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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

BEATRIZ LUEDEMANN CAMPOS

“AVANTE, COMPANHEIRAS!”:
AS LUTAS SINDICAIS DAS OPERÁRIAS DO RIO DE JANEIRO NA UNIÃO DAS
COSTUREIRAS A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE ELVIRA BONI (1919-1922)

GUARULHOS
2021
BEATRIZ LUEDEMANN CAMPOS

“AVANTE, COMPANHEIRAS!”:
AS LUTAS SINDICAIS DAS OPERÁRIAS DO RIO DE JANEIRO NA UNIÃO DAS
COSTUREIRAS A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE ELVIRA BONI (1919-1922)

Trabalho de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título
de Bacharel em História
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: História e historiografia
Orientador: Edilene Teresinha Toledo

GUARULHOS
2021
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico
para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

Luedemann Campos, Beatriz.

“Avante, companheiras!”: as lutas sindicais das operárias do Rio de Janeiro


na União das Costureiras a partir da trajetória de Elvira Boni (1919-1922)/
Beatriz Luedemann Campos. – 2021. – 1 f.

Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em História). – Guarulhos :


Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas.

Orientador: Edilene Teresinha Toledo.

Título em [inglês]: [“Onwards, companions!”].

1. História Social do Trabalho. 2. Movimento operário na Primeira


República. 3. História das mulheres. 4. Elvira Boni. I. Edilene Teresinha Toledo.
II. “Avante, companheiras!”.
BEATRIZ LUEDEMANN CAMPOS
“AVANTE, COMPANHEIRAS!”:
as lutas sindicais das operárias do Rio de Janeiro na União das Costureiras a partir da
trajetória de Elvira Boni (1919-1922)

Trabalho de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título
de Bacharel em História
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: História e historiografia

Aprovação: 03/03/2021

Profa. Dra. Orientadora Edilene Teresinha Toledo


Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. Luigi Biondi


Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Glaucia Cristina Candian Fraccaro


Universidade Federal de Santa Catarina
Para Fátima, em memória.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à toda minha família, minha mãe Cecília, meu pai Fernando, minha irmã Laura,
minhas avós Cecília e Tereza, todas as minhas amigas e amigos: especialmente Natália, Manu,
Violeta e Leandro, e meu namorado Derek, que me acompanharam com carinho nesta trajetória.
Agradeço especialmente à Zeni, Consuelo e Eneida, pela gentileza e disponibilidade de
conversar sobre a Elvira, foi uma alegria conhecê-las.
Agradeço a todos os professores da Unifesp pela minha formação, e especialmente à
Edilene, pela incrível orientação e incentivo, e Glaucia e Luigi, por aceitarem gentilmente fazer
parte da banca e pelas grandes contribuições.
“Se hoje somos, é porque antes outras já foram.”
Carolina O.1

1 O., Carolina, RESSUREIÇÃO, 1923. Apud: MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil:
(1900-1930): entre esquecimentos e resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII.
DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil (1918-2018).
RESUMO

Este trabalho se aprofunda na construção da associação de resistência feminina União das


Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas (1919-1922), do Rio de Janeiro, e na trajetória de
Elvira Boni, uma de suas principais integrantes, e contribuir para a historiografia das lutas das
mulheres operárias. O principal objetivo é apresentar as narrativas e perspectivas das mulheres
operárias, assim como a sua capacidade organizativa. A partir da análise de fontes da grande
imprensa e da imprensa operária, da História Oral através de entrevistas com Elvira e sua
família, e do gênero biográfico, é possível afirmar que as costureiras da Primeira República se
constituíram como sujeitos políticos, e se organizaram em torno de ideias e práticas como o
sindicalismo revolucionário, o anarquismo e o comunismo. As lutas das mulheres da União das
Costureiras se deram por meio de uma greve vitoriosa pela conquista de melhorias das
condições de trabalho, da participação em reuniões, assembleias e do Terceiro Congresso
Operário Brasileiro, organização de aulas noturnas, da solidariedade mútua com outros
sindicatos, e outras táticas de luta, que visavam a emancipação feminina e da classe
trabalhadora.
Palavras-chave: História Social do Trabalho. Movimento operário na Primeira República.
História das mulheres. Elvira Boni.

ABSTRACT

This work goes deeper into the construction of the women’s resistance association União
das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas (1919-1922), in Rio de Janeiro, and the trajectory
of Elvira Boni, one of its main members, and contributes to the historiography of the struggles
of women workers. The main objective is to present the narratives and perspectives of women
workers, as well as their organizational capacity. From the analysis of mainstream and working
press sources, Oral History through interviews with Elvira and her family and the biographical
genre, it is possible to affirm that the seamstress of the First Republic were constituted as
political subjects, and were organized around ideas and practices such as revolutionary
unionism, anarchism and communism. The struggles of women at União das Costureiras took
place through a victorious strike for the improvement of working conditions, participation in
the meetings, assemblies and Terceiro Congresso Operário Brasileiro, organization of evening
classes, mutual solidarity with other unions, and other fighting tatics, aimed at the emancipation
of women and working class.
Keywords: Social History of Work. Workers movement in First Republic. History of women.
Elvira Boni.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Agulhas, dedaes e outras cousas mais... O Malho, s.d., 1910. p. 14.
Figura 2 – Vencerão, devem vencer!... A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas
as classes. A Razão, 18/06/1919. p. 32.
Figura 3 – A agitação operária. Continua o movimento grevista. A Época, 18/06/1919. p. 35.
Figura 4 – As costureiras agitam-se e querem reivindicações. O dia de hontem nos ateliérs de
costuras. Gazeta de Noticias, 18/06/1919. p. 37.
Figura 5 – As costureiras em gréve. As primeiras victorias do movimento. A Razão,
18/06/1919. p. 41.
Figura 6 – O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo
Bonfim. A Rua, 26/06/1919. p. 51.
Figura 7 – 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, 01/05/1920. p. 64.
Figura 8 - Elvira Boni na mesa diretora do 3º Congresso Operário Brasileiro, 1920
(Rodrigues, s.d.). HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão! Memória operária,
cultura e literatura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2002, p. 266. p. 65.

LISTA DE SIGLAS

BOC – Bloco Operário e Camponês


CGT – Confédération Générale du Travail
COB – Confederação Operária Brasileira
FBPF – Federação Brasileira pelo Progresso Feminino
FORJ – Federação Operária do Rio de Janeiro
IWW – Industrial Workers of the World
PCB – Partido Comunista do Brasil
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10
2 CAPÍTULO I - 1919: A FUNDAÇÃO DO SINDICATO E A GREVE DAS
COSTUREIRAS 21
3 CAPÍTULO II - 1920: AS COSTUREIRAS, O JORNAL VOZ DO POVO E O
TERCEIRO CONGRESSO OPERÁRIO 59
4 CAPÍTULO III - 1921 E 1922: A EDUCAÇÃO OPERÁRIA FEMININA, A
REORGANIZAÇÃO E A DISSOLUÇÃO DA UNIÃO 88
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 104
REFERÊNCIAS 106
ANEXO – TRANSCRIÇÃO: ENTREVISTA SOBRE ELVIRA BONI 114
10

1 INTRODUÇÃO

A História do movimento operário brasileiro durante a Primeira República é marcada


pela auto-organização dos trabalhadores. Para o historiador Cláudio Batalha, a definição de
“operário”, a partir deles próprios, incluía não apenas os trabalhadores fabris em sua definição
clássica, mas todos os trabalhadores manuais urbanos. No Brasil, coexistiam todas as etapas da
Revolução Industrial: o sistema da fábrica, o sistema de produção por peça e a produção
doméstica. O mundo do trabalho era complexo e heterogêneo, bem como as formas de
organização dos trabalhadores.2
Diante de péssimas condições de vida e extenuantes jornadas de trabalho, os operários,
em seu pouco tempo livre, se agrupavam em torno de ideais políticos, grupos étnicos, religiosos
e artísticos, criavam os seus próprios mundos, organizavam reuniões, assembleias,
manifestações, festas e festivais. A partir da segunda metade do século XIX, eles se
organizaram em sociedades de socorro mútuo, além das irmandades religiosas, e
posteriormente, em círculos políticos, ligas, clubes dançantes e esportivos, grupos de teatro e
sindicatos de resistência – este último, sobretudo a partir da Constituição de 1890, visto que a
de 1824 proibia a organização sindical. 3
Os operários e operárias constituíram-se como sujeitos políticos, realizaram greves e
agitações para a conquista de seus direitos, tentativas de união de toda a classe, e pensaram em
diversos projetos de emancipação.4 As revoltas populares da Primeira República não se
restringiram apenas aos trabalhadores urbanos. Para além da agitação operária, no Rio de
Janeiro, em 1910 ocorreu a Revolta da Chibata, protagonizada pelos marinheiros,5 e a Revolta
da Vacina, em 1914, contra a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola e as políticas
higienistas da cidade.6 Visto que 80% da população era camponesa, foram expressivas as

2 BATALHA, Claudio Henrique Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
3 Idem.

4 Idem.

5 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de

Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.


6 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro

da Primeira República. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.


11

revoltas no campo, como as de Juazeiro, Contestado e a guerra de Canudos, que tiveram a


religião como elemento aglutinador e reivindicavam melhorias das condições de vida.7
Segundo Claudio Batalha, a imagem mais recorrente do movimento operário brasileiro
é a do operário italiano anarquista. Todavia, as pesquisas historiográficas das últimas décadas
têm destacado a presença dos trabalhadores negros, das mulheres e dos imigrantes de outras
origens nos mundos do trabalho. Inclusive, entre os próprios italianos, havia diversas culturas,
idiomas e identidades. Deste modo, o movimento operário não foi, de forma alguma,
homogêneo: havia a pluralidade de correntes políticas, sujeitos e formas de organização.8 O
anarquismo como corrente principal foi questionado pela historiadora Edilene Toledo, que
aponta a centralidade do sindicalismo revolucionário nas associações de resistência, 9 e Luigi
Biondi aponta a importância dos socialistas nas diversas sociedades operárias. 10
O historiador Álvaro Pereira do Nascimento critica a ausência dos trabalhadores negros
na historiografia do movimento operário da Primeira República, bem como a falta de diálogo
entre historiadores deste tema com pesquisadores da escravidão e do pós-abolição, pois foram
estes últimos que identificaram os sujeitos negros nas fábricas, greves, sindicatos, estradas de
ferro, e na formação da classe operária brasileira. Nascimento discorre sobre a importância do
componente da cor nos trabalhadores pesquisados e a falta de rigor dos historiadores para incluir
a diversidade de experiências – visto que, por exemplo, alguns historiadores nem sequer citam
que Minervino de Oliveira, operário marmorista que foi candidato à presidência da República
pelo Bloco Operário e Camponês (BOC) e pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1930,
era negro.11
Os artigos de Emilia Viotti da Costa e Icaro Bittencourt, neste sentido, tratam dos novos
rumos da historiografia do movimento operário, fazendo um balanço do que já foi produzi do
com as perspectivas de pesquisa. Viotti questiona esta historiografia tradicional que aponta

7 HERMANN, Jacqueline. Religião e política no alvorecer da República: os movimentos de Juazeiro, Canudos e


Contestado. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O tempo do liberalismo
excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp.
121-160.
8 BATALHA, 2000.

9 TOLEDO, Edilene Teresinha. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes na Primeira

República. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.


10 BIONDI, Luigi. Classe e nação: trabalhadores socialistas italianos em São Paulo, 1890-1920. Campinas: Editora

da Unicamp, 2011.
11 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à História

Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 59, vol. 29, p. 607 -626, set./dez. de 2016.
12

como responsáveis pela radicalidade do movimento operário apenas os imigrantes anarquistas


que eram perseguidos na Europa, e afirma que o papel dos brasileiros na luta operária tem sido
subestimado, especialmente dos negros e das mulheres, que eram classificados como vítimas
passivas.12 Bittencourt sugere estudos das relações entre o movimento emancipatório dos
trabalhadores escravizados com as lutas posteriores pela melhoria da condição de vida dos
operários. 13
Na década de 1980, Elisabeth Lobo deu mais profundidade à especificidade das
mulheres trabalhadoras no livro A classe operária tem dois sexos.14 Outra grande contribuição
para compreender a História das mulheres no mundo do trabalho foi Margareth Rago, com suas
pesquisas sobre a prostituição, 15 o modelo de mulher imposto pelo discurso médico e jurídico
da sociedade burguesa, e a resistência das mulheres anarquistas. 16 Dentre outros tantos estudos
que se desenvolveram, mais recentemente, a historiadora Glaucia Fraccaro contribuiu para os
estudos de gênero e as disputas no campo do feminismo e da conquista de direitos para as
mulheres a partir da perspectiva das trabalhadoras.17
Neste trabalho, analiso a história de uma operária costureira anarquista e sindicalista
revolucionária, Elvira Boni (1899-1990). Elvira nasceu no contexto de início da agitação
operária, em 1899, na cidade de Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo. Mesmo em
uma cidade pequena, ainda em construção, foi lá que os seus pais, Angelo Boni e Ter silla
Aciratti, imigrantes italianos da região de Cremona, tiveram o primeiro contato com ideias
socialistas. Angelo era operário metalúrgico, e foi integrante do Círculo Socialista Dante
Alighieri.18 De acordo a filha de Elvira, Zeni Pamplona, os seus pais já vieram da Itália

12 COSTA, Emilia Viotti da. A nova face do movimento operário na Primeira República. Conferência realizada no
Dep. História – FFLCH-USP, maio, 1982.
13 BITTENCOURT, Icaro. O operariado no Brasil da Primeira República: alguns apontamentos teórico-

metodológicos e historiográficos. Revistas Sociais e Humanas, Santa Maria, n. 1, vol. 20, jan./jun. 2007.
14 LOBO, Elisabeth Souza. A classe operária tem dois sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991.

15 RAGO, Luzia Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo

(1890-1930). Tese de doutoramento apresentado à IFCH da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


Campinas, 1990.
16 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930). Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985.


17
FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937).
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2018.
18 LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES, Angela de Castro. Velhos

Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.


13

anarquistas.19 Angelo e Tersilla chegaram no porto de Santos em 1895, com três filhos: Stefano,
Amilcare,20 e Luigi,21 que faleceu com 15 meses.22
A partir de 1903, com a expansão da economia, formou-se um terreno fértil para a
proliferação de movimentos reivindicativos dos trabalhadores.23 As mulheres, já integradas no
mundo do trabalho das fábricas, nunca estiveram ausentes destes movimentos, no Brasil e no
mundo.24 Um exemplo marcante é a história da anarquista e sindicalista revolucionária Lucy
Parsons, descendente de negros e indígenas dos Estados Unidos, que nasceu escravizada e
participou ativamente da luta por direitos trabalhistas em Chicago no fim do século XIX e início
do XX.25
É possível citar como exemplo nas agitações brasileiras, fugindo do eixo Rio-São Paulo,
que é privilegiado nas pesquisas, a greve das cigarreiras da fábrica de cigarros Laffayete em
1903, em Recife, Pernambuco, causada por demissões de mulheres operárias. 26 Há também
estudos sobre as greves femininas no sul do país, em Pelotas e Rio Grande.27
As costureiras do Rio de Janeiro, junto aos alfaiates, na primeira década do século XX,
se organizaram na Sociedade Dançante Carnavalesca União das Costureiras (Figura 1). Esta
associação, que existiu entre os anos de 1906 a 1910, promovia assembleias, bailes e
participações no Carnaval e na Festa da Penha, grandes festas populares que ocorriam no Rio
de Janeiro, representativos da cultura negra. Para o historiador Eric Brasil, nesta Sociedade
Dançante havia “(...) uma maior mistura entre os sexos, (...) Presença marcante de mulheres
negras parece ter sido a marca dos bailes da União das Costureiras.” 28

19 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.


20 Osnomes “Stefano” e “Amilcare”, em italiano, podem variar no decorrer do texto, pois foram adaptados para o
português, como “Estevam” e “Amílcar”.
21 Fonte: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/memoria_do_imigrante/pesquisa_livros_hospedaria.

22 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

23 BATALHA, 2000.

24 FRACCARO, 2018. SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia

soviética. São Paulo: Boitempo, 2017.


25 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

26 SOUZA, Felipe Azevedo e. As cigarreiras revoltosas e o movimento operário: história da primeira greve

feminina do Recife e as representações das mulheres operárias na imprensa. Cadernos pagu, n. 55, 2019 .
27 SILVA, Maria Amélia Gonçalves. Rompendo o silêncio: mulheres operárias em Pelotas e Rio Grande (1890-

1920). Dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1998.
28 BRASIL, Eric. Carnavais atlânticos: cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio de Janeiro e Por-of-Spain,

Trinidad (1838-1920). Niterói, 2016. Tese de doutoramento apresentado ao Programa de Pós-Graduação em


História da Universidade Federal Fluminense, p. 96.
14

Figura 1 – “Sociedade Dançante Carnavalesca União das Costureiras: grupo tirado na noite de um animado baile.
Como se vê, ha tambem grande numero de costureiros, provavelmente alfaiates ou outros campeões da agulha...”
Fonte: O Malho, s. d., 1910.

A associação foi reprimida pelo Estado, através da ação policial, neste período em que o
samba, a “vadiagem” e a capoeira eram criminalizados pelo Código Civil de 1890, 29 sendo
alegado pela imprensa a “devassidão”, e estas mulheres foram classificadas como
“pecadoras”.30 João da Silva Cruz Freitas, homem negro da União dos Operários Estivadores,
que buscava melhorias de condições de vida para a classe trabalhadora, como assistência para
mulheres grávidas, foi presidente da S. D. C. União das Costureiras. 31
Em São Paulo, as mulheres, proeminentes principalmente na indústria têxtil, ao decorrer
da Primeira República, participaram de greves, se organizaram em sindicatos e reivindicaram

29 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
30 BRASIL, 2016.

31 Idem.
15

direitos a partir de suas especificidades, mesmo diante de muitas dificuldades.32 Em 1907, a


Liga das Costureiras participou do movimento grevista operário paulista, e a secretária desta
associação era a operária socialista Annita Pennazzi, de apenas 15 anos, que veremos mais
adiante.33
Outra militante socialista notável foi a imigrante italiana Ernestina Lesina, cuja biografia
foi traçada pela historiadora Caroline Gonçalves, lutou por melhores condições de vida e
trabalho para as mulheres. Ernestina fundou um sindicato de costureiras de sacos e dirigia a
revista Anima e Vita, o que era incomum, visto que mesmo a imprensa operária era controlada
por trabalhadores do sexo masculino, e poucas mulheres eram sindicalizadas.34
As mulheres anarquistas e libertárias lutaram contra as relações de poder presentes em
todos os espaços, incluindo as de gênero, desde a fábrica ao lar. 35 A historiadora Samanta
Colhado Mendes traz as mulheres anarquistas brasileiras para o palco da História , que
construíam caminhos próprios para a emancipação feminina. 36
Elvira Boni mudou-se com a sua família para o Rio de Janeiro em 1907, quando tinha 8
anos. Aos 12, integrou-se simultaneamente ao mundo do trabalho e à vida política, quando
começou a trabalhar como aprendiz de costureira em uma oficina e entrou no Grupo Dramático
1º de Maio da Liga Anticlerical, onde também recitava poesias. 37 Seus irmãos mais velhos,
Amílcar e Estevam Boni, eram ferreiros anarquistas, e fundaram o sindicato União Geral dos
Metalúrgicos no Rio de Janeiro.38 Suas irmãs trabalhavam também como costureiras,
bordadeiras e chapeleiras, sendo o nome de uma delas Ernestina, que sua mãe deu em
homenagem à militante socialista, que ela chegou a conhecer.39
Foram realizados na Primeira República três congressos operários organizados pela
Confederação Operária Brasileira (COB), que mesmo sem uma dimensão nacional real, teve
grande importância para os esforços e tentativas de união e solidariedade da classe trabalhadora

32 FRACCARO, 2018.
33 BIONDI, 2011.
34 GONÇALVES, Caroline. Alma e Vida: os deslocamentos de Ernestina Lesina, o cotidiano e a luta das mulheres

operárias. 2011.
35 Idem.

