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Exegese de Colossences PDF
Exegese de Colossences PDF
Orientador:
Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth
sincretismo das igrejas neopentecostais”, elaborada por Humberto Ramos de Oliveira Jr foi apresentada e
aprovada em 16 de dezembro de 2013, perante banca examinadora composta pelos professores Doutores Lauri
Emilio Wirth (Presidente/UMESP), Leonildo Silveira Campos (Titular/UMESP) e Breno Martins de Campos
(Titular/PUC-Campinas).
__________________________________________
Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Não há jornada que seja absolutamente solitária. Qualquer empreendimento humano bem-
sucedido se dá mediante a contribuição direta e indireta de mentores, para nos guiar, de amigos e
amigas, para nos motivar e, muitas vezes, amores, para nos inspirar.
Comigo não seria diferente. Expresso, então, minha gratidão àqueles que de uma forma ou de
outra estiveram envolvidos no processo de confecção dessa dissertação, sem os quais eu não sei
se teria conseguido.
Ao meu professor e orientador, Lauri Emílio Wirth, por contribuir com a elaboração dessa
pesquisa, pelos conteúdos ensinados em sala de aula e pela paciência demonstrada para comigo
nos momentos em que eu já não a esperava.
A Maryuri Mora Grisales, por ser minha amiga, irmã, conselheira e professora nas horas vagas,
ajudando-me com as dúvidas e motivando-me quando estava sem forças.
Ao Carlos Beltrán, pela amizade, pelos bons momentos que passamos nesse período de estudo e
pelas muitas risadas que demos juntos.
Ao meu pai e à minha mãe, Humberto e Fátima, pelo apoio e amor sempre demonstrados com
palavras e gestos.
Aos meus sogros, Fábio e Eliane, pelo incentivo e suporte oferecidos desde sempre.
A Priscila Emerich, pela ajuda com a língua inglesa e Leonardo Ostronoff, por se mostrar sempre
disposto em contribuir.
A Isa Mara Fernandes, por ter sido sempre tão solícita e prestativa ao me atender na Biblioteca
Central.
A Thais Brito, pelas conversas descontraídas em sua casa e o esforço em me fazer enxergar a
pesquisa acadêmica como algo menos complicado.
Aos meus queridos irmãos e irmãs da Igrejinha, em especial a Tais e Keila Machado, a quem sou
grato por oferecer a mim e à minha companheira momentos de deliciosa comunhão durante nossa
estadia em São Paulo.
De modo muito especial, à minha querida Jacqueline, minha companheira de todos os momentos,
a quem devo minha maior gratidão por não me deixar desistir em momento algum nessa jornada
e segurar minhas mãos em dias tristes e cinzentos, sem ela não seria quem sou nem estaria onde
estou. Com você me sinto mais forte!
RESUMO
Este trabalho teve como escopo analisar o sincretismo característico das igrejas evangélicas
neopentecostais, abordando suas especificidades e algumas de suas consequências para o campo
religioso brasileiro. Optou-se por enfatizar a relação do sincretismo neopentecostal com a cultura
brasileira, com destaque para as religiões de matriz africana. A hipótese central é a de que o
neopentecostalismo, devido ao seu perfil sincrético, apresenta-se como uma atraente opção entre
protestantismo clássico e os cultos afro-brasileiros e a religiosidade popular brasileira. Esta
hipótese foi testada tendo como foco principal a Igreja Universal do Reino de Deus. Para tanto,
trabalhou-se com as obras de pesquisadores de referência sobre o tema, com bibliografia
produzida por alguns líderes desse movimento e também com material videográfico disponível na
internet, contendo discursos e práticas neopentecostais relevantes para esta pesquisa. Desse
esforço, considerou-se que o neopentecostalismo constitui uma via intermediária entre a tradição
protestante e a religiosidade afro e popular brasileira, havendo marcantes rupturas em relação à
sua matriz de origem bem como muitas continuidades; o que faz desse movimento a expressão do
protestantismo que mais se adequou à realidade brasileira.
ABSTRACT
This study was intended to analyse the characteristic syncretism of the neo-pentecostal
evangelical churches by addressing their specificities and some consequences to the Brazilian
religious filed. In this work it was chosen to emphasize the relationship of neo-pentecostal
syncretism with Brazilian culture and also with the religions of African origin. The main
hypothesis is the Neo-pentecostalism, due to its syncretic profile, presents itself an attractive
option between the classical Protestantism and Afro-Brazilian services and the popular Brazilian
religiosity. This hypothesis was tested with the main focus the Universal Church of the Kingdom
of God. For that, it was worked with reference researchers’ job on the topic, with literature
produced by some leaders of this movement and with videographic material available on internet
containing neo-pentecostal speeches and practices relevant to this study. From this effort, it was
considered that the Neo-pentecostalism is a middle way between the Protestant tradition and the
African and popular Brazilian religiosity, with notable ruptures in relation to its origin as well as
many continuities; what makes this movement the expression of Protestantism that most suited
the Brazilian reality.
INTRODUÇÃO
Embora o pentecostalismo tenha surgido nos Estados Unidos no início do século XX, seu
crescimento vertiginoso garantiu sua presença em todo o globo terrestre, de modo que pode ser
encontrado desde a América Latina, África, Ásia até a Oceania (ROBBINS, 2004, 117). No
Brasil, esse grupo constitui o maior dentre as denominações não-católicas. E entre esses, os
neopentecostais, embora não sendo numericamente superiores às igrejas pentecostais chamadas
clássicas, estabelecem-se como o grupo de maior exposição e impacto exercido na esfera
religiosa, tendo em vista seu forte aparato midiático e seu investimento sistemático no universo
da política partidária (CAMPOS, 2010, p. 179).
No que diz respeito à visibilidade, pode-se dizer que os evangélicos no Brasil estão na
“crista da onda”. Nunca antes esse grupo esteve tanto na mídia quanto hoje, tampouco tiveram
tão significativo poder político como o que têm alcançado por meio da conhecida Bancada
Evangélica. Suas aparições nos noticiários se devem a fatos diversos, desde o embate ideológico
com “outras minorias” até escândalos pessoais de seus líderes. Nesse bojo, novamente destacam-
se os neopentecostais, cujo poder midiático parece aumentar a cada dia, proporcionando ainda
mais poder político-religioso aos seus líderes.
Esses líderes, de forma especial, chamam ainda mais a atenção, seja pelos mega-templos
ou pela compra de horários nobres em diversas emissoras de TV, mas principalmente pelas
características peculiares contidas em seus discursos e práticas religiosas. Aliás, desde sua
emergência, os neopentecostais têm provocado significativa repercussão no campo da religião e
até mesmo da cultura brasileira devido a suas práticas agressivas (MELO, 2012).
Diante disso, a pretensão deste trabalho é a de contribuir para a reflexão a respeito do
segmento do protestantismo evangélico denominado de neopentecostalismo, dando especial
ênfase no tipo de sincretismo apresentado por esse grupo. Não obstante esse movimento já tenha
sido discutido amplamente na academia, e apesar de sua visibilidade na sociedade brasileira, a
complexidade de suas relações com outros segmentos evangélicos e também os de confissão não-
cristã, torna necessário voltar a atenção sobre ele outra vez mais; especialmente no que tange às
especificidades do seu sincretismo e suas consequências tanto para si quanto para os grupos
11
acerca dos quais ele se vale para formular esse sincretismo. Assim sendo, importa averiguar as
características do sincretismo neopentecostal e questionar quais são seus efeitos.
Trata-se de um movimento extremamente dinâmico, que requer a todo momento a
tentativa de releituras, novas discussões e novas considerações a respeito de sua atuação na
sociedade brasileira. Não se considerou aqui como sendo importante propor novas
classificações, mas apenas compreender os rumos tomados por esse grupo. Até porque, dada a
complexidade do tema, tratar da classificação por si só já requereria a elaboração de uma
dissertação à parte.
Nesse sentido, é oportuna a análise de Edin Sued Abumanssur (2011, p. 402):
Então, optou-se aqui pelas categorizações clássicas já sedimentadas: a metáfora das ondas,
de Paul Freston, e o termo neopentecostalismo, utilizado pelos mais proeminentes pesquisadores
do pentecostalismo no Brasil.
Para a execução desse trabalho, a metodologia escolhida foi primordialmente a da
pesquisa bibliográfica e o método teórico-crítico. Lançou-se mãos de material acadêmico
produzido por outros pesquisadores, alguns livros de autoria de líderes neopentecostais, material
disponível na internet acerca do objeto de pesquisa e também alguns vídeos – também situados na
internet – com conteúdo de discursos e práticas de líderes neopentecostais.
12
crescimento e principais características. Não escapando desse tópico a discussão a respeito das
rupturas sofridas e continuidades entre neopentecostais e protestantes e evangélicos.
Já no Capítulo II, decidiu-se por certo afunilamento, proporcionando mais objetividade
ao falar do movimento. Assim, tomou-se a Igreja Universal do Reino de Deus 1 como
denominação paradigmática, por meio da qual se pode estudar o fenômeno neopentecostal. Isso
porque a história de suas origens, formação e consolidação se confunde com a gênese e
desenvolvimento do movimento neopentecostal brasileiro, visto que seu surgimento é tido como
referência para a pesquisa e estudo dos neopentecostais. A influência desse grupo é decisiva para
espalhar práticas, discursos e comportamentos entre diversas outras igrejas. Não apenas
influenciou, mas também deu origem a outras importantes denominações neopentecostais.
A título de exemplo, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Igreja Mundial do Poder
de Deus (ROMEIRO, 2005, p. 53; BLEDSOE, 2012, pp. 53-54), respectivamente, surgiram de
cisões originadas de tensões de importantes lideranças com a figura do bispo Edir Macedo, um
dos fundadores e hoje líder máximo da IURD. Entretanto, outras pequenas igrejas Brasil afora
surgiram da própria IURD ou inspiradas por ela. Essas pequenas igrejas, por sua vez, deram
origem a outras igrejas e assim por diante. Um perfil recorrente no protestantismo, talvez bem
mais recorrente no cenário religioso brasileiro do que o revelado por pesquisas até o momento.
Para tanto, é oferecido um sucinto histórico dessa denominação, abordando a sua
expansão e refletindo sobre sua adequação às demandas de seu tempo. E, nesse sentido, o
sincretismo mostra-se não apenas como um modo de manter-se de pé diante da concorrência mas
também como importante estratégia de expansão, sendo importante questionar qual o preço para
esse crescimento. Quais os resultados?
Em resposta a esse questionamento, o Capítulo III aborda o tipo de sincretismo encenado
pela IURD, enfatizando suas peculiaridades. Daí em diante, procura-se tratar de modo mais
acurado a relação conflituosa entre neopentecostais e fiéis de cultos de tradição afro. Tal ênfase
justifica-se, pois esta igreja protagoniza, em seus cultos e programas televisivos, um verdadeiro
confronto direto com as religiões de matriz africana e, indiretamente, com as crenças da
religiosidade popular.
1
Para fins de comodidade e estética, a Igreja Universal do Reino de Deus também poderá ser chamada
nesta dissertação de IURD ou apenas de Universal.
14
Portanto, são abordados os efeitos dessa tensão. Aqui o foco principal é tema da tolerância
religiosa, mas não apenas isso, também será levantado um questionamento acerca da clara
exposição (e o tipo de exposição) dos frequentadores dos cultos, quando da prática do exorcismo.
Prática essa bastante enfatizada por alguns neopentecostais e que assume importante lugar na
liturgia da IURD.
Por fim, ainda nesse último capítulo, com base na tensão existente entre neopentecostais e
africanistas, será lançada a reflexão sobre o potencial atrativo desse grupo evangélico no mercado
religioso nacional como opção entre o protestantismo e as religiões mediúnicas. Em outras
palavras, ao que parece, igrejas como a IURD oferecem, por meio do seu sincretismo, uma
espécie de síntese entre uma religião racional, aceita socialmente, que a cada dia ocupa mais
espaço na sociedade e um outro grupo, anteriormente hostilizado e que ainda sofre preconceitos,
místico, de enorme riqueza simbólica acerca do mundo sobrenatural.
Assim, a dissertação se conduz para seu final, quando serão levadas em conta as
considerações finais, fruto da reflexão sobre o que fora abordado em cada capítulo, visando
responder a hipótese central, a de que o neopentecostalismo surge com uma atraente oferta entre
a tradição protestante e os cultos afro e populares, as religiões mediúnicas em geral.
15
CAPÍTULO I
outras, por esse mero contato, já transformam a realidade alheia e a sua própria de modo
indelével.
Assim, sabe-se que não há grupo religioso privilegiado pela pureza doutrinal. Bem como
parece mais aceitável a ideia que reconhece a possibilidade de enriquecimento das religiões
quando de seus encontros. Entretanto, se a mistura é por si só inevitável, como falar de
sincretismo? Como avaliar que esta e aquela religião mixam elementos uma da outra e vice-
versa?
