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Das primeiras ferramentas ao Olduvaiense: “salto” tecnológico ou processo


gradual?

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Bruno M. Magalhães
University of Coimbra
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Promontoria Monográfica 16

Actas das IV Jornadas de Jovens em


Investigação Arqueológica - JIA 2011
Vol. II
(Faro, 11 a 14 de Maio de 2011)

Editores Científicos:
João Cascalheira
Célia Gonçalves

Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia


Departamento de Artes e Humanidades
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
(Universidade do Algarve)
Universidade do Algarve
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
Departamento de Artes e Humanidades
Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia

Promontoria Monográfica 16

Editor:
Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia e
Departamento de Artes e Humanidades
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
Universidade do Algarve
Campus de Gambelas
8005-139 Faro
promontoria@ualg.pt

Coordenação Editorial:
Nuno Ferreira Bicho
António Faustino Carvalho

IMPRESSÃO:
Tipografia Tavirense, Lda.

TIRAGEM:
280 exemplares

ISBN: 978-989-97666-2-4

Depósito Legal: 342265/l2

APOIOS:
Das primeiras ferramentas ao Olduvaiense:
“salto” tecnológico ou processo gradual?

Bruno Miguel Silva Magalhães1


Ângela Cristina Teves Araújo
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra; Rua Arco da Traição, 3001-401, Coimbra
1bruno_magalha16@hotmail.com

RESUMO
As evidências (ainda que indirectas) mais antigas para o uso de instrumentos líticos recuam actualmente a 3.39 milhões de anos (Ma) em
Dikika (Etiópia), enquanto o seu fabrico retrocede a cerca de 2.6/2.5 Ma na região de Gona (Etiópia). Mas serão realmente estes os
registos das primeiras utilizações efectivas de instrumentos? Terá a indústria Olduvaiense (que envolve processos cognitivos
considerados complexos associados ao talhe de instrumentos) significado um “salto” tecnológico na Evolução Humana ou, por outro lado,
terá sido consequência de um processo evolutivo gradual que foi acontecendo ao longo de vários milhões de anos? A Arqueologia de
Primatas e o estudo de alguns dos actuais primatas não humanos, com especial incidência para o chimpanzé (Pan troglodytes), dá-nos a
conhecer o uso e manufactura de um conjunto de ferramentas cada vez mais alargado. Os bonobos (Pan paniscus), por outro lado, são a
única espécie que até hoje, em cativeiro, mostrou possuir as necessárias capacidades cognitivas para replicar o talhe de instrumentos
simples. Futuros trabalhos arqueológicos com ferramentas não líticas utilizadas por primatas não humanos são também necessários
como ferramentas cruciais para melhor contextualizar a evolução do uso e fabrico de instrumentos que raramente perduram no registo
arqueológico com milhões de anos.

PALAVRAS-CHAVE
Instrumentos; Primatas não humanos; Evolução humana; Olduvaiense

ABSTRACT
The oldest indirect evidence of the use of lithic tools goes back to 3.39 million years (Ma) in Dikika, while its manufacture currently dates
approximately 2.6/2.5 Ma in the region of Gona (Ethiopia). But are these really the original records of the first instruments? Have the
Oldowan industry (which involves complex cognitive processes associated with the manufacture of lithic tools) meant a technological leap
in Human Evolution or, on the other hand, was the result of a gradual evolutionary process that took place along several million years?
Primate Archaeology and the study of technological non-human primates, with special emphasis on chimpanzees (Pan troglodytes), allow
us to understand the use of very broad toolkits, providing us with an evolutionary context for human technology. On the other hand,
bonobos (Pan paniscus) are the only species so far being able to demonstrate having the necessary capacities to make lithic tools. Finally,
broader archaeological studies comprising the non-lithic tools used by nonhuman primates are also urging, to provide a deeper
evolutionary understanding of the use and manufacture of perishable/organic tools which seldom persist in the archaeological record with
millions of years.

