardelpereira@gmail.com

Resumo: A partir da década de 1930 no Brasil, a migração interna tornou-se uma realidade
incentivada e financiada pela política migratória, com o objetivo de suprir os Estados do
Sudeste de mão- de - obra. Milhares de trabalhadores do Norte e Nordeste do país
migraram, sobretudo pra São Paulo em busca de trabalho. No entreposto dessa mobilidade
estava Montes Claros, MG. A cidade funcionava como local obrigatório de parada dos
migrantes, pois a mesma sediava um posto avançado da Inspetoria do Trabalhador
Migrante, onde era realizada por médicos uma triagem desses, uma vez aprovados eles
eram vacinados e precisavam aguardar alguns dias de quarentena na cidade. Além disso,
recebiam também alimentação, hospedagem e bilhete de passagem gratuito no Trem. Nesse
período, a cidade era ponta de trilhos, local de embarque e desembarque pra toda a região.
Por isso também atraia grandes contingentes pessoas que desejavam embarcar inclusive
para outros estados. Devido os critérios rigorosos adotados pela política migratória, grande
parte desses sujeitos ficava retida em Montes Claros. O objetivo da presente pesquisa é
analisar a atuação da política migratória desse período, e discutir como a mesma foi
responsável por gerar um contexto de controle da migração e exclusão e incertezas na vida
dos trabalhadores que tinham como intenção migrar, sobretudo para São Paulo. Nossa
discussão é fundamentada no estudo de fontes oriundas da imprensa, como o Jornal Gazeta
do Norte, que era o jornal em circulação na cidade na época. A Revista Observatório Econômico e
Financeiro, que tinha sede no Rio de Janeiro. A mesma foi localizada no endereço eletrônico
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Percebemos que nesse período o número de migrantes
chegou a superar o quantitativo de habitantes da área urbana da cidade, que não passava de
8 mil. Enquanto os migrantes foram contabilizados até 12 mil.

Palavras-chave: Migração, política-migratória, exclusão, Montes Claros.

Ao falar da concentração de migrantes em Montes, primeiro precisamos considerar


a chegada da ferrovia no ano de 1926 e fato da cidade ter permanecido como ponta de
trilhos até a década 1940. Não existem duvidas de que esse evento contribuiu
significativamente para a intensificação do transito de pessoas e do comércio na cidade.
Pois o trem possibilitou o transporte dos produtos de subsistência do sertão para os
centros urbanos com maior velocidade, sobretudo daqueles que estavam em crescimento.
Também dos grandes centros saíram uma variedade de produtos para o sertão. Nesse

1 Ocorreu uma pequena alteração no título do artigo, em relação àquele enviado no resumo, isso foi
necessário devido os ajustes que foram realizados na pesquisa no transcorrer do período da inscrição do
resumo no ano de 2020, ano esse que não ocorreu o evento.
sentido, Simone Narciso Lessa ainda esclarece que o trem de passageiros movimentou a
economia da cidade, assim como a mobilidade de pessoas.2
O incentivo da migração interna no Brasil a partir da década de 1930 é caracterizada
por Odair da Cruz Paiva da seguinte maneira: “A opção pela recepção de trabalhadores
nacionais implicou na emergência de um novo discurso que exaltasse as qualidades do
trabalhador nacional, ao mesmo tempo, que construía em São Paulo um polo atrativo para
esses trabalhadores”.3 O autor enfatiza também que: “A inserção de trabalhadores
migrantes nas atividades agrícolas em São Paulo entre os anos 1930 e 1950 pode ser
considerada o principal objetivo da política migratória do período”.45
Quanto à origem desses migrantes que chegavam em Montes Claros, eles eram do
Estado da Bahia, sobretudo da Chapada Diamantina e região central, assim como do norte
do Estado de Minas Gerais. A seguir consta uma breve descrição desses locais:

A massa humana, ora em conta-gottas, ora em caudal, mas


ininterruptamente, desde Urandy, vem gente de Umburanas, Monte Alto,
Guananby e Caitité, de Caitité por seu turno, já vem gente de
Macahubas, Riacho de Sant’ Anna, Contendas, Paramirim, Minas do Rio
da Contas, Dr. Seabras. Vem também creaturas de Caculé, onde vão
parar vinda de Bom Jesus dos Meiras, Palmeiras e Ituassu. Em Candeúba
forma outro ponto de Sub-concentração de onde deflue para Montes
Claros os migrantes de Conquista, Jequié, São João do Alipio e Pocões.6