Nesse sentido, é pertinente atentar para as características assumidas, idealizadas pelos
fiéis e líderes religiosos e, a partir daí, investigar as possíveis consequências do encontro de
crenças, tradições e práticas muitas vezes diametralmente antagônicas. E, por antagônicas, quer-
se indicar o contexto no qual há razões (claras ou mesmo não tão claras) para que não houvesse
confluência entre essas fés. É pertinente dizer que essa confluência é mais do que a viabilização
do diálogo entre diferentes, mas na verdade a adição de elementos outros que, até dado momento,
não faziam parte de seu sistema de crenças e significados já sedimentado.
Para Sérgio F. Ferreti (1995, p. 91),
E ao afirmar que o fenômeno deve ser estudado “quer gostemos ou não”, qual a razão? É
pertinente, no caso deste trabalho, as peculiaridades do sincretismo de um grupo específico e suas
consequências no campo religioso. Nesse caso, analisar-se-á essa característica específica do
movimento neopentecostal, tendo como modelo paradigmático a Igreja Universal do Reino de
Deus, que, devido às características manifestas, apresenta-se como um grupo evangélico, surgido
do pentecostalismo e que assumiu um perfil marcadamente sincrético.
Porém, para tal, ainda importa seguir na conceituação do termo. Ao que parece bastante
oportuno o esforço de Ferreti (idem, p. 91), ao selecionar um grupo de palavras que viessem a dar
17
conta de explicar a expressão. Assim, ao partir da hipótese – mera hipótese a fim de amparar seu
raciocínio – da “ausência de sincretismo”, caracterizado por “separação”, “não sincretismo”
(hipotético), elegeu:
Podemos dizer que existe convergência entre ideias africanas e de outras religiões,
sobre a concepção de Deus ou sobre o conceito de reencarnação; que existe
paralelismo nas relações entre orixás e santos católicos; que existe mistura na
observação de certos rituais pelo povo-de-santo, como o batismo e a missa de sétimo
dia, e que existe separação de rituais específicos de terreiros, como no tambor de
choro ou axexê, no arrambam ou no lorogum, que são diferentes dos rituais das outras
religiões. Nem todas estas dimensões ou sentidos de sincretismo estão sempre
presentes, sendo necessário identificá-los em cada circunstância. Numa mesma casa e
em diferentes rituais, podemos encontrar assim separações, misturas, paralelismos e
convergências (ibidem, p. 91).
simbiose de elementos culturais. Tal simbiose acontece como resultado de uma nova
fisionomia cultural, na qual se combina e se soma, em maior ou menor intensidade, as
marcas de culturas originárias. Por intermédio de fusões e interpretações, os
indivíduos e os grupos assimilam atitudes, sentimentos e tradições de outros
indivíduos e de outros grupos e, de alguma maneira, partilhando suas respectivas
experiências e histórias, terminam como que incorporados numa mesma vivência
cultural (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 63).
No caso específico dos ameríndios e também dos africanos (trazidos como escravos),
subjugados pelo europeu, cristão, católico, esse processo se deu em termos de resistência. Uma
opção, especialmente para os negros, a fim de que toda a riqueza (vale dizer) de distintas culturas
da África, incluindo, sobretudo, suas características religiosas, fosse aniquilada em solo
brasileiro. Para tanto, analisando caso a caso, poder-se-á perceber diferentes modos de
manifestação desse fenômeno. De modo que, qualquer definição, por mais elaborada que fosse,
não chegaria a dar conta da totalidade e grandeza do tema.
Outra situação, talvez completamente distinta, é a que será examinada mais adiante,
quando for abordada as peculiaridades do sincretismo presente no neopentecostalismo. Ora,
exatamente por se tratar de indivíduos, grupos e tradições distintos, é que se torna inviável
sustentar esse ou aquele conceito como sendo suficiente para exaurir o tema. Ainda assim, com
toda a complexidade reconhecida, muitos autores parecem dizer as mesmas coisas apenas
utilizando expressões diferentes. Pois, no que diz respeito ao resultado final, o que se percebe em
grupos que tenham sofrido transformações significativas em dado momento histórico, por conta
do sincretismo, é a existência simultânea de elementos distintos num mesmo grupo ou indivíduo.
Certamente, assumidos de forma peculiar em acordo com as peculiaridades dos grupos e pessoas
envolvidos.
diferentes tribos africanas contribuiriam juntamente para a formação dessa nação culturalmente
tão rica. As marcas dessas misturas podem ser vistas no multiculturalismo reinante em nosso
território. Sendo que cada região possui tradições ligadas a músicas, danças, comidas e
religiosidades específicas. Essa mistura viria a contribuir para o perfil de uma religiosidade
tupiniquim.
No clássico Casa grande e Senzala, Gilberto Freyre aborda a formação do povo brasileiro
referindo-se a ela como um processo de equilíbrio entre antagonismos, dada a imensa
diversidade:
É certo que esse equilíbrio não se deu sem dolorosos encontros. A hegemonia da Igreja
Católica submeteria as vivências religiosas tradicionais tanto dos povos originários quanto dos
africanos a profundas transformações. Especialmente o negro sofreria pela imposição e
perseguição às práticas de culto trazidas de seu continente de origem. De forma que a
subsistência de suas crenças se deu especialmente pela força interior que marcaria sua resistência.
Afonso M.L. Soares destaca que:
O vínculo de tempos imemoriais com suas crenças resultou em práticas sincréticas como
uma saída criativa para a proibição da vivência destas. Assim, o negros assimilaram semelhanças
entre o panteão de Santos Católicos e seu próprio panteão de orixás. Desse modo, os Santos
Católicos não somente passam a representar seus orixás como também, com procedimentos desse
gênero, os negros reinterpretam inúmeras festas católicas:
Exu é festejado no dia de São Bartolomeu; Xangô, no dia de São João; Ogum divide as
comemorações com São Jorge; Omolu, com São Sebastião; os Ibejis (orixás da
infância), na festa de Cosme e Damião; Oxalá brilha nos festejos do ano novo (na
Bahia, na festa do Senhor do Bonfim); e Iansã, no dia de Santa Bárbara . Mas, as datas
e as correspondências santo-orixá não são iguais para todas as regiões do Brasil. Xangô
é São Jerônimo na Bahia, o Arcanjo São Miguel no Rio de Janeiro, e São João em
Alagoas. Exu é o diabo na Bahia (talvez, por causa de seu caráter trickster), Santo
Antônio no Rio de Janeiro, São Pedro no Rio Grande do Sul (aqui entendido como
porteiro e mensageiro dos deuses) (SOARES, 2002, p. 50).
Essas e outras facetas concederam aos africanos manterem vivas suas tradições religiosas
e, mais que isso, contribuíram decisivamente para que o próprio Catolicismo sofresse
transformações devido a influência das crenças dos negros. De modo que o catolicismo popular é
marcado pela existência de superstições, rituais, rezas e benzedeiras que a priori pouco ou nada
têm a ver com a religião formal, clerical, dominada por brancos europeus.
Por essa intersecção de elementos religiosos de grupos aparentemente “antagônicos”, e as
intrigantes “soluções” encontradas para a sobrevivência/coexistência de ambos, é que talvez
possa-se dizer que o “caldo cultural-religioso” brasileiro é predisposto ao sincretismo. Ou seja, no
cotidiano práticas conceitualmente distantes, até mesmo opostas, coexistem na experiência
pessoal de indivíduos. Certamente, extrapolando a individualidade, tomando forma em grupos e
ajuntamentos de fieis em diversas partes.
21
Observando essa realidade, José Bittencourt Filho sustenta a tese de uma Matriz Religiosa
Brasileira, peculiar, característica desse povo e que se percebe na maneira como se experimenta a
fé nessas terras. Em um trecho de sua obra, explana:
Para tanto, depois de lançar a reflexão sobre sincretismo, e posteriormente apontar para os
traços característicos do povo brasileiro, importa dizer que o ponto nevrálgico não é, como
sustentam muitos, a de que esse povo seja essencialmente sincrético, e sim que, mais que isso, é
profundamente aberto/inclinado/permeável a esse tipo de comportamento religioso.
1.2 Neopentecostalismo
justifica pela relevância conquistada por eles desde que se tornaram o maior segmento entre as
religiões não católicas no Brasil.
Seus aspectos mais interessantes talvez estejam ligados ao uso de recursos do marketing
empresarial, o investimento na tecnologia rádio-televisiva e o forte envolvimento com a política
partidária. Assim, o neopentecostalismo vem destacando-se como um dos mais atraentes grupos
dentro do cenário religioso atual. Sua versatilidade, sua habilidade em se aculturar, sendo
portador de um discurso fortemente palatável e atraente ao seu público potencialmente
consumidor é bastante notória e, devido à velocidade com que consegue isso, admiravelmente
interessante.
O crescimento e consolidação desse grupo em termos numéricos, financeiros e políticos,
sendo possuidores de emissoras de rádio e televisão, dentre outros veículos de comunicação, faz
com que constitua um grande desafio às igrejas protestantes históricas, católica, religiões afro
(sobre as quais muitas vezes direcionam seu discurso bélico) e, obviamente, aos estudiosos da
religião.
As constantes aparições de lideranças e personalidades que fazem parte desse grupo em
programas de televisão não religiosos revelam sua crescente influência e poder de interação com
a cultura vigente, solidificando-se como uma opção cativante àqueles que procuram experimentar
a religião hoje.
Não obstante às igrejas históricas tenham sido as primeiras a “fincar” suas bandeiras no
Brasil, a face mais conhecida do protestantismo no país hoje é, sem dúvida, a do pentecostalismo;
representado especialmente pelas Assembleias de Deus e Congregação Cristã do Brasil, as duas
maiores denominações evangélicas do país.
No início do movimento pentecostal as relações entre a religião e a cultura brasileira
continuam bastante controvertidas, não muda muita coisa em relação às primeiras igrejas
históricas a serem implantadas aqui. A principal diferença está na sua origem e como ela
influenciaria na proclamação de sua mensagem.
23
mentalidade pentecostal, mas que se consideram adeptas de uma ‘renovação espiritual’ dentro
dos próprios quadros denominacionais a que pertencem” (MARIANO, 1995, p.33).
A despeito da classificação, este é o movimento que mais se alinha ao ethos brasileiro. No
que tange à musicalidade, por exemplo, lançaram mão da percussão, permitem a utilização de
instrumentos musicais variados em seus cultos, tornaram sua liturgia mais leve e solta,
substituíram o terno e a gravata por trajes mais informais (em alguns casos até mesmo para os
oficiantes das celebrações, como na Renascer e na Bola de Neve Church, por exemplo).
O mais importante fator de diferenciação entre o neopentecostalismo e sua matriz de
origem pentecostal/protestante é o afrouxamento 2 ético. Sobre isso, Gedeon Alencar afirma:
(...) uma religião liberal nos costumes, com espaços eticamente mais elásticos,
onde a classe média, que ironicamente é também a mais atraída para o
candomblé, pode se sentir “bem” sem o policiamento típico as igrejas
pentecostais e o conservadorismo das chamadas igrejas protestantes (2005, p.
85).
2
O mesmo argumento – o da frouxidão ética – também fora utilizado muitas vezes a fim de justificar a
aceitação social do candomblé (PRANDI, 1991).
25
produção, que neste caso será sempre sujeito ao gosto do cliente, em prol da maior e melhor
satisfação (GARLINDO, 2009, p.19).
Assim, as igrejas neopentecostais não apenas aderiram à lógica da sociedade de consumo,
com todas as consequências da globalização, como também investiram em uma propaganda que
apresenta um produto já assimilado pelo “paladar do freguês”. Empenharam-se essencialmente na
elaboração de pontos de intersecção entre as crenças populares (especialmente das religiões afro e
catolicismo popular) e apresentando certa proximidade com o universo simbólico-religioso do
povo brasileiro (essencialmente místico e desejoso por manifestações sobrenaturais).
Antes de tudo, é importante ressaltar que a religião não apenas se relaciona com a cultura
como também faz parte dela, constituindo-se em uma subcultura dentro de um ambiente cultural
maior. Isto é, um sistema simbólico-cultural inserido em um contexto cultural – mais amplo – e
que com ele se relaciona, influenciando e sendo influenciado por este.
Para tanto, é pertinente notar que o protestantismo, de onde se desenrola – em última
instância – o movimento neopentecostal, quando implantado no Brasil, enquanto religião
estrangeira (portanto, carregada de características culturais alheias à do povo brasileiro),
apresentava-se como um grupo que pouco ou nada tinha a ver com as características culturais
locais.
O protestantismo de emigração era marcadamente étnico, portanto restrito aos grupos e
colônias de estrangeiros que se dirigiam ao Brasil; o protestantismo de missão, profundamente
proselitista, não tinha intenção de interagir com a vida social mas apenas cooptar para si maior
número de fieis; por sua vez, os protestantismo pentecostal, intensamente escatológico, possuía
uma teologia que na prática constituía um desenrolar do proselitismo do protestantismo de missão
aliado a uma exagerada ética ascética extramundana, que visava salvar as pessoas da sociedade
(mundo).