36 MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil (1900-1930): entre esquecimentos e

resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII. DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil
(1918-2018).
37 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

38 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

39 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


16

no Brasil, a partir dos princípios do sindicalismo revolucionário. 40 A partir de 1913, quando


foi realizado o Segundo Congresso Operário Brasileiro, em uma das tentativas de construção
de uma unidade do proletariado nacional, houve um forte estímulo à expansão dos sindicatos
de resistência.41
O ano de 1917, “o ano vermelho”, foi marcado pela efervescência política dos
trabalhadores e a eclosão de greves em todas as partes do mundo, devido à crise no pós-guerra
e pelo advento da Revolução Russa. Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, “A insurreição
bolchevique, na Rússia, constituía-se como vetor para as novas lutas do proletariado
brasileiro.”42 No Brasil, Batalha caracteriza o período de 1917 e 1919 como o ápice das
agitações operárias.43
Em São Paulo, ocorreu uma grande greve geral em 1917, com ampla participação das
mulheres trabalhadoras do Cotoníficio Crespi, da fábrica Mariângela, da Fábrica de Fósforos
Pauliceia e que estavam presentes ativamente nas ligas operárias de bairros. 44 Com o fim da
greve, foi estruturada a nova Federação Operária do Estado de São Paulo, e a presença feminina
se refletia nas pautas específicas das mulheres presentes em suas reivindicações como a
igualdade de salários para ambos os sexos, a licença-maternidade e a proibição do trabalho
noturno.45
A onda de greves foi resultado de um processo de mobilização de trabalhadores de
diversas categorias, tanto em São Paulo, quanto no Rio, onde não houve greve geral, porém,
greves com pautas diversas que geraram união entre quase todas as categorias. Em 1918, no
Rio de Janeiro, os anarquistas organizaram uma insurreição inspirada nos acontecimentos da
Rússia, “a Bernarda”, e de acordo com Batalha, a falta de informações precisas causou a
impressão de que a Revolução bolchevique tinha sido uma revolução anarquista. No mesmo
ano, ocorreram greves localizadas, porém a pandemia de gripe espanhola afetou profundamente

40 TOLEDO, Edilene. “Para a união do proletariado brasileiro”: a Confederação Operária Brasileira, o sindicalismo
e a defesa da autonomia dos trabalhadores no Brasil da Primeira República. Cad ernos Perseu, n. 10, Ano 7, 2013.
41 BATALHA, 2000.

42 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:

Expressão Popular, 2004, p. 205.


43 BATALHA, 2000.

44 BIONDI, Luigi. TOLEDO, Edilene. Uma revolta urbana: a greve geral de 1917 em São Paulo. São Paulo:

Fundação Perseu Abramo, 2018.


45 FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Mulheres, sindicato e organização política nas greves de 1917 em São

Paulo. Rev. Bras. Hist. [online], n. 76, vol. 37, p. 73-90, 2009.
17

o movimento operário, que retomou com força suas atividades em 1919, com o enfrentamento
direto das organizações do patronato.46
O presente trabalho pretende se aprofundar na constituição da União das Costureiras,
Chapeleiras e Classes Anexas (1919-1921), fundada neste contexto, um sindicato de resistência
feminino que reunia mulheres de ofícios similares no ramo da costura: elas trabalhavam em
oficinas, ateliês, fábricas ou em domicílio. O fio condutor da pesquisa é um recorte da biografia
de Elvira Boni, uma de suas integrantes, que circulou entre diferentes correntes políticas, como
o anarquismo, o sindicalismo revolucionário e o comunismo. Para Toledo, que inseriu a
trajetória do operário militante Giulio Sorelli em sua pesquisa, “Voltar a atenção para a história
de vida de um indivíduo pode revelar mais sobre a complexidade das experiências do
movimento operário, graças à análise da relação entre o particular e o contexto histórico.”47
De acordo com as reflexões do historiador Benito Schmidt, os historiadores da Escola dos
Annales questionaram o modelo de biografias de “grandes homens”, um recurso historiográfico
comum na História Política, e deram lugar às grandes interpretações sociais e econômicas. Em
contrapartida, a partir de meados da década de 1980, o gênero biográfico retornou com força
na historiografia, junto com as questões e problemas em torno dele. Schmidt argumenta que as
novas biografias históricas foram transformadas e não são as mesmas que as anteriores ao
século XIX, e que a análise da trajetória de um indivíduo pode ser benéfica à historiografia, por
muitas questões, como a representatividade e a compreensão de um período histórico. As novas
biografias devem estar aliadas a uma história-problema, e devem articular-se com os limites e
possibilidades de ação deste indivíduo, bem como até que ponto ele é produto ou agente da
sociedade em que se insere.48
Uma das grandes críticas é o elitismo presente nas biografias de “grandes homens”, que
normalmente faziam parte de elites políticas, econômicas e militares. Porém, muitas biografias
de “homens comuns” estão sendo produzidas, como Schmidt aponta, no Brasil, as biografias de
indivíduos das classes populares, como trabalhadores escravizados e livres, militantes,
camponeses, a partir de novas fontes.49 Um dos intuitos desta pesquisa é se inserir nesta corrente
de transformação da História das biografias. É importante apontar também que este trabalho

46 BATALHA, 2000.
47 TOLEDO, 2004, p. 17.
48 SCHMIDT, Benito Bisso. Biografias e regimes de historicidade. MÉTIS: história & cultura, n. 3, v. 2, p. 57-72,

jan./jun. 2003.
49 Idem.
18

foca nas experiências de Elvira, mas inserida no coletivo de mulheres que construíram a União
das Costureiras.
O primeiro capítulo da monografia trata da fundação da União em maio de 1919, e, um
mês depois, da greve organizada pelas costureiras. As principais fontes utilizadas foram as da
grande imprensa, nas quais os acontecimentos da greve foram diariamente noticiados. O
período grevista foi marcado pelos conflitos de classe entre os patrões e patroas e as operárias.
O segundo capítulo engloba os acontecimentos do ano de 1920. O Terceiro Congresso
Operário Brasileiro contou com a presença de duas delegadas da União das Costureiras: Elvira
Boni e Noemia Lopes. O principal jornal utilizado como fonte foi a Voz do Povo, periódico da
Federação de Trabalhadores do Rio de Janeiro, de orientação sindicalista revolucionária, que,
como parte da imprensa operária, publicava os manifestos e convites para reuniões da União e
adentrava de forma mais ampla no cotidiano de trabalho das mulheres.
O terceiro capítulo reúne os eventos dos anos de 1921 e 1922, com o recrudescimento
da repressão, as alternativas de luta das operárias e a importância da educação ope rária
feminina, que as levou a organizar aulas noturnas na sede do sindicato. Este capítulo discute,
finalmente, os fatores que contribuíram para a dissolução da União. Os jornais da grande
imprensa também foram fontes importantes para a investigação sobre o sindicato neste capítulo.
As pesquisas no campo da História por meio da imprensa têm sido consideradas apenas
a partir da década de 1970. Até então o conteúdo de jornais e periódicos foram julgados como
não imparciais o suficiente para que sejam incorporados à historiografia, que valorizava
documentos históricos com veracidade comprovada e com certa neutralidade. Neste período, é
constituída a Nova História pela terceira geração dos Annales e um dos principais expoentes é
Jacques Le Goff, uma História que demanda novos temas e fragmentos, já afastada de uma
“história total” ou “global”. Paralelamente, a New Left Review transforma a historiografia
marxista ao abandonar a ortodoxia econômica e partir para a história dos “de baixo”, como os
historiadores ingleses Edward Palmer Thompson, Eric Hobsbawm e Raymond Williams, com
foco nos estudos culturais, trouxe novos personagens e temas jamais investigados, com o uso
de novas fontes.50
De fato, a imprensa é carregada de discursos ideológicos, de influências de grupos
econômicos e do Estado, porém Ana Maria de Almeida Camargo foi pioneira a defender o uso

50LUCA, Tânia Regina de. A História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINKSY, Carla Bassanezi. Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2015.
19

dos jornais como fontes para os historiadores, com os filtros necessários. A História do
movimento operário teve os jornais e periódicos como fontes privilegiadas em seu ápice
acadêmico – entre as décadas de 1970 e 1990. O Arquivo Edgar Leuenroth, instituição de
guarda da imprensa operária, teve e tem imenso valor para as pesquisas neste campo.51
A abordagem e metodologia apresentadas por Tânia Regina de Luca abrangem a
materialidade dos jornais impressos, a divisão interna do conteúdo, a localização nas
publicações de história da imprensa e a análise da iconografia. Apreender o grupo social ou os
indivíduos que produzem o jornal, os redatores, os colaboradores e os contextos de circulação
é essencial.52
Para a compreensão dos jornais utilizados, entre os anos 1919 e 1922, utilizamos como
referência Nelson Werneck Sodré, que considera a história da imprensa como a própria história
do desenvolvimento da sociedade capitalista, demarcando neste período da Primeira República,
a passagem da imprensa artesanal para a empresa jornalística. Por outro lado, Sodré demarca a
origem de classe dos periódicos, definindo a imprensa burguesa como grande imprensa, e a
imprensa alternativa como imprensa proletária. Para o tratamento da imprensa carioca, Sodré
indica os principais periódicos da disputa política da Primeira República, as reações referentes
às lutas dos trabalhadores, bem como a constituição da imprensa proletária deste período, no
processo de organização da classe trabalhadora.53
Além dos periódicos, utilizamos como fonte os depoimentos de Elvira Boni em
entrevista à historiadora Angela de Castro Gomes em 1983, que se insere em um livro composto
por quatro entrevistas com operários militantes do início do século XX, produzidas com o
objetivo de resgatar suas memórias. Também foram incorporados os depoimentos de Zeni,
Consuelo e Eneida Pamplona, filha e netas de Elvira, em uma entrevista que realizamos em
novembro de 2020. Portanto, a História Oral faz parte da metodologia de pesquisa.
Alessandro Portelli reflete sobre os usos e abordagens da História Oral. Ao apresentar
memórias e entrevistas com militantes comunistas italianos, já idosos, que participaram da
resistência contra o fascismo, o autor percebe que parte das informações relatadas por ele estão
“erradas”, ou fazem parte de sua imaginação. Para Portelli, não é o intuito de distorcer os fatos,
mas colocar as experiências de uma forma que eles gostariam que tivesse acontecido. As

51 Idem.
52 Idem.
53 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977.
20

narrativas são construídas a partir de fatores sociais e coletivos, e as memórias devem se inserir
no contexto histórico da realização da entrevista. 54
A História Oral é um recurso primordial para resgatar histórias das mulheres da classe
trabalhadora na Primeira República, que tiveram pouco ou nenhum acesso à educação formal
ou à cultura letrada para deixar registros escritos de suas próprias narrativas, que poderiam ser
usados como fontes históricas.55
Para melhor compreender as diferentes correntes políticas de pensamento das
costureiras da União, nos três capítulos há menções sobre associações paralelas das quais
algumas delas faziam parte, como a Liga Comunista Feminina e o Centro Feminino de Estudos
Sociais.
Um dos principais objetivos deste trabalho é demonstrar que as mulheres operárias se
constituíram como sujeitos políticos e conseguiram se auto-organizar em um sindicato de
resistência, debatendo com as visões da historiografia que enquadravam as mulheres como
“fura-greves” e sem consciência política.56
De acordo com Emilia Viotti da Costa, os estudos de caso são mais valiosos quando
permitem compreender as relações entre as experiências das mulheres trabalhadoras e as
estruturas econômicas, políticas e sociais do período estudado.57 Portanto, esta pesquisa
pretende estabelecer uma relação entre a particularidade da vida de Elvira Boni e da União das
Costureiras com o contexto da Primeira República e da organização das trabalhadoras nos
níveis nacional e internacional.

54 PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos: memórias e possíveis mundos de trabalhadores. Proj. História, São
Paulo, n. 10, dez. 1993.
55 MENDES, 2018.

56 FRACCARO, 2018.

57 COSTA, Emilia Viotti da. Estruturas Versus Experiência. Novas tendências na História do movimento operário

e das classes trabalhadoras na América Latina: o que se perde e o que se ganha. BIB, Rio de Janeiro, n. 29, p. 3 -
16, 1º sem. 1990.
21

2 CAPÍTULO I – 1919: A FUNDAÇÃO DO SINDICATO E A GREVE DAS


COSTUREIRAS

No dia 1º de Maio de 1919, dezenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras saíram


às ruas em manifestação no Rio de Janeiro, na Praça Mauá, seguindo pela Avenida Rio Branco
até o Palácio Monroe. O grau de mobilização era tanto que sucedeu uma onda de greves até
junho no Distrito Federal.58 Neste contexto, após duas semanas do ato, as costureiras do Rio
fundaram o seu sindicato de resistência. Foi realizada uma grande assembleia composta por
cerca de 200 operárias costureiras de diversos gêneros de confecções de roupas, na sede da
União dos Alfaiates,59 no dia 18 de maio. Foi unânime a decisão da fundação da União das
Costureiras e Classes Anexas.60
No jornal A Razão, foi publicado o discurso proferido neste dia pela costureira Elisa
Gonçalves de Oliveira, ao lado de Elvira Boni e Carmen Ribeiro. 61 Também participaram da
fundação as companheiras Isabel Pelereiro, Noemia Lopes e Aida Morais. Segundo Elvira, o
grupo de trabalhadoras “(...) conhecia-se mais ou menos. Algumas trabalhavam juntas, algumas
eu conhecia por intermédio de outras. Umas foram convidando as outras.”62
As palavras de Elisa Gonçalves homenagearam os “mártires” de Chicago, oito
anarquistas presos nesta cidade industrial dos Estados Unidos, dentre eles quatro condenados à
forca por lutarem pela jornada de oito horas de trabalho. Este episódio deu origem ao 1º de
Maio, o dia do trabalhador, oficializado pela Segunda Internacional, de grande importância para
o movimento operário mundial.63 Além da homenagem, ela clamou pela “onda trabalhadora”

58 BATALHA, Claudio Henrique Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
59 Elvira Boni afirma que as costureiras tiveram bastante ajuda dos companheiros de profissão, os alfaiates, para a

construção de seu sindicato. LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES,
Angela de Castro. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. Era comum a solidariedade
entre alfaiates e costureiras, visto que em São Paulo, em 1919, fo i fundada a União das Costureiras e Alfaiates,
que depois optaram por se organizar somente na União das Costureiras, em 1923. FRACCARO, Glaucia Cristina
Candian. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil. (1917-1937). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2018.
60 As costureiras organisam-se – Uma grande assembléa na União dos Alfaiates – Foi creada a sua associação de

classe. A Razão, Rio de Janeiro, 19 mai. 1919, p. 4.


61 Ibidem.

62 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 33-34.

63 BATALHA, 2000.
22

que, com sua coragem, vingaria o sangue derramado pelos “irmãos” assassinados. 64 O rumo do
discurso de Elisa chegou a um importante questionamento do sexismo, que integrava a
ideologia dominante e caracterizava a mulher como um cidadão de segunda categoria:
Se os homens, colligados, enérgicos e bem unidos podem conquistar as
melhorias pelas quaes, conscientemente se batem, porque motivo nós, as
mulheres, que também trabalhamos sem tréguas, nem descanso, dez, onze e
doze horas diárias, sofrendo as arrogâncias dos patrões, por que nós, também,
companheiras, firmes e unidas não podemos vencer a nossa causa?
Nós que somos tratadas de “sexo fraco” e que dizem, dever ter comnosco um
modo de tratar mais delicado e mais suave, porque razão nos impingem mais
horas de trabalho, sem ter quasi o tempo precioso para uma ligeira refeição?
O “sexo fraco”, por conseguinte, sujeito a essas irregularidades, a essa
escravidão, não acaba, talvez, demonstrando que é mais forte que o “sexo
forte”? 65

Já neste primeiro discurso, Elisa Gonçalves rompia com o modelo de mulher construído
pela sociedade burguesa, a “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família”: características deste
modelo eram impostas, como se a mulher fosse natural e biologicamente frágil, casta, vigilante
e voltada ao lar.66 Sobre a ideologia da domesticidade, a filósofa Angela Davis contribui para
compreender que este modelo nunca foi uma realidade para mulheres escravizadas e da classe
trabalhadora, que sempre tiveram que trabalhar arduamente fora de casa para lutar por sua
sobrevivência,67 tal como questionavam as costureiras.
Elisa clamou por uma união entre as mulheres costureiras, chapeleiras, bordadeiras, como
todas do ramo da confecção de roupas, e ainda para que as operárias presentes fizessem
propaganda da União com suas colegas de trabalho para a aderirem ao sindicato. Clamou
também por uma união de todo o proletariado, chamando a atenção para as agitações no Rio de
Janeiro e no Brasil neste período, com os alfaiates,68 sapateiros, para que caminhassem juntos
com solidariedade de classe.69

64 As costureiras organisam-se. Uma grande assembléa na União dos Alfaiates. Foi creada a sua associação de
classe. A Razão, Rio de Janeiro, 19 mai. 1919, p. 4.
65 Ibidem.

66 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil ( 1890-1930). Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985.


67 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

68 De acordo com Elvira, os alfaiates sustentaram uma greve em 1919 por 54 dias. LACERDA, 1983. Apud:

GOMES, 1988.
69 As costureiras organisam-se. Uma grande assembléa na União dos Alfaiates. Foi creada a sua associação de

classe. A Razão, Rio de Janeiro, 19 mai. 1919, p. 4.


23

De acordo com a redação do jornal A Razão, ela foi muito aplaudida. Também discursou
um membro do Partido Comunista, cujo nome não foi revelado. Na mesma reunião, ficou
decidido o cargo de tesoureira para Elvira Boni, enquanto Carmen Ribeiro e Elisa Gonçalves
ficaram como secretárias. Aderiram ao sindicato operárias de 39 casas e ateliês de moda, cujas
proprietárias eram as “Madames”, em sua maioria francesas, e outras de fábricas maiores como
a “Casa Colombo” e a “Moda Elegante”. 70 Segundo Elvira, “Naquele tempo tudo era francês:
os materiais, os figurinos, as próprias madames. Já havia revistas brasileiras, mas a moda era
mesmo francesa.”.71
As “madames”, mulheres da classe burguesa, geralmente eram imigrantes, que
empregavam costureiras e vendedoras.72 Dentre suas preocupações, destacavam-se o
casamento, o lar, a estética e a moda,73 com um código de vestimenta que definia sua posição
social.74 Elvira classifica como “madames” tanto as proprietárias dos estabelecimentos quanto
as clientes das lojas, que consumiam as roupas de luxo que as costureiras dos ateliês produziam.
Estas senhoras ricas costumavam passear pelas ruas do centro do Rio, tomar café no Colombo
olhar as vitrines e visitar as lojas de roupas, que muitas vezes ficavam em sobrados onde
funcionavam também as oficinas e eram as residências das proprietárias, em diferentes
andares.75
A costura em domicílio era uma prática comum das mulheres no século XIX, e foi um
trabalho que se transformou durante este período, com o fenômeno da industrialização e o
aparecimento das oficinas e ateliês de costura. Referente a este período, Joana Monteleone
insere o ofício de costureira no trabalho de criadas: 76
No Rio de Janeiro, em 1870, “71% das mulheres ativas eram criadas, o que
significava 34 mil mulheres trabalhando como mucamas, pajens, amas-de-
leite, cozinheiras, copeiras, arrumadeiras, carregadoras de água, lavadeiras,
passadeiras e costureiras. Brancas e negras, livres ou escravas, elas
trabalhavam juntas, exercendo atividades semelhantes.” Muitas eram
escravas, outras, mesmo livres, trabalhavam por casa e comida (CARVALHO,
2008, p. 248). 77

70 Ibidem.
71 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 29.
72 MONTELEONE, Joana de Moraes. Costureiras, mucamas, lavadeiras e vendedoras: o trabalho feminino no

século XIX e o cuidado com as roupas (Rio de Janeiro, 1850-1920). Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n.
1, vol. 27, 2019.
73 RAGO, 1985.

74 MONTELEONE, 2019.

75 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

76 MONTELEONE, 2019.

77 Idem, p. 2.
24

A partir da década de 1870, o uso das máquinas de costura começou a ser mais comum
no Rio, substituindo as agulhas. As modistas dos ateliês costumavam possuir mão de obra
feminina e escravizada. Depois da Abolição, o trabalho de costureira passou a ser passível de
recebimento de salários. A contratação de mulheres nestes estabelecimentos de costura era
justificada pela sua suposta “vocação natural” do cuidado com as roupas, como uma extensão
do trabalho doméstico.78
O primeiro manifesto da União das Costureiras foi publicado nos jornais A Noite,79 no
dia 23 de maio, e O Imparcial,80 no dia 24. O conteúdo era pequeno e resumido, porém com
importantes informações: o manifesto apresentou as pautas mais imediatas da categoria, como
a diminuição da jornada de trabalho e o aumento dos salários. Elas se posicionavam claramente
contra a “exploração capitalista”, e faziam convites para outros camaradas discursarem, o que
evidencia a presença de operárias anarquistas, socialistas e comunistas na União. 81 E este fato,
unido às reivindicações imediatas, revelam o caráter sindicalista revolucionário da União das
Costureiras.
O sindicalismo de ação direta, revolucionário, de acordo com a historiadora Edilene
Toledo, foi a principal corrente política do movimento operário brasileiro, baseado na luta de
classes e na união do proletariado, que privilegiava as pautas por melhorias imediatas nas
condições de trabalho e projetava para o futuro um novo modelo de sociedade. O sindicalismo
revolucionário abraçava operários de diversas correntes políticas, e teve inspiração na
Confédération Générale du Travail (CGT) francesa, e foi um fenômeno transnacional,
expressivo em diversas organizações como a Industrial Workers of the World (IWW), nos
Estados Unidos, e a COB, no Brasil.82
As justificativas para as pautas das costureiras foram colocadas no manifesto. Elas
atrelavam as longas jornadas de trabalho a questões de saúde: “Trabalhar menos é defender -se

78 Idem.
79 Fundado em 1911, por Irineu Marinho, no calor da luta política, junto aos oposicionistas liberais do governo
Hermes da Fonseca. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições do
Graal, 1977.
80 Fundado em 1912, sob direção de José Eduardo de Macedo Soares, preso pelo governo Hermes por incitar

rebeliões populares. SODRÉ, 1977.