Percebe-se que essas são as localidades de maior predominância, mas isso não é
exclusivo, afluíam pessoas para Montes Claros também de diversas regiões do Brasil.
Desde que a migração interna passou a ser incentivada pelo governo brasileiro,
Montes Claros se tornou ponto de afluência e uma “cidade de triagem”. Inicialmente
sediava “bases” das empresas que arregimentavam trabalhadores para outros estados. As
incumbências eram divididas entre essas e o governo, como mostra o autor:

Até 1939 a arregimentação dos trabalhadores, triagem, inspeção médica


no ponto de embarque e autorização das autoridades locais para a
liberação dos migrantes foram de competência exclusiva dos agentes

2 LESSA, Simone Narciso. Trem de Ferro: do cosmopolitismo ao sertão. Dissertação (Mestrado


em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.
3 PAIVA, Oldair da Cruz. Caminhos cruzados: migração e construção do Brasil moderno. Bauru, SP: EDSC,

2004.
4 Ibid., p.105.
5 Sobre o tema da migração ver: BAENINGER, Rosana. Fases e faces da migração em São Paulo. Campinas:

Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp, 2012. MENEZES, Marilda Aparecida de. Migrações e


Mobilidades: repensando teorias, tipologias e conceitos. In: TEIXEIRA, Paulo Eduardo; BRAGA, Antonio
M. da Costa; BAENINGER, Rosana (Org.). Migrações: implicações passadas, presentes e futuras. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2012.
6 O OBSERVADOR Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 47, fev. 1939ª, p. 54.
contratantes. À Secretaria da Agricultura cabia o registro e controle dos
pedidos de trabalhadores migrantes e destino dos mesmos.7

E a partir de 1939 foi estabelecida uma filial do serviço de migração do Estado de


São Paulo, a Inspetoria do Trabalhador Migrante (I.T.M.). Observador8 lembra que as
cidades contempladas foram justamente aquelas de maior fluxo de migrantes: Montes
Claros e Pirapora. Embora essa última seja mencionada como local de chegadas desses
sujeitos, não foi registrado na ocasião uma concentração desses na mesma intensidade
como ocorreu em relação àquela primeira. Um dos motivos que podemos conjecturar é o
fato de que Montes Claros, naquele período, já funcionava como referência para as outras
cidades do Norte de Minas, no que diz respeito ao setor de serviços e o comercio em geral,
inclusive, sediava diversos órgãos públicos. O que pode ter contribuído para atrair esses
sujeitos. Alguns registros, encontrados, por exemplo, na Revista Observatório Econômico
e Financeiro mencionam que os migrantes chegavam pelo Rio São Francisco em outra
cidade, Januária e se dirigiam para Montes Claros.9
Outro aspecto que o autor realça é o objetivo da Inspetoria, isto é, “[...] a criação da
I.T.M. também reorganizou a dinâmica dos pedidos de trabalhadores vigentes no período
1935-39”10 (PAIVA, 2004, p. 117). Ressalta ainda que os objetivos em torno da criação da
mesma perpassam pelo crescimento do fluxo migratório na final da década de 1930 para o
Estado Paulista e a tendência de onerar os cofres do Estado. Ele chama atenção também
para as ações centralizadoras colocadas em prática pelo poder público a partir do Estado
Novo, o que acabou desarticulando os interesses das companhias privadas no
agenciamento de mão de obra. Em termos gerais, as elucidações realizadas acima precisam
ser esmiuçadas no intuito de compreender esse processo de concentração de trabalhadores
migrantes em Minas Claros. E procurar sinalizar algumas pistas sobre o destino dos
mesmos depois de serem retidos na cidade.
De maneira concreta são diversos os fatores contribuem para a retenção dos
trabalhadores migrantes na cidade, sobretudo questões ligadas as doenças que esses sujeitos
eram portadores e a própria dinâmica do financiamento da viagem dos trabalhadores. As
vezes aconteciam alguns desentendimentos entre as Companhias agenciadoras e o governo
e os subsídios eram suspensos. Citamos, por exemplo, o episódio que ocorreu no final da
década de 1930, nesse sentido é mencionado que:

7 PAIVA, Oldair da Cruz. Caminhos cruzados: migração e construção do Brasil moderno. Bauru, SP: EDSC,
2004, p. 123.
8 O OBSERVADOR Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 47, fev. 1939ª, p. 55.
9 Sobre mobilidade de trabalhadores ver: TESSARI, Cláudia Alessandra; COSTA, Julio Cesar Zorzenon.