De acordo com Antônio Gouvêa Mendonça, pesquisador do protestantismo, advindo de
uma matriz cultural distinta,
26
Em outras palavras, pode-se dizer que em sua relação com a cultura local, o
protestantismo abandonou a ética ascética intramundana, analisada por Max Weber em suas
pesquisas, para assumir em terras tupiniquins outro perfil, com uma ética monástica – ou seja,
isolacionista, sectária. Assim, a espiritualidade protestante deveria se restringir à vivência das
comunidades de fé. De tal modo, sua relação com a cultura tornou-se bastante controversa, não
havendo interesse em sua regeneração ou manutenção, conforme acima mencionado, mas sua
negação (a da cultura) pela negação do mundo.
A negação da cultura local significaria, por conseguinte, a exaltação (ou sacralização) de
uma cultura alheia, nesse caso a estadunidense. Os protestantes brasileiros passariam a se
27
identificar com a cultura dos missionários que vinham dos Estados Unidos, passando a ostentar a
carga de etnocentrismo transmitida juntamente com a pregação do evangelho, marcadamente
dominada pela ideologia do “destino manifesto” 3.
De modo que, mesmo em um clima tropical e das altas temperaturas aqui vigorantes,
vestir-se de terno tornou-se algo essencial ao cristão protestante; embora não fossem os
instrumentos mais populares entre os brasileiros, o piano e o órgão eram os únicos dignos de
fazerem parte dos cultos, rejeitando com todas as forças, especialmente, qualquer instrumento de
percussão; o corpo, sempre importante nas manifestações culturais brasileiras, deveria ser
domesticado e assumir uma austeridade “britânica”, refletida em cultos sóbrios, com liturgia
rígida e discurso racional – não havendo qualquer espaço para manifestações emocionais.
Nem mesmo os mais tendenciosos críticos do neopentecostalismo chegam a negar sua
herança protestante. Sua árvore genealógica possui a mesma raiz que as demais igrejas
pentecostais que, assim como as protestantes históricas, são herdeiras da Reforma. Não obstante,
sua acomodação cultural e adaptação às demandas da sociedade de consumo acentuam seu
distanciamento das demais igrejas protestantes.
Ricardo Mariano, ainda no final década de 90 escreveu um artigo no qual contrapunha a
ideia, anteriormente apregoada, de que na América Latina estaria ocorrendo uma nova Reforma
Protestante, isto é, que em um continente no qual vigora forte catolicismo popular, o
protestantismo estaria alcançado considerável guarida. Para Mariano, em O futuro não será
protestante, ao apresentar sua tese, afirmava que o grande responsável pelo crescimento do
protestantismo entre os povos latino-americanos é o pentecostalismo, porém esse se distanciava
cada vez mais de um “rosto protestante”. Ora, não que com isso quisesse afirmar que as igrejas
pentecostais não coubessem mais debaixo da classificação “protestantismo”, contudo assinalava,
enfatizando importantes transformações desse grupo, seu contínuo distanciamento de sua matriz.
3
Pensamento teológico estadunidense que alega serem os Estados Unidos escolhidos por Deus para atuar
no mundo.
28
Difícil também é negar as modificações sofridas por essas igrejas. No entanto, vale
perguntar: Até que ponto vai esse distanciamento? Seria o caso de, quatorze anos depois da
reflexão apresentada pelo eminente pesquisador, dizer que os neopentecostais caminham para
uma ruptura total com o protestantismo?
Certamente, não é a maior preocupação aqui avaliar, de forma abrangente, as razões desse
distanciamento. Nem tampouco ousar reclassificar esse movimento dentro do campo religioso
brasileiro. Isso fugiria do escopo desta pesquisa. Por outro lado, importa examinar, ainda que
brevemente, o que caracteriza esse deslocamento e, obviamente, o que há de continuidade entre o
neopentecostalismo e o protestantismo clássico.
Importante contribuição nesse sentido é oferecida por Paulo Siepierski, cujos
trabalhos ressaltam a importância de vincular as crenças teológicas às práticas sociais desse
movimento a fim de poder examinar o fenômeno pentecostal. Na sua perspectiva, enfatiza o
abandono de uma teologia pré-milenarista característica dos primeiros grupos pentecostais para
uma teologia pós-milenarista.
haja certa complexidade ao analisar e distinguir quais grupos fazem ou não parte do movimento
protestante histórico, identificado com a Reforma Protestante do século XVI.
O próprio Mendonça assume que
Tal definição, no entanto, não deve restringir a nomenclatura de protestantes apenas aos
grupos originados diretamente da reforma. É evidente que há outras ramificações oriundas de
dissidências desses grupos e que preservam as tradições protestantes.
O que de fato Mendonça quer dizer com esta alegação pode ser compreendido nesta sua
outra fala:
31
4
A IURD, por exemplo, anuncia na fachada de todos os seus templos, dentro e fora do Brasil, que “Jesus
Cristo é o Senhor”.
32
CAPÍTULO II
Para falar da gênese dessa denominação, faz-se necessário comentar, ainda que
brevemente, acerca de suas origens mais remotas. Isso porque, antes de fundar a IURD, Edir
Bezerra Macedo, converteu-se, aos 19 anos, ao ouvir uma pregação do evangelista Robert
McAlister (TAVOLARO, 2007, p. 81-82). O referido pregador, antes missionário canadense de
tradição pentecostal, viria a se radicar no Brasil depois de percorrer alguns países em missão. No
Brasil, após servir durante algum tempo a igreja Assembleia de Deus e também realizar
pregações em tendas da Cruzada Nacional de Evangelização (gênese da Igreja do Evangelho
Quadrangular), decidiu iniciar um projeto denominacional pessoal na cidade do Rio de Janeiro.
As primeiras atividades de McAlister seguiram o molde das primeiras ações da Igreja do
Evangelho Quadrangular, com a realização de eventos evangelísticos conhecidos como cruzadas.
A própria IEQ, devido a esses eventos, ainda hoje é conhecida em algumas cidades como
Cruzada Nacional de Evangelização. Os cultos eram realizados em tendas ou estabelecimentos de
grande porte alugados eventualmente, havendo ministrações com forte ênfase na “conversão” e
orações em prol de curas e milagres. Era bastante comum, como ainda o é em muitas igrejas de
34
2.1.2 Expansão
Em 1985, com oito anos de existência, já contava com 195 templos em catorze
Estados e no Distrito Federal. Dois anos depois, eram 356 templos em dezoito
Estados. Em 1989, ano em que começou a negociar a compra da Rede Record,
somava 571 locais de culto. Entre 1980 e 1989, o número de templos cresceu
2.600%. Nos primeiros anos, sua distribuição geográfica concentrou-se nas
regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Salvador. Em
seguida, expandiu-se pelas demais capitais e grandes e médias cidades. Na
década de 1990, passou a cobrir todos os Estados do território brasileiro, período
no qual logrou taxa de crescimento anual de 25,7%, saltando de 269 mil (dado
certamente subestimado) para 2.101.887 adeptos no Brasil, de onde se espraiou
para mais de oitenta países. Em todos eles, conquista adeptos majoritariamente
entre os estratos mais pobres e menos escolarizados da população (MARIANO,
2004).
Não obstante, dessas mencionadas, pode-se dizer que somente a Congregação Cristã do
Brasil sirva de paralelo para uma comparação sólida com a IURD. Isso porque desde sua
fundação, a CCB mantém-se quase inalterada em seus costumes e tradições e, mais importante
para nós, em seu sistema de governo. Já as Assembleias de Deus constituem, na verdade, um
conglomerado de redes de igrejas/ministérios que compartilham do mesmo nome (como um
sistema de franquia) 5 em função de uma identificação com o tipo específico de pentecostalismo;
e os Batistas, por sua vez, subdividem-se entre os da Convenção Batista Brasileira, Convenção
Batista Nacional (Renovados) e Aliança de Batistas do Brasil (isso sem falar nas pequenas igrejas
independentes que se consideram batistas mas não se encontram filiadas em nenhum desses
grupos). A partir dessa análise, a IURD, enquanto denominação coesa, una, encontra-se apenas
atrás da CCB.
Mesmo assim, essa posição no ranking talvez ainda seja insatisfatória para seus líderes,
mais exatamente para “o cabeça” da instituição, Edir Macedo. Leia-se o nome da denominação.
Aliás, esse é um ponto interessante, o “espírito” de expansão das denominações neopentecostais
pode ser notado em seus próprios nomes (Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Mundial
do Poder de Deus, Igreja Cristã Mundial, dentre outros mais peculiares). E, de fato, a IURD está
espalhada por toda a América Latina e também fora dela. Em seu site, a igreja se gaba de estar
presente em cerca de 200 países 6 e em um dos portais de internet pertencentes ao grupo
empresarial de Edir Macedo, o R7, uma nota sobre o aniversário da igreja a enaltece por possuir
fieis advindos das “diferentes classes sociais, como médicos, juízes e trabalhadores mais
humildes.” 7
Acerca disso, Freston havia comentado que, desde a sua fundação, a denominação já
havia conseguido “em pouco mais de uma década o que levou gerações para outros grupos
pentecostais: a diversificação substancial de sua base (1994, p. 135)”. Tal conquista pode ser
atribuída a diversos fatores, dentre eles o diversificado “cardápio” oferecido nos cultos da
5
Para conhecer mais sobre as Assembleias de Deus e suas estruturas, bastante oportuna é a leitura da tese
de doutorado (PUC-SP) de Marina A. dos Santos Corrêa (2012), A operação do carisma e o exercício do
poder: A lógica dos Ministérios das igrejas Assembleias de Deus do Brasil. Certamente um trabalho de
fôlego, que ousou esmiuçar esse complexo aspecto de um dos mais importantes grupos pentecostais
brasileiros.
6
<http://www.arcauniversal.com/institucional/noticias/vai-viajar-para-fora-do-brasil-visite-a-iurd-no-
exterior-10616.html> visitado em 25 de agosto de 2013, às 01h59min.
7
<http://noticias.r7.com/brasil/noticias/expansao-da-igreja-universal-pelo-mundo-ja-atinge-quase-200-
paises-20120818.html> visitado em 25 de agosto de 2013, às 02h05min.
38
Universal. Havendo ministrações voltadas para a resolução de questões amorosas, doenças físicas
e problemas financeiros. Independente da necessidade dos fiéis, na visão iurdiana, o problema é
sempre de ordem espiritual. Daí a IURD se constituir basicamente em um “supermercado” da fé.
E não só na oferta de bens de acordo com a demanda, mas também em sua estratégia de ocupação
dos espaços geográficos dos locais em que pretende se instalar.
No geral, igrejas pentecostais e protestantes clássicas iniciam seus trabalhos
evangelísticos em “pontos de pregação”, os quais frequentemente consistem em residências de
pessoas que já se converteram à religião evangélica ou mesmo gente simpatizante das atividades
em questão. Posteriormente, conforme a comunidade de fé começa a se estabelecer, é que se
inicia a movimentação para o aluguel ou construção de um templo a fim de comportar os fiéis.
Não se dá assim com as grandes denominações neopentecostais,
oferecidos, ainda que de apelo espiritual, são compatíveis com as demandas do mundo
contemporâneo, geralmente são bênçãos materiais. O que não difere, em geral, do histórico de
outras denominações. Afinal, como asseverou Weber, fazendo menção ao verso 3 do capítulo 6
do livro de Efésios: “A ação religiosa ou magicamente motivada, em sua existência primordial,
está orientada para este mundo. (...) ‘para que vás bem e vivas muitos e muitos anos sobre a face
da Terra.’” (1991, p. 279).
Para tanto, observaremos mais adiante o perfil neopentecostal iurdiano em relação ao seu
tempo. Como ela interage com as demandas de uma sociedade de consumo ávida por conquistas
imediatas, utilitárias e que permita ao indivíduo encontrar a realização pessoal aqui e agora.
A mídia apresenta-se como um bom exemplo dessa substituição da função religiosa; é ela
que hoje parece sustentar os imaginários e os ideais de vida das pessoas, e por sua mediação é
que se idealiza outro mundo, uma outra realidade e que se continua a sonhar (também sonhos
efêmeros). Porém, mais do que um sonho como ato positivo que gere fé no futuro, assim como
motivação para agir além de sua realidade particular, o ser humano na sua existência
“midiatizada”, ocupa-se a sonhar em alcançar os padrões absurdos e insustentáveis de poder,
beleza ou fama, os quais aumentam sua frustração, seu egoísmo e sua solidão.