81 O manifesto da União das Costureiras. A Noite, Rio de Janeiro, 23 mai. 1919. Agitação operaria, p. 4; Um

manifesto dos operarios. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. A agitação operaria, p. 3.
82 TOLEDO, Edilene Teresinha. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes na Primeira

República. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.


25

das agressões da moléstia – da tuberculose traiçoeira, que tantas vidas ceifa diariamente”. Para
além da necessidade do descanso, trabalhar menos lhes daria mais tempo para elas se dedicarem
ao estudo e ao lazer, além das outras tantas tarefas cotidianas. 83 A questão do aumento de
salários era muito importante principalmente pela carestia dos bens de necessidade primária,
como a alimentação.
No mesmo dia, 24 de maio, A Razão, na seção O Movimento Operário à Noite, publicou
este mesmo manifesto da União das Costureiras, na sua versão completa. É muito provável que
os outros dois jornais tenham censurado parte do texto. Esta versão ampliada do manifesto
incluía as especificidades em relação à crítica da ideologia sexista, presente no discurso da
sociedade burguesa e da Igreja, que justificava e legitimava a exploração da mulher
trabalhadora:84
Já se foram os tempos que os poetas consideravam a mulher – “Um formoso
ser para chorar nascido” e as religiões comquanto tivessem na mulher o seu
maior sustentáculo eram unanimes em deprecia-la, chamando-a “a origem do
peccado”, ser sem alma, cheio de maldades mil, hypocrita, mentirosa e
mysterio indecifrável (...)85

A historiadora Margareth Rago analisa o novo padrão de feminilidade burguês imposto


para as mulheres, que eram respaldados pelas teses de medicina do período. Foram construídos
dois tipos de mulher calcadas em imagens bíblicas: Maria, purificada e assexuada, que
representa o modelo de mulher na família vitoriana, em contraposição a Eva, pecadora, sensual,
degenerada, a “perdição do homem” 86 – e é esta segunda imagem que as costureiras estavam
desconstruindo em seu discurso.
Elas acentuavam que a mulher operária era explorada no trabalho como o homem
operário, porém “(...) a mulher entre nós é victima não só da mais vil extorsão como do
desrespeito dos potentados que não trepidam em seduzir, deshonestar e polluir as pobres moças

83 O manifesto da União das Costureiras. A Noite, Rio de Janeiro, 23 mai. 1919. Agitação operaria, p. 4; Um
manifesto dos operarios. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. A agitação operaria, p. 3.
84 RAGO, 1985.

85 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.

5.
86 RAGO, 1985.
26

operárias (...)”.87 Esta citação se refere aos abusos sexuais e morais que as mulheres sofriam no
ambiente de trabalho, uma especificidade da opressão de gênero.88
Rago questiona o discurso operário masculino, que por vezes tratou a mulher como o
“sexo frágil”, ao reproduzir valores burgueses, e tratava as mulheres trabalhadoras com uma
“atitude paternalista”: eles deveriam protege-las dos “dom juans” das fábricas, dos patrões que
as assediavam.89 Entretanto, como exemplo, Maria Antônia Soares, trabalhadora anarquista da
Liga Operária do Belenzinho, em São Paulo, afirmava que a igualdade salarial, a liberdade, a
legislação, o voto e a independência econômica não emancipariam de fato a mulher, tanto
quanto o respeito o faria.90
As costureiras chamaram a atenção para o fato de que as mulheres possuíam as mesmas
capacidades que os homens,91 trabalhavam pelo mesmo número de horas, mas não tinham os
mesmos direitos e os salários eram mais baixos, e que isto era uma grande injustiça que deveria
ser combatida.92 Em relação aos salários, de acordo com o Recenseamento de 1920, no setor de
confecções de roupas, as mulheres operárias recebiam o salário médio diário de 3$652,
enquanto os homens recebiam 6$712, uma diferença de 84%.93 Elas clamavam pela união de
toda classe trabalhadora para que ambos, homem e mulher, lutassem, lado a lado, contra a
miséria a que estavam submetidos. 94
No dia 25 de maio, ocorreu uma reunião promovida pela União das Costureiras, que foi
dirigida pela operária Maria de Lourdes Nogueira, ao lado de Elvira Boni, Elisa Gonçalves e
Margarida de Brito.95 O discurso de Maria de Lourdes foi completamente voltado à situação
difícil da mulher da classe trabalhadora, durante o período integral de suas vidas:

87 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.
5.
88 Para compreender o abuso sexual como arma de dominação, ver Angela Yvonne Davis, que compreende também
o estupro como terrorismo colonial, racista e de classe, amplamente usada contra as mulheres negras escravizadas
nos Estados Unidos e as vietnamitas pelo Exército norte-americano. DAVIS, 2016.
89 RAGO, 1985.

90 FRACCARO, 2018.

91 As mulheres anarquistas desmistificavam esta ideologia que legitimavam a sua condição de oprimida, afirmando

a capacidade de pensamento, questionamento e enfrentamento das mulheres. RAGO, 1985.


92 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.

5.
93 FRACCARO, 2018.

94 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.

5.
95 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 26 mai. 1919. Movimento operario: Reuniões, p. 6.
27

Cada uma de nós sabe quão difficil é a posição da mulher que tem por si
apenas o seu esforço. As longas horas de trabalho mal remunerado, o preço
elevado dos artigos indispensaveis á existencia, dentro de pouco tempo, fazem
de uma mulher robusta e cheia de vida, um ente magro, envelhecido, acabado..
E depois de uma existencia cheia de trabalhos, cheia de lutas, cheia de
dissabores, que velhice nos espera! É um quarto escuro, sem agua, sem luz e
um pedaço de pão secco, ou então um logar por favor dessas casas, que se
chamam Asylos de Caridade... 96

Maria de Lourdes, que era comunista, afirma que apenas a união entre as operárias e a
sua luta pelo direito à vida poderia levá-las para a emancipação. Na mesma reunião, foram
discutidas as tabelas das casas de moda “Aguia”, “Zaniaê”, “Magazine”, “Mme. Lassange”,
“Mme. Lima”, “A Moda”, “Casa Colombo”, “A Fama”, “A Paulicéa”, “Mme. Virgília”, “Mme.
Orsaline” e “J. Campos”, e as associadas presentes concluíram a insignificância dos salários
que variavam entre 15$000 mensais para aprendizes e 150$000 para costureiras
especializadas.97
Na reunião do dia 26 de maio, as costureiras trataram de suas reivindicações, e fizeram
as eleições oficiais. Como primeira e segunda secretárias, ficaram Carmen Ribeiro e Elisa de
Oliveira, respectivamente, como primeira e segunda tesoureiras, Annita Cruz e Elvira Boni,
auxiliares, Emilia Bragança e Hilda Alpe, e bibliotecária, Clara Costa. De acordo com o jornal
A Noite, que noticiou a reunião na seção As reivindicações operárias, elas trabalharam com
muito entusiasmo.98 Estas informações também estão presentes no jornal A Época,99 na seção
A agitação operária.100
De acordo com Elvira Boni, a estrutura do sindicato se enquadrava nos moldes
anarquistas, sem presidência, gerido por um conselho executivo.101 Na verdade, esta era uma
característica sindicalista revolucionária, que tinha inspiração na autogestão anarquista, com
direções sindicais colegiadas e não hierárquicas.102 Esta reunião noturna da União foi também

96 Ibidem.
97 Ibidem.
98 As costureiras arregimentam-se. A Noite, Rio de Janeiro, 26 mai. 1919. As reivindicações operarias, p. 4.

99 Fundado em 1912 por Vicente Piragibe, que foi preso como oposicionista liberal pelo governo Hermes por

apoiar rebeliões populares. No entanto, noticiou as greves dos operários cariocas em 1918 de forma crítica: “O
Maximalismo no Brasil?”. SODRÉ, 1977.
100 A reunião das costureiras. A Época, Rio de Janeiro, 27 mai. 1919. A agitação operaria, p. 2.

101 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

102 BATALHA, 2000.


28

noticiada pelo periódico A Razão, em que informou sobre as reclamações de várias costureiras
em relação a sua situação nas oficinas de costura. 103
Em um domingo, dia 1º de junho de 1919, de acordo com A Razão, aconteceu uma
assembleia da União das Costureiras. Elas organizaram uma tabela para a Casa Colombo,
estabelecendo os salários considerados justos que deveriam ser pagos por cada peça
confeccionada, da seção de roupas masculinas, que foi discutida e aprovada. O ponto seguinte
que foi debatido foi a abolição dos serões, ou seja, das horas extras. Várias costureiras
explanaram sobre o assunto, e ficou decidido a existência dos serões por no máximo quatro
horas, e que pelo trabalho extra elas deveriam receber o salário de um dia de trabalho ou 50%
do valor. Elas também decidiram pela organização de tabelas e memoriais para serem entregues
às oficinas, com suas reivindicações. 104
A partir desta assembleia, ficaram estabelecidas reuniões semanais, toda quarta-feira, às
8 horas da noite, na rua da Alfândega, n. 182, em uma sede provisória. As reuniões eram
noturnas por causa da disponibilidade das mulheres de comparecerem, já que a maioria
trabalhava ao longo de todo o dia. Para além das operárias que trabalhavam em
estabelecimentos, “São convidadas a comparecer às reuniões, as costureiras em domicilio, que
não devem faltar, todo interesse é vosso.” 105
Elvira Boni revelou que a maioria das operárias que trabalhavam nos ateliês eram, em
sua maioria, jovens e não tinham filhos. Quando engravidavam, tinham muita dificuldade em
continuar o trabalho, principalmente quando eram mães solteiras e não tinham companheiros
que pudessem ajudá-las:106 “Não havia uma lei que as favorecessem. (...) Não havia esse
negócio de hospital, nada disso. Tinha uma Santa Casa, naturalmente, como sempre teve, mas
lá elas eram tratadas daquela maneira que nós sabemos.” 107 Quando uma costureira tinha filhos:
“Em geral parava de trabalhar fora e fazia o que podia em casa. As que tinham máquina de
costura podiam costurar, as que não tinham precisavam se arrumar de qualquer maneira:
lavando roupa, fazendo outro serviço qualquer. Cada uma tinha que puxar a brasa para sua
sardinha.”108

103 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 27 mai. 1919. Movimento operario á noite, p. 5.
104 União das Costureiras. A reunião de hontem. Seção de roupas de homens. A Razão, Rio de Janeiro, 02 jun.
1919. Movimento operario: Reuniões, p. 6.
105 Idem.

106 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

107 Idem, p. 31.

108 Ibidem.
29

No dia 13 de junho, em uma reunião efetuada na sede da Associação dos Gráficos, na


Avenida Passos n. 106, as costureiras discutiram sobre as negociações que estavam fazendo
com os seus patrões, através de suas reivindicações e tabelas para aumento dos ordenados, e
sobre a questão da greve geral. 109 Batalha aponta as diferenças entre o sindicalismo
revolucionário, de ação direta, e o sindicalismo reformista, sendo que o primeiro utilizava
amplamente as greves e as paralisações do trabalho como tática de luta por direitos, e o segundo,
somente em último caso.110
A reunião foi divulgada pelos jornais Gazeta de Noticias111 e O Imparcial. Elas
organizaram uma nova tabela com os preços, que foi aprovada, e o memorial foi assinado por
cerca de 300 costureiras. Foram nomeadas duas comissões: uma, para entregar o memorial e as
tabelas para os proprietários dos ateliês no dia seguinte, e outra para se estabelecer na sede
social da União dos Alfaiates, das 8 horas da manhã às 10 da noite, prontas a atender as
integrantes da União e receber as respostas dos patrões. 112
As costureiras aguardarão a resposta dos patrões até segunda-feira próxima,
às 8 horas da noite. Se estes concederem o que as suas empregadas reclamam,
ficará normalizada a situação, prosseguindo elas no serviço com toda da
regularidade. Mas se por ventura se recusarem os patrões a acceder ao pedido,
as costureiras se declararão em greve. 113

A decisão de adesão ao movimento grevista, caso houvesse a recusa dos patrões de


aceitarem suas reivindicações salariais, foi unânime. Compareceram em solidariedade
representantes da União dos Operários em Fábricas de Tecidos e da União dos Eletricistas, e o
anarquista Edgar Leuenroth, presidente da Associação dos Gráficos, que se solidarizou com as
costureiras ao dispor a sede do sindicato de sua categoria, quando elas precisassem. 114 O

109 Reunião das costureiras. A União das Costureiras. Hoje vai ser enviada a tabella aos patrões. Gazeta de
Noticias, Rio de Janeiro, 14 jun. 1919. Ultima hora: Movimento operario, p. 5; A União das Costureiras. As
costureiras reunem-se. O Imparcial, Rio de Janeiro, 15 jun. 1919. A agitação do operariado, p. 4.
110 BATALHA, 2000.

111 Fundado em 1875, por José Ferreira de Sousa Araújo, período em que se caracterizou como um dos principais

jornais, tendo participado da campanha abolicionista e pela liberdade religiosa. Em 1880, incitou a manifestação
popular contra o imposto do vintém que elevou o preço do transporte público. Na República, foi um dos principais
jornais cariocas, mas que colocou na direção Henrique Chaves, jornalista português, voltado para o crescimento
comercial e para a posição governista: apoiou o governo Hermes e Artur Bernardes. Por outro lado, contribuiu
para o avanço do jornalismo de reportagem, com a publicação das crônicas jornalísticas de Paulo Barreto (João do
Rio). SODRÉ, 1977.
112 As costureiras reunem-se. O Imparcial, Rio de Janeiro, 15 jun. 1919. A agitação do operariado, p. 4.

113 Reunião das costureiras. A União das Costureiras. Hoje vai ser enviada a tabella aos patrões. Gazeta de

Noticias, Rio de Janeiro, 14 jun. 1919. Ultima hora: Movimento operario, p. 5


114 Ibidem.
30

periódico O Paiz, na seção Casos de Policia, noticiou a mesma reunião, afirmando o entusiasmo
e o crescente número de costureiras organizadas, potenciais grevistas. 115
No dia 16 de junho, A Razão publicou um manifesto da União das Costureiras, que
demandavam suas pautas como a jornada de oito horas, e se reivindicavam como “produtoras”,
no direito de conquistarem as pautas comuns a todo o movimento operário. Trabalhando, em
média, 10 horas por dia, elas demandavam tempo livre para o estudo econômico e social, bem
como para a educação e o cuidado com seus filhos, e o aumento de salários, que não
acompanhavam a inflação que subia desde o fim da Primeira Guerra. A questão da saúde retorna
com força no manifesto, atrelada ao problema das horas extras a que eram submetidas:
“Eliminar das officinas, de uma vez para sempre os serões, porque delles emana a grande
depauperação visual e tambem o atrophiamento physico.” 116
O memorial incorporado ao manifesto apresentava as seguintes reivindicações: oito horas
de trabalho; um dia de descanso semanal, no domingo; estabilidade do pagamento mensal, no
dia 5; entrar às 8 horas e sair às 5, com uma hora de almoço; aumento dos salários das
corpinheiras, ajudantes, aprendizes, bordadeiras e ajureiras; aumento dos preços das peças de
roupas confeccionadas em casa, em 40%; 117 e o reconhecimento do sindicato União das
Costureiras. Neste memorial enviado aos patrões e patroas, elas pedem para que nenhuma
costureira seja demitida sem motivo justificado. 118
O trabalho das costureiras, de acordo com Elvira Boni, era dividido entre as aprendizes,
ajudantes e perfeitas: as saieiras e corpinheiras. As chapeleiras normalmente trabalhavam em
lugares separados, somente com chapéus. 119 “O primeiro trabalho de aprendiz era catar
alfinetes do chão, passar a vassoura na sala, chulear, arrematar as costuras.” 120 A filha de Elvira,
Zeni, conta que o trabalho de chulear as roupas e vestidos por dentro era difícil e minuncioso. 121
Além disso, as aprendizes tinham o dever de chegar antes das outras trabalhadoras nos ateliês,
para deixar tudo em ordem.122

115 A greve. O Paiz, Rio de Janeiro, 15 jun. 1919. Casos de Policia, p. 9.


116 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 16 jun. 1919. Movimento operario: Manifestos, p. 6.
117 A contratação de costureiras que trabalhavam em casa, com pagamentos por peça, era comum, porém o

pagamento era irrisório, e o valor caía cada vez mais. MONTELEONE, 2019.
118 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 16 jun. 1919. Movimento operario: Manifestos, p. 6.

119 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

120 Idem, p. 25.

121 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

122 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


31

Elvira deu mais informações sobre o cotidiano de trabalho das costureiras e a confecção
das vestimentas, nos ateliês e oficinas em que trabalhou:
Haviam mais ou menos seis pessoas em cada mesa, e eram duas mesas. (...)
As saieiras faziam as saias, as corpinheiras o corpinho, e depois montavam o
vestido no manequim. As aprendizes faziam qualquer coisa, e as ajudantes
ainda não eram profissionais perfeitas, estavam acabando de apren der. Não
faziam os trabalhos mais difíceis, como cortar, por exemplo. Isso era feito pela
chefe da mesa. Esqueci de dizer que havia também as profissionais que só
faziam mangas. Porque naquele tempo as mangas eram trabalhosas, tinham
feitio, eram mais bufantes. (...) As saias eram bem compridas e drapeadas. 123

Ela descreveu na entrevista as peças do guarda-roupa feminino da época: “Primeiro o


sutiã – o corpinho, como chamavam -, depois a camisa, a combinação e o vestido. E as calças,
naturalmente. (...) Tinham pernas e iam quase até os joelhos, um pouco acima. A meia também
era indispensável.”124 Quanto aos homens, usavam “Sapato, meia, paletó, gravata, camisas,
calças e cuecas.”125 As roupas masculinas eram confeccionadas normalmente pelos alfaiates, e
os chapéus para homens eram produzidos em fábricas.126 Era comum também que as mulheres
usassem chapéus,127 especialmente as de classe média e alta. 128
O resultado das negociações das reivindicações das trabalhadoras foi a discordância dos
patrões e patroas em relação às pautas reivindicadas, portanto as costureiras declararam greve.
Na edição do dia 18 de junho, A Razão colocou a manchete na primeira página: “Vencerão!
Devem vencer... A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas as classes”. E no meio
da página, três grandes fotografias (Figura 2), das costureiras em frente à sede da União dos
Alfaiates, e da comissão de operárias que caminhou de oficina em oficina, buscando adesões
para a greve.129

123 Idem, p. 27-28.


124 Idem, p. 30.
125 Ibidem.

126 Idem.

127 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

128 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

129 Vencerão! devem vencer...! A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas as classes. Aspecto do

movimento. Uma violencia deprimente. A União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 1.
32

Figura 2 – “Grupo de costureiras em frente à sede de sua sociedade e a comissão que visitou varias offi cinas,
procurando adhesões para a gréve” Fonte: A Razão, 18/06/1919

O jornal publicou, com detalhes, os diversos fatores e acontecimentos do dia. O seu


discurso, que ao mesmo tempo que condenava a antipatia dos proprietários das oficinas e ateliês
de costuras, em relação às causas da greve, desejava para as costureiras “(...) a plena victoria
junto de seus patrões.”130 A Razão foi um jornal fundado em 1916 pelo comendador Luís José
de Matos, depois da Campanha Civilista e no pós-guerra.131 Matos era adepto do “racionalismo
cristão” e almejava a melhoria das condições de vida do operariado brasileiro, e é perceptível
pela dedicação de noticiar e apoiar as suas reivindicações gerais. No entanto, se posicionava a
favor da conquista de direitos de forma pacífica, sem violência, pela convivência harmônica da
sociedade.132

130 Ibidem.
131 SODRÉ, 1977.
132 CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. São

Paulo: Ciências Humanas, 1978.