Ação estatal, negócios e migração inter-regional no Brasil (1935-1951). Economia e Sociedade, Campinas, v.
28, n. 2 (66), p. 513-540, maio-agosto 2019.
10 PAIVA, op. cit p. 117.
A seca de 1938 aggravou afluxo de imigrantes, não só pela intensidade
com que se manifestou, como pela extensão da área assolada, que desta
vez se estende do Norte de Minas até o extremo noroeste do país. Em
Pirapora e em Montes Claros, mantem o Estado de São Paulo dois
funcionários encarregados de fornecer passagem para os trabalhadores.
Esse serviço, suspenso em novembro de 1938, em virtudes de certas
duvidas surgidas quanto a sua legalidade, foi restabelecido em meados de
fevereiro de 1939, ao ficar plenamente esclarecida a questão. A
suspensão do fornecimento de passagem, como é obvio, agravou a
situação.11

Em relação as “certas dúvidas” percebemos que já era uma atuação do governo de


Getúlio Vargas no intuito dispensar os serviços das companhias privadas, que seria
assumido pelo próprio governo, como de fato ocorreu. Contudo, também percebemos, a
partir das analise das fontes, que mesmo quando esse serviço estava ativo, não era possível
conceder passagem para todos os trabalhadores que chegavam a Montes Claros, em virtude
da grande quantidade de migrantes que chegavam diariamente na cidade, cerca de 500
pessoas diariamente, como é mencionado pelo Observatório Econômico e Financeiro.
Outro importante fator que contribui para essa retenção foram os surtos de
algumas doenças que ocorreram na região. Nesse sentido, exemplificamos um desses
episódios:

Mas outra dificuldade se apresentava. O acúmulo de trabalhadores, ainda


mais affectados por condições desfavoráveis de saúde, causava em São
Paulo a perspectiva de um desiquilíbrio na colocação de trabalhadores.
Diante disso, resolveu o governo paulista suspender as ordens de
embarque para o Estado em começo de Junho. A dysenteria começava a
lavrar na região de Montes Claros. O major Lima Camara, presidente do
Conselho de Immigração e Colonização, ponderou então, que apesar dos
justos motivos para a suspensão dos embarques, não era menos certo
que o acumulo de alguns milhares de criaturas na região assolada de
Montes Claros iria determinar mal maior, ainda mais quando se sabia que
diariamente chegavam a cidade 500 indivíduos em média. Adptou-se,
então, uma formula que foi a seguinte: o serviço de colonização de São
Paulo receberia diariamente 250 pessoas, rigorosamente inspecionadas
nos pontos de embarque, depois de 8 dias de observação em Montes
Claros e Pirapora.12

Percebemos que diante das circunstancias, São Paulo não absolveria todo o
contingente de migrantes que chegavam a cidade. Além das “dysenteria” outras inúmeras
doenças, como: malária, Febre tifoide, tuberculose, tracoma, bócio e outras, atingiam a
população em mobilidade. Por esse motivo causavam a retenção dos trabalhadores na
cidade. Nesse sentido o Jornal da época afirmou que:

11 O OBSERVADOR Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 47, fev. 1939ª, p. 55.
12 Ibid., p.55.
Os imprestáveis, os loucos, os portadores de moléstias contagiosas, os
cegos, os aleijados, os papudos, aqui ficam abandonados [...]. É uma
desigualdade revoltante auxiliar as pessoas fortes, e negar auxílio àquelas
que são necessitadas. É uma desumanidade abandonar nas ruas de uma
cidade, cegos, aleijados, tracomatôso, [tracôma], beócios, papudos e
outros doentes sem casa, sem abrigo, sem pão, quando podia
perfeitamente socorrê-los.13 (grifos do autor).