Acerca dessa relação entre o religioso e o ser humano de nossos dias, Jean Paul Willaime
afirma, ao falar especificamente da privatização do religioso, que há um enfraquecimento do
suporte comunitário – outrora tão evidente e, ao mesmo tempo, tão valorizado – da vida religiosa
na medida em que a mídia permite acolher em seu seio um pregador, sem que seja necessário
reagrupar-se com outras pessoas nos bancos de uma igreja (2002, p. 53). As formas de
experimentar o sagrado parecem estar em constante movimento graças a uma forma de vida cada
vez mais midiatizada.
Enquanto o sujeito hodierno, herdeiro da Modernidade, estabelece as ligações religiosas
que respondam à sua necessidade particular, a instituição se depara hoje com a tarefa de
“fidelizar” os seus adeptos, no intuito de assegurar sua continuidade e, assim, sua própria
existência. Diante das múltiplas instituições produtoras de sentido que concorrem entre si na
sociedade contemporânea, a instituição religiosa se defronta com o desafio constante de melhorar
a cada dia (o mais rápido possível) sua oferta religiosa num mercado cada vez maior. De modo
geral poderíamos afirmar que a religiosidade que o ser humano experimenta e assiste nessa era
tem as características afirmadas por Marcel Gauchet:
Para tanto, pode-se arriscar em dizer que a religião que hoje é experimentada constitui-se
em produto de um processo histórico bastante complexo. Curiosamente, essa mesma realidade é
que também a torna imprevisível. Assim sendo, afirmar categoricamente o que ela será no futuro
pode ser um equívoco. Mais que isso: uma desconsideração da sua natureza, do seu caráter
42
profundamente humano. Em meio a um tempo no qual a religião perde sua plausibilidade política
e social, mas que ainda consegue se manter e até aumentar as crenças individuais, esporádicas e
diversificadas nos sujeitos, é preciso nos situar na função que ela desempenha na sociedade atual
para tentar conceber o rumos e suas consequências mais imediatas para a sociedade.
Na verdade, o poder de determinar a função dos sistemas religiosos está hoje no sujeito e
não na religião institucional. Sendo o sujeito quem determina até que ponto a religião que ele
pratica, ou na qual ele acredita, funciona para si e em que medida. Isso, considerando que a
religião na sociedade contemporânea converteu-se um bem de consumo, uma das tantas coisas
que se acham no mercado; ela tornou-se produto e, como tal, pode ser trocado muitas vezes de
acordo com a necessidade, ou melhor, com o gosto e o desejo do cliente. Não obstante, a religião
ainda é procurada para legitimar as ações e os estilos de vida de muitas pessoas, ela ainda
consegue influenciar e até regular, não de uma maneira total, mais significativa, os cotidianos dos
sujeitos religiosos. Quer dizer, ela ainda é uma matriz provedora de significações para os
indivíduos, e por isso, conserva certa relevância na sociedade.
É importante frisar também que na atualidade, ainda que possa parecer um paradoxo, há
um fortalecimento dos fundamentalismos religiosos, quer dizer, uma preocupação de parte das
instituições por manter o poder religioso através da recuperação da tradição e do reforço dos
dogmas e doutrinas. Em decorrência disto, para Cupitt, a religião se assemelha a um incomodo
sobrevivente do passado, “uma forma local e tradicional de simbolizar, atuar e combativamente
afirmar a própria identidade étnica distinta e pessoal, diante de ameaça de assimilação pelo
anonimato abrangente da nova cultura global” (1999, p. 9). As implicações da nova realidade
global estão levando muitas pessoas a procurarem refugio no canto seguro de um sistema
religioso autoritário, que possa lhes oferecer uma alternativa absoluta “diante das agonias da
escolha numa cultura cada vez mais plural” (DA SILVA, 2007, p 12).
A dimensão religiosa é uma realidade hoje “reduzida” à consciência humana, não deveria,
portanto, afetar a realidade objetiva, mantendo-se no âmbito da subjetividade e na intimidade da
prática individual e esporádica dos sujeitos, que nem sempre se consideram religiosos. Os
símbolos religiosos e mesmo as doutrinas não tem o mesmo significado nem os mesmos usos que
na antiguidade, eles são constantemente (re)significados e usados junto a um sem-número de
outros símbolos tomados daqui e dali para satisfazer o sentimento religioso, que parece
prevalecer.
43
acreditam que esse tempo é caracterizado especialmente pela radicalização (GIDDENS, 1991,
1999) ou exacerbação das características da Modernidade (LIPOVETSKY, 2004).
Nesse sentido, o filósofo Gilles Lipovetsky tem sua contribuição, argumentando em favor
da ideia de transição na qual há tanto ruptura quanto continuidade, sobretudo de uma
continuidade maximizada de grande parte das características da sociedade Moderna; para tanto, o
estudioso prefere usar o termo Hipermodernidade ao se referir aos tempos hodiernos. Como já
mencionamos acima a respeito da ideia de exacerbação, o prefixo “hiper” pretende justamente
apontar para esse aspecto.
Para Lipovetsky, contudo:
Todas as conquistas da vida têm o preço do sacrifício. Tudo tem o seu preço. Se
o objetivo que eu quero alcançar é muito alto, então alto também será o preço do
sacrifício que terei de pagar. Quanto maior é a conquista, maior também será o
sacrifício para consegui-la (2001, p. 22).
Já R.R. Soares, vai além, afirmando que a palavra “pedirdes”, no texto bíblico que diz “E tudo
quanto pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho”, de João 14:13,
fora traduzida erradamente, pois deveria ser entendida como “exigirdes” ou “determinardes” (2000, p. 42).
Para Soares, "continuar orando, pedindo, suplicando por algo que já é seu é declarar que a Palavra do
Senhor pode não ser a verdade" (2000, p. 45). Diferente dos primeiros pentecostais, que exortavam uns
aos outros a fim de suportarem resignadamente o sofrimento desta vida, sugere que tal sujeição pode dar
lugar ao diabo (2000, p. 78).
A combatividade desses termos (exigir, determinar, pagar o preço) reflete a gana de uma
sociedade sujeita aos valores do capital, na qual a agressividade e perspicácia na busca pelo
sucesso impõem-se como fundamental. E, diante disso tudo, convém lembrar das palavras do
teólogo R. Niebuhr, quando afirmou que “a vida religiosa é tão entrelaçada com as circunstâncias
sociais que a formulação da teologia é necessariamente condicionada por elas” (1992, p. 18).
Nessa sua declaração, Niebuhr contribui a fim de que estudioso algum se deixe levar
ingenuamente pela ideia de que as transformações e posturas assumidas pelas religiões se deem
meramente por questões de convicção teológica, sendo profundamente necessário conhecer e
avaliar o tempo e lugar em que tais posturas passam a ser sustentadas.
Isso posto, não é de se admirar que em um período de grandes transformações sociais,
econômicas, culturais, uma denominação evangélica como a IURD encontre êxito em suas
atividades. Na verdade, encontra um terreno existencial propício para sua implantação,
crescimento e, talvez, até estabilização – em um cenário de rápida transformação e criticamente
mutante, portanto instável.
47
8
Apesar disso, pode-se notar, mais nos últimos anos, uma tentativa da IURD de apresentar uma
membresia que teria passado por diversas fases da igreja (pratas da casa). O que pode caracterizar um
período de transição da igreja, na qual busca consolidar-se enquanto instituição possuidora de tradições e
raízes sólidas, o que, sabe-se, conferiria a ela mais respeitabilidade social. Outros aspectos sustentam essa
tese, como, por exemplo, a construção, no Bairro do Brás, do Templo de Salomão, ou as literaturas
biográficas acerca da trajetória de Edir Macedo (O Bispo, história revelada de Edir Macedo; e a série em
vários volumes Nada a Perder). Com o avanço da idade de seu líder-mor, parece haver uma tentativa
deste de transmitir, de modo explícito, um legado objetivo aos seus herdeiros espirituais. Pode-se
encontrar nesse endereço eletrônico testemunhos de bênçãos de membros e obreiros que aderiram a IURD
em seus primórdios: <http://www.arcauniversal.com/noticias/obreiros/noticias/prata-da-casa-testemunhos-
de-fe-e-perseveranca-dos-primeiros-membros-da-iurd-9496.html> Visitado em 25 de agosto de 2013, às
12h30min.
48
E no Brasil, assim como na América Latina em geral, não apenas encontra um solo fértil
para tal especificidade como também beneficia-se do espírito dessa época (já analisado aqui
anteriormente), isto é, um tempo marcado pela fluidez dos valores e crenças; de uma sociedade
utilitarista orientada em boa parte pelas diretrizes do capitalismo selvagem, segundo as quais
pouco importa o conteúdo e a origem dos bens oferecidos, desde que sejam funcionais. Nesse
sentido, para os fieis torna-se bem menos importante a forma e a procedência dos elementos
contidos nas mensagens dos bispos e pastores neopentecostais do que o resultado satisfatório que
essas podem lhe conferir.
Dos grupos religiosos ocorrentes no Brasil, os evangélicos têm sido os que mais estão
expostos à sociedade brasileira. Desses, os neopentecostais são os que sobressaem, basicamente
em decorrência de sua atuação na mídia – televisão, rádio e jornal, respectivamente de acordo
com a importância desses veículos para as maiores denominações – e presença massificada na
sociedade. Entretanto, não apenas por essas razões, mas também pela intensidade (ou seria mais
adequado dizer “agressividade”?) com que se valem desses instrumentais.
A IURD, modelo e padrão para inúmeras outras igrejas menores, possui predicados
bastante extravagantes. Já em 1994, Paul Freston elencava algumas de suas muitas facetas nesse
sentido:
De lá para cá essa feição da IURD não se alterou, apenas se diversificou. Até porque a
demanda da “clientela” está sempre ávida por novidades. Enquanto o discurso de denominações
como a Universal e Internacional da Graça mostra-se sempre bastante repetitivos, lidando com
problemas sempre tão corriqueiros e oferecendo evidentemente um parecer de cunho espiritual,
lançando a culpa sobre os demônios, “O que varia são as formas dos rituais, bem como o modo
de participar deles e o sacrifício (a quantia em dinheiro) exigido para o fiel habilitar-se a receber
as bênçãos desejadas ou propostas” (MARIANO, 1999, p.134).
Esse segmento do movimento evangélico brasileiro parece não ter tido dificuldade em se
delinear e forjar pontos de intersecção entre as crenças, o jeito de ser e, principalmente, entre
religiosidade popular brasileira e à fé que se lhes propõem ser seguida: a evangélica. Isso pode
ser evidenciado nos elementos apresentados, dessa vez por Ricardo Mariano, e que podem ser
encontrados nos trabalhos realizados em denominações neopentecostais como a IURD, dentre
outras:
Em se tratando do panorama nacional, pode-se dizer que desde cedo, ao passo em que se
erigia uma sociedade peculiarmente brasileira – um povo resultante de uma série de misturas
étnicas, culturais e religiosas –, a fé cristã (especificamente a Católica Romana) teve de duelar
com crenças de diversos matizes. Conquanto a cristianização do Brasil tenha sido inicialmente
agressiva, solapando a cultura e as crenças dos índios e, logo depois, dos negros trazidos para
trabalharem como escravos, não se pode falar em vencedor neste duelo. Basta olhar para o
cenário religioso brasileiro para perceber a existência de dois tipos de catolicismo. O catolicismo
clerical, teologicamente elaborado e dogmatizado, e o catolicismo popular, eivado de
superstições e elementos originários dos cultos afro-ameríndios 9.
Sem dúvida, houve uma absorção dos elementos das crenças indígenas e africanas,
fundindo-se com o catolicismo português (que já veio com sua parcela de sincretismo). Para
verificar tal afirmação, vale a pena dar atenção às celebrações religiosas dos povos do norte e
nordeste brasileiro – não que nas outras regiões também não ocorra o sincretismo, contudo nos
Estados que compõem essas regiões nota-se mais fortemente a mistura religiosa ocasionada dessa
interação.
Na Umbanda, Cristo é Oxalá e Satanás, Exu; São Jorge (Santo Católico), tido como
Ogum. Iemanjá e a “Nossa Senhora” (apenas Maria para os protestantes) compartilham o mesmo
altar que uma série de divindades. Ao olhar fervoroso dos fiéis, não há menor incompatibilidade
entre tais personagens da fé. O tipo de análise – purista – que aponta para uma essência ou raízes
puras da religião no cristianismo frequentemente é oriunda de teólogos e leigos conservadores e
reflete um olhar, como já fora dito, ingênuo ou pretensioso. Do lado protestante, entretanto, o
segmento que mais se abriu ao sincretismo foi o movimento pentecostal.
Propagando-se entre as camadas mais pobres da população, assim como o catolicismo, o
pentecostalismo absorveu certos elementos das religiões anteriormente seguidas pelos seus
adeptos convertidos. A título de exemplo, manteve forte ênfase em operações miraculosas e
crença na intervenção sobrenatural por meio dos próprios membros da comunidade de fé,
instigou a busca por revestimentos sobrenaturais, abriu espaço para uma liturgia que comportasse
orações em voz alta e gestos extravagantes, liberdade para pular e saltar nas reuniões da igreja,
9
Para aprofundar no assunto, recomendo o livro de Afonso. M.L. Soares, Interfaces da Revelação,
pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso no Brasil.