33

A opinião pública, de acordo com A Razão, se posicionou ao lado das costureiras, que as
viam marchando em grupos pelas ruas. Os comentários dos transeuntes eram: “– Pobresinhas!
Como são exploradas! – Que vençam as costureiras! – É a classe mais soffredora e
desamparada! Pobres abelhas do luxo...!”. Ao percorrer as oficinas, procurando por mais
operárias grevistas, elas entraram em diversos conflitos com os patrões e as patroas.133
Uma comissão de costureiras grevistas subiu para a oficina que se localizava no segundo
andar do Café S. Paulo, “(...) conseguindo voltar com duas pequenas que abandonavam o
trabalho.” As demais operárias não aderiram à greve. O “bando”, como se referia o jornal,
prosseguiu caminhando, exclamando: “– Coragem! (...) – Nós venceremos a greve! A miséria
terá um termo!”.134 O discurso do jornal apoiava as reivindicações das costureiras, contra a
exploração patronal:
Nota interessante: aquelas infellizes, - infelizes porque o querem seus patrões
– caminhavam sorridentes e alegres como pássaros felizes.
Era uma hora da tarde.
Muitas ainda não tinham almoçado. Outras, porém, sentiam-se fortes, porque,
tiveram o seu almoço diario: um copo de leite, um pãosinho de milho!... 135

De acordo com A Razão, muitas operárias ainda permaneciam indecisas em relação à


greve, se colocando a favor de, pouco a pouco, que todas as costureiras se tornassem integrantes
da União. Esta indecisão pode ser explicada por diversas razões, e uma delas está presente na
mesma matéria, com um acontecimento: as representantes da União compareceram a uma
oficina na rua do Teatro, n. 7, em busca de adesões, porém o proprietário do estabelecimento,
que as recebeu, manteve as operárias em cárcere privado. “(...) O homem passou a insultar
aquelle grupo de moças, fazendo-lhe toda a sorte de grosserias. A um dado momento, para
amendronta-las, foi a um telephone e pediu à policia fizesse mandar até lá diversos praças para
prender as revolucionarias.” Depois das ameaças, ele deixou-as sair, e este fato foi relatado para
o jornal pela diretoria da União das Costureiras, confirmado por duas testemunhas oculares. 136
A longa reportagem d’A Razão sobre a greve das costureiras anexou todas as
reivindicações da categoria explanadas anteriormente no manifesto e no memorial. 137 Com
continuação na terceira página da edição, o jornal comentou sobre a agitação na sede da União

133 Vencerão! devem vencer...! A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas as classes. Aspecto do
movimento. Uma violencia deprimente. A União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 1.
134 Ibidem.

135 Ibidem.

136 Ibidem.

137 Ibidem.
34

dos Alfaiates, lotada na parte da manhã do dia 17, com inúmeras costureiras entusiasmadas com
a greve. Neste mesmo dia, apesar da hostilidade de muitos patrões, elas receberam a primeira
resposta positiva, que aceitava as demandas propostas no memorial, da casa de Adolpho
Marchesini, que ficava na rua Visconde de Itaúna, n. 88. 138 O primeiro dia de greve foi bem-
sucedido, no sentido das adesões:
Essas comissões, apesar de terem soffrido affrontas de varios patrões
retrogrados, alcançaram um resultado compensador no seu esforço, pois qu e
à tarde eram poucas as casas que trabalhavam. (...) A União espera que hoje a
paralysação seja total em todas as officinas de costuras. 139

As fotografias (Figuras 2, 3, 4 e 5) revelam que não apenas mulheres brancas imigrantes


ou filhas de europeus como Elvira participaram da greve das costureiras e da organização do
sindicato, mas havia a presença de muitas mulheres negras, filhas e netas de trabalhadores
recém-libertos da escravidão. No Rio de Janeiro, os imigrantes estrangeiros constituíam 35%
do operariado, portanto a origem da maioria dos trabalhadores era brasileira.140
Seguindo na esteira das reflexões que combatem o eurocentrismo suscitadas por Álvar o
Nascimento,141 os historiadores Flávio Gomes e Antonio Luigi Negro defendem a tese de que
a greve como tática de luta e negociação das classes populares contra as classes dominantes não
era um modelo importado da Europa, mas uma prática comum dos trabalhadores e trabalhadoras
escravizados no Brasil.142 Eles rompem com o mito do trabalhador estrangeiro ativo nas lutas
operárias e o trabalhador “nacional” e negro, como passivo. 143 No artigo, Gomes e Negro
discorrem sobre o uso da palavra francesa “grève” e sobre o movimento de paralisação do
trabalho no Brasil, que tinha o nome de “paredes”.144 Alguns jornais analisados descrevem a
greve das costureiras como “movimento paredista”.

138 A greve das costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 3.


139 Ibidem.
140 BATALHA, 2000.

141 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à

História Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 59, vol. 29, p. 607 -626, set./dez. de
2016.
142 GOMES, Flávio. NEGRO, Antonio Luigi. As greves antes da grève: as paralisações do trabalho feitas por

escravos no século XIX. Ciência e cultura, São Paulo, vol. 65, p. 56-59, abr./jun. 2013.
143 Lima Barreto, escritor e destacado jornalista da Primeira República, analisou o tratamento da grande imprensa

com relação aos movimentos grevistas daquele período, e indicou um procedimento policialesco, caracterizando
os anarquistas como estrangeiros exploradores de operários brasileiros, além de desclassificar e criminalizar as
motivações da greve, enquanto exalta a “doçura e o patriotismo do operário brasileiro”. SODRÉ, 1977, p. 365.
144 GOMES; NEGRO, 2013.
35

O exemplo da greve das costureiras endossa esta tese contra o mito da passividade das
mulheres negras, que são quase totalmente invisibilizadas pela historiografia do movimento
operário deste período. É possível levantar a hipótese de que estas mulheres herdaram o
movimento paredista das lutas provenientes da comunidade negra brasileira. O historiador João
José Reis publicou recentemente o livro Ganhadores, sobre a greve negra de 1857 na Bahia,
evento que reforça a tese acima apresentada. 145

Figura 3 – “As grevistas reunidas na União dos Alfaiates”. Fonte: A Época, 18/06/1919

Uma fotografia semelhante (Figura 3), das costureiras na frente da sede da União dos
Alfaiates, foi publicada no jornal A Época, na seção A agitação operária, acompanhando as
notícias sobre a greve. Segundo o jornal, as costureiras grevistas que percorriam as ruas em

145 REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
36

busca de adesões irritaram os patrões e contra-mestres, “(...) e alguns delles tornaram-se


grosseiros e inconvenientes, chegando mesmo a insultar as suas empregadas, julgando talvez
que, desse modo, intimidando-as, conseguiriam frustrar a greve.” O jornal atribuiu a não adesão
de algumas operárias que trabalhavam em algumas casas particulares ao fato de se considerarem
“bem pagas”.146
No 14º districto, por exemplo, zona em que maior é o numero dessas casas,
taes estabelecimentos estão de portas fechadas, sem trabalho.
As costureiras porém, mantém-se em attitude pacífica, não se registrando
nenhum pedido de garantia por parte dos patrões. 147

A Época noticiou o movimento grevista que ocorria paralelamente à greve das costureiras,
como a greve dos alfaiates, seus companheiros de profissão e de solidariedade, dos marmoristas,
e do “pessoal das lavanderias”, uma greve com provável presença majoritária de mulheres
negras:
O pessoal das Lavanderias continua na attitude assumida antehontem de só
voltarem ao trabalho mediante à aquisciencia dos patrões às suas exigências.
De todos os operários em greve, estes são os que mais sympathias merecem,
pois trabalham dez horas a fio, num serviço estafante, e percebem apenas a
insignificância diaria de 1$500 a 2$000, tão irrisoria que chega a despertar
sentimentos de piedade...
Os patrões, no entanto, segundo a declaração à policia, estão no firme
proposito de não transigir. Preferem fechar os estabelecimentos a conceder o
que pleiteam as suas infelizes e pobres operárias. 148

Ainda no mesmo dia 18, referente ao primeiro dia da greve, o jornal Gazeta de Noticias
deu um destaque para as costureiras, com uma fotografia (Figura 4) das mulheres em frente à
sede da União dos Alfaiates: “Uma greve de saias... As costureiras agitam -se e querem
reivindicações. O dia de hontem nos ateliérs de costuras”. A fotografia revela a presença de
algumas meninas muito novas, crianças, no movimento grevista. 149 O jornal chamou a atenção
para a exploração vivida pelas costureiras, e se posicionou a favor da conquista de seus direitos:

146 A greve das costureiras. A Época, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919. A agitação operaria, p. 3.
147 Ibidem.
148 O pessoal das lavanderias. A Época, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919. A agitação operaria, p. 3.

149 Uma greve de saias... As costureiras agitam-se e querem reivindicações. O dia de hontem no movimento

grevista. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 3.


37

Figura 4 – “As costureiras na séde da União dos Alfaiates, á rua da Alfandega”. Fonte: Gazeta de Noticias,
18/06/1919

O dia de hontem foi das costureiras, dessas humildes e garralas criaturas,


dessas ignoradas abelhas que trabalham anonymamente, verdadeiras victimas
do luxo e do conforto alheio. Muito cedo ainda, à hora em que os ricos ainda
dormiam, já ellas enchiam as ruas centraes da cidade, procurando intensificar
o movimento em favor das suas justas reivindicações. 150

A Gazeta de Noticias descreveu as condições de trabalho das costureiras, que às vezes


trabalhavam 12 horas por dia, com um salário tão baixo, que não aumentou durante anos de
encarecimento dos preços, e possibilitava que fizessem apenas uma refeição por dia. Nos
pequenos ateliês, a exploração era brutal: com condições péssimas de higiene e sem descanso
semanal, os patrões enriqueciam e lucravam explorando seu trabalho.151
De acordo com o depoimento de Zeni Pamplona, filha de Elvira Boni, os ateliês eram de
alta costura, mas as meninas eram muito exploradas. Quanto à alimentação, muitas levavam

150 Ibidem.
151 Ibidem.
38

marmita, porém não tinham um local específico para comer, e para não sujar as roupas e o local
de trabalho, elas comiam no banheiro. 152 Como vimos, muitas almoçavam apenas um copo de
leite ou um pão de milho, e em alguns estabelecimentos, segundo Elvira, contratavam
cozinheiras que eram orientadas a fazer comidas de qualidade diferentes para a patroa e para as
operárias.153
O jornal alertava para estas condições e se posicionou ao lado das costureiras, além de
cobrar o Congresso para estabelecer as leis acordadas na Conferência de Paris. Assim como em
A Razão, a Gazeta de Noticias descreveu as costureiras nas ruas como “Alegres, risonhas,
convencidas da victoria de sua causa (...)” Elas conseguiram a adesão de companheiras das
casas “A Fama”, na rua Gonçalves Dias, e “Nos Armazéns de Paris”, na rua do Teatro. 154
De acordo com a Gazeta de Noticias, a greve conseguiu paralisar o trabalho em inúmeros
ateliês, mas em nenhuma fábrica maior. Este jornal realizou entrevistas com os patrões e
funcionários de altos cargos das oficinas, ateliês e indústrias, mas não entrevistou nenhuma
costureira grevista.155
A “Casa Colombo”, indústria de confecção de roupas que empregava cerca de 300
operárias, segundo o diretor da seção, o sr. Werneck, afirmou que “(...) a greve não attingiu a
casa. Nem tinha receio disto porque pagava bons preços (...).” A “Casa Colombo” pagava por
peças confeccionadas, e não por salários pagos mensalmente, o que, segundo Werneck, permitia
maiores férias para as costureiras. 156
Nas casas de modas “Au Palais Royal” e “A’ Voga”, a partir da perspectiva dos patrões,
não faltou nenhuma costureira ao trabalho pois elas estariam satisfeitas com os salários e
ordenados pagos. O sr. Setubal, proprietário de “A’ Voga”, reconhecia que havia ateliês que
submetiam as operárias a sacrifícios, mal forneciam alimentação e afirmou que elas estavam
satisfeitas com a jornada de 10 horas em seu estabelecimento. Segundo os proprietários, na
“Casa Sucena”, “Aguia de Ouro” e “Casa Sloper” também não faltou nenhuma operária. 157
O proprietário das casas “A Fama” e “Grand Palais”, sr. Melin, afirmou que faltaram
quatro costureiras ao trabalho, e se mostrou, para o jornal, disposto a dialogar e atender as

152 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
153 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
154 Uma greve de saias... As costureiras agitam-se e querem reivindicações. O dia de hontem no movimento

grevista. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 3.


155 Ibidem.

156 Ibidem.

157 Ibidem.
39

demandas. O sr. Ferreira Lobo, da casa “A Moda”, informou que já havia se entendido com as
costureiras que lá trabalhavam. Entretanto, quanto à reivindicação de reconhecimento da União
das Costureiras como sindicato e legítimo intermediário das relações de trabalho, nenhum dos
patrões entrevistados a aceitou. 158
Destacam-se as experiências no “Atelier Mme. Judith”, onde não compareceu nenhuma
costureira, e na “Casa Osorio”, onde ocorreu um caso de cárcere privado – semelhante ao
noticiado em A Razão. A costureira Maria, que chegou com um grupo de grevistas pedindo o
aumento de salários, foi presa dentro de um quarto pelo proprietário. “Só a muito custo a
prisioneira foi solta horas depois.” 159
Na reunião das costureiras após o primeiro dia de greve, muitas falaram em
solidariedade ao movimento. Foi decidida a formação de uma comissão permanente para
atender as demandas das associadas, que ficaria presente o dia todo na sede social. 160 Os
conflitos provenientes do acirramento da luta de classes foram expostos:
Falaram ainda outras oradoras, umas suggerindo medidas a serem adoptadas
no actual momento e outras censurando o procedimento de alguns patrões que
as tem recebido de um modo pouco cortês.
Uma delas, porém, levou ao conhecimento da assembléia certos factos
summamente desagradáveis. Em algumas casas os patrões prendiam as
operárias nos quartos dos estabelecimentos quando não as recebia com agua.
Não póde deixar de ser censurado o procedimento desses patrões pela
assemblêa, terminou. 161

As trocas de experiências na assembleia revelaram que os casos de cárcere privado não


foram casos isolados. No final, elas concordaram com o retorno ao trabalho nas casas em que
os proprietários aceitaram os acordos, que a greve se mantivesse pacífica por parte delas, e que
não iriam descansar até serem vencedoras. “Se os patrões não cedem as costureiras muito
menos.”162
O jornal O Paiz, tradicionalmente republicano e abolicionista, que contou com a presença
de Rui Barbosa, Quintino Bocaiúva e Joaquim Nabuco,163 também ficou conhecido pelas duras

158 Ibidem.
159 Ibidem.
160 Ibidem.

161 Ibidem.

162 Ibidem.

163 SODRÉ, 1977.


40

críticas à União Soviética e aos “tiranos vermelhos”.164 As notícias sobre as greves operárias
no Rio de Janeiro eram colocadas ao lado de notícias sobre crimes hediondos e acidentes graves,
em uma divisão nomeada Casos de Policia.165 Ao divulgar a greve das costureiras, no dia 18
de junho, o jornal apresentou todas as suas reivindicações e tabelas, colocando-as como
“simpáticas” e que estavam dispostas a dialogar com seus patrões. 166
A greve das lavadeiras, com possível relação com as costureiras, mulheres operárias que
declararam o movimento paredista no mesmo dia, também foram mencionadas, bem como a
dos alfaiates, os marmoristas, os tecelões, os operários em calçados e da construção civil. Em
seu discurso, O Paiz arquitetou um contraste entre estas greves pacíficas e a greve dos padeiros.
Com uma grande manchete com os dizeres “Uma padaria dynamitada”, o jornal apresentou um
grupo ou indivíduo, que por vingança, teria jogado uma bomba em uma padaria, que
“provocou” a intervenção da polícia, se referindo a estes padeiros como “elementos maos”. 167
A ação direta, da qual fazem parte as greves, boicotes e sabotagens, era uma prática comum do
anarquistas e sindicalistas revolucionários. 168
O jornal A Época, no dia seguinte, 19 de junho, confirmou as informações sobre a greve
das costureiras contadas nos demais jornais, com a nova informação de que as trabalhadoras
das grandes casas de modas estavam aderindo ao movimento.169 Sobre a assembleia das
costureiras, no dia 18:
Uma das oradoras prendeu a attenção das companheiras, frizando com
vehemencia, as miserias que se verificam em uns tantos “ateliers” de costuras,
sua falta de hygiene, a maldade, a descortezia e até mesmo arrogante das
contra-mestras e dos patrões. Ha costureiras que trabalham das 7 às 8 e até às
22 horas, mal alimentadas, tendo, às vezes, como almoço, um simples copo
de leite... 170

164 CORREA, Mariana Bethania Sampaio. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa sobre o
PCB (1922-1989). Tese de Doutoramento apresentada ao Curso de Linguística do Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, 1996.
165 O Paiz, fundado em 1884 por João José dos Reis Júnior, era um jornal ligado à política tradicional da República

oligárquica, e foi fechado na Revolução de 1930. Articulador de campanhas políticas como a de Hermes da
Fonseca, estava sempre envolvido em negócios de corrupção com deputados em troca de grandes somas de
dinheiro público para o jornal. SODRÉ, 1977.
166 O numero de costureiras grevistas augmenta consideravelmente. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919. Casos

de policia: A greve, p. 6.
167 Ibidem.

168 TOLEDO, 2013.

169 União das Costureiras. A Época, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919. A agitação operaria: A greve das costureiras

prosegue, p. 2.
170 Ibidem.
41

Segundo A Época, alguns patrões deixaram as costureiras grevistas entrarem em seus


estabelecimentos, enquanto outros impediram a entrada. Elas começaram a ter as primeiras
vitórias, e “(...) vão conquistando, momento a momento, as sympathias da população carioca,
as sympathias de todas as classes sociaes.” O ateliê da Madame Lopes Passalcqua, assim como
Adolpho Marchesini, foi a segunda casa a enviar um ofício à União das Costureiras aceitando
atender às suas demandas.171
Novamente, na primeira página, A Razão deu destaque para a greve das costureiras, na
edição de 19 de junho. Foi celebrado o primeiro mês de fundação da União das Costureiras e
Classes Anexas. “A idêa da associação das costureiras aterrorisou os proprietários de officinas,
que entraram, isoladamente, a desenvolver uma obra de descredito contra a nova União,
entorpecendo-lhe a marcha natural que deveria ter em sua vida.”172 De fato, mesmo aqueles
patrões e patroas que aceitaram as reivindicações, como vimos, não concordaram em
reconhecer a União, que em menos de um mês de existência, conseguiu reunir um número
expressivo de mulheres operárias e organizar uma greve.

Figura 5 – “As costureiras grévistas que percorreram hontem os “ateliers” solicitando adhesões á gréve. Um grupo
de adhesistas”. Fonte: A Razão, 19/06/1919.

171 Ibidem.
172 As costureiras em gréve. As primeiras victorias do movimento. A Razão, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 1.
42

Os patrões impediam a entrada das grevistas, porque “(...) estes negociantes, acostumados
como estão a explorar à sua vontade as moças e as creanças, não supportam a idéa de que se
possa extinguir a escravidão por elles adoptada nas officinas.” O jornal transmitiu a informação
de que moças operárias de 16 a 18 anos recebiam “minguados salários” de 15$000 a 20$000, e
as meninas de 12 a 14 anos recebiam 10$000 mensais, “(...) gastando muito mais do que ganham
em bondes ou trem, que as conduzem aos lugares em que residem.”173 A fotografia (Figura 5)
na capa do jornal foca na presença de crianças grevistas. A própria Elvira Boni começou a
trabalhar com 12 anos de idade como aprendiz: “Trabalhei três meses sem ganhar um tostão.
No fim de três meses é que a madame me deu dez mil-réis. Não dava nem para pagar a passagem
do bonde...”174 Neste ano, em que se fundou o sindicato e construiu a greve com suas
companheiras, ela ainda era bem jovem: tinha cerca de 19 ou 20 anos. 175
Uma grande reunião da classe das costureiras aconteceu às 4 horas na sede da Associação
dos Gráficos, onde discursou o anarquista Carlos Dias, que fez uma palestra sobre a mulher na
sociedade e foi muito aplaudido pelas operárias. Também falaram o sr. Macedo e Elvira Boni,
“(...) concitando suas companheiras a não se esmorecerem nessa luta, visto que a victoria já se
approxima.” A principal decisão da assembleia foi a continuação da maior propaganda a favor
da greve, para garantir adesões de mais costureiras.176
O Paiz, ao informar o consentimento do patrão Marchesini e da patroa Madame
Passalacqua, colocou como manchete “Parece vencedora a causa das costureiras”. O jornal
lamentou a paralisação de diversos setores industriais da capital, e de forma diferent e da maioria
dos jornais analisados, que costumavam tratar como dignas as reivindicações feitas pelos
operários em geral e se mantinham relativamente imparciais, afirmaram que el es pleiteavam
por “regalias e vantagens”.177
No dia 20 de junho, ocorreu uma assembleia na Associação dos Gráficos, que contou com
a presença de poucas costureiras por causa da chuva. De acordo com A Razão, muitas

173 Ibidem.
174 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 25.
175 É interessante o debate suscitado por Glaucia Fraccaro em relação aos salários das crianças. Em geral, o trabalho
infantil era mais desvalorizado. Meninos e meninas recebiam os menores salários, e os rendimentos quase não se
diferenciavam pelo gênero. Em relação aos homens e mulheres adultos, o salário das mulheres era muito mais
desigual em relação ao dos homens. FRACCARO, 2018, p. 28-29.
176 As costureiras em gréve. As primeiras victorias do movimento. A Razão, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 1.

177 Parece vencedora a causa das costureiras. O Paiz, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919. Casos de Policia: A greve, p.