KEYWORDS
Tool use; Nonhuman primates; Technological evolution; Oldowan

INTRODUÇÃO partir de novas perspectivas que, como veremos, nos


podem fornecer outro tipo de informação acrescida.
A indústria Olduvaiense (ou Modo 1) representa um Nesse sentido, recentes abordagens interdisciplinares
conjunto de bases e processos bastante complexos a têm-se revelado úteis na compreensão da existência de
nível cognitivo e tecnológico, mostrando, como sugerem um potencial “Pré-Olduvaiense” e no uso de instrumentos
vários investigadores (e.g. Braun et al. 2010), um anterior a 2.6 Ma ou a 3.39 Ma (McPherron et al. 2010;
aumento dramático da dependência dos hominíneos pela Semaw 2000). Procura-se essencialmente a sua relação
tecnologia lítica. São vários os estudos práticos e/ou com a tecnologia presente noutros primatas não humanos
teóricos realizados nas últimas décadas sobre as que utilizam instrumentos. Nesse sentido, tentaremos
primeiras indústrias líticas conhecidas. Se numa primeira perceber de que forma a evolução cognitiva e
fase eram estudados como indicadores culturais e comportamental associada à tecnologia utilizada em
representativos de tecnologias de subsistência (Davidson primatas não humanos nos poderá ajudar a compreender
e Nowell 2010), nos últimos anos têm sido abordados a e ultrapassar as limitações do estudo dessa mesma

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evolução em homínineos extintos e cujo registo deixam no registo arqueológico pistas directas relativas
arqueológico revela insuficiência de respostas. ao seu fabrico, utilização ou sequer existência?