51
orações marcadas pela glossolalia 10 e êxtases, práticas antes impensadas aos protestantes
tradicionais. Certamente, representa a manifestação mais latinoamericana do cristianismo, um
protestantismo de perfil bem mais emocional que aquele de formas mais rígidas e com ênfase no
racional.
Dentre os grupos que foram surgindo dentro do movimento pentecostal, os
neopentecostais seriam os que mais encarnariam esse perfil. Mais claramente, essas igrejas
maximizariam as práticas antes assumidas por pentecostais e ultrapassariam os limites antes não
transpostos por estes. De forma que amuletos, objetos sagrados, flores, água benzida (orada ou
ungida, na terminologia que utilizam) seriam características sempre presentes nessas
denominações. Além disso, do legado pentecostal, reforçariam a concepção dualista do bem e do
mal, e elaborariam uma teologia superficial 11 sem muitas implicações no âmbito social, mas que
na dimensão individual funda-se na relação de troca com o divino. De forma que, contribuindo
financeiramente com a Igreja, a benção será concedida (comparecendo sete sextas-feiras em
determinada campanha, o sonho será realizado). Uma olhada nos programas neopentecostais na
mídia televisiva basta para se ter uma noção de como se tem desenvolvido essa nova
manifestação religiosa.
As liturgias sempre mutantes, em tons de encenações, profundamente simbólicas e a
mistificação de palavras, gestos e objetos, destoam por completo do caráter iconoclasta das
igrejas protestantes tradicionais. O aspecto visivelmente crítico dessa ação da Igreja Universal
está basicamente na agressiva rivalidade claramente assumida em relação aos cultos afro.
Ocorrendo em diversas de suas atividades exorcismos com vistas a destruir o “mal” que atua na
vida dos participantes das concentrações, realizados em detrimento do respeito às crenças alheias.
Invocando-se os chamados “maus espíritos”, conferindo-lhes nomes tipicamente pertencentes ao
rol de entidades dos cultos afro, por exemplo, para depois de entrevistá-los e submeter a pessoa
“possessa” a uma vexatória exposição pessoal para, só então, expulsá-lo.
10
Crença pentecostal que acredita na ação do Espírito Santo concedendo a homens e mulheres da igreja a
capacidade de orar em línguas estranhas àquela falada pelos fiéis e sem a necessidade de serem
aprendidas, portanto espontaneamente.
11
A palavra superficial aqui quer indicar, na verdade, a fluidez e flexibilidade da teologia apresentada por
esses grupos, sem a ocorrência de Confissões de Fé tão elaboradas como a das igrejas ditas históricas ou
maiores preocupações com as tradicionais ideias de discipulado e formação teológica de seus membros.
Obviamente, tais características se justificam pelo estilo altamente criativo e mutante das estratégias
utilizadas em discursos e práticas das igrejas.
52
12
O titulo original do livro de Rubem Alves era Protestantismo e Repressão, mas depois de 30 anos
transcorridos, ele sugere a mudança do titulo por Religião e Repressão sob o argumento de que aquilo que
foi dito no livro sobre protestantismo poderia muito bem ser aplicado a outras religiões. Entretanto, há que
se cogitar que, devido à singularidade de cada grupo religioso (e seus respectivos subgrupos), a mudança
do título desta importante pode ter sido um equívoco. Especialmente se se trouxer à baila às religiões
orientalistas, cuja estrutura diverge profundamente da fé cristã ocidental. Sobre a alteração do título da
obra, ver artigo de Campos, O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre "protestantismo" e "repressão":
algumas observações 30 anos depois (2008).
13
Obviamente, uma frase constante no prefácio de livre, escrita a fim de justificar a redefinição do título
de um livro lançado aproximadamente três décadas antes, não é provida de rigor academio. Sendo mais
claro, nota-se a herança protestante ainda presente na forma de o autor analisar o cenário religioso
brasileiro ao dizer que “nenhuma relação têm com o protestantismo clássico”.
54
tais alegações partem de líderes que a analisam a partir de uma perspectiva teológica
confessional. Sendo assim, é natural que haja contestações nesse sentido em prol da ideia de uma
“sã doutrina” e padrões específicos dentro dos quadros religiosos dos quais são parte constituinte.
Além disso, o surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus significou para muitas outras
denominações um grande desafio, uma concorrente de peso.
Nesse sentido, é preciso afirmar que perspectiva confessional não nos serve enquanto
argumento, contudo não significa que não deva ser levada em conta para fins de uma avaliação
mais acurada. Até porque as posições assumidas por outras denominações e lideranças
evangélicas a respeito dos neopentecostais nos fornece dados para compreender como se dá a
relação desse grupo com as demais igrejas no campo religioso. Nesse sentido, damos voz aqui ao
bispo anglicano Dom Robinson Cavalcanti 14, que em um artigo intitulado “Pseudo-pentecostais,
nem evangélicos nem protestantes”, pronunciou-se com veemência, dizendo:
14
Não deixa de ser irônico um bispo anglicano, isto é, de uma Igreja tão marcada pela pluralidade, abordar
acerca da Igreja Universal do Reino de Deus tomando-a como um desvio dos “padrões” da fé cristã
reformada.
55
Sobre isso, importa dizer que quase já não é percebido um relacionamento de proximidade
entre as denominações protestantes históricas e pentecostais com as igrejas neopentecostais.
Nota-se que até mesmo entre os próprios neopentecostais não há muitos contatos; como, por
exemplo, congressos, celebrações conjuntas entre igrejas, cooperação em projetos sociais, etc.
Como se pode observar, o sincretismo característico da IURD não apenas lhe confere
certa peculiaridade, como também faz com que seja alvo das mais diversas indagações. Havendo,
obviamente, divergências a esse respeito tanto entre religiosos quanto entre os próprios
estudiosos da religião. Gedeon Alencar, perspicaz estudioso do pentecostalismo, ousou chamar o
movimento neopentecostal como “a expressão mais brasileira do protestantismo” (2005, p. 84), o
professor Leonildo Silveira Campos também já havia considerado “o neopentecostalismo como à
fase mais recente de integração do pentecostalismo à sociedade latinoamericana e ao sistema de
mercado” (1997, p. 45)
O sociólogo Paul Freston 15 também deixou seu parecer a respeito do assunto, afirmando
que:
De fato, a IURD é vista como evangélica pela grande maioria dos evangélicos.
Seus estatutos afirmam o princípio protestante da autoridade da Sagrada
Escritura somente. Por trás do sensacionalismo, vemos as ênfases típicas do
pietismo. As histórias de conversão são contadas em linguagem tradicionalmente
evangélica. A receita de Macedo para uma vida convertida é “oração, comunhão
constante com Deus e a leitura da Bíblia, aliada a uma vida de pureza e
integridade cristã” (1994, p. 137).
15
Em diálogo com o autor, via e-mail, este me afirmou ter as mesmas convicções a respeito da IURD e
neopentecostalismo em geral.
56
sentido de que esse perfil a favorece diante de grande parte da população brasileira. Visto que,
em maior ou menor grau de envolvimento, já está acostumada com os símbolos e a linguagem
utilizada pela denominação em seus trabalhos.
Outra dimensão importante, contudo será examinada posteriormente, refere-se à ideia do
neopentecostalismo como uma “terceira via”, por meio da qual o movimento neopentecostal pode
ser visto como uma opção confortável entre o protestantismo e os cultos afro. Veremos isso mais
adiante assim como também será analisada as peculiaridades do sincretismo iurdiano.
57
CAPÍTULO III
16
Peça teatral de Dias Gomes, tornou-se filme em 1962 tendo como diretor Anselmo Duarte.
58
No chão da vida, distante das elucubrações teológicas oficiais, é um tipo como o Zé-do-
Burro que realiza o sincretismo, ainda que rejeitado pelo representante oficial da Igreja, porém
intimamente convicto de sua experiência pessoal. Uma figura que reflete a insurreição que parte
de baixo pra cima, subvertendo o que é apresentado como já definido e inexorável. Em vista
disso, ressalta-se aqui o que já fora mencionado anteriormente: que entre os evangélicos
neopentecostais o uso de elementos de outras crenças se dá como algo consciente, fazendo parte
de uma estratégia que visa ao êxito para se angariar fiéis.
Em vista disso, uma vez já mencionado e abordado o caráter sincrético do
neopentecostalismo, partiremos aqui para avaliar as peculiaridades desse sincretismo. Tal
aprofundamento temático implicará, mais à frente, em aferirmos as consequências que tais
particularidades geram no campo religioso brasileiro. Por hora basta dizer, a título de informação,
que não apenas o cenário da religião no Brasil se vê influenciado pelos traços do
neopentecostalismo, em especial o iurdiano, mas também tantos outros países latino-americanos,
visto que essa denominação, como o próprio nome sugere, sempre portou aspirações
expansionistas (universais) e está presente por todo o continente, carregando aonde quer que vá
seu estilo “abrasileirado” (ALMEIDA, 2009, p. 125) e também as mesmas estratégias aqui
utilizadas para prosperar.
relação a elas. Esse aspecto deverá ser analisado mais adiante nas consequências do sincretismo
neopentecostal para o campo religioso brasileiro. Por hora, importa refletir no modo como esse
grupo se relaciona com a religiosidade afrodescendente, relação que desde há muito se percebe
entre os evangélicos neopentecostais.
Sobre esse assunto, Paul Freston relata o contato com um pastor evangélico e sua opinião
acerca do crescimento numérico da IURD: “a IURD se expande onde há ‘macumba’ e famílias
dilaceradas” (FRESTON, 1994, 136). É bastante interessante essa observação, pois sugere que a
denominação alcança sucesso diante de um cenário bastante específico. E convém dizer que na
fala acima, por macumba, pode-se entender toda a variedade de cultos afro existentes em solo
brasileiro, especialmente o Candomblé e a Umbanda. E nisso pode-se notar que a IURD se define
não apenas como uma religião advinda do movimento pentecostal, mas especialmente em
contraponto à religiosidade afro-brasileira. Isto é, define-se a partir do outro, conforme será
apresentado.
A teologia fundante para tal maneira de operar da Universal e que influencia toda uma
gama de igrejas que seguem seu modelo de igreja evangélica pentecostal está contida no livro
Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? O livro, de autoria do Bispo Edir Macedo, fora
escrito em 1997, entretanto suas orientações não se dissolveram com o tempo 17. Ainda orienta e
inspira aos crentes iurdianos – dentre outros evangélicos – a como procederem a respeito das
religiões mediúnicas, com ênfase nas de ascendência africana.
São interessantes as palavras de Macedo logo no primeiro capítulo de sua obra:
Como se pode notar, não titubeia em momento algum ao mencionar os nomes dos grupos
religiosos contra os quais pretende militar. E mais adiante, curiosamente, resume todas as crenças
de vertente mediúnicas ao rótulo de espiritismos (MACEDO, 2001, p. 18). Esse direcionamento
17
Para uma análise mais aprofundada especificamente do discurso contigo nesta obra de Edir Macedo, ver
dissertação de Mestrado de Valdelice Conceição dos Santos, O discurso de Edir Macedo no livro Orixás, Caboclos e
Guias, Deuses ou demônios?: impactos e impasses no cenário religioso brasileiro (2010).
60
O pastor Mauro com certeza é uma pessoa bem habilitada para falar desse
assunto. Ele, assim como boa parte dos fiéis da Igreja Universal, é egresso de
uma dessas religiões. Em seu caso, a mudança ocorreu com maior radicalismo.
Antes de se tornar pastor, ele era pai-de-santo, no Candomblé, sendo Mauro de
Ogum o seu antigo nome de fé (2009, p. 68).
18
Bater cabeça: cumprimento ritual de respeito realizado ao princípio e fim de sessões públicas
(CACCIATORE, 1977, p. 65).
63
Para a Igreja Universal o ser humano vive num caos, provocado pela presença
das forças satânicas. A reorganização do mundo interno de cada um e suas
ligações com o mundo objetivado têm que passar necessariamente por um novo
19
Essa fala pode ser conferida a partir dos 2min32ss, em um vídeo de exorcismo disponibilizado pelo
próprio Edir Macedo em seu site pessoal, datado de 09 de fevereiro de 2012:
<http://www.bispomacedo.com.br/2012/02/09/aviso-aos-incautos/>, visitado em 01 de set. de 2013, às
7h55min.
64
Antes de qualquer coisa, recompilo aqui as palavras do Bispo Edir Macedo em seu site
pessoal propagandeando uma vez mais o seu Best-Seller Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou
demônios?