6.
43

trabalhadoras faltaram ao trabalho neste dia, aderindo à greve. Os patrões continuavam


tentando, de várias maneiras, impedir que as comissões entrassem nos estabelecimentos. Na rua
Gomes Freire, ocorreram conflitos em duas oficinas. Um dos proprietários, que era russo,
expulsou a comissão e ameaçou chamar a polícia. O outro deu dinheiro a um guarda civil para
“maltratar as grevistas” – este evento foi testemunhado por mais de dez costureiras, e “(...) o
guarda desempenhou-se bem da missão que lhe foi confiada, porque as pobres moças passaram
por um mao quarto de hora.”178
Na reunião noturna, foram atestadas as novas casas que se comprometeram a atender as
reivindicações do memorial das costureiras: Jayme Schwartz e Calach & Dabdah, ambos na rua
Visconde de Itaúna. A decisão de dar continuidade à greve foi aprovada, até que todos os ateliês
e oficinas atendessem às suas pautas. 179
Dois dias depois, o entusiasmo das mulheres operárias com a greve se manteve,
conseguindo a adesão de dezenas de costureiras. A Razão projetava a vitória, apesar dos
conflitos que estavam ocorrendo:
Quase todas as officinas trazem as costureiras presas à chave, em gabinetes,
das 6 horas da manhã, às 7 da noite, para impedi-las de se comunicarem com
as commissões que vão procura-las.
Outras casas ameaçaram demittir quem adherir à greve, e ainda outras
maltratam as pobres moças, promettendo mandar prende-las por policiaes, se
ousarem participar na gréve. 180

O jornal afirmou que a maioria das costureiras eram crianças, e que foi justamente por
causa da excessiva exploração das menores que o movimento assumiu o caráter de greve
geral.181 O Estado brasileiro da Primeira República apresentou uma parca legislação trabalhista.
Em 1891, o Decreto 1313 regulamentou o trabalho de menores nas fábricas do Rio de Janeiro,
porém, não havia a fiscalização necessária para a aplicação da lei.182
Na “Casa Cohen”, por exemplo, cujo proprietário era um homem “israelita”, todas as
operárias abandonaram o trabalho e ele preencheu os lugares vagos apenas com crianças
aprendizes, de 9 a 12 anos, com salário de 20$000 por mês. Segundo o jornal, as meninas

178 A gréve das costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 20 jun. 1919, p. 4.


179 Ibidem.
180 As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun. 1919, p. 2.

181 Ibidem.

182 BATALHA, 2000.


44

estavam passando fome e recebendo maus tratos. 183 A partir disto, ocorreram os seguintes
conflitos:
As pobres creanças não tendo senão lições rudimentares de costuras, ficaram
impossibilitadas de dar conta das encommendas, razão por que começaram a
soffrer uma série de brutalidades. Como protestassem, o gerente mandou que
a mãe de uma menina fosse ter à officina, onde apontou sua filha como
grevista.
O resultado serviu para conter o ânimo das demais, porque aquella senhora,
que de mãe só tem o nome, applicou uma valente surra na própria filha, dando
ordem aos donos da casa para imita-la caso necessário. 184

No dia 21 de junho, as costureiras se reuniram na sede da Associação dos Gráficos. Houve


uma reunião pela manhã, quando continuaram formando grupos para conquistarem adesões à
greve, e outra à tarde. A redação d’A Razão compareceu ao local e chegou à conclusão de que
houve um grande aumento do número de grevistas nos últimos dias, devido ao salão lotado,
apesar do dia chuvoso. Algumas das pautas da assembleia vespertina foram as queixas das
desumanas explorações por parte dos patrões das oficinas e a adesão da casa “Manin & Samuel
Reich” ao memorial elaborado pelas costureiras. 185
Uma pauta significativa foi a moção de protesto aprovada contra o periódico O
Jornal,186 “(...) por haver em suas columnas menospresando a gréve das costureiras e
aproveitado de sua situação para rir da miseria que as acompanha.” De acordo com A Época,
as costureiras julgaram este matutino como um “órgão da burguesia”, e que “(...) attenta contra
a boa fama e o respeito devido à família operária.” A camarada Elvira Boni sugeriu que fosse
impedida a entrada dos jornalistas d’O Jornal em suas reuniões. O presidente da Associação
dos Gráficos ameaçou este periódico, pois “(...) afrontando as costureiras afrontou também o
operariado brasileiro”, em um gesto de solidariedade de classe. O sr. Macedo e o sr. Lima
propuseram o boicote ao jornal e que deixariam entrar nas reuniões operárias apenas jornalistas
que respeitassem a classe trabalhadora. 187
No mesmo dia, debaixo da chuva, as comissões continuaram seus caminhos pelas ruas e
oficinas buscando novas grevistas. As costureiras da maioria das oficinas foram mantidas

183 As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun. 1919, p. 2.
184 Ibidem.
185 Ibidem.

186 Fundado em 1919 por Renato Toledo Lopes, O Jornal foi comprado por Assis de Chateuabriand com o auxílio

do então presidente da República, Epitácio Pessoa, dando início a um império jornalístico. SODRÉ, 1977.
187 As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun. 1919, p. 2.
45

prisioneiras para continuar trabalhando e produzindo para os patrões, presas para que não
recebessem as grevistas.188
A Razão e Gazeta de Noticias publicaram um manifesto da União das Costureiras,
elaborado pelo comitê da greve. Nele, elas relembram os motivos da greve, como os salários
irrisórios, as extenuantes jornadas de trabalho, e dão força para que o movimento continue. Elas
recuperaram a história da União, na qual um grupo de costureiras ativas decidiram criar uma
associação, e a partir dela, surgiu a ideia do movimento grevista, para melhorarem suas
condições. O manifesto clamava pela coragem de suas companheiras que ainda não
abandonaram o trabalho, apesar da atmosfera de medo e de terror que os patrões e a sua ligação
com a polícia criavam.189 Citamos um trecho do manifesto, que questiona a ideologia sexista e
clama pela resistência feminina:
Aquelles que exploram com o nosso trabalho só cederão aos nossos justos
pedidos quando souberem que estamos dispostas a enfrentar a sua ira de gente
farta que pretende que nós a nada temos direito, que somos creaturas inferiores
e submissas. Aqui fica, pois, o nosso apelo à vossa dignidade.
Lembrai-vos que já é tempo de protestarmos contra as inominaveis injustiças
de que sois victimas e de levantar bem alto fronte exigindo tudo a que temos
direito. 190

Dirigindo-se às companheiras já em greve, elas conclamaram para que não se abalassem


e continuassem de pé, lutando, e se afastando das intrigas que se infiltravam para enfraquecer
o movimento. Ao fim, elas disseram que não convém aos “grandes”, ou seja, os patrões e
proprietários, que homens e mulheres da classe trabalhadora se levantem exigindo o direito à
vida. E terminam: “Avante companheiras, à conquista do nosso bem-estar. Nada de timidez,
nada de receios vãos. Para frente e com coragem.” 191
No dia 23 de junho, O Paiz, na sua seção de Casos de Policia, colocou a seguinte
manchete: “A policia prohibiu a realização do Congresso Communista Anarchista”. No corpo
da notícia, há a afirmação de que todas as greves estavam terminando, e, se colocando ao lado
dos patrões, o jornal declarou que quase todos os proprietários de oficinas de costura já

188 Ibidem.
189 Uma greve de saias... Uma sessão agitada. O que ficou hontem resolvido. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro,
22 jun. 1919, p. 3; As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun.
1919, p. 2.
190 Ibidem.

191 Ibidem.
46

atenderam as reivindicações das grevistas,192 uma informação que oculta as violências


cometidas denunciadas nos demais jornais, nas edições do dia anterior:
Mas, emquanto o proletariado age pacificamente e dentro da ordem para
conseguir as vantagens que pleitea, surgem elementos perniciosos que
procuram tirar partido da situação para bem poderem explorar as classes
trabalhadoras, através da propaganda de teorias inadmissíveis.
As costureiras reuniram-se, e formaram a sua sociedade de classe, afim de
serem bem defendidos os seus direitos. Com o bom exito da iniciativa,
appareceram logo uns individuos, fazendo intensa propaganda em prol da
fundação da Liga Feminina Communista moldada no anarchismo e destinada
a implantar no nosso meio as bases das reformas por que vai passar a Russia.
A idéa, porém, foi repellida pelas moças costureiras, que claramente
perceberam a exploração contida no plano. 193

O próprio discurso presente nos manifestos da União contraria a visão despolitizada das
costureiras, pois elas se posicionavam contra a exploração do sistema capitalista. A questão da
“exploração” do plano dos comunistas configura uma inversão da realidade, que oculta a
exploração do trabalho e coloca como “exploradores” aqueles que a combatem.
Entre os aliados das costureiras estavam alguns anarquistas como Edgar Leuenroth e
Carlos Dias, que eram muito bem recebidos em suas assembleias e reuniões, dentre muitos
outros que veremos adiante. Algumas das próprias operárias e líderes sindicais, como Elvira
Boni, tinha uma trajetória de militância anarquista. Elvira participou, desde os seus 12 anos, da
Liga Anticlerical e do Grupo Dramático 1º de Maio.194 Estes anarquistas eram coletivistas,
publicavam jornais, formavam grupos de propaganda e atuavam no interior de sindicatos e
associações.195
Os anarquistas não tinham ideias homogêneas e divergiam em muitos aspectos. Haviam
anarquistas que atuavam em associações que valorizavam a luta cotidiana e abraçavam o
sindicalismo revolucionário, como Elvira Boni, de forma diferente dos anarcocomunistas que
viam os sindicatos como um espaço de propaganda, e os anarquistas individualistas que não
consideravam a luta de classes. 196 As mulheres anarquistas, em geral, sugeriam que as operárias
se organizassem em sindicatos de resistência.197

192 A policia prohibiu a realização do Congresso Communista Anarchista. O Paiz, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919.
Casos de policia: o momento operario, p. 4.
193 Ibidem.

194 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1986.

195 BATALHA, 2000.

196 TOLEDO, 2004.

197 RAGO, 1985.


47

Havia uma mobilidade e circularidade dos militantes e operários entre as diversas


correntes políticas.198 Elvira sempre esteve em contato com o anarquismo dentro de sua família.
O anticlericalismo, que marcou sua primeira manifestação de rua com a campanha “Onde está
Idalina?”199, e era um dos temas centrais das peças de teatro que apresentava, como o “O
Pecado de Simonia” escrito por Pietro Gori, era uma característica importante dos
anarquistas.200 Em sua atuação na União, adotou a corrente política sindicalista revolucionária,
e posteriormente participou das lutas do PCB, mesmo sem se filiar ao Partido, incluindo sua
atividade no Socorro Vermelho durante a repressão dos Levantes da Aliança Nacional
Libertadora (ANL), em 1935.201
Muitos operários se identificavam com mais de uma corrente ao mesmo tempo. Angelo
Boni, pai de Elvira, era um “socialista-anarquista”.202 Elvira Boni se identificava e atuou tanto
no anarquismo quanto no comunismo: “Fundou-se o Partido Comunista, e muitos anarquistas
se tornaram comunistas. No fundo, é a mesma coisa, não é, duas coisas por caminhos diferentes.
Eu penso assim. Entendo que anarquismo e comunismo querem a mesma coisa, mas têm
maneiras diferentes de chegar ao mesmo local.” 203
Nem todas as sindicalistas da União das Costureiras eram revolucionárias, comunistas ou
anarquistas, muitas apenas desejavam melhorias nas condições de vida e de trabalho, e
poderiam se enquadrar nas outras diversas correntes políticas, como a positivista, católica,
socialista ou reformista. No entanto, a forma como o discurso foi desenvolvido no jornal O Paiz
foi mentiroso e desonesto com as formulações teóricas das operárias, como mulheres. A polícia
classificava quase todos os operários agitadores como anarquistas, e posteriormente
comunistas, também de forma pejorativa.204
As costureiras Elvira Boni e Elisa Gonçalves, poucos dias após a fundação do sindicato,
participaram da fundação da Liga Feminista Brasileira, junto a outras operárias como

198 TOLEDO, 2004.


199 Idalina foi uma menina que desapareceu do Orfanato Cristóvão Colombo, administrado por padres católicos, e
a manifestação foi organizada pela Liga Anticlerical. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988. Esta foi uma
experiência marcante para Elvira, pois sua filha Zeni afirmou que ela falava muito sobre a Idalina. Conforme
depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
200 TOLEDO, 2004.

201 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

202 Idem.

203 Idem, p. 51.

204 TOLEDO, 2004.


48

Waldemira Fernandes e Rosa Leal, no dia 21 de maio de 1919. 205 De acordo com o jornal A
Razão, uma das fundadoras teve a ideia de se reunir para um Congresso Feminista no Rio de
Janeiro nos mesmos dias do Congresso Comunista: 20, 21 e 22 de junho,206 o que firmava
declaradamente a sua ligação com o crescente movimento comunista, também conhecido por
“maximalista”, pois apresentava o programa máximo dos bolcheviques.207
Este mesmo Congresso, que ocorreria no Centro Cosmopolita, onde funcionava a sede
dos operários que trabalhavam em hotéis, foi fechado pela polícia e o material de propaganda
foi apreendido. Segundo O Paiz, os papéis previam o seu “caráter perigoso”. “O programma
dessa collecctividade assenta, entre outras cousas, ‘na supressão do Estado, na abolição de todas
as leis, na suppressão da família, (...) na suppressão da propriedade, do exercito, da policia, da
justiça, do Parlamento, etc.” 208 De fato, os anarquistas defendiam uma transformação radical da
sociedade e o fim da propriedade privada e das instituições repressivas do Estado, mas o jornal
oculta os outros elementos e valores antiautoritários anarquistas como o bem-estar social, a
solidariedade e a forma organizativa a partir de livres associações. 209
O discurso do jornal apresenta uma visão sexista, como se a imposição de “elementos
perniciosos”, “individuos” do sexo masculino corromperia a luta pacífica das mulheres
costureiras, como se os próprios homens comunistas e anarquistas estivessem fundando uma
organização feminina, e que esta não poderia ser construída por elas próprias. O discurso d’O
Paiz segue a esteira da ideologia burguesa que vê as mulheres como naturalmente dóceis e
submissas.210 A Liga Comunista Feminina realmente existiu e contou com a participação de
mulheres costureiras, como veremos adiante.
Durante o decorrer da greve, no dia 26 de junho, o jornal A Rua,211 noticiou uma série de
violências cometidas pelo patrão Domingues e pelo delegado Severo Bonfim contra algumas

205 Liga Feminista Brazileira. A Razão, Rio de Janeiro, 22 mai. 1919, p. 6.


206 Ibidem.
207 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:

Expressão Popular, 2004


208 A policia prohibiu a realização do Congresso Communista Anarchista. O Paiz, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919.

Casos de policia: o momento operario, p. 4.


209 TOLEDO, 2004.

210 RAGO, 1985.

211 Fundado por Viriato Correia, em 1914, anti-hermista, se uniu à oposição liberal. Ficou conhecido como o

primeiro jornal a empregar uma mulher, Eugênia Brandão, na função de repórter. SODRÉ, 1977.
49

operárias. Eram 14 costureiras que trabalhavam na fábrica de roupas brancas do proprietário J.


J. Domingues, na rua dos Andradas n. 91.212
Na fábrica do Domingues, elas recebiam apenas 10$000 mensais, menos até do que
algumas aprendizes em outras casas e oficinas. No dia 25 de junho, elas decidiram abandonar
o trabalho e pedir auxílio à União das Costureiras. Eis que Domingues apareceu na sede da
União, com uma série de pedidos para as costureiras, “‘Que não o abandonassem, que seria a
sua ruina!’ Quasi chorava, quasi se ajoelhava aos pés daquellas que explora para não abandonar
seu cofre.” Das 14 operárias, cinco aceitaram os seus pedidos, mas as outras nove se
mantiveram firmes em sua decisão, pela paralisação. Todas foram despedidas. Por este motivo,
elas retornaram à rua dos Andradas para receber o seu dinheiro, junto a uma comissão de
grevistas.213
O Domingues mal viu as operarias à frente da porta de sua casa, insultou-as,
visando principalmente à quem chamava à bocca cheia de “nêgra”, isto porque
a moça operária é de côr escura. E tanto se apavorou que fez prender Laudelina
por um guarda civil que a levou para a delegacia do 3º districto, acompanhada
das outras. 214

Outros jornais denunciaram a violência patronal, racista e policial, com mais versões da
história. Segundo o periódico Gazeta de Noticias, mesmo com a greve chegando ao fim, as
violências não cessaram – o patrão Domingues havia descontado 1$000 do pagamento de cada
uma, e elas não concordaram com esta “medida arbitrária”. Em resposta, Domingues “(...)
chamou uma dellas e falou que não queria negras vagabundas em sua casa.” As costureiras
protestaram e Laudelina se levantou contra a violência racista sofrida, assim, “(...) o patrão
chamou um guarda e mandou prendê-la”. Três delas foram presas: além de Laudelina Silva,
Judith Corrêa e Almerinda Machado. 215
Segundo Cláudio Batalha, eram práticas comuns do Estado contra o operariado as prisões
arbritárias, espancamentos e invasões de domicílio. Quanto à repressão aos movimentos
grevistas, a importância e o porte da indústria eram determinantes.216
Na delegacia, o delegado Severo Bonfim, “um pobre diabo”, “(...) depois de maltratar as
moças, (...) quiz mette-las no xadrez. É bom notar que trata-se de jovens de 12 a 17 anos!”.

212 O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo Bonfim. A Rua, Rio de
Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.
213 Ibidem.

214 Ibidem.

215 Uma greve de saias... A policia prende uma grevista. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.

216 BATALHA, 2000.


50

Porém, o primeiro delegado auxiliar Nascimento Silva, “autoridade criteriosa”, ouviu as


operárias atentamente e deixou-as livres.217
Na reunião noturna do dia 25, na sede da União dos Alfaiates, Elvira Boni abriu os
trabalhos lendo o expediente, que contou com grande número de adesões. O sr. Macedo e
Carmen Ribeiro protestaram contra a atitude violenta da polícia e as prisões, e Elvira
acrescentou que a imprensa deveria protestar contra este “abuso de força”. Uma das oradoras
descreveu as humilhações praticadas por Domingues, e muitas outras protestaram contra as
violências sofridas pelas companheiras, chamando a imprensa para a denúncia. 218
Diante das decisões na reunião, o jornal A Rua recebeu, no dia seguinte, as
representantes da União das Costureiras, Elvira Boni e Emma Silveira, as três operárias presas
na delegacia, Laudelina, Judith e Almerinda, e outras duas que foram demitidas, no local daa
redação para denunciar o ocorrido, da forma descrita anteriormente. Foi colocada uma
fotografia (Figura 6) das sete operárias tirada neste momento, com expressões sérias. 219 Até
mesmo O Paiz denunciou o abuso do patrão e do delegado, no dia 27, com as mesmas palavras
d’A Rua.220

217 O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo Bonfim. A Rua, Rio de
Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.
218 Uma greve de saias... A policia prende uma grevista. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.

219 O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo Bonfim. A Rua, Rio de

Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.


220 O momento operario. O Paiz, Rio de Janeiro, 27 jun. 1919. Casos de policia, p. 6.
51

Figura 6 – “Sentadas, as tres operarias que foram violentamente levadas á policia. De pé, á direita, as duas
delegadas da ‘União’, e á esquerda, duas das operárias dispensadas”. Fonte: A Rua, 26/06/1919.

Na entrevista, Elvira se lembrou deste episódio de violência. Em sua memória, a oficina


do Domingues na rua dos Andradas era uma fábrica de camisas masculinas.221 Elvira e mais
duas companheiras foram enfrentar o chefe de polícia Bandeira de Melo, conhecido no Rio de
Janeiro por reprimir greves operárias,222 que julgava as mulheres como “fracas” e
inconscientes”:223
Ele apareceu e disse: “O que as meninas querem comigo?” Eu digo: “Quero
protestar contra o absurdo que houve. Prenderam três companheiras por
fazerem greve para a conquista das oito horas de trabalho.” E dali a pouco elas
foram soltas. O Bandeira de Melo me deu muitos conselhos, disse que eu não
me deixasse levar por aqueles sindicalistas da União dos Alfaiates, porque eles

221 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


222 GOMES, 1988.
223 FRACCARO, 2018.
52

só sabiam fazer barulho e mais nada. Eu digo: “Não, nós temos idéias próprias.
Não vamos nos deixar levar por ninguém.”224

Na assembleia do dia 27, foi decidido dar continuidade à greve, sem voltar ao trabalho,
até que elas recebessem as respostas dos patrões. Ocorreram mais protestos contra os abusos
no estabelecimento de J. J. Domingues, por parte das oradoras, e foi decidida a criação de uma
comissão para atuar junto à imprensa para continuar as denúncias não somente contra os
patrões, mas também contra a polícia.225
De acordo com O Paiz, na edição do dia 28, “A União das Costureiras move intensa
propaganda entre as moças para que a parede seja generalizada.”, reforçando que não apenas as
costureiras estavam sendo convidadas para as reuniões, mas também “as modistas de
chapéus”,226 as operárias chapeleiras e as operárias bordadeiras, 227 como visto no Correio da
Manhã.228
Já em julho, dia 2, a greve prosseguia, e a coluna Gazeta Operária, do periódico Gazeta
de Noticias, informou que o ateliê “Mme. Alzira G. Gomes”, na rua Uruguayana n. 10,
concedeu as oito horas de trabalho e o aumento dos salários. 229 Não foi possível, através das
fontes da imprensa, dizer ao certo quando a greve teve o seu fim. Ainda no dia 27 do mês
anterior, o mesmo jornal informava que as costureiras estavam esperando a resposta de alguns
patrões para o retornar ao trabalho. 230
Em sua entrevista, Elvira Boni se recorda da greve, que foi noticiada como “a greve das
abelhas do luxo”, visto que muitas das operárias trabalhavam em ateliês de alta costura e
produziam roupas luxuosas para mulheres de classe alta. De acordo com sua memória, a

224 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988., p. 34.