A visitar Montes Claros O major Lima Camara, presidente do Conselho de


Immigração e Colonização fez um relatório onde constava que: “Ao chegar à primeira
cidade (Montes Claros) pudemos desde logo constatar o grande número de trabalhadores
alli concentrados”.14 As informações mencionam também que os mesmos se encontravam
abrigados debaixo das arvores, inclusive as mangueiras, as pensões e tapera todas estavam
lotadas. Referem-se ainda que: “Homens, mulheres e crianças, maltrapilhos, sem dinheiro,
sem casa, sem alimento, alguns mendigando para não morreram de fome”.15 A cidade é
categorizada de acordo com esse relatório, como “zona flagelada”.
Observamos que em alguns períodos, sobretudo por volta de 1935, intensificou-se
nas reportagens as referências aos migrantes como mendigos. Como podemos observar a
seguir:

O número de mendigos em nossa cidade cresce diária e vertiginosamente


[...], dando as ruas em certos dias da semana aspectos de uma verdadeira
procissão de pedintes. E esse número vae aumentando dia a dia com os
que chegam acompanhando os retirantes e aqui ficam, pois lhes são
negados passes pelos agenciadores de trabalhadores que passam para o
sul.16

Com o aumento dos retidos em Montes Claros, e a conclusão de que seria


impossível combater a chegada de novos grupos, a estratégia passou a ser reclamar a
retirada dos mesmos da cidade ou dificultar a vida deles.
No ano de 1936, a Gazeta do Norte divulgou que o delegado de polícia sugeriu que
fosse realizada uma triagem e cadastro daqueles sujeitos que realmente estavam
incapacitados para o trabalho.17 Mediante esse levantamento seria concedido uma “espécie
de placa”, em forma de crachá para aqueles que fossem autorizados a esmolar nos locais
públicos. Também foi organizado uma ação com o auxílio da Igreja Católica,

13 Jornal Gazeta do Norte. Ano: 1939, p. 09.


14 O OBSERVADOR Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, Ano IV, n. 47, fev. 1939ª, p. 55.
15 Ibid., p.55.
16 Jornal Gazeta do Norte. Ano: 1935, p. 10.
17 sobre o tema ver: MACHADO, Jaqueline Simone de Almeida; CALEIRO, Regina Célia Lima.

Desenvolvimento social, trabalho e exclusão dos “loucos improdutivos”. In: XAVIER, Elton Dias;
SANTOS, Gilmar dos (Orgs.). Desenvolvimento social em perspectiva. Belo Horizonte: Sografe, 2009.
especificamente os Vicentinos. Como é aludido a seguir: “Segregados do público os
mendigos, o povo deixará de dar-lhes, diretamente, as esmolas semanais passando a dá-las,
entretanto, ao dispensário que for organizado”.18 Essa estratégia atenderia as reclamações
dos moradores, que segundo a Gazeta do Norte se queixavam da presença dos pedintes
batendo nas suas portas esmolando ajuda, como foi informado: “Torna-se ainda um perigo
para a população porque na maioria dos mendigos são portadores de moléstias e vivem por
ahi, em contato com o povo e creanças”.19 A sugestão feita pela Gazeta do Norte foi
sempre com base no isolamento desses sujeitos, ou seja: “É preciso hospitalizar os que
requerem tratamento”.20 E uma das maneiras de legitimar essa ideia era tipifica-los sempre
como vagabundos, mendigos, loucos e doentes. A própria mídia explicita a sua atuação
política contrária à presença do migrante: “Iniciamos nessa coluna uma campanha contra a
desigualdade, contra essa intolerável seleção de proteger aos são e negar auxílio aos que
mais necessitam [...]”.21 22
Em suma, essa pesquisa ainda está em andamentos e são muitos os aspectos
possíveis de serem analisados, discutidos e compreendidos sobre esse período da historia
do Brasil que foi a era Vargas, com foco, sobretudo, a partir desse objeto de estudo, que é a
migração interna de trabalhadores. Esse é um contexto demonstra como os diversos
problemas sociais e econômicos que os trabalhadores enfrentaram foram potencializados.
Assim como surgiram novos desafios a serem confrontados, como a precarização das
condições de vida, sobretudo no intermédio desse percurso migratório, ou seja, durante o
trajeto, aliás, um tema pouco discutido na historiografia do mundo do trabalho.

18 Ibid., p.12.
19 Ibid., p.16.
20 Ibid., p.16.
21 Ibid., p.16.
22 Sobre o isolamento de migrantes ver: RIOS, Kênia Sousa Rios. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos

de concentração na seca de 1932. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.

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