Esta exortação se trata de uma reedição do que havia sido dito na introdução do referido
livro, quando do lançamento de sua primeira edição, na qual consta também muito claramente o
público alvo: “Dedico esta obra a todos os pais-de-santo e mães-de-santo do Brasil, porque eles,
mais que qualquer pessoa, merecem e precisam de esclarecimento” e também a “pessoas que
vivem enganadas e entrelaçadas pelos espíritos malignos” (MACEDO, 2000, p.10).
Não seria necessária a leitura da obra toda para notar seu contorno fortemente
contundente, pois, logo de entrada, a hipótese do livro é declarada: as religiões mediúnicas são
obra do “diabo e seus demônios” (MACEDO, 2000, p.10).
Estima-se que mais de 3 milhões de cópias tenham sido vendidas desde seu lançamento.
Não passou sem gerar polêmica, aliás, curiosamente, na edição utilizada nessa pesquisa, 15ª, em
sua ficha catalográfica consta “Literatura polêmica”. No ano de 2005, a juíza Nair Cristina de
Castro, da 4ª Vara da Justiça Federal da Bahia, determinou a suspensão da venda do livro. À
época, a fundamentação para tal posicionamento da justiça era que: " [a obra] se mostra abusiva e
atentatória ao direito fundamental, não apenas dos adeptos das religiões originárias da África e
aqui absorvidas, culturalmente, como afro-brasileiras, mas da sociedade, no seu genérico prisma,
que tem direito à convivência harmônica e fraterna, a despeito de toda a sua diversidade (de
cores, raças, etnias e credos)” 20.
A literatura em questão, somada às práticas costumeiramente realizadas nos trabalhos da
IURD instauraram importante debate acerca da tolerância religiosa no Brasil. O debate talvez
tenha se acirrado especialmente depois do tão conhecido e comentado “Chute da Santa”,
protagonizado pelo Bispo Sérgio Von Helder, que durante o programa O despertar da Fé desferiu
golpes contra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, justamente na data de 12 de outubro,
quando católicos de todo o Brasil comemoram o dia da padroeira 21. Como bem recorda Ronaldo
de Almeida (2007, p. 140), a imensa repercussão a respeito desse fato se daria mais pela
conveniente exposição da cena pela Rede Globo de televisão, por razões obviamente comerciais
(a Rede Record se fortalecia enquanto emissora de televisão e atualmente tem mantido a posição
de segunda maior emissora do país) do que por apresentar algo novo.
Não era raro a IURD dirigir seus ataques humilhando e zombando das entidades afro-
brasileiras. Todavia, publicizar o ato realizado contra a maior igreja do país seria bem mais
interessante. Essa estratégia beneficiaria diretamente a Globo, por lançar sua rival em
dificuldades, como também à própria Igreja Católica, que assistia a uma enorme perda de fiéis
para as igrejas evangélicas, especialmente as pentecostais. As consequências de fato foram
bastante drásticas, havendo manifestações por parte de católicas em frente aos templos da
20
A matéria informativa a respeito da suspensão do livro pode ser encontrada aqui:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u115122.shtml> Visitado em 04 de set. de 2013, às
12h51min.
21
O fato gerou, anos depois, uma lenda na qual o referido Bispo teria se convertido ao catolicismo após
ser curado por Nossa Senhora de uma estranha enfermidade precisamente na perna com a qual “chutou” a
imagem. <http://www.istoe.com.br/reportagens/28209_O+CONTO+DA+SANTA> Visitado em 04 de set.
de 2013 às 13h22min
67
Universal. Em geral, os evangélicos passaram a gozar de determinada desconfiança por parte dos
católicos, carregando a pecha de “radicais” e “intolerantes”.
Entretanto, em uma atitude estratégica, Edir Macedo pede desculpas pelo ato de seu bispo.
Passados os anos, assim, a IURD consegue superar essa crise. Passa então a direcionar seus
ataques exclusivamente aos cultos africanistas. Parece bastante oportunista, visto que conquanto a
influência dessas crenças sejam forte no país, os devotos dessas religiões não constituem grande
parcela da população. Em parte, certamente, isso se deve àquilo que estudiosos denominam como
“dupla pertença”. Devido ao sincretismo, fiéis católicos não têm problema algum em participar
tanto dos trabalhos no terreiro quanto das missas católicas. Não obstante, ainda hoje, grande parte
desses fiéis, quando perguntados acerca de sua pertença religiosa pelos institutos de pesquisa,
mencionam a religião proeminente no país, o catolicismo.
A demonização das religiões afro-brasileiras presentes no neopentecostalismo já existia
no início do movimento pentecostal, contudo não na intensidade que passaria a ter com o advento
de Igrejas como a IURD e similares, que entre suas posturas mais drásticas já chegou a convocar
fiéis a se empenharem em impedir rituais afro-brasileiros ou mesmo a tentar fechar terreiros
(SILVA, 2007, p. 195). Sobre os pentecostais, é importante dizer que, conquanto possuíssem um
espírito antiafro, diferente da IURD, não se valiam de seus elementos em seus cultos. Isto é, não
apresentavam esse perfil de sincretismo observado nas igrejas neopentecostais.
É raro algum trabalho que aborde o movimento neopentecostal e deixe de lado esse
aspecto dessas denominações, entretanto, alguns autores foram mais corajosos e, ao mesmo
tempo, bastante pertinentes em suas avaliações, sendo, então, oportuno mencionar alguns deles e
suas respectivas falas a fim de prosseguirmos no estudo. Ari Pedro Oro, dentre todos que
abordaram a relação entre neopentecostais versus cultos afro, talvez tenha sido o que usou a
expressão mais incisiva, ao se pronunciar chamando-a de religiofágica “quanto mais ela constrói
um discurso e procede a uma ritualística de oposição às religiões afro-brasileiras, paradoxalmente
mais delas se aproxima e se assemelha” (2005/2006, p. 320). No mesmo artigo, ousado também
em seu título, O Neopentecostalismo “macumbeiro”, prossegue dizendo:
Não dá pra afirmar que os líderes da IURD e outras igrejas neopentecostais esperem de
fato que em um determinado dia os cultos afro-brasileiros deixem de existir. Entretanto, o
exercício de pensar em como ela atuaria diante da mitigação exacerbada desses cultos é bastante
interessante, pois, como vimos, essas igrejas constroem suas identidades a partir de uma
contraproposta – em outras palavras, contrastando-se de outras expressões religiosas.
69
Então, assim como um guarda-chuva perde sua função em um lugar em que não chova,
igrejas como a IURD perderiam sua razão de existir sem a existência dos africanistas. Todavia,
não é prudente subestimar esses grupos e seus líderes, visto que não somente têm se expandido
para fora do Brasil como também, embora com maiores dificuldades, têm se mantido em regiões
nas quais não há forte presença de cultos afro. Parece que, acima de tudo, a IURD “necessita de
fato é dialogar com uma tradição sócio-religiosa na qual seja possível encontrar os sofrimentos e
os espíritos que possam se equivaler à figura do Diabo. De tal maneira que a pergunta ‘Qual é o
teu nome?’ e as demais da entrevista com os demônios possam encontrar nos novos contextos
suas respectivas respostas” (ALMEIDA, 2009, p. 126).
Para Gedeon Alencar, “Talvez o neopentecostalismo esteja criando o samba do teólogo
doido, pois, em tese, toda religiosidade sincrética é tolerante, menos ela. Ela é antiafro” (2005, p.
87). Essa feição do neopentecostalismo desafia o desenvolvimento de uma cultura de paz entre as
mais diversas expressões religiosas existentes no Brasil (não só aqui, mas aqui especialmente).
Num contexto de pluralidade cultural, as religiões representam muito mais do que opções acerca
de como se pode compreender o mundo e a existência, podendo também ser vistas como bens
imateriais de cunho étnico-cultural, isto é, parte das características de grupos de indivíduos que
remetem às suas origens e constituição sócio-cultural.
Tal consciência contribui para que se analise o tema da tolerância com maior cuidado. E
no que diz respeito à tradição afro-brasileira, esta já há muito representa uma cultura de
resistência, de um grupo de indivíduos que não apenas lutou a fim de manterem-se vivos como
também se esforçaram de todos os modos viáveis a fim de resguardarem suas crenças mais
íntimas. Assim sendo, devido ao confronto entre esses dois grupos, neopentecostais e cultos afro,
estamos diante de um litígio bem maior do que ele se apresenta. Um embate de suma importância
visto que as implicações podem culminar no vilipêndio de uma herança cultural profundamente
rica trazida da África e que se perpetuou, como pode, em terras tupiniquins.
Exemplo de como esse confronto extrapola o campo religioso e abrange outros aspectos
da vida 22, pode ser notado nessa fala de Edir Macedo:
baianas são filhas de santo ou mães de santo que “trabalham” a comida para
terem boa venda. Algumas pessoas chegam a vomitar as coisas que comeram,
mesmo que isso tenha sido há muito tempo (MACEDO, 1996, 48).
23
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/crime-preconceito-maes-filhos-de-santo-sao-expulsos-de-
favelas-por-traficantes-evangelicos-9868841> Acesso às 18h32min de 11 de set. de 2013.
71
Tais ocorrências não desqualificam apenas a religiosidade afro, pois seria impossível
realizar uma separação da religiosidade afro-brasileira e os aspectos étnicos transmitidos de pais
para filhos entre os povos negros que padeceram a escravidão em solo brasileiro. Além disso,
convém ressaltar, a apropriação 24, a desqualificação e os ataques em geral são dirigidos aos
cultos herdados de povos negros, escravizados e oprimidos durante séculos por uma sociedade
cristã, católica; e que durante boa parte da existência do Brasil enquanto Estado-Nação sofreu
toda sorte de restrições sociais e até mesmo jurídicas 25 que limitavam sua liberdade de expressar
sua fé. Para ser mais claro, parece menos problemático confrontar um grupo que ainda não
alcançou totalmente seu empoderamento social, que ainda milita por meio de grupos e
movimentos sociais a fim de conquistar respeitabilidade e visibilidade social e que se organiza
em prol da eliminação do racismo e preconceitos ainda existentes em nossa sociedade do que
bater de frente em relação à religião hegemônica no país – o catolicismo.
Nesse sentido, enquanto houver esse tipo de embate, a relação neopentecostalismo versus
religiões afro constituir-se-á em uma problemática a ser estudada e discutida não somente pelos
pesquisadores da religião e sociólogos, mas também por juristas, teólogos, psicólogos e
historiadores, dentre outros, a fim de contribuírem com análises e, se possível, propostas
concretas para o convívio pacificado entre esses dois grupos.
24
Gedeon Alencar (2005, p. 87), com sua verve afiada, denomina-a de “apropriação indébita”.
25
Ver texto de Hélio Silva Jr, Notas sobre o sistema Jurídico e Intolerância Religiosa no Brasil (SILVA,
2007, 303).
72
26
Nessa matéria de Alexandre Mansur e Luciana Vicária, para a Revista Época, pode-se encontrar relatos
e análises de como se dá o exorcismo na IURD em detalhes. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR57053-6014,00.html> Acesso às 18h32min de 11 de
set. de 2013.
27
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=72FTzhL0bwU&feature=youtube_gdata_player>
Acesso às 18h30min de 11 de set. de 2013.
28
O referido templo está situado na movimentada Avenida João Dias, 1800, em Santo Amaro/São Paulo.
29
Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=93208> Acesso às
18h39min em 11 de set. de 2013.
73
com sua mão fraturada em uma cruz fixada no altar. A senhora teria ficado impossibilitada de
retornar à sua atividade profissional como doceira por longo período de tempo 30.
Em um outro exorcismo realizado dentro dos estúdios da Rádio Aleluia, transmitido ao
vivo pela Rede Família e também disponível na internet 31, o bispo Clodomir Santos juntamente
com o bispo Edir Macedo realiza um demorado ritual de exorcismo, durante o qual – como
frequentemente acontece – o possesso fora interrogado. Durante o interrogatório, bispo Clodomir
pergunta ao demônio o que ele teria ganhado para conduzir o jovem ao “homossexualismo”.
Essas declarações renderiam a IURD mais um capítulo polêmico, a ABGLT (Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) pediu ao Ministério Público
de São Paulo que investigasse o caso 32. De acordo com a ABGLT, a homossexualidade não deve
ser tratada como uma doença. Visto que desde 1990 ela não consta mais da Classificação
Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde.
Esses são apenas alguns casos malfadados de sessões de exorcismo realizados na IURD.
Contudo, há que se reconhecer que todas as semanas um sem-número de igrejas pentecostais e
neopentecostais realizam essas mesmas práticas Brasil afora. Não sendo difícil encontrar
processos em sites de órgãos jurídicos movidos contra igrejas neopentecostais. A IURD, por
exemplo, consta tanto no polo passivo quanto ativo de ações de todos os tipos. Desde pedidos de
indenização danos morais 33 até questões trabalhistas referentes a ex-pastores e ex-obreiros 34.