AS PRIMEIRAS FERRAMENTAS CONHECIDAS: O PRIMATAS NÃO HUMANOS E O USO DE


OLDUVAIENSE E DIKIKA INSTRUMENTOS

O registo arqueológico mais antigo para o fabrico de Nos últimos anos têm surgido novas perspectivas que
instrumentos pelos nossos antepassados é atribuído à levam a abordar outro tipo de questões de uma forma
região de Gona (Etiópia) em depósitos datados de 2.6 a mais prática e, dentro deste quadro, a Evolução Humana
2.5 Ma (Semaw 2000). Embora não seja uma indústria desempenha um papel central. Os últimos dados
exclusiva de África, é neste continente que estão genéticos mostram que o Homo sapiens partilha um
estudados os seus registos mais antigos. Em 2010, os antepassado comum com os chimpanzés e bonobos entre
trabalhos realizados em Dikika (Etiópia) por McPherron et 7 e 4.2 Ma (Chen e Li 2001; Kumar et al. 2005). Com o
al., vieram trazer novos dados sobre o tema, ao recuar gorila (Gorilla gorilla) essa divergência terá ocorrido à
em cerca de 800 mil anos o uso de instrumentos líticos. 7/11 Ma e com o orangotango (Pongo pygmaeus) à 12/15
Os dados de Dikika foram recolhidos de forma indirecta e, Ma (Gagneux e Varki 2001; Panger et al. 2002). Mesmo o
apesar de não comprovarem a manufactura de utensílios, macaco capuchinho (Cebus spp.), cujo ancestral comum
parecem mostrar o uso de ferramentas para aceder a com o dos humanos modernos terá vivido há mais de
carcaças de animais (McPherron et al. 2010). No que diz 30/35 Ma (Panger et al. 2002), revela uma capacidade
respeito ao Olduvaiense, o talhe de lascas a partir de manipulativa bastante complexa. Desta forma, o estudo
núcleos, técnica que mais frequentemente lhe é do uso de instrumentos em espécies evolutivamente mais
associada, mostra já um admirável desenvolvimento próximas dos humanos modernos e com as quais
cognitivo na capacidade mental de antecipar a sequência partilhamos um ancestral comum (cujo resultado evolutivo
de gestos necessários para um aproveitamento ainda hoje habita o planeta), é essencial e urgente para
optimizado do bloco original. O aparecimento de sítios tentarmos compreender as falhas existentes no estudo da
com indústria lítica associada ao Olduvaiense reflecte evolução tecnológica dos primeiros hominíneos. Senão
assim um importante passo adaptativo na evolução vejamos.
humana. Dando como exemplo o sítio de Lokalalei Os macacos capuchinhos selvagens têm-se revelado
(Quénia), o talhe representa um sistema cujas bastante manipulativos, apesar do uso de ferramentas ser
remontagens permitiram perceber a remoção de uma conhecido em poucos grupos e, uma vez que divergiram
média de 18 lascas de um único núcleo, mantendo da nossa linhagem há cerca de 35 Ma, o seu uso estar
ângulos bastante precisos durante toda a operação associado a convergência tecnológica. Mas vários
(Delagnes e Roche 2005). trabalhos apresentados nos últimos anos revelam uma
No entanto, vários trabalhos realizados nos últimos elevada capacidade manipulativa que era quase
anos mostram que esta indústria lítica aponta para uma desconhecida até finais dos anos 90: utilizam martelos e
maior diversidade em detrimento da unidade tecnológica bigornas para partirem nozes (e.g. Ottoni 2009), pedras
que lhe vinha sendo apontada. Os trabalhos para escavarem e acederem a raízes, tubérculos e
desenvolvidos por Mora e de la Torre (2005), por insectos (Moura e Lee 2004) ou varetas de sondagem
exemplo, que reanalisaram os materiais líticos dos (Mannu e Ottoni 2009; Moura e Lee 2004). Modificam
trabalhos de referência de Mary Leakey dos anos 70, ainda determinados instrumentos, sequenciam e
realçam a importância do uso de instrumentos de associam o uso de duas ferramentas distintas (Mannu e
percussão para a produção de lascas a partir de um Ottoni 2009) e permitiram, pela primeira vez, a
núcleo em Olduvai Gorge. No entanto, aqueles observação em primatas não humanos selvagens do uso
investigadores concluíram uma certa especialização de “ferramentas secundárias” (Mannu e Ottoni 2009).
ligada a processos de percussão simples e nem sempre No entanto, e apesar do uso de instrumentos em
associados ao talhe de núcleos. O volume de material em contexto selvagem extensivamente documentado em
bruto ligado a tecnologias de percussão simples orangotangos (e.g. Krutzen et al. in press; van Schaik e
ultrapassa até, por vezes, o associado ao talhe de Fox 1996; van Schaik et al. 2003) e de alguns casos
núcleos (Mora e de la Torre 2005). A importância das anedóticos em gorilas (e.g. Wittiger e Sunderland-Groves
actividades e tecnologias de percussão durante o 2007), os chimpanzés são os utilizadores mais
aparecimento das primeiras indústrias líticas é ainda sofisticados entre os primatas não humanos, sendo
parcamente conhecido, embora deva ter desempenhado relativamente bem conhecida a manufactura e utilização
uma função bem mais importante do que se pensava até de uma grande variedade de ferramentas. Para além
agora. disso, o aumento dos trabalhos de campo indica a
Para além do uso dos primeiros instrumentos líticos, existência de uma variação cultural significativa, uma vez
de que forma poderemos introduzir na problemática da que alguns padrões de uso de instrumentos são únicos
emergência das primeiras tecnologias a questão dos em certas comunidades e outros são partilhados por duas
instrumentos usados e/ou fabricados em materiais ou mais, independentemente de variáveis genéticas ou
perecíveis ou orgânicos que (com raras excepções) não ecológicas (e.g. Lycett et al. 2010; Whiten et al. 1999).

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Das primeiras ferramentas ao Olduvaiense: “salto” tecnológico ou processo gradual?

