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A dimensão biológica relacionada com a sexualidade é parte do

funcionamento natural dos seres humanos e controla o nosso


desenvolvimento sexual, desde a concepção até ao nascimento, e a
nossa capacidade para nos reproduzirmos depois da puberdade.
Também afecta o nosso desejo e a resposta sexual e, indirectamente,
a nossa satisfação sexual.

A primeira e a mais básica é, sem dúvida, a dimensão biológica, na qual se situa o acto
sexual, enquanto tal e na sua simples função de procriação ou continuação da espécie, como
acontece com qualquer espécie animal. A atracção dos sexos é mera função natural, como
uma função determinada, e não se lhe atribui significado diferente desse. Mesmo os rituais
de acasalamento, como os dos animais, não passariam nesse caso de extensão da natureza,
como instintos puros.

Intimamente ligada a esta dimensão biológica, mas com significados e aspectos bastante
mais vastos, encontra-se a dimensão sensual, resultante do prazer sensível que o acto sexual
ou outros elementos a ele ligados provocam nos sujeitos envolvidos. Nessa construção da
identidade própria, através da sexualidade, revela-se já o modelo de construção do self, que
é sempre a partir da relação interpessoal. A sexualidade, mesmo que em algumas dimensões
possa parecer apenas a afirmação individual de um sujeito, é sempre um elemento
relacional. Essa sua dimensão interpessoal atinge-a, sobretudo, quando é vivida como
relação de amor, articulada como comunhão de diferenças: diferentes identidades psíquicas,
diferentes identidades corporais, diferentes vivências sensuais e diferentes papéis biológicos.
A dimensão interpessoal ou amorosa da sexualidade implica, na sua raiz, não apenas a
capacidade de respeitar o outro diferente de nós, mas a capacidade de aceitar o sentido da
vida própria a partir do outro e de se aceitar, a si mesmo, como sujeito de um acto de
constante doação de si ao outro. Viver a partir do outro e viver para o outro é o cerne da
relação amorosa, por isso a manifestação mais elevada da sexualidade.

Ora, tudo isto não é vivido, nem individualmente nem sequer apenas a dois. A sexualidade,
sendo relação de pessoas inseridas em sociedades e em culturas, está em íntima ligação com
a cultura: por um lado, contribui para a configuração da cultura e a sua alteração; por outro,
a sua vivência é profundamente marcada por normas gerais e visões ou concepções a ela
relativas. Por isso, não deve menosprezar-se o papel da dimensão cultural da sexualidade,
na forma como ela é concretamente vivida. As diferentes culturas, com as respectivas visões
e correspondentes normas, é que influenciam a forma de relacionamento entre todas as
outras dimensões da sexualidade, fazendo que numas culturas se acentuem mais uns
aspectos que noutras.

É sabido, a partir da análise das diversas sociedades, que a relação sexual entre pessoas
humanas contribui de modo básico e estruturante para a organização social, para a
ordenação e distribuição de papéis sociais (como no caso da construção de sociedades a
partir da diferenciação de relações de parentesco). Por seu turno, a organização das
sociedades determina fortemente o significado e a prática concreta da sexualidade para os
seus membros. A dimensão social da sexualidade pertence-lhe intrinsecamente, dando
origem a formas institucionalizadas de a viver, mais acentuadas numas sociedades que
noutras, mas nunca ausentes (como no caso mais frequente da instituição familiar, assente
no casamento).

Dessa dimensão social – em jogo com elementos mais vastos, constituídos pelas diversas
crenças dos seres humanos – resulta um conjunto de normas morais a serem respeitadas na
relação interpessoal, o que insere a sexualidade num contexto ético mais vasto, que regula
todo o tipo de relações humanas. Desde os princípios éticos fundamentais – como o do
respeito pelo outro – até às normas mais contextuais, que variam muito de cultura para
cultura, a dimensão moral da sexualidade é uma constante, mesmo que assuma a fisionomia
algo paradoxal da moral da ausência de moral: a obrigação moral de agir como se tudo fosse
permitido!

Por fim e para não alongar mais esta enumeração, a sexualidade representa uma das formas
mais claras do desejo que anima todo o ser humano: desejo de permanência no ser, desejo
de perfeição de ser, desejo de posse do ser, desejo de plenitude, etc. Esse desejo ou eros
humano reflecte-se na dimensão erótica da sexualidade, que manifesta a própria condição
humana, enquanto condição paradoxal. De facto, está marcada pelo desejo de infinitude e,
simultaneamente, sujeita a incontornável finitude, não só devido à morte, mas também às
limitações impostas pelo espaço e pelo tempo: não podemos ser tudo nem ter tudo, ao
mesmo tempo, no mesmo lugar. São diversos os mitos ocidentais que articulam este drama
humano: desde o de Tristão e Isolda, que exprime a constância do desejo, através da não
satisfação, até ao de Dom Juan, que pretende resolver o desejo pela satisfação quantitativa
máxima. O resultado é o mesmo: a anulação do próprio eros, quer por defeito quer por
excesso.