É inegável que há uma exposição exagerada das pessoas que se dispõem a receber orações
e acabam possessas. É indiscutível também que essas pessoas não só acabam expostas pelo que
dizem quando estão em transe como também pelos gestos que são levadas a realizar quando do
ato de exorcismo. Com tudo isso, ainda pode-se dizer que, pelo êxito dessas igrejas em suas
atividades religiosas, no geral tais práticas estão longe de ser um problema para os fiéis. Aos
olhos de um cético ou alguém de uma igreja mais tradicional, toda essa demonstração não passa
30
Disponível em: < http://jornal.jurid.com.br/materias/noticias/igreja-universal-pagara-indenizacao-fiel-
lesionada-em-sessao-exorcismo> Acesso às 19h50min de 11 de set. de 2013.
31
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=PN6AXJxJnSs> Acesso às 19h10min de 11 de set.
de 2013.
32
Disponível em: <http://agencialgbt.com.br/bispos-da-igreja-universal-poderao-ser-presos-por-curar-
jovem-homossexual.html> Acesso às 19h15min de 11 de set. de 2013.
33
Disponível em: <
http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=93208> Acesso às
23h00min de 11 de setembro de 2013.
34
Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/diarios/30190286/pg-1691-tribunal-superior-do-
trabalho-tst-de-01-09-2011> Acesso às 00h00min de 12 de setembro de 2013
74
de um espetáculo catártico. “O povão não tem acesso à psicanálise. As pessoas procuram esses
cultos populares para aplacar seu inferno interior”, é a declaração do Pastor Luterano Mozart
Noronha; “É como se fosse um show em que os pastores exibem o diabo subjugado como se
fosse um animal na jaula”, diz o padre Cleodon de Lima ambos à Revista Época 35.
Conforme o antropólogo Marcelo Tadvald:
Para tanto, apesar das vozes dissonantes, a procura por essas igrejas certamente não se dá
sem que haja algum benefício – ainda que psíquico-emocional – para indivíduos que as procuram
sedentos por um contato com o sobrenatural, objetivando, claro, benefícios dos mais variados,
mas especialmente bênçãos materiais. Os rituais transmitem, de fato, certa tensão, exibem
pastores com tons vocais autoritários manietando homens e mulheres pelos seus cabelos. Porém,
a menos que um e o outro se manifeste em contrário, estão todos ali por livre e espontânea
vontade. De modo que, não se tem outra alternativa a não ser avaliar até que ponto o que é feito
viola a dignidade da pessoa humana, fere a liberdade de crença alheia ou implica de fato em uma
agressão física e moral passível de uma intervenção jurídica.
em que essas divergências têm sua origem. Exemplificou comentando que o historiador Josefo
tentou distinguir as divergências entre fariseus e saduceus apenas da perspectiva ideológica, mas
havia outros aspectos importantes, como o das classes sociais às quais cada grupo pertencia – os
fariseus, grupo que primava pela fidelidade racial; os saduceus, grupo de judeus aristocratas que
já havia abraçado o helenismo (1992, p. 17).
O neopentecostalismo não constitui uma denominação exclusivamente, tem sido
entendido como um movimento religioso, incluindo um número expressivo de denominações,
tendo como exponenciais a Igreja Universal do Reino de Deus e a Internacional da Graça,
seguidas de muitas outras. Ainda assim, a avaliação de Niebuhr não se torna inválida. Enquanto
movimento, o neopentecostalismo abriga debaixo de seu “guarda-chuva” igrejas com
características bastante específicas, cujo desenvolvimento de seus principais expoentes se deu em
um mesmo período histórico num contexto social específico ao qual responderam de acordo com
suas possibilidades.
Como afirma Paulo Romeiro, até a década de 1970, grande parte do pentecostalismo
brasileiro cultivava costumes comportamentais rigorosos, uma espiritualidade escapista que
enfatizava o retorno de Cristo e, por conseguinte, a severa separação das coisas “desse mundo”.
A Congregação Cristã no Brasil e as Assembleias de Deus constituem a matriz desse
pentecostalismo que iria nascer, desenvolver-se e desenrolar-se em muitas outras formas de
espiritualidade evangélica em solo brasileira (2005, p. 75). A título de informação, a
Congregação Cristã no Brasil até os dias de hoje sustenta usos e costumes rigorosos, como o uso
do véu pelas mulheres e a separação de homens e mulheres em alas específicas para a realização
dos cultos.
Já com o surgimento da Igreja de Nova Vida o paradigma começa a ser transformado. A
denominação fundada por Robert McAlister em pouco tempo de existência romperia com os
limites que ainda restringiam a difusão da mensagem pentecostal para os diferentes grupos e
classes sociais existentes, conquistando fieis oriundos da classe média. Contudo, para Edir
Macedo, Romildo Ribeiro Soares e seus companheiros de caminhada de fé, a visão ainda era
pequena. Suspeitavam que poderiam alcançar bem mais do que seu líder e pai na fé, o bispo
McAlister.
Egresso de família católica e com passagem pela Umbanda – e talvez por isso mesmo –
76
Edir Macedo tornar-se-ia um dos fundadores e líder da maior e mais controversa denominação
neopentecostal brasileira. Um líder que afirma, em consonância com os princípios reformados,
que o “justo viverá pela fé” (2011, p. 04), mas também, curiosamente, que “a revolta e ódio”
contra o mal são a chave para a vitória diante dos problemas dessa vida. (2011, p. 08).
Ora, é inegável que a IURD e as demais neopentecostais são herdeiras das igrejas
protestantes, ao menos se beneficiam da militância dessas denominações na sociedade brasileira.
Conforme Oriovaldo Pimentel Lopes Júnior:
(NIEBUHR , 1992, p. 18). Mas qual é mesmo a teologia da IURD? Qual a teologia do
movimento neopentecostal?
Sim, há uma teologia, uma estrutura de pensamento que orienta práticas e discursos. Não
obstante, é mutante, de acordo com as necessidades e conveniências na relação com a demanda e
diante da concorrência. Possui interditos e proibições, isto é, há dogmas a serem sustentados. O
neopentecostalismo, nesse sentido, constitui um fenômeno interessantíssimo que não pode
prescindir de atenção por parte daqueles que se empenham a estudá-lo.
E sobre suas transformações, parece de fato não existir uma fronteira cultural nítida ou
firme entre os grupos sociais, e sim, pelo contrário, um continuum cultural. Peter Burke comenta
que os linguistas há muito tempo vêm defendendo o mesmo ponto de vista a respeito de línguas
vizinhas como o holandês e o alemão, que na fronteira, é impossível dizer quando ou onde o
holandês termina e começa o alemão (2003, p. 14). Será que isso vale também para a análise de
grupos religiosos? Seria aplicável ao neopentecostalismo?
Não que igrejas como a IURD tenham se tornado outra coisa, porém talvez o que mais a
difira de outros grupos pentecostais e protestantes sejam as misturas sincréticas que optou por
fazer. De fato, como vimos, esse sincretismo não fez dela um híbrido de protestantismo e
Umbanda, porém, tornou-a bem mais palatável ao povo brasileiro justamente pela capacidade de
dialogar com os marcos simbólicos presentes nessa cultura. “(...) toda inovação é uma espécie de
adaptação e [que] encontros culturais encorajam a criatividade (BURKE, 2003, p. 17)”.
Inovadora e criativa, sincrética e agressiva em sua mensagem, adapta-se porém sem anular temas
e signos tradicionais da fé cristã protestante.
Jesus Cristo é o Senhor, anuncia cada templo da IURD mundo afora, Deus versus diabo
são uma constante, a ideia de salvação por meio de Jesus e a operação da fé pela ação do Espírito
Santo também estão presentes. Apesar das ênfases em prosperidade financeira e conquistas
materiais, os neopentecostais reproduzem, ainda que fragmentados, conceitos caros aos
evangélicos em geral. É claro que a mistura – o sincretismo aqui abordado – pode implicar e, por
78
certo nesse caso implica, em perdas daquilo que fora transmitido anteriormente. Daí as rupturas e
continuidades.
Assim sendo, ao passo em que se torna um grupo específico caracterizado por rupturas e
também por continuidades em relação à sua matriz, aliado ao sincretismo, não apenas permite ao
neopentecostalismo iurdiano manter-se vivo em um cenário religioso tão competitivo quanto o
brasileiro. Como também, e principalmente, torna-o uma alternativa atraente diante do
tradicionalismo protestante, árido no que diz respeito às manifestações sobrenaturais ansiadas por
muitos e, por outro lado, os cultos afro-brasileiros e mediúnicos em geral (incluindo, por assim
dizer, o espiritismo).
Com seu sincretismo de inversão, “o neopentecostalismo parece se posicionar numa
terceira via entre aquilo que combate e suas próprias origens” (SILVA, 2006, p. 2007). Ao
interrogar o Exu que se manifesta em uma fiel num culto de sexta-feira, o pastor não somente se
vale do repertório afro, mas também o reconhece como real, entretanto o desqualifica a fim de
apresentar sua superioridade diante desses cultos. Seu relacionamento não é complicado apenas
em relação aos cultos de matriz afro, entre os próprios evangélicos neopentecostais ocorre duros
embates.
Em um exorcismo realizado pelo bispo Edir Macedo, durante o costumeiro interrogatório
da entidade manifesta, o espírito chega a mencionar que começou a atuar na vida da pessoa
possuída desde que essa começou a frequentar a Igreja Mundial do Poder de Deus, liderada pelo
apóstolo Valdemiro Santiago, ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, cuja denominação
fundada tem alcançado significativo êxito no mercado da fé. Tal êxito pode explicar a razão do
exorcismo com menção explícita tanto ao nome de Santiago como também da Igreja Mundial.
Em um só ritual de exorcismo Macedo atinge mais de uma expressão religiosa. Em determinado
momento do interrogatório o líder neopentecostal diz ao demônio que imite o rival (Valdemiro) a
fim de ver se este era de fato “o dono da cabeça dele”. Note-se que o termo “fazer cabeça” é
oriundo do Camdomblé 36, e ao dizer que desejava dialogar com a entidade que era dona da
cabeça de Santiago, ao mesmo tempo combatia a denominação que lhe tem causado incômodos e
também, para variar, às expressões de fé afrodescendentes.
A relação da IURD com outras igrejas evangélicas não durou muito tempo. Quando
tentou fazer parte da Associação Evangélica Brasileira (AEVB), fora barrado pelo seu presidente
36
Diz respeito ao orixá pessoal, protetor da cabeça do indivíduo (CACCIATORE, 1977, 105).
79
Caio Fábio D’Araújo Filho, então pastor presbiteriano e que, inclusive, se opunha a denominar a
Igreja Universal do Reino de Deus enquanto denominação evangélica. Fora isso, a IURD chegou
a fazer parte do Conselho Nacional de Pastores do Brasil (CNPB), fundado pelo próprio Edir
Macedo, juntamente com outros líderes pentecostais (permaneceu parte do Conselho enquanto
fora útil aos interesses da IURD) 37.
A IURD, tendo se consolidado como uma das mais fortes estruturas religiosas no Brasil,
não presta contas a quem quer que seja, seus vínculos se dão conforme seja conveniente.
Atualmente, suas principais relações têm-se dado no âmbito da política e de empreendimentos da
Record. Ainda assim, com políticos advindos de seu próprio quadro religioso lhe confere certa
tranquilidade para atuar na política nacional.
Beneficiando-se dessa aparente independência, não necessitando reafirmar-se como
pertencente de nenhum grupo específico, e com o poder político-financeiro resultante do império
edificado (Igreja, Televisão, Rádio, etc.), a IURD pode transitar sem receio em arraiais tão
antagônicos quanto o dos evangélicos até os dos cultos mediúnicos. Muitas vezes desagradando a
ambos. Aos evangélicos, por não ser a expressão fiel daquilo que estes julgam ser o modelo de fé
evangélica herdada do protestantismo, aos cultos afro e espiritismo, pela forma com que faz
menção a esses em suas mensagens e prioritariamente nos rituais de exorcismo.
Para Vagner Gonçalves da Silva, antropólogo, a IURD constitui uma síntese entre o
pentecostalismo e a Umbanda. Em suas palavras:
A novidade que vem transformando esse cenário, desde que foi analisado há
trinta anos por estes atores, é o desenvolvimento do neopentecostalismo, que,
distanciando-se do pentecostalismo clássico e aproximando-se da umbanda e de
outras religiões afro-brasileiras, ainda que seja para negá-las, passou a traduzir
para seu próprio sistema o ethos da manipulação mágica e pessoal, mas agora
sob nova direção, colocando o “direito” no lugar do “favor”. A base sociológica
comum entre pentecostais e umbandistas, que propiciava a “dupla resposta à
aflição”, opostas e distintas, conforme apontada por Fly e Howe, muito
provavelmente possibilitou o surgimento desta “terceira resposta à aflição”, que
se apropria a seu modo das duas anteriores. Ou seja, o neopentecostalismo, ao
37
Informações disponíveis em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/9/21/brasil/45.html> Acesso às
12 de setembro de 2013.