Numa população de Goualougo, R.D. do Congo (Sanz importantíssimo ponto de encontro entre disciplinas como
e Morgan 2007), foram observados 22 variantes a Primatologia e a Arqueologia, uma vez que, muito para
diferentes de uso de ferramentas, todas fabricadas em além da primeira indústria lítica Olduvaiense, os cerca de
materiais perecíveis (folhas, cipós, galhos, varas e 2 a 4 Ma que estão entre o ancestral comum entre
ramos), sendo que estes chimpanzés estão entre os humanos modernos, chimpanzés e bonobos e o Modo 1
utilizadores de uma maior diversidade, associação e são um grande fosso tecnológico obscuro e
transformação de ferramentas de entre as comunidades desconhecido. Carvalho et al. (2009) sublinham que a
de chimpanzés estudadas. Para além da confirmação da evolução tecnológica dos primeiros homínineos
existência de vários comportamentos universais entre aconteceu provavelmente através de pequenos passos
comunidades de chimpanzés, foram confirmados outros, comportamentais e o uso de martelos e bigornas terá sido
como o uso de utensílios para perfurar ninhos de térmitas, crucial no aparecimento e desenvolvimento das primeiras
exploração de mel ou o uso de folhas para se protegerem indústrias líticas. No entanto, para além do útil mas pouco
da chuva (Sanz e Morgan 2007). Por outro lado, conclusivo exemplo de Dikika, não há ainda vestígios
permitiram também documentar três tipos diferentes de arqueológicos de instrumentos anteriores a 2.6 Ma.
uso sequencial de ferramentas, característica que Apesar disso, as capacidades de combinar elementos que
diferencia os chimpanzés (e, como vimos atrás, também exigem uma complexidade cognitiva complexa, de
os macacos capuchinhos) em relação a outros primatas antecipar tarefas ou de reconhecer a ferramenta certa
não humanos utilizadores de instrumentos e que é para a função certa, são elementos chave na investigação
também observada na indústria lítica do Olduvaiense das capacidades cognitivas e tecnológicas dos primeiros
(Barham e Mitchell 2008). Boesch et al. (2009) hominíneos (Carvalho et al. 2009) e que não parecem ter
observaram no Loango National Park (Gabão) o uso surgido do nada com o Modo 1. A melhor forma de
ainda mais complexo de instrumentos que em Goualougo, ultrapassar estas limitações será a de desenvolver um
associado à utilização regular de três a cinco estudo comparativo do desenvolvimento tecnológico com
instrumentos sequenciais para extracção de mel, as formas de uso e fabrico de instrumentos em primatas
inclusivamente com o uso de ambas as extremidades de não humanos vivos, os nossos parentes
um mesmo utensílio para duas funções diferentes na filogeneticamente mais próximos (Haslam et al. 2009). E
arriscada tarefa de recolha de mel. O planeamento deste os resultados estão à vista.
tipo de técnicas requer vários passos para a preparação Apesar de desconhecida a produção de lascas em
das ferramentas e organizados na ordem correcta. primatas não humanos em habitat natural, a utilização de