Do conjunto destas dimensões, que devem ser consideradas simultaneamente, sem as isolar
umas das outras, resultam dois aspectos fundamentais: a sexualidade atinge o seu ponto
mais profundo na dimensão interpessoal e vive-se sempre num determinado contexto
cultural. A cultura ocidental (europeia), por exemplo, relacionou a sexualidade
preponderantemente com a dimensão moral e erótica. Mas, mesmo essa conheceu fortes
transformações na visão da sexualidade. Desde uma perspectiva antiga (semelhante à
oriental, que se concentra em «técnicas» de prazer), passando pela acentuação do aspecto
moral, pela correspondente acentuação do erotismo e pela consequente recondução à
dimensão psíquica, acompanhada da dimensão social da revolução, até a uma visão
relacional e diferencial (sexualidade masculina e feminina), as formas foram sendo alteradas,
mesmo que se mantenham alguns elementos de base. É importante, pois, relacionar a
cultura (ocidental) contemporânea com a vivência da sexualidade.

2. Cultura contemporânea
A cultura contemporânea está marcada, indiscutivelmente, por uma complexidade extrema.
Nas suas manifestações mais visíveis e habituais, aparece mesmo como uma cultura
paradoxal (5). Em realidade, uma das suas tendências é a acentuação, até ao extremo, do
individualismo, com a correspondente dose de hedonismo. Ou seja, a fruição agradável da
realidade, por parte de cada indivíduo, a seu bel-prazer, parece constituir um dos ideais mais
comuns da contemporaneidade – um dos poucos valores que ainda restam, no tão badalado
vazio de valores.

Por outro lado, contudo, talvez nenhuma outra época cultural tenha sido tão dominada,
sobretudo de forma tão subtil, por mecanismos ou sistemas absolutamente supra-individuais
e mesmo anti-individuais. O sistema do consumo e o sistema mediático são exemplos de
realidades supra-humanas, que não são domináveis por nenhum indivíduo nem, em última
instância, se encontram ao serviço de nenhum indivíduo particular. Explorando, de forma
tecnologicamente avançada, o desejo que o indivíduo possui de ser cada vez mais senhor de
si mesmo e do mundo, esses sistemas convencem esse mesmo indivíduo de estar nessa
posição de domínio e de todos – inclusive esses mesmos sistemas – se encontrarem ao
serviço da cada indivíduo. Mas, cada indivíduo é apenas mais um número e, no mesmo
processo, os sistemas aproveitam-se da vulnerabilidade a que está sujeito esse indivíduo,
desde que pretendeu abandonar ou mesmo rejeitar a protecção de instituições ou dos
outros. Quanto mais individualista se torna – ou pretende tornar – o ser humano
contemporâneo, mais facilmente se torna presa isolada dos diversos sistemas. O processo
dialéctico e significativo da moda é disso um dos exemplos mais salientes.
Ora, como não podia deixar de ser, este contexto cultural marcou profundamente a vivência
da sexualidade por parte dos nossos contemporâneos. Assim, por um lado, a sexualidade
passou a ser vivida de forma cada vez mais individualística e hedonista. A dimensão sensual
da sexualidade assume, aí, um papel saliente, por vezes mesmo exclusivo. Quando muito,
explora-se a dimensão psíquica, concentrando-se no papel das experiências sexuais na
construção da identidade de cada um, do self. Mas o horizonte último de tudo é o próprio
indivíduo, considerado em si mesmo enquanto absoluto. E porque o amor, como se viu,
implica a relação profunda ao outro, tornou-se comum defender a separação básica entre
sexo e amor. Separação possível, sem dúvida – e que sempre existiu – mas que empobrece
profundamente ambas as realidades: priva a sexualidade da sua dimensão mais profunda,
banalizando e reduzindo à sua superfície do consumo pelo prazer; e priva o amor da
seriedade e excelência de uma manifestação das mais sublimes que o ser humano conhece.
Banalizado o sexo, ao separá-lo do amor, pouco significado poderá assumir para a relação
amorosa – mesmo que assim pareça, quando lemos determinadas revistas ditas do coração
(6).

Por outro lado, a experiência da sexualidade é, cada vez mais, vivida em função de modelos
introduzidos pelos sistemas de consumo e mediático, segundo o paradigma das modas
vigentes. De forma semelhante com o que acontece com todas as outras realidades que são
engolidas por esses sistemas, passam a ser experimentadas na sua superfície, com a
correspondente banalização de si mesmas e redução de si mesmas a objectos de puro
consumo, permutáveis uns pelos outros (7).

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