225 Uma greve de saias... A greve continúa. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 27 jun. 1919, p. 4.
226 O momento operario. O Paiz, Rio de Janeiro,28 jun. 1919. Casos de policia, p. 5.

227 As costureiras agem. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 jun. 1919. O movimento grevista nesta capital, p.

3.
228 Fundado em 1901, sob direção de Edmundo Bittencourt, e com equipe de jornalistas brasileiros que defendia o

patriotismo e oposição política. Se destacou no calor da luta política, e m oposição ao principal jornal do Rio de
Janeiro, O Paiz, rapidamente se tornou um jornal popular, apoiando a Revolta da Chibata, em 1910, e condenando
as medidas repressivas do governo Hermes da Fonseca. Em 1912, Bittencourt foi preso pelo governo Hermes por
apoiar as rebeliões populares. Com o fim do governo Hermes, o Correio da Manhã, incitou a invasão do jornal O
Paiz. Nas eleições de 1919, apoiou Rui Barbosa, que perdeu para Epitácio Pessoa, sendo o principal crítico a este
governo. SODRÉ, 1977.
229 União das Costureiras e Classes Annexas. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 02 jul. 1919. Gazeta Operaria,

p. 4.
230 Uma greve de saias... A greve continúa. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 27 jun. 1919, p. 4.
53

conquista das oito horas de trabalho tinha sido imediata. 231 No entanto, ao cruzar as fontes orais
com as fontes da imprensa, é possível afirmar que para a vitória coletiva das costureiras, elas
passaram por diversas formas de violência, como a prisão, as ofensas, o racismo e o cárcere
privado. Portanto, as costureiras conquistaram a vitória de suas pautas reivindicadas, depois de
cerca de duas semanas de intensos conflitos de classe.
Os acontecimentos da greve, que revelaram conflitos entre patroas e operárias, associam-
se também às greves de 1907 em São Paulo, uma década antes. Neste contexto, é possível citar
o caso das proprietárias de casas de moda Clementina Zona e Annita Franchini, que
curiosamente tinham tendências socialistas, e por este motivo estavam mais abertas ao diálogo
e à concessão das nove horas de trabalho reivindicadas pelas costureiras. 232
Na entrevista para Angela Gomes, Elvira Boni, ao responder sobre as reações das patroas
em relação ao seu posicionamento político, se lembra de uma proprietária que não se importava
com os cartões postais de Francisco Ferrer que Elvira distribuía nas oficinas. 233 No entanto, a
prática se demonstrava diferente, com o exemplo da greve da União das Costureiras do Rio de
Janeiro em 1919 e de Annita Pennazzi, a secretária da Liga das Costureiras de São Paulo durante
a greve de 1907.234
A operária socialista Annita Pennazzi debateu com a senhora Clementina Zona, dona de
uma casa de moda e esposa do socialista Arcangelo Zona, e denunciou os seus posicionamentos
antilibaneses e os baixos salários que pagava às operárias de sua oficina, evidenciando que
“considerava melhor ‘ser explorada pelos turcos, que socialisticamente’ por ela, que lhe pagava
muito menos.”235 Provavelmente Annita Pennazi foi uma inspiração para Elvira e as demais
integrantes da União das Costureiras.
Em um momento de sua trajetória, Elvira Boni tentou alugar uma sala e abrir um ateliê,
em que as lojas encomendavam os vestidos e pagavam por peça. Entretanto, Elvira não
conseguiria trabalhar sozinha e precisaria contratar algumas meninas. 236 Seu pai, o anarquista

231 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


232 BIONDI, Luigi. Classe e nação: trabalhadores socialistas italianos em São Paulo, 1890 -1920. Campinas:
Editora da Unicamp, 2011.
233 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

234 BIONDI, 2011.

235 Idem, p. 244.

236 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


54

Angelo Boni, a aconselhou e apontou uma contradição, que a colocaria em uma posição de
exploração de classe:
Meu pai disse: “Minha filha, assim não pode. Ou o sindicato, ou a
costura.” Eu disse: “Então eu quero o sindicato.” (...) De maneira que
desisti do ateliê para ficar só na União das Costureiras, para lutar em
favor das costureiras. Se eu tivesse abandonado o sindicalismo, indo
contra as minhas idéias, teria sido possível manter o ateliê. Por que aí
eu não teria pena de ninguém. Eu diria: “Se você quiser, vai ganhar
tanto e nada mais”, como faziam os patrões. Mas eu tinha idéias de
trabalhar em favor da humanidade, e o resultado foi esse.237

Depois da greve de junho, a União das Costureiras continuou realizando reuniões


semanais e prestando assistência às suas associadas. No restante do ano de 1919, foi difícil
encontrar mais fontes da imprensa sobre acontecimentos que envolveram o sindicato, para além
das reuniões em que elas discutiam as suas próximas tarefas para união da categoria e conquista
de direitos, que são pouco detalhadas pelos periódicos. 238
Entretanto, em agosto de 1919, as costureiras organizaram um festival no Centro
Cosmopolita, na rua do Senado, n. 215, mesmo local onde teria sido o Congresso Comunista.
O evento foi divulgado nas páginas do Jornal do Brasil e A Razão. As festas e festivais
organizados pelos sindicatos de resistência costumavam ser realizados para angariar fundos em
seu benefício. No festival das costureiras, ocorreram conferências e um baile familiar.239 Elvira
se lembrava das festas anarquistas, em que havia música e dança, e às vezes acabavam às 4
horas da manhã.240 De acordo com o Jornal do Brasil, na edição do dia 9, “Os ingressos têm
tido grande acceitação, sendo de se presumir que seja numerosa a concorrencia.” 241
No dia 20 de agosto, a União das Costureiras lançou um manifesto, publicado pelo Jornal
do Brasil. Elas decidiram pela criação de aulas noturnas, considerando a importância da
instrução de suas companheiras de classe. As aulas anunciadas foram de corte, costura,
bordados e confecção de chapéus, pois após a greve, “(...) muitas deixaram de ganhar, de
accordo com a tabella do memorial, por não se acharem habilitadas.” 242 Esta seria uma forma

237 Idem, p. 32.


238 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 07 jul. 1919. Movimento operario: Reuniões, p. 6.
239 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 ago. 1919. O operariado, p. 10;

O festival da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 09 ago. 1919. Movimento operario, p. 6.
240 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

241 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 ago. 1919, p. 10.

242 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 ago. 1919. O operariado, p. 9.
55

de burlar a exploração cometida contra as aprendizes. Zeni se lembra que Elvira aprendeu a
fazer chapéus na União.243
Foram anunciadas também futuras aulas de português, pela importância da alfabetização
e a falta de acesso à educação básica, e de francês,244 provavelmente para melhor entenderem e
se comunicarem com as proprietárias de origem francesa. Ainda no manifesto, elas convidaram
as costureiras do Rio de Janeiro para se associarem, sob o pagamento de 1$000 mensais para o
sindicato.245
Às quartas e sextas-feiras, à noite, uma comissão ficava na sede da União dos Alfaiates,
à disposição das costureiras, e a tesoureira Elvira Boni recebia as mensalidades e as prestações
de contas do festival que ocorreu no mesmo mês. No dia 21, ela publicou uma mensagem sobre
o assunto na grande seção do Movimento Operário do jornal A Razão.246
As costureiras Elisa Gonçalves de Oliveira, a segunda secretária da União, e Emma
Silveira, que participou das comissões de greve, fizeram parte da Liga Comunista Fem inina.247
As reuniões ocorriam no Centro Cosmopolita, e a operária Rosa Leal, que participou da
fundação da Liga Feminista Brasileira com Elvira, da qual não foram encontradas mais fontes,
era a tesoureira.248 Em setembro de 1919, Emma e Elisa presidiram uma reunião, quando
discutiram sobre a organização dos arquivos da associação, a publicação de um folheto escrito
pela professora Maria de Lourdes Nogueira e da festa em prol do jornal Spártacus,249 um
periódico anarquista e comunista que foi fundado em agosto de 1919.250 Um destes festivais
pró-Spártacus ocorreu em agosto, e contou com a participação de Elvira Boni e de duas de suas
irmãs, Carolina e Ernestina.251
A Liga Comunista Feminina foi fundada em maio do mesmo ano, por algumas mulheres
proletárias, e tinha ligação direta com o recém-fundado Partido Comunista do Brasil, que ainda

243 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
244 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 ago. 1919, p. 9.
245 Ibidem.

246 União das Costureiras e Classes Annexas. A Razão, Rio de Janeiro, 21 ago. 1919. Movimento operario, p. 6.

247 Ibidem.

248 Liga Communista Feminina. A Razão, Rio de Janeiro, 26 jul. 1919. Movimento operario, p. 6.

249 O jornal Spártacus foi dirigido pelo anarquista José Oiticica. Foi perseguido e empastelado pela repressão. Foi

defendido por anarquistas renomados como Lima Barreto. SODRÉ, 1977.


250 Na Liga Feminina Communista. A reunião de hontem. A Razão, Rio de Janeiro, 06 set. 1919 Ultima hora:

Movimento operário á noite, p. 5. O irmão de Elvira, Amílcar, foi preso em uma ocasião em que buscava
exemplares do Spártacus para fazer propaganda. Ele trabalhava na Light, e depois de solto, descobriu que estava
demitido. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
251 O nosso festival. Spártacus, Rio de Janeiro, 09 ago 1919, p. 3.
56

não era oficialmente o PCB (este foi fundado em 1922), baseado em ideias anárquicas-
comunistas, neste período logo após a Revolução Russa.252 Na Rússia soviética, além da
participação massiva de mulheres operárias e camponesas revolucionárias, foi a primeira nação
a instituir o sufrágio universal e mais uma série de direitos para as mulheres, como o aborto e
o divórcio, na Constituição de 1918.253
Em outubro, a Liga Comunista Feminina organizou um festival com a participação do
propagandista anarquista Carlos Dias, apresentações teatrais e baile, e com alianças com outros
operários, como o companheiro Manuel Rocha, da União dos Operários da Construção Civil.
O festival foi anunciado no jornal A Rua, na divisão Vida Proletária.254
Não é possível neste trabalho aprofundar muito em relação à constituição e aos debates
promovidos na Liga Comunista Feminina, porém o jornal Spártacus é uma fonte que permite
adentrar ao pensamento das mulheres operárias comunistas neste período. Como exemplo, elas
debatiam a questão da família no regime comunista. Elas também organizavam protestos, como
contra o assassinato de companheiros em Niterói. 255
A Razão publicou, em junho, os objetivos da Liga: a emancipação feminina e o
estreitamento dos laços com o proletariado mundial, seguindo os princípios do “comunismo
anárquico”. Os cargos da comissão executiva da Liga Comunista Feminina eram similares à
estrutura sindical da União das Costureiras: havia secretárias, tesoureiras e uma bibliotecária, e
as companheiras que fossem associadas deveriam contribuir com uma quantia mensal. 256
O socialismo anárquico, que as operárias da Liga eram adeptas e denominavam como
comunismo, envolvia uma série de princípios. Nesta sociedade futura, todos os homens que
estão aptos a trabalhar deverão trabalhar; o trabalho deverá ser útil; os meios de produção
deverão ser coletivizados; o trabalho manual e intelectual deverão estar aliados, sem
hierarquias; as condições de trabalho deverão ser discutidas nas associações; não haverá classes
ou governos que exercerão poder; as trocas de produtos serão feitas entre as associações; e as

252 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
253 SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética. São

Paulo: Boitempo, 2017.


254 Liga Communista Feminina. Festival. A Rua, Rio de Janeiro, 15 out. 1919. Vida proletária, p. 2.

255 Liga Communista Feminina. Spártacus, Rio de Janeiro, 09 ago. 1919, p. 2.

256 Liga Communista Feminina. A Razão, Rio de Janeiro, 02 jun. 1919, p. 8.


57

próprias associações resolverão as formas de se fazer justiça.257 Finalmente, sobre a questão da


mulher, as trabalhadoras da Liga escreveram:
As uniões sexuaes devem fundar-se no amor. A mulher deve ser, economica
e moralmente, independente. Os filhos dependerão naturalmente, por vinculos
de affecto, dos seus progenitores, assim como tambem de toda a sociedade,
que a todos deve instrucção, apoio e meios de trabalho. 258

Estes princípios reúnem características do comunismo, do socialismo, do sindicalismo


revolucionário e do anarquismo,259 e permitem adentrar nas elaborações teóricas e projetos de
emancipação das mulheres operárias comunistas, algumas delas vinculadas à União das
Costureiras. Fica evidente a influência da formação do primeiro Estado operário no mundo no
campo das ideias e da atividade prática das mulheres operárias brasileiras.260
Os caminhos de emancipação das mulheres na Revolução Russa de 1917 incluía a
libertação das mulheres da classe trabalhadora das tarefas domésticas, da maternidade e do
trabalho de cuidados, para que se desenvolvessem enquanto indivíduos. Para isto, a União
Soviética construía creches e edifícios de moradia com lavanderias e cozinhas coletivas,
socializando o trabalho feminino.261
Angela Davis, que integrou o Partido Comunista dos Estados Unidos, afirma que: “Um
dos segredos mais bem guardados das sociedades capitalistas avançadas é a possibilidade – a
real possibilidade – a real possibilidade de transformar radicalmente a natureza das tarefas
domésticas.”262 A industrialização deste setor geraria pouco lucro, por não ser uma atividade
produtiva, e livraria a mulher da condição de oprimida no interior do lar, dois aspectos que não
são interessantes para a reprodução do capitalismo. Davis, que escreveu Mulheres, raça e classe
nos anos 1980, percebe que a emancipação da mulher através da libertação do trabalho
doméstico se concretizou apenas nos países socialistas.263

257 Ibidem.
258 Ibidem.
259 Para Margareth Rago, a opressão de gênero recai de maneira mais forte sobre a moral. Para combatê-la, as

mulheres anarquistas reivindicavam o “amor livre” contra o modelo de casamento burguês. RAGO, 1985. Ver
também: LOBO, Elisabeth Souza. Emma Goldman: a vida como revolução. São Paulo: Brasiliense, 1983 A
comunista Alexandra Kollontai delineou os princípios do “amor camaradagem”. Ver: KOLLONTAI, Alexandra.
A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
260 BANDEIRA, 2004.

261 Os textos das bolcheviques Alexandra Kollontai e Nadiédja Krupskaia descrevem este movimento. Ver:

SCHNEIDER, 2017.
262 DAVIS, 2016, p. 226.

263 Idem.
58
59

3 CAPÍTULO II – 1920: AS COSTUREIRAS, O JORNAL VOZ DO POVO E O


TERCEIRO CONGRESSO OPERÁRIO

No ano de 1920, foi fundado o jornal Voz do Povo, órgão da Federação dos Trabalhadores
do Rio de Janeiro, herdeiro da FORJ, que havia sido fechada pela polícia em 1917 e era ligada
à COB, organização nacional dos operários de todo o Brasil, de orientação sindicalista
revolucionária.264 O jornal teve uma vida curta, com um ano de duração. No entanto, o número
de publicações e informações sobre a União das Costureiras e Classes Anexas foi essencial para
a pesquisa, visto que se trata de um periódico cujos redatores e administradores eram militantes
e operários sindicalistas. Elvira Boni e seu irmão Amílcar eram colaboradores do jornal. 265
No dia 6 de fevereiro, de acordo com a Voz do Povo, a comissão executiva da União das
Costureiras estava elaborando um manifesto de propaganda organizadora a ser distribuído nas
oficinas de costura. Foi apresentada a situação difícil que as costureiras, bordadeiras e
chapeleiras estavam enfrentando: os baixos salários e os ambientes de trabalho anti -
higiênicos.266
Após o carnaval, no dia 28, o referido Manifesto da União das Costureiras foi publicado
no jornal, convidando as sócias e não sócias para uma reunião no dia 3 de março. Elas clamavam
para que a classe se unisse, para assim ter a possibilidade de trocar ideias e experiências para
garantir a melhoria de suas condições de vida e de trabalho. A questão das condições higiênicas
das oficinas se tornou uma pauta importante. Elas prezavam pela coletividade e união das
mulheres trabalhadoras: “Separados somos fracos, somos fortes bem unidos.”267
Emma Silveira, que participava da União das Costureiras e da Liga Comunista Feminina,
fundou e foi diretora geral do Grupo Feminino Instrutivo e Recreativo Operário, onde havia
algumas operárias matriculadas em julho. A Voz do Povo julgou sua atitude como uma “bella
iniciativa”. As aulas oferecidas eram de português, francês, aritmética, contabilidade,

264 TOLEDO, Edilene Teresinha. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes na


Primeira República. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
265 Os que nos auxiliam. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 02 mar. 1920, p. 3.

266 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 fev. 1920. A vida dos trabalhadores,

p. 3.
267 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 28 fev. 1920. Vida dos trabalhadores:

Manifestos, p. 3.
60

datilografia, corte, costura, confecção de chapéus, espartilhos e bordados. “Nesse grupo poder -
se-ha matricular creanças, moças e mesmo senhoras edosas.”268
Elas organizariam festivais de dois em dois meses, que proveriam a sua renda, visto que
os cursos seriam gratuitos. O Grupo foi formado pela Emma, costureira, professora de francês
e de datilografia, a bordadeira Corina Liccurso, a ajureira Graziella Braga, a encadernadeira
Luiza de Castro, a chapeleira Maria José e a coleteira Olga de Castro. 269
Em abril, ocorreu o Terceiro Congresso Operário Brasileiro no Rio de Janeiro, um evento
que reuniu delegados de sindicatos operários de todo o país, para discutir os rumos coletivos
das lutas da classe. O discurso da Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro era
sindicalista revolucionária, buscando a união do proletariado e a emancipação da “tuttela
capitalista”. Eis a avaliação da Voz do Povo, em março, sobre a futura realização do Congresso:
“(...) E o enthusiasmo com que os trabalhadores, não só da Capital como dos Estados, têm
acolhido a iniciativa do Congresso, leva-nos a dizer que a sua emancipação está bem mais
proxima do que a gente pensa...”.270
No dia 20 de março, foram confirmadas a presença de trabalhadores de São Paulo,
Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. A União das Costureiras já
havia aderido à participação, com a contribuição de 150$000, uma quantia que revela um
provável número significativo de associadas. 271
Na União dos Operários em Construção Civil, ocorreu no dia 5 de abril uma sessão solene
envolvendo as associações de resistência “co-irmãs”, sendo uma delas a União das Costureiras.
Participaram todos os representantes destes sindicatos, sejam aquelas que reuniam
trabalhadores por categoria, como a União Geral dos Metalúrgicos, ou por bairro, como a União
dos Operários Fabril de São Cristóvão, e a reunião foi presidida pelo presidente do jornal Voz
do Povo. Estava na ordem do dia um protesto contra a prisão de alguns “camaradas” que foram
encarcerados pela polícia carioca e sentenciados à deportação. 272 Durante a Primeira República,
muitos operários estrangeiros envolvidos na militância política dos trabalhadores foram

268 Uma bella iniciativa. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 07 mar. 1920, p. 2.
269 Ibidem.
270 Terceiro Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 20 mar. 1920. A vida dos trabalhadores,

p. 3.
271 Ibidem.