Por outro lado, apesar de em Goualougo estar martelos e bigornas em certos grupos de chimpanzés
ausente o uso de martelos e bigornas para quebra de provoca, por vezes, a quebra não intencional das suas
nozes, esta é uma actividade relativamente bem margens (Carvalho et al. in press; Carvalho et al. 2009;
documentada noutras comunidades de chimpanzés, Davidson e McGrew 2005). Em Bossou (Guiné Conacri),
nomeadamente na floresta de Taï (Costa do Marfim) ou através da aplicação do método arqueológico ao estudo
em Bossou e Diecké (Guiné Conacri), embora outras de um grupo de chimpanzés, foi mesmo identificado um
comunidades nas mesmas regiões não a tenham episódio em que existiu uma efectiva tentativa de
desenvolvido (Barham e Mitchell 2008; Carvalho et al. reutilização do produto de uma destas quebras não
2008). Este tema torna-se essencial quando associado intencionais (Carvalho et al. 2009). Este é um exemplo de
aos resultados da escavação arqueológica Acheulense de como o estudo da lógica do uso de utensílios em primatas
Gesher Benot Ya’aqov (Israel), onde Goren-Inbar et al. poderá ajudar-nos a perceber a evolução tecnológica dos
(2002) registaram a relação até agora única no registo primeiros hominíneos e as origens do Modo 1 (Carvalho
arqueológico humano entre várias espécies de nozes a et al. in press; Carvalho et al. 2009).
martelos e bigornas usados para a sua quebra (figura 5). Também a pioneira escavação arqueológica de três
Se por um lado a escavação israelita nos confirma o uso sítios de chimpanzés no Taï National Park (Costa do
recuado de martelos e bigornas, por outro, permite sugerir Marfim) com 4300 anos (Mercader et al. 2002, 2007)
a sua utilização em tempos ainda mais recuados. mostra a necessidade da continuação do estudo
Quanto aos bonobos, também bastante próximos dos associado entre Primatologia e Arqueologia. Foram
humanos modernos na árvore evolutiva, mostram em identificados materiais líticos que os investigadores
cativeiro um comportamento tecnológico complexo. Os pensam estar associados quer à produção de lascas por
trabalhos desenvolvidos no sentido de ensinar um bonobo humanos, quer a material de percussão associado à
a produzir lascas a partir da percussão de núcleos (Schik quebra de nozes por parte de chimpanzés (Mercader et
et al. 1999) mostraram que, embora a sua produção seja al. 2007). Todos estes resultados baseados na
em vários aspectos contrastante com os primeiros multidisciplinaridade e no uso de novas abordagens a
utensílios líticos conhecidos para hominíneos, existe uma questões bastante difíceis de responder são bastante
complexidade cognitiva bastante elaborada. prometedores.
Outro estudo que recentemente também aplicou o
método arqueológico à Primatologia em Bossou e Diecké
A ARQUEOLOGIA DE PRIMATAS (Guiné Conacri), debruçou-se sobre a existência de uma
cadeia operatória e de estratégias de exploração de
O estudo dos instrumentos utilizados por primatas não recursos na quebra de nozes em chimpanzés (Carvalho
humanos tem fomentado, nos últimos anos, um et al. 2008). Alguns dos resultados apontam para a