80
Obaluaiê, cura das doenças; de Oxóssi, fartura à mesa. Para tanto, é preciso dar-
lhes comidas, bebidas, fazer os sacrifícios com os animais de sua predileção,
enfim, recebê-los no corpo de seus filhos e vesti-los com suas roupas e insígnias
para que dancem e tragam a esse mundo seu axé38 (SILVA, 2007, p. 213).
Na teologia de Macedo, o sacrifício com dízimos e ofertas possui lugar especial 39. Assim
como nos tradicionais cultos afro, que praticam tranquilamente a barganha ou negociação com as
entidades, também no neopentecostalismo iurdiano isso é comum. O fiel faz sua parte, doa,
oferta, sacrifica-se e, a partir daí, exige que Deus faça a parte dele.
Conforme Silva: “Quanto mais o iniciado gasta com o culto de seu orixá, maior será a
expressão do seu axé. Quanto maior for o “donativo” dado a Deus, maior será o empenho na
benção aguardada” (2007, p. 217). O autor ressalta, contudo, que o alto ônus financeiro do
candomblé se dá em razão de os itens requeridos pelos orixás possuírem preços que seguem a
lógica capitalista do mercado. Não sendo, dessa forma, o valor pago por esses itens no mercado
que alterará a relação de troca com o sagrado (como ele mesmo diz em seu texto, não adianta
oferecer dois galos ao seu orixá se ele “come” apenas um). Já no neopentecostalismo, tal relação
se dá de modo diferente, quanto mais o fiel doar, maior será sua benção, como se constituísse
uma espécie de investimento financeiro (2007, p. 218).
Silva ainda conclui que o hiato visível entre essas duas linhas religiosas é que a aceitação
de pessoas à “margem” da sociedade se dá por diferentes razões:
38
Força ou energia vital, presente em todas as coisas (animadas ou não), que pode ser manipulada com
vistas a manter o equilíbrio dos homens e do mundo ao seu redor.
39
Para Macedo o dízimo, por exemplo, não constitui mero símbolo ou ato de fé, mas representaria “o
próprio Primogênito, Jesus Cristo, (...) que [se] deu à humanidade, a fim de redimi-la para si” (2001, p.
65).
82
Para tanto, diante de tudo o que tem sido exposto, pode-se entender o neopentecostalismo
como uma síntese entre protestantismo, pentecostalismo e religiões afro-brasileiras (inclui-se
aqui, portanto, aspectos do próprio catolicismo e o kardecismo uma vez que estes estão presentes
em determinadas expressões dos cultos afro, como, por exemplo, a Umbanda.
Afora o investimento no marketing, tecnologias radiotelevisivas, como propagandas
massivas, o grande êxito do movimento neopentecostal talvez não se desse sem a impressionante
capacidade de dialogar com esses sistemas simbólicos religiosos ao mesmo tempo; sendo que
mantém símbolos e elementos de sua matriz pentecostal, e, por conseguinte, do próprio
protestantismo, inserindo em sua estrutura, forjada estrategicamente, elementos do universo
religioso simbólico das religiões de matriz afro-brasileiras. Por essa síntese, o neopentecostalismo
se mantém e potencializa sua capacidade de atrair fieis advindos dos mais diversos rincões do
campo religioso.
De modo estratégico, não explicita as rupturas que cria em relação aos sistemas do qual se
origina (ou seja, não se declara em qualquer momento como não-evangélica ou não-protestante).
Na verdade, tenta sustentar de modo tácito certa continuidade em relação a estes, quando na
verdade já promoveu diversas ressignificações de seus sistemas simbólicos.
Diante disso, percebe-se que acaba desagradando os grupos com os quais interage em um
relacionamento conflituoso. Assim, o neopentecostalismo tem sido chamado de “pentecostalismo
macumbeiro”, “pseudopentecostalismo”, “parapentecostalismo”, e por aí vai. Todos esses
“apelidos” tentam adequar/encontrar uma nomenclatura compatível com o que ele tem se
constituído na prática: uma impressionante e imprevisível síntese. Por essas características, pode
haver quem ouse dizer que a IURD e suas filhas neopentecostais não se constituem protestantes,
nem pentecostais, nem tampouco são parte da religiosidade afro-brasileira. Por outro lado, no
entanto, é difícil não reconhecer que, dentre os grupos surgidos entre os protestantes e
pentecostais, as igrejas neopentecostais são as que melhor interagem com o ethos brasileiro.
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como falar em conclusões em se tratando de uma pesquisa que aborda um grupo religioso
tão mutante como os neopentecostais? Em poucas décadas de existência já impactam o cenário
religioso brasileiro. Aliás, nisso esse grupo não apenas demonstra seu vínculo com o
pentecostalismo surgido no início do século passado, mas também demonstra que carrega em seu
DNA a mesma versatilidade que os pentecostais manifestaram em sua trajetória para se
consolidar no cenário religioso nacional.
Os pentecostais, desde o início de seus trabalhos em terras brasileiras, romperam barreiras
que os protestantes históricos não conseguiram romper em anos de trabalho. Abumanssur, em um
artigo no qual trabalha a conversão de comunidades tradicionais ao pentecostalismo, faz as
seguinte afirmação:
Esse perfil não se restringe ao encontro entre pentecostais e comunidades tradicionais, nas
grandes metrópoles o pentecostalismo também têm alcançado êxito em suas empreitadas. Há
quem sugira que o pentecostalismo constitua uma versão urbana daquilo que fora o catolicismo
popular rural (PASSOS, 2000). Entretanto, para averiguar seu êxito, Alencar (2010, p. 28)
assevera que se faz necessário uma analise “pluricausal” a fim de explicá-lo. Certamente, seu
crescimento e solidificação se dão por vários fatores. Assim como o êxito neopentecostal também
possui várias causas.
Não obstante, para nossa pesquisa convencionou-se enfocar o sincretismo evidenciado
pelas práticas e discursos neopentecostais e seus resultados na expansão do neopentecostalismo; e
também as consequências dessas práticas para o campo religioso mais amplo.
Como hipótese inicial, esperava-se encontrar vestígios de uma nova tradição religiosa
nesse movimento. Entretanto, percebeu-se logo cedo que tal conjectura não prosperaria. Não
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Creem na trindade, creem no Espírito Santo e possuem uma teologia da queda basicamente
harmonizada com a ortodoxia protestante.
Resumindo, compreendeu-se infrutífera a tentativa de avaliar seu pertencimento ou não ao
grupo dos evangélicos. Sendo muito mais auspicioso aproveitar desses deslocamentos a fim de
explorar a atratividade demonstrada por esse movimento diante de inúmeras outras ofertas
religiosas no cenário brasileiro. Desse modo, pareceu bastante oportuno revisitar o tema do
sincretismo.
Assim, considerou-se que em nenhum momento houve a intenção de contrastar os
neopentecostais com outro grupo qualquer a fim de sustentar uma suposta pureza desse ou
daquele. Entretanto, era importante levar em conta o modo como se constituía essa característica
entre os neopentecostais, revelando-a como uma estratégia, uma forma de agir pensada e
elaborada inteligentemente a fim de poder dialogar com os marcos simbólico-religiosos da
cultura popular religiosa brasileira.
Essa estratégia se mostra eficaz, pois parece plausível, uma vez que na sociedade
brasileira, mesmo quem não tenha sido adepto de cultos de matriz africana certamente já ouviu
expressões como “encosto”, “mal olhado”, “macumba”, “trabalho”, “descarrego” e “exu”, dentre
outras. A utilização desse repertório já sedimentado no imaginário popular – muitas vezes de
modo preconceituoso – permite à IURD e demais igrejas desse perfil manipularem a Bíblia e o
conteúdo evangélico tradicional conferindo-lhe uma roupagem mais palatável. Mais ainda: quiçá
tornem-nos mais relevantes diante das necessidades concretas da vida cotidiana dos fiéis.
Essa perceptível capacidade de transformação de suas práticas e discursos também é
justificável pelas características da contemporaneidade. Numa sociedade regida por valores
capitalistas, competitiva e utilitarista, carente de soluções imediatas, certamente prosperariam
instituições que buscassem atender a tais expectativas. Os evangélicos de hoje já não esperam tão
ansiosamente o celeste porvir (MENDONÇA, 1986), as bênçãos de cunho espiritual. Assim, os
líderes neopentecostais surgem nos canais de televisão e nas rádios oferecendo as bênçãos de
Deus para agora, para já.
Agilidade na prestação dos bens religiosos e versatilidade na transmissão de sua
mensagem, são importantes características de uma igreja prá lá de moderna, que não apenas
sobrevive em seu tempo, mas também se expande e torna-se poderosa, não sem dificuldades, não
sem obstáculos, problemas que, pela natureza de suas ações, seriam inevitáveis. Quanto a isso,
86
deve-se voltar a atenção para o modo como se relaciona com outras fés existentes na sociedade
da qual faz parte.
Daí a importância da análise do tipo de sincretismo elaborado pelos neopentecostais. Teria
alguma semelhança com o sincretismo de sobrevivência praticado pelos cultos afros, que deu
origem especialmente à Umbanda? Assemelha-se ao do Candomblé, que gerou a reunião de
divindades do panteão de diferentes tribos africanas (CACCIATORE, 1977, p. 78) em uma forma
específica de culto? Ou mesmo o sincretismo suportado pelo catolicismo brasileiro, tolerando
aqui e ali expressões populares que mesclam crenças africanas, espíritas e cristãs romanas? Por
enquanto, parece não haver alguma semelhança!
Ao contrário, o modo como a religiosidade popular vivencia o sincretismo é bastante
distante do que se pode ver no neopentecostalismo. Notem-se as palavras desse samba de autoria
do cantor Zeca Pagodinho 40:
O sincretismo não apenas é reconhecido, mas também, pelo que se pode notar, enaltecido.
Para o autor da canção intitulada Ogum, parece não haver distinção alguma entre Ogum e São
Jorge. Refletindo sua crença umbandista, as duas entidades, de crenças supostamente distantes,
fundem-se em uma apenas, ao ponto de soar arbitrário afirmar aqui que se tratam de duas
40
Disponível em: <http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/zeca-pagodinho/ogum-com-jorge-ben-
jor/2499861> Acesso às 14h20min de 01 de novembro de 2013.
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entidades, visto que na concepção do fiel ambas as figuras podem simplesmente representar
manifestações distintas da mesmo ser.
Entretanto, quando da realização de um exorcismo neopentecostal, por exemplo, no
púlpito de algum templo da Igreja Universal do Reino de Deus nalgum canto desse país, o exu só
permanece como tal nos primeiros momentos da sessão, transmutando-se, mais adiante, no
decorrer do interrogatório, no famigerado diabo-cristão. Daí o agravamento da crise entre
pentecostais e representantes dos cultos afro-brasileiros. Se antes o pentecostalismo já os
demonizava, o exorcismo neopentecostal protagonizado pela IURD e espalhado Brasil afora
praticamente incita a uma guerra religiosa.
A religião que fala de salvação também fala de confronto e batalha. Entretanto, esse
embate até então simbólico, protagonizado pela figura de Deus versus Diabo, expande-se para a
figura do Deus cristão evangélico que milita contra as forças malignas contidas nos cultos não-
cristãos, especialmente aqueles que historicamente apresentam mais fragilidade social,
constituído como minoria, os cultos afro-brasileiros e, em certo nível, algumas formas de
espiritismo. Tal enfrentamento deixou de restringir-se à dimensão simbólico-religiosa e
transbordou os limites templo-culto, concretizando-se na realidade cotidiana, conforme foi
mencionado no desenvolver desse texto, com o exemplo da favela carioca em que traficantes
convertidos ao pentecostalismo lideraram a expulsão de adeptos de cultos afro.
Se por um lado o sincretismo pode demonstrar a riqueza de uma crença, avolumada por
elementos de distintas tradições, nesse caso essa complexidade tem gerado a intolerância e
discriminação. Isto se torna ainda mais grave quando o alvo dessa discriminação é um grupo que
já padeceu e ainda luta para não padecer o preconceito social ligado à sua opção religiosa e
características culturais – isso porque, reiterando, em se tratando das crenças afro-brasileiras, não
apenas se está falando de uma forma de religiosidade, mas também de todo um conjunto de
tradições sócio-culturais.
Diante dessa realidade, eis aí uma lamentável lacuna deste trabalho, a priori não se
oferece aqui alguma solução para o problema em questão. Enquanto pesquisa acadêmica, esta
dissertação limitou-se a apresentar e explorar esses dados, sem contudo oferecer uma saída, isso
em parte pela complexidade da situação, em parte pelo receio de adentrar na esfera da militância.
Outra importante questão é a da exposição dos fieis no auge das sessões de exorcismo. Se
outrora os pentecostais mostravam-se bastante céleres e objetivos ao expulsar os demônios das
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