272 União dos O. C. Civil. Sessão solemne. Voz do Povo, 06 abr. 1920. Vida dos trabalhadores, p. 3.
61

deportados para seus países de origem, como uma tática de repressão para desestabilizar o
movimento.273
Um artigo foi publicado pela Voz do Povo, assinado por “Um Detento”. Ele protestou
contra as deportações dos camaradas, e condenou a ação dos “amarelos”, que colaboravam com
os patrões e a polícia com a entrega de outros trabalhadores. 274 “Amarelos” era uma forma
pejorativa que os sindicalistas revolucionários, ou outros adversários políticos, denominavam
os sindicalistas reformistas. 275 Ele salientou a importância das mulheres que escreviam em prol
das lutas revolucionárias, como a costureira Elisa Gonçalves, Thereza Escobar e Maria de
Lourdes Nogueira.276
Elisa e Maria de Lourdes faziam parte do Centro Feminino de Estudos Sociais.
Paralelamente à União das Costureiras, as trabalhadoras se organizavam também em diversas
associações próprias. No final de março de 1920, elas protestaram contra a repressão do governo
de Epitácio Pessoa contra os trabalhadores em greve nos últimos tempos, sobretudo dos
operários da Leopoldina Railway e da Federação de Condutores de Veículos.277 Esta foi uma
das grandes paralisações que ocorreram no Rio, com muita adesão e solidariedade da Federação
de Trabalhadores do Rio de Janeiro.278 De acordo com a Voz do Povo foram presos mais de
dois mil grevistas.279 Várias sociedades operárias foram invadidas. Foram quatro dias de
repressão por parte da polícia e das tropas do Exército.280 Em seu comício, as operárias do
Centro Feminino também se centraram na questão da mulher operária, “(...) victima de todas as
miserias e violencias.”281
A professora Maria de Lourdes Nogueira, também da Liga Comunista Feminina, escreveu
para a Voz do Povo no dia 19 de março um trecho sobre a “Era Nova”, anunciando “tumultos
revolucionários” e saudando as companheiras organizadas no Centro Feminino de Estudos

273 TOLEDO, 2004.


274 Écos da gréve. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 03 abr. 1920, p. 1.
275
BATALHA, Claudio Henrique Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
276 Écos da gréve. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 03 abr. 1920, p. 1.

277 O Comicio do Centro Feminino de E. Sociaes. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1. Elvira se

lembra desta greve, os meios de transporte da cidade paralisaram, e ela foi andando do Cordovil, subúrbio onde
morava, para o centro, onde trabalhava. LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983.
Apud: GOMES, Angela de Castro. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
278 BATALHA, 2000.

279 Aos trabalhadores em geral. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1.

280 BATALHA, 2000.

281 O Comicio do Centro Feminino de E. Sociaes. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1.
62

Sociais. É interessante a menção das mulheres brasileiras e de suas “irmãs” no além -mar, o que
demonstra o contato e diálogo entre mulheres anarquistas e comunistas era internacional. 282
Em fevereiro, as mulheres do Centro Feminino de Estudos Sociais haviam lançado um
manifesto na Voz do Povo. Sua associação foi formada no dia 22 de janeiro de 1920, e no
manifesto elas convidavam todas as mulheres, independente de raça, nacionalidade, crença ou
profissão, para protestarem contra a escravização econômica, moral e jurídica, “(...) que
asfyxiam, degradam e aviltam o sexo feminino.” Assim como ressaltavam a importância de sua
instrução e compreensão da sociedade em que vivem. “Professoras, funccionarias, costureiras,
floristas, operarias em fábricas ou ‘ateliers’, trabalhadoras em artes domésticas: Vinde, vinde
até nós, que sereis jubiliosa e fraternamente acolhidas.” 283
No dia 21 de abril, o tesoureiro da comissão organizadora do Terceiro Congresso
Operário informou na Voz do Povo as quantias das doações para o evento, com a relação de
cada sindicato envolvido, totalizando 1:277$000. A União dos Operários em Construção Civil
arrecadou 200$000, sendo a associação que doou maior quantia. Em segundo lugar, ficou a
União das Costureiras com seus 150$000, uma doação expressiva, considerando o
compromisso feminino com o Congresso. 284
A sessão inaugural do Terceiro Congresso, ocorreu no dia 23 de abril, na sede da União
dos Operários em Fábricas de Tecidos, e todos os trabalhos foram realizados em sete dias. Neste
primeiro dia, foram discutidas as normas do Congresso. As delegadas eleitas pela União das
Costureiras para participarem do Congresso foram Elvira Boni e Noemia Lopes. 285 A Voz do
Povo informou que Elvira precisou sair mais cedo no primeiro dia, e emocionou os camaradas
presentes ao exclamar com entusiasmo: “Paz entre nós, guerra aos senhores!”, trecho da canção
“A Internacional”, significativa para a união dos trabalhadores contra a classe que os explora. 286
O periódico O Imparcial, ao noticiar sobre o Congresso, relatou o ocorrido, informando que

282 NOGUEIRA, Maria de Lourdes. Era Nova. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 mar. 1920, p. 2.
283 Grupo Feminino de Estudos Sociaes. Um manifesto á mulher brasileira. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 07 fev.
1920, p. 1.
284 Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 21 abr. 1920. A vida dos

trabalhadores, p. 3.
285 Ibidem. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

286 Paz entre nós: guerra aos senhores. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 24 abr. 1920. O Terceiro Congresso: A

imponente sessão de hontem, p. 1.


63

Elvira lamentou que os trabalhos se estenderam até muito tarde, e que os seus pais a esperavam
preocupados em casa, sendo este o motivo de sua saída. 287
Sobre a sessão do dia 25, a Voz do Povo publicou: “A esplendida assembleia de hontem
constituía ainda uma admiravel affirmação de energia e de solidariedade, neste momento de
repressão e reacção capitalista.”. 288 No período do Terceiro Congresso, a COB já não existia
mais, pois o momento era de intensa repressão às organizações operárias após as
movimentações de 1917 a 1919. No entanto, este congresso foi importante para afirmar os
esforços de união e solidariedade da classe trabalhadora. Este aspecto do sindicalismo
revolucionário tem influências do marxismo, como a conhecida frase do Manifesto Comunista,
de Karl Marx e Friederich Engels: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”, com forte caráter
internacionalista.289
Os operários do Congresso enviaram saudações para os operários e o movimento
libertário de todo o mundo, especialmente a União Geral dos Metalúrgicos, a União dos
Operários da Construção Civil, de São Paulo, e do Rio, cujo delegado foi o anarquista
Domingos Passos. A União das Costureiras e a Aliança dos Trabalhadores em Marcenaria
enviaram saudações especiais para o proletariado russo: “(...) que tão alto tem erguido o facho
da revolta triumphante, abrindo o caminho do bem-estar e da liberdade aos trabalhadores
mundiaes.”290 É um fato significativo que estreita os laços entre as mulheres costureiras e a
Revolução Russa. Estas mesmas associações enviaram saudações especiais também ao
proletariado português, por suas lutas e resistências às tiranias do capitalismo.291
Após as saudações, foram apresentadas as reivindicações e pautas do Congresso. Dentre
elas, estavam a organização associativa e a jornada de oito horas para os trabalhadores do
campo, o desenvolvimento das escolas operárias, a questão da repressão e da perseguição contra
militantes e operários e o protesto contra a lei de expulsão, a centralidade da luta de classes e o
acolhimento das divergências políticas no interior dos sindicatos. Algumas propostas
interessantes levantadas pelos delegados foram a fundação de um Partido Sindicalista brasileiro

287 O terceiro Congresso Operario. Realisou-se hontem a primeira sessão preliminar. As resoluções tomadas. O
Imparcial, Rio de Janeiro, 24 abr. 1920, p. 14. Elvira afirmava que tinha muita liberdade para a época: às vezes,
saía ao meio-dia e voltava para casa à meia-noite. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
288 A installação do 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 1.

289 TOLEDO, Edilene. Para a união do proletariado brasileiro: a Confederação Operária Brasileira, o sindicalismo

e a defesa da autonomia dos trabalhadores no Brasil da Primeira República. Cadernos Perseu, n. 10, Ano 7, 2013.
290 A installação do 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 1.

291 Ibidem.
64

e a aplicação de uma tendência comunista nos sindicatos,292 visivelmente inspirados pelos


acontecimentos na Rússia.293 A Voz do Povo realizou uma cobertura intensa e detalhada do
Congresso.294
Elvira Boni foi presidente da mesa de encerramento (Figuras 7 e 8) no sétimo dia do
Congresso e véspera do 1º de Maio, ao lado de três secretários.295 Nesta sessão final, foram
discutidas o tema das orientações e finalidades, 296 com seis resoluções publicadas pela Voz do
Povo: a centralidade da vida na luta entre as duas classes, a produtora, dos pobres, e a capitalista,
dos ricos; o fato de que os trabalhadores produzem toda a riqueza da sociedade; a luta contra
esta injustiça, que é a apropriação da riqueza produzida pelos capitalistas; a importância da
organização da classe; a luta pela igualdade social; e a necessidade de construção de uma
sociedade em que o produto do trabalho seja de fato propriedade de todos os trabalhadores. 297

Figura 7 – “Dois aspectos da sessão de encerramento: ao alto, a mesa que dirigiu os trabalhos, presidida pela
camarada Elvira Boni e secretariada pelos camaradas José Salazar, Orlando Martins e Isidoro Diego; em baixo,
um aspecto da assembléa.

292 Ibidem.
293 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
294 A instalação do 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 1.

295 U. das Costureiras e C. Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920. A vida dos trabalhadores, p. 3.

296 3º Congresso Operario. A sua 7ª e ultima reunião. A Razão, Rio de Janeiro, 30 abr. 1920, p. 5.

297 A grande realisação. As resoluções do 3º Congresso. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920, p. 2.
65

Figura 8 – “Elvira Boni na mesa diretora do 3º Congresso Operário Brasileiro, 1920 (Rodrigues, s.d.).” Fonte:
HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. São Paulo:
Editora Unesp, 2002, p. 266.

Elvira Boni e Noemia Lopes foram as únicas duas mulheres no Congresso, dentre 116
delegados. Sobre o seu discurso na mesa de encerramento:
Eu era um pouco inibida nessa ocasião, não me achava com grande
possibilidade de conversar, de dissertar sobre os assuntos. Sabia o que queria,
mas não sabia me expressar. Mas presidi a última sessão do congresso,
quiseram que eu presidisse. (...) Apenas me comuniquei com os companheiros
presentes. Nem escrevi. Demonstrei apenas satisfação por ter tomado parte e
desejei que aquilo continuasse, se tornasse uma realidade. 298

Dentre todas as questões levantadas durante o Congresso, destaco aqui a resolução em


relação às mulheres proletárias. Primeiramente, ficou decidido o esforço para que as operárias
se interessem pelas associações sindicais e pela formação política. Outros aspectos interessantes
foram estes: “(...) que se estabeleça no trabalho um ambiente de respeito, repellindo a
brutalidade dos patrões, intensificando a campanha no sentido de que para ellas seja abolido o

298 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 36.


66

trabalho nocturno e os seus salarios equiparados aos dos homens.” 299 Foram incorporadas
reivindicações historicamente importantes para as mulheres, como a pauta do “trabalho igual,
salário igual”, e o “ambiente de respeito” refere-se à contraposição aos abusos sexuais
cometidos pelos patrões.300
Um dos delegados do Pará, José Placido de Albuquerque, faleceu durante sua estadia no
Rio. Ele estava internado no Hospital da Misericórdia. O seu corpo foi transportado para a sede
da União dos Operários da Construção Civil, e velado durante o dia e a noite, 30 de abril. A
União das Costureiras e outras tantas associações participaram do velório, e todas as despesas
do enterro foram pagas pela Comissão Executiva do Terceiro Congresso. 301
Era comum que, quando algum operário ficasse doente, as associações se organizassem
e angariassem fundos para o seu benefício.302 Quando a costureira Elisa Gonçalves de Oliveira
adoeceu, em 1920, a Voz do Povo arrecadou dinheiro através festivais de apoio mútuo, no
Centro Cosmopolita303 e no Centro Galego, para a sua a melhoria de sua saúde. 304
As páginas do jornal Voz do Povo nos permite adentrar mais a fundo no cotidiano das
costureiras. Dentro da seção Vida dos Trabalhadores, na coluna O povo reclama, no dia 26 de
abril de 1920, houve uma denúncia contra Angelina Fontes, contra-mestra da “Casa Colombo”,
que insultava as operárias: “(...) chama as infelizes costureiras de ladras e de outros nomes que
a decencia não permitte dizer. Além disso, na distribuição do serviço, é de uma injustiça capaz
de revoltar a creatura mais cordata deste mundo.” 305

299 A grande realisação. As resoluções do 3º Congresso. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920, p. 2.
300 A questão da proibição do trabalho noturno suscitou debates complexos. Algumas feministas afirmavam que
as leis que proibiam o trabalho noturno para as mulheres e a licença-maternidade a protegiam dentro do modelo
da mulher “mãe” e “guardiã do lar”, causando expulsão da mão de obra feminina no mercado de trabalho. É
interessante a análise dos impactos da presença e da ausência desta legislação no cotidiano do trabalho feminino.
Em muitos casos, as operárias reclamavam que a permissão para o trabalho noturno significava apenas a extensão
do trabalho diurno, sem limite e sem o pagamento adequado. Ver: FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os
direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2018; RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
301 3º Congresso Operario. A morte de um dos delegados do Pará. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920,

p. 21.
302 BATALHA, 2000.

303 Grande Festival no Centro Cosmopolita. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 mai. 1920. Vida associativa dos

trabalhadores, p. 3.
304 Apoio mutuo. Grande festival. No Centro Gallego. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12 jun. 1920, p. 1; O festival

de quarta-feira no Centro Gallego. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 27 jun. 1920, p. 2.


305 O povo reclama. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920. Vida dos trabalhadores, p. 3.
67

Durante os dias que se realizaram o Congresso, a Voz do Povo publicou um Manifesto da


União das Costureiras, que chama as mulheres de toda a classe para se associarem e
participarem das lutas operárias:
É tempo de quebrardes as cadeias que vos aprisionam que são a exploração
desenfreada dos patrões, os velhos preconceitos do luxo e da vaidade,
deixando de ser assim as ovelhas tosquiadas, humilhadas, para serdes tambem
a maior parte desta força que luta pela emancipação humana.
(...)
No momento em que o proletariado do mundo inteiro sem distincção de sexo,
raça ou nacionalidade se levanta, unido pelo laço da verdadeira solidariedade
e luta pelas causas tão justas que são as de Igualdade e Fraternidade universal,
é justo também que no Brasil a mulher desperte do somno apathico em que
vive, e se organise em suas associações de classe, para que, firmes e cohesas
possam auxiliar a marcha do operariado que avança sempre, até a realisação
completa do sublime ideal da redempção humana, sem que nada a faça estacar
ou recuar, pois que ella attrahe a si todas as victimas da pessima organização
actual. 306

Elas destacaram a importância das mulheres se organizarem, e além delas, chamaram seus
irmãos, pais e noivos, para que compreendam as especificidades da luta operária feminina e
engrossem as suas fileiras.307 É significativo que as mulheres, tanto da União quanto de outros
grupos de operárias, reforcem o convite à participação e união independente de gênero, raça ou
nacionalidade, neste período de forte repressão à liberdade da mulher, do nacionalismo
exacerbado crescente do entre-guerras e da importação das teorias raciais “científicas” da
Europa, que sustentavam o racismo e o colonialismo no âmbito internacional.308
No final do manifesto, elas convidaram todas as costureiras, chapeleiras e bordadeiras
para comparecerem à próxima reunião, em que haveria uma pequena palestra feita por uma das
companheiras. E terminam: “Viva a ‘emancipação da mulher!’”. 309
No dia 9 de maio, as costureiras da União publicaram na Voz do Povo um convite à
próxima assembleia, reafirmando a importância da união de resistência no sindicato, para a

306 U. das Costureiras e C. Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 27 abr. 1920. A vida dos trabalhadores: nos
syndicatos, nas officinas, nas obras e nas fabricas – Notas e informações, p. 3.
307 Ibidem.

308 “As influências das ideias racistas e deterministas das Teorias Raciais serão introduzidas no Brasil no fim do

século XIX e perduraram de forma intensa até o fim da Primeira República em 1930. Os discursos racistas
travestidos de cientificidade foram propagandeados pelo Brasil, pelos museus, institutos históricos, faculdades de
direito e principalmente faculdades de medicina.” SANTOS, Maíra Rodrigues dos. SILVA, Thiago Dantas da. A
Abolição e a manutenção das injustiças: a luta dos negros na Primeira República brasileira. Cadernos Imbondeiro.
João Pessoa, v. 2, n. 1, 2012, p. 2.
309 U. das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 27 abr. 1920. A vida dos trabalhadores:

nos syndicatos, nas officinas, nas obras e nas fabricas – Notas e informações, p. 3.
68

defesa de seus interesses enquanto trabalhadoras. Sobre a participação da União das Costureiras
no Terceiro Congresso Operário, elas julgaram este feito como uma “grande missão”, e que as
orientações deveriam ser seguidas. Como de costume, elas terminaram o apelo com a palavra
de ordem “Avante, companheiras! – Associai-vos! Todas á União!”.310
No dia 17 de maio, A Noite divulgou a comemoração do primeiro aniversário da União
das Costureiras e Classes Anexas, neste mesmo dia no período noturno, na sede na rua Senhor
dos Passos, 8-A, que dividiam com a União dos Alfaiates. 311 O movimento operário tinha um
calendário de importantes datas comemorativas para a classe: o 1º de Maio era o principal, mas
também incluía o dia do assassinato do anarquista catalão Francisco Ferrer, dia 13 de outubro,
o dia da queda da Bastilha, 14 de julho, e os aniversários das fundações de associações
operárias.312
Na seção Última Hora – Vida dos Trabalhadores, a Voz do Povo também divulgou o
evento das costureiras. Enquanto A Noite falava sobre uma agremiação e sociedade, de “(...)
sympathicas e modestas artistas que, com o seu labor obscuro, contribuem para o esplendor da
elegância carioca (...)” 313, a Voz do Povo, enquanto imprensa operária, se referia como o
aniversário das “companheiras”, e falava sobre a importância do “(...) conhecimento dos fins a
que se propõe a União, lutando sempre pela organização da classe.” 314 O Jornal também
mencionou o evento, com poucos detalhes, também se referindo às costureiras como
“modestas”.315
A Voz do Povo publicou um convite no dia 31 de maio para que as costureiras, bordadeiras
e chapeleiras comparecessem à assembleia da União das Costureiras, no dia 2 de junho, em sua
sede social.316 As pautas discutidas foram a eleição de uma nova comissão executiva, o que

310 União das costureiras e classes annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 09 mai. 1920. Ultima hora: Vida dos
trabalhadores, p. 2.
311 A União das Costureiras e Classes Annexas vae commemorar, amanhã, o seu primeiro anniversario. A Noite,

Rio de Janeiro, 17 mai. 1920, p. 2.


312 BATALHA, 2000.

313 A União das Costureiras e Classes Annexas vae commemorar, amanhã, o seu primeiro anniversario. A Noite,

Rio de Janeiro, 17 mai. 1920, p. 2.


314 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 17 mai 1920. Ultima hora: Vida dos

trabalhadores, p. 2.
315 A União das Costureiras e Classes Annexas. O seu primeiro anniversario. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 mai.

1920, p. 2.
316 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 31 mai. 1920. Vida dos trabalhadores,

p. 3.
69

revela a alternância de poder e o caráter democrático da União, e a discussão dos meios para
conseguir melhorias para a categoria:
Se todas as companheiras desejam diminuir os seus soffrimentos, obtendo um
pouco mais de liberdade, devem attender a este convite, para que todas unidas
possam conquistar tudo que de direito lhes pertence.
É tempo de lutarmos sem temor, sem medo, pela nossa emancipação!
A união faz a força. – A Comissão. 317

A assembleia geral das costureiras do dia 5 de junho foi presidida por Maria Lopes e
secretariada por Isabel Pelereiro e Emma Silveira. A tesoureira Elvira Boni palestrou para as
companheiras sobre as resoluções do Congresso que participou e as condições do proletariado
nacional. Nesta assembleia, a secretária Aida Morais foi substituída por Placida Santos. Emma
Silveira também falou às companheiras, para que lessem cotidianamente a Voz do Povo, “(...)
o unico que defende fielmente a nossa causa, na qual se publicam todas as nossas notas.”. Ficou
decidido, ao final, para que organizassem uma palestra com o deputado Maurício de Lacerda,
aberta para todos os operários e especialmente para todas as mulheres trabalhadoras, não apenas
do ramo da costura.318
Em junho de 1920, a Voz do Povo publicou uma notícia que denunciava os abusos
patronais sofridos pela “camarada” Elvira Boni no estabelecimento “Moda Elegante”. Com
detalhes, o jornal discursava sobre a violência dos patrões contra os operários, que não eram
casos isolados e nem mesmo excepcionais em contextos de greve. “Note-se, ainda, que não são
só os operarios que soffrem as consequencias da estupidez crassa desses gananciosos. As moças
operarias também, não só nas fábricas, como nas officinas e ateliers de costura.”319
O texto é detalhado, e evidencia o caráter de exploração dos trabalhadores pela burguesia
– gananciosos, ambiciosos, prepotentes, estúpidos, mesquinhos – que sugam o suor das
proletárias e ainda as tratam com desrespeito. “Os gananciosos, além de explorá-las, tentam
ainda subjuga-las, impor-lhes serões, maltrata-las e para o cumulo de todas as ignorancias,
quando ellas reclamam e se revoltam, calumnia-las e infama-las. Não sabem esses traficantes
que são moças de familia, que merecem todo o respeito, todo o acatamento.” 320

317 Ibidem.
318 União das Costureiras e Classes Annexas. Assemblea Geral. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 05 jun. 1920. Vida
associativa dos trabalhadores, p. 3.
319 Na “Moda Elegante”. A camarada Elvira Boni victima da prepotencia e da estupidez dum espertalhão. Voz do

Povo, Rio de Janeiro, 12 jun. 1920, p. 2.