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selecção da matéria-prima como uma das características O estudo dos macacos capuchinhos é talvez aquele
para a escolha dos utensílios, assim como as dimensões que mais urge alargar. Os vários comportamentos
dos martelos e bigornas escolhidos para a quebra de instrumentais que lhe foram observados nos últimos anos
nozes mostram uma selecção morfológica para uma permitem-nos, de certa forma, comparar a sua
função específica. Os resultados revelaram ainda uma importância à dos chimpanzés. As primeiras observações
sequência operacional baseada não só na escolha da do uso de “ferramentas secundárias” em primatas não
matéria-prima, mas também no transporte e respectiva humanos mostram-nos também o quanto ainda é mal
utilização dos instrumentos (Carvalho et al. 2008). conhecido o comportamento tecnológico e cognitivo
Embora a cadeia operatória identificada em chimpanzés destes macacos do Novo Mundo. A aplicação do método
seja diferente da reconhecida no Modo 1 (Carvalho et al. arqueológico aos macacos capuchinhos será bastante
in press), a investigação levará necessariamente a importante, até porque a relação entre o tamanho e peso
potenciais respostas relacionadas com a sua evolução e do seu cérebro e corpo, o grande desenvolvimento
que até agora eram difíceis (senão mesmo impossíveis) neocortical e a sua grande mobilidade e robustez
de responder. ultrapassam em alguns aspectos os chimpanzés
(Cleveland et al. 2004) e assemelham-se ao
Australopithecus afarensis (Westergaard e Kuhn 2001).
O USO DE INSTRUMENTOS E OS NOVOS RUMOS DE Os últimos anos têm sido pródigos em novas
INVESTIGAÇÃO descobertas, pequenos avanços e novas perspectivas
que nos levam a uma constante adaptação a novas
A acumulação de instrumentos em locais específicos, problemáticas, a novas interrogações, mas também a
as actividades alimentares e de cooperação com outros novas soluções. Estes novos conhecimentos levam-nos a
indivíduos, o aprovisionamento e transporte de matérias- pensar o quanto ainda estamos no início e o pouco que
primas e utensílios, o uso de certos instrumentos ainda conhecemos sobre a utilização das primeiras
perecíveis ou sua transmissão cultural (Toth e Schick ferramentas e os comportamentos associados ao seu
2009) são exemplos de como áreas como a Arqueologia uso.
de Primatas são cada vez mais importantes pelas novas
perspectivas que colocam. A confirmação da existência
de toda uma cadeia operatória no fabrico de instrumentos AGRADECIMENTOS
em chimpanzés, assim como o uso e/ou transformação de
instrumentos orgânicos ou líticos, vieram mostrar-nos que Gostaríamos de agradecer a Susana Carvalho a
também a Arqueologia terá que ir muito para lá da visão oportunidade que nos deu para apresentarmos este
antropocêntrica que lhe está tão entranhada. trabalho.
O fabrico de lascas e o seu uso como instrumentos é
apontado como a maior diferença entre os fabricantes dos
primeiros instrumentos e os seus ancestrais (Davidson e BIBLIOGRAFIA
Nowell 2010). O que muitas vezes os investigadores
parecem esquecer é que, talvez tão importante quanto BARHAM, L e P. MITCHELL
isso, é o facto de os primatas não humanos actuais 2008. The first african. African archaeology from the earliest tool
simplesmente não precisarem de fabricar esse tipo de makers to most recent foragers. Cambridge: Cambridge
University Press.
instrumentos no seu quotidiano, mostrando que a
necessidade como base para o salto evolutivo no fabrico BOESCH, C., J. HEAD e M.M. ROBBINS
de instrumentos poderá ter desempenhado um papel 2009. Complex tool sets for honey extraction among
central, uma vez que, tal como fazem notar Haslam et al. chimpanzees in Loango National Park, Gabon. Journal of
(2009), a dentição dos primatas é suficiente para boa Human Evolution 56: 560-569.
parte das tarefas do seu dia-a-dia.
Se por um lado existem estudos que comprovam que BRAUN, D.R., C.J. NORTON e W.K. HARRIS
os bonobos, quando ensinados, conseguem fabricar 2010. Africa and Asia: comparisons of the earliest archaeological
lascas, por outro, a organização cognitiva das técnicas evidence, in C.J. Norton e D.R. Braun (ed.) Asian
Paleoanthropology. From Africa to China and beyond. Vertebrate
associadas ao uso sequencial de instrumentos em
Paleobiology and Paleoanthropology Series: 41-48. Dordrecht:
chimpanzés no seu habitat natural levam-nos a questionar Springer.
se a sua complexidade não se encontrará já bastante
mais desenvolvida do que aquilo que se pensa. O uso de CARVALHO, S., D. BIRO, W.C. MCGREW e T. MATSUZAWA
cinco instrumentos sequenciais para extracção de mel no 2009. Tool-composite reuse in wild chimpanzees (Pan
Loango National Park, com incidência quer no número de troglodytes): archaeologically invisible steps in the technological
instrumentos, quer nos seus diferentes tipos e usos, é um evolution of early hominins? Animal Cognition 12 (Suppl 1):
excelente exemplo de toda uma sequência organizacional S103-S114.
a nível cognitivo bastante complexa. A confirmação da
CARVALHO, S., E. CUNHA, C. SOUSA e T. MATSUZAWA
existência de uma cadeia operatória em chimpanzés
2008. Chaînes opératoires and resource-exploitation strategies
(Carvalho et al. 2008), embora seja uma investigação com in chimpanzee (Pan troglodytes) nut cracking. Journal of Human
várias questões ainda em aberto (Carvalho et al. in Evolution 55: 148-163.
press), vem dar mais força a esta linha de pensamento.

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Das primeiras ferramentas ao Olduvaiense: “salto” tecnológico ou processo gradual?

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