320 Ibidem.
70

Elvira Boni foi ao estabelecimento de modas e oficina de costura “Moda Elegante”, na


rua Uruguayana n. 18, procurando emprego, foi contratada e começou a trabalhar no dia 13 de
maio. Bastos, marido da proprietária do estabelecimento, explicou as condições de trabalho na
casa, e informou que em alguns sábados elas realizariam serões, porém, isto se tratava de uma
mentira, pois em todos os sábados as costureiras cumpriam horas extras até tarde da noite. 321
Tinha mentido para poder escravisar as costureiras. A camarada Boni, porem,
no ultimo sabbado, reclamou. A mulher de Bastos, queria a viva força que
ella acabasse num serão uma peça de costura, o que era impossivel mesmo
com uma ajudante.
A mulhersinha declarou se não acabasse que poderia se considerar
despedida.322

Segundo a Voz do Povo, Elvira tentou confeccionar a peça o mais rápido possível, porém
não conseguiu terminar. Como castigo, o patrão Bastos a demitiu, e Elvira retrucou, como uma
boa sindicalista, dizendo que as condições de trabalho apresentadas inicialmente foram
violadas. Bastos insultou-a verbalmente, com “palavrões inadmissíveis”, e a empurrou para a
rua, praticando violência física. 323
No dia seguinte, Elvira voltou à oficina acompanhada de uma companheira, para receber
o pagamento, e:
(...) foi de novo, estupidamente recebida por Bastos e por Bessa que
continuaram nas suas injurias, provocando dentro do estabelecimento um
escandalo, que mereceu reprovação visivel da freguezia que alli se encontrava.
Bastos chegou a chamar um guarda civil para prender as duas moças, víctimas
de sua estupidez e do seu desbrio. 324

O intuito do jornal foi denunciar a violência sofrida por Elvira e sua companheira, e alertar
as demais costureiras do perigo que ofereciam o patrão e a patroa deste local. A exploração de
classe é algo inerente ao capitalismo, porém, o aviso para que não busquem emprego na “Moda
Elegante” servia para evitar que sofressem mais ainda com os insultos, ataques violentos, os
injustos serões e as ameaças de prisão, sem rastros de diálogo.325
Em um domingo, 27 de junho, o dr. Maurício de Lacerda fez a referida conferência na
União das Costureiras, e a Voz do Povo divulgou o convite para o “operariado em geral”. 326

321 Ibidem.
322 Ibidem.
323 Ibidem.

324 Ibidem.

325 Ibidem.

326 União das Costureiras e Classes Annexas. Conferencia pelo dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de

Janeiro, 27 jun. 1920, p. 2.


71

Maurício de Lacerda foi um deputado federal importante, que defendia os direitos dos
trabalhadores na Câmara. Inclusive, de acordo com a pesquisa de Glaucia Fraccaro, Lacerda
apresentou projetos de lei que abordavam o trabalho feminino e infantil.327 Estas informações
cruzadas revelam o diálogo direto do deputado com as trabalhadoras.
A presença de um deputado federal em uma organização sindicalista revolucionária pode
soar contraditória, pois esta orientação política recusava a luta político-parlamentar, enquanto
o sindicalismo reformista apresentava candidatos operários às eleições.328 No entanto, haviam
exceções: a historiadora Angela de Castro Gomes caracteriza Maurício de Lacerda como um
deputado “indiscutivelmente um político popular”, que discursava e defendia os trabalhadores
contra a repressão na Câmara,329 e Nelson Werneck Sodré afirma que ele “(...) lutava sozinho
contra nova lei de repressão aos trabalhadores, nela confundidos com os contraventores da mais
variada espécie (...)”.330 Pai de Carlos Lacerda, Elvira revelou suas memórias sobre Maurício
na entrevista: “Por sinal, fez muitas conferências no nosso meio. Gostava muito dele, achava-o
uma pessoa muito correta, muito honesta. Falava muito bem, era bem diferente do filho.” 331
A edição do dia seguinte, 28, publicou os detalhes da conferência. Às 4 horas da tarde, o
salão estava cheio de mulheres operárias de “todas as classes associativas”, para além das
costureiras. Elvira Boni abriu a sessão e passou a palavra para Lacerda, que segundo o jornal,
“(...) foi ouvido com attenção e enthusiasmo durante sua magnifica conferencia.” 332
Lacerda falou sobre a exploração que a eram submetidas as costureiras nas oficinas por
seus patrões, e contou um pouco a história do movimento feminista. “Achou ineficazes esses
methodos de emancipar a mulher.” 333 É de se estranhar e julgar como sexista esta frase proferida
por um homem, ainda que seja um aliado na luta por direitos das mulheres da classe
trabalhadora.334 Porém, faz-se necessário historicizar o que se configurava e como se pensava

327 Os três projetos de lei formulados por Lacerda em 1917 foram relativos ao trabalho feminino, à criação de
creches nas indústrias e a criação de contratos de aprendizagem. Seus projetos envolviam contradições e limites,
que não cabe aqui aprofundar, mas visavam a proteção da mulher e o seu papel como cuidadora da família e
reprodutora da vida. FRACCARO, 2018, p. 95.
328 BATALHA, 2000.

329 GOMES, 1986, p. 71.

330 SODRÉ, 1977, p. 368.

331 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1986, p. 53-54.

332 Na União das Costureiras. A conferencia de hontem do dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de Janeiro,

28 jun. 1920, p. 1.
333 Ibidem.

334 FRACCARO, 2018.


72

o feminismo hegemônico naquele período, no âmbito nacional e internacional, que se abre para
um debate complexo que visa as intersecções entre gênero, raça e classe.
A revolucionária bolchevique Alexandra Kollontai, contemporânea das mulheres
costureiras deste estudo, criticava arduamente o feminismo das mulheres burguesas russas, que
lutava por direitos políticos como o voto feminino e excluía as pautas das mulheres
trabalhadoras. Kollontai afirmava que as feministas burguesas tentavam cooptar as mulheres da
classe trabalhadora para este feminismo, afastando-as dos homens da mesma classe, para
dissolver a união operária potencialmente revolucionária e manter a exploração.335
Glaucia Fraccaro critica a periodização do feminismo em ondas que colocou os
movimentos hegemônicos em primeiro plano, excluindo as lutas das mulheres de chão de
fábrica, que estavam construindo outras noções de feminismo:336 “O questionamento sobre o
uso da metáfora das ondas tem sido cada vez mais frequente por considerar que a periodização
entrincheira a percepção de um feminismo singular em que gênero é a a categoria predominante
de análise, deixando subsumidos os conflitos de raça e classe.”337
A filósofa estadunidense Angela Davis, feminista negra e marxista, resgatou a história do
feminismo nos Estados Unidos. As feministas da virada do século XIX para o XX eram
majoritariamente mulheres brancas de classe média e alta, sufragistas que se afastaram do
movimento abolicionista e apelaram para discursos supremacistas brancos, para defender o voto
feminino e seus interesses de classe em detrimento do voto dos homens negros, que estavam
sofrendo linchamentos com apoio da lei no período da pós-Abolição, no sul dos EUA.338
No caso das costureiras e as demais trabalhadoras cariocas que presenciaram e aplaudiram
a conferência de Maurício de Lacerda, a situação era semelhante. 339 Entre as costureiras e as
madames, suas patroas, a opressão de gênero as unia, porém a classe as separava. A exploração
do trabalho, por parte das mulheres burguesas, como os insultos e as violências praticadas por
elas, dentro e fora do contexto de greve, aproximava mais as costureiras de seus companheiros
homens da classe trabalhadora que também sofriam com os baixos salários, longas jornadas de
trabalho e mais abusos dos patrões, porém com diferentes intensidades.

335 SCHNEIDER, Graziela. A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética. São Paulo:
Boitempo, 2017.
336 FRACCARO, 2018.

337 Idem, p. 32-33.

338 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

339 Na União das Costureiras. A conferencia de hontem do dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de Janeiro,

28 jun. 1920, p. 1.
73

O discurso das costureiras sempre seguia a lógica de unir as mulheres e os homens


operários contra a classe patronal, na luta por seus direitos e por um novo modelo de sociedade,
em busca da igualdade em todos os níveis – que se assemelhava às ideias da comunistas
Alexandra Kollontai e Angela Davis. As mulheres anarquistas também acreditavam que
somente em uma outra sociedade, não mais capitalista, as mulheres e os homens teriam plena
igualdade: os mesmos direitos e oportunidades. 340 A anarquista Emma Goldman acreditava que
o voto não era uma arma, mas sim a violência revolucionária. 341
Isto não quer dizer que as mulheres trabalhadoras não eram oprimidas pelos próprios
operários. As mulheres eram pouco sindicalizadas, e um dos motivos se deve às relações de
poder desiguais entre homens e mulheres no interior do movimento operário.342 Alguns homens
operários eram contrários à permanência das mulheres nas fábricas e valorizavam a força de
trabalho masculina, reproduzindo o discurso fabricado pela sociedade burguesa que sustenta
novo modelo de feminilidade da mulher “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família” na imprensa
operária. Ainda, muitos as classificavam apenas como vítimas da exploração e deveriam estar
presentes nas associações, mas submissas aos homens, que seriam os líderes. 343
No âmbito da experiência pessoal, a neta de Elvira, Eneida Pamplona contou que o fato
de Olgier Lacerda, marido de sua avó, ser um comunista e um artista, não o salvou de ser um
grande machista: “(...) de exigir da esposa tudo aquilo que se exige de uma esposa no princípio
do século passado. Retidão, comportamento, ser boa cozinheira, ter a casa limpa, e além de tudo
isso, ser companheira, militante etc. Ou a mãe, etc.” 344
Entretanto, seguindo a reflexão de Angela Davis, os homens da classe trabalhadora não
eram os reais beneficiários deste sistema capitalista e patriarcal. Para Davis, o sexismo, assim
como o racismo, fazem parte e são estimulados pela ideologia burguesa, que cria hierarquias
entre os trabalhadores com o intuito de separá-los e fragmentar a classe, além do mais
importante, que é justificar a exploração mais brutal das mulheres e da população negra, que
recebem os salários mais baixos e enfrentam as ocupações de trabalho mais marginalizadas. E
quem lucra materialmente com a manutenção da ordem social e a exploração desenfreada de
certos segmentos da sociedade é a classe proprietária, burguesa.345

340 RAGO, 1985.


341 LOBO, Elisabeth Souza. Emma Goldman: a vida como revolução. São Paulo: Brasiliense, 1983.
342 FRACCARO, 2018.

343 RAGO, 1985.

344 Conforme depoimento gravado com Eneida Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

345 DAVIS, 2016.


74

No caso das mulheres, elas enfrentavam duplas ou triplas jornadas de trabalho, e


realizavam o trabalho improdutivo, invisível e não-remunerado do trabalho doméstico e da
reprodução da vida – elas são o sustentáculo de toda a produção capitalista. 346 As mulheres
negras, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, nações que se fundaram com base na
instituição da escravidão, eram majoritárias na categoria de empregadas domésticas ,347 que
também se organizaram pela primeira vez em um sindicato em 1936, em Santos, com a
liderança da mulher negra e comunista Laudelina de Campos Melo.348 O enfrentamento direto
da ideologia sexista pelas mulheres trabalhadoras sindicalistas, na teoria e na prática, as
colocava como vanguarda da emancipação feminina e de toda a classe operária, superando
muitos homens trabalhadores em suas análises da sociedade.
No Brasil, a bióloga feminista Bertha Lutz e a professora anarquista Maria Lacerda de
Moura criaram a Liga para Emancipação Intelectual da Mulher, “(...) que figurou como uma
das organizações que davam sustentação para a FBPF.”349 É interessante perceber que, neste
período dos anos 1920, mulheres católicas, conservadoras e de classe alta, como Iveta Ribeiro,
editora da Revista Feminina, se identificavam com a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino (FBPF), esta organização feminista e sufragista. Havia um abismo entre a vivência
de trabalho das mulheres operárias, que foi denunciado pelo Jornal do Povo, e o feminismo de
Bertha Lutz, que tinha como central a questão do voto feminino:350
As “feministas de classe média relutavam em cruzar a fronteira de classe” e
essa seria a razão que explicava por que “as operárias tinham poucos motivos
para aderir ao movimento feminista” (Besse, 1999: 194-196). No entanto, a
eleição de marcos históricos feministas, como a fundação da FBPF, calcados
na experiência de uma determinada classe, qual seja a de Bertha Lutz,
conduziu a contradição em uma linha reta e sem desvios. A depender das
greves e mobilizações entre os anos 1917 e 1920 e ainda aquelas dos anos
1930 que, não sem conflitos e com grande participação de mulheres,
denunciaram abusos, reivindicaram licença-maternidade e “trabalho igual,
salário igual” pode-se afirmar que o tema da igualdade entre homens e
mulheres estava mais presente na disputa da classe trabalhadora do que nos
primeiros anos da federação feminista. 351

346 Idem.
347 Idem.
348 SANTOS, Judith Karine Cavalcanti. Participação das trabalhadoras domésticas no cenário político brasileiro.

Fazendo Gênero, Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, n. 9, 2010.


349 FRACCARO, 2018, p. 74.

350 Idem.

351 Idem, p. 78. Posteriormente, nos anos 1930, a FBPF se envolveu na produção de uma legislação trabalhista e

se aproximou de mulheres sindicalistas, diante das pressões das lutas de mulheres da classe trabalhadora e
comunistas.
75

Esta citação de Glaucia Fraccaro revela que mesmo que as mulheres operárias não se
identificassem com o feminismo hegemônico, o movimento de mulheres trabalhadoras se inclui
no campo do feminismo, pois reivindicava a igualdade de gênero. Neste período, algumas
mulheres libertárias rejeitavam o rótulo de “feministas”, por associarem este movimento a um
caráter elitista, liberal e burguês, porém, assim como as comunistas, elas estavam criando
noções de um feminismo popular que era profundamente ligado à condição das mulheres da
classe operária.352
Contar a história do feminismo por seus grupos hegemônicos foi uma
estratégia narrativa que escondeu os conflitos a ponto de escamotear tudo
aquilo que as trabalhadoras pensavam sobre sua condição. (...) Ao se retomar
a experiência de classe delas e observar a circularidade de ideias e
reivindicações, é possível encontrar projetos diferentes de igualdade em
disputa no campo do feminismo. 353

A luta pelo direito ao voto, reivindicado pelas mulheres da FBPF, não aparecia nos
manifestos da União das Costureiras. Com 80% da população brasileira analfabeta e excluída
do exercício do voto, estas mulheres costureiras confiavam mais na ação direta do que no
sufragismo, que envolvia a luta político-parlamentar no âmbito do Estado. Isto se dava porque
havia poucos direitos trabalhistas presentes na legislação, que eram as suas preocupações mais
imediatas, e estes não eram devidamente respeitados e fiscalizados.354
Encerrada a sessão com Maurício de Lacerda, Elvira Boni “(...) incitou as companheiras
para a solidariedade e para a união.” No fim, os operários entoaram “A Internacional”, um hino
de grande importância para a cultura operária internacional. 355 Muitos símbolos e alegorias do
movimento operário ao redor do mundo eram valorizados pelos trabalhadores brasileiros, como
estas músicas e a bandeira rubro-vermelha, que afirmavam o caráter internacional do
movimento.356 Era um costume, para os trabalhadores, cantarem a “A Internacional” no final
das reuniões e em suas festas e conferências:
“A pé! Ó vítimas da fome!

352 MENDES, Samantha Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil: (1900 -1930): entre esquecimentos e
resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII. DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil
(1918-2018). As anarquistas da Argentina combatiam este feminismo hegemônico, com publicações em seus
próprios jornais. Ver: MARTINS, Angela Roberti; SOUZA, Ingrid Ladeira. Vozes femininas do anarquismo na
Argentina dos séculos XIX e XX. LexCult, Mulher, poder e democracia, v. 2, 2018.
353 FRACCARO, 2018, p. 85.

354 BATALHA, 2000.

355 Na União das Costureiras. A conferencia de hontem do dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de Janeiro,

28 jun. 1920, p. 1.
356 BATALHA, 2000.
76

A pé! Famélicos da terra!


A ígnea razão ruge e consome
A crosta bruta que a soterra!
Cortai o mal bem pelo fundo!
A pé! A pé! Não mais senhores!
Se nada somos em tal mundo,
Sejamos tudo, ó produtores!
Bem unidos façamos
Nesta luta final
De uma terra sem amos
A Internacional!
Messias, deus, chefes supremos,
Nada esperamos de nenhum!
Sejamos nós que conquistemos
A terra-mãe livre e comum!
Para não ter protestos vãos,
Para sair deste antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos,
Tudo a que nós nos diz respeito!
Bem unidos...
Crime de rico, a lei encobre,
O Estado esmaga o oprimido.
Não há direitos para o pobre,
Ao rico tudo é permitido.
À opressão, não mais sujeitos!
Somos iguais todos os seres,
Não mais deveres sem direitos,
Não mais direitos sem deveres.
Bem unidos...
Abomináveis na grandeza,
Os reis da mina e da fornalha
Edificaram a riqueza
Sobre o suor de quem trabalha.
Todo produto de quem sua
A corja rica o recolheu;
Queremos que ela restitua,
O povo só quer o que é seu.
Bem unidos...”357

Elvira Boni, em sua entrevista para Angela Gomes em 1983, cantou este aclamado hino,
dentre muitas outras canções, 358 e se lamentou que naquela época todos os operários sabiam
cantar, e na segunda metade do século XX deixaram de fazê-lo nas manifestações de

357LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 66-67.


358Idem. Além de “A Internacional”, em italiano e em português, Elvira cantou o “Hino dos Trabalhadores”, o
hino da peça de teatro do 1º de Maio, a “Marselhesa de fogo”, “Os filhos do povo” e o “Sol dos livres”, que
Consuelo também cantou, se lembrando da avó. Conforme depoimento gravado com Consuelo Pamplona, em 12
de novembro de 2020.
77

trabalhadores.359 A sua neta Consuelo, na entrevista em 2020, recordou que a avó adorava
cantar “A Internacional”: ela e Zeni, filha de Elvira, também cantaram em sua memória.360
No início de julho, as costureiras organizaram uma reunião na qual Elvira, como
tesoureira, informou sobre as movimentações financeiras do sindicato desde a sua fundação,
que de acordo com o Jornal do Brasil, foi muito elogiada por sua precisão. 361
Em agosto, na Voz do Povo, o anarquista José Oiticica, próximo da família de Elvira, 362
publicou um programa de organização comunista, um projeto com pautas enumeradas. As
características deste programa tinham elementos anarquistas, socialistas e comunistas, mas o
que chama a atenção é a centralidade do sindicalismo revolucionário.363 O programa nomeado
como comunista projetava uma sociedade futura nos princípios do sindicalismo de ação direta,
em que os sindicatos, enquanto unidades produtivas autônomas, seriam o embrião e a
propriedade seria gerida coletivamente pelos próprios trabalhadores.364
Chama a atenção a seguinte resolução: “XII – Seria proveitoso confiar todo o serviço
burocratico dos sindicatos às mulheres, que, ou se filiarão a esses syndicatos ou se constituirão
em syndicato administrativo.” É interessante perceber que, apesar de ainda haver uma definição
de papéis de gênero, o programa comunista confiava à mulher trabalhadora cargos de chefia no
âmbito da administração destas células da nova sociedade. 365 Esta concepção a afasta dos papéis
relegados na sociedade capitalista da Primeira República, voltadas ao lar, como as tarefas
domésticas e a maternidade.366
E ainda: “XLII – A defesa da revolução compete a todos os trabalhadores armados de
ambos os sexos. Proceder-se-á para isso á distribuição dos armamentos disponiveis e se iniciará
a instrucção militar da massa consciente.” 367 As funções militares revolucionárias, que
tradicionalmente caberia aos homens, também seria uma tarefa das mulheres, como ocorria na
União Soviética. O papel das operárias russas neste período de Guerra Civil (1917-1921) contra
os contrarrevolucionários do Exército Branco foi imprescindível. Kollontai escreveu um texto

359 Idem.
360 Conforme depoimento gravado com Zeni e Consuelo Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
361 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 jul. 1920. O operariado, p. 10.

362 Elvira referia-se a ele como “professor Oiticica”. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

363 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.

364 BATALHA, 2000. TOLEDO, 2004.

365 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.

366 RAGO, 1985.

367 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.
78

em comemoração aos 10 anos da Revolução Russa, que homenageia as heroínas anônimas da


guerra, que morreram no front ou atuaram na retaguarda.368
A resolução XX se referia ao papel dos sindicatos na futura sociedade, que incorpora a
nova função social das costureiras, não mais apartadas do produto final de seu trabalho, como
quando produziam roupas de luxo para mulheres de classe média e alta. “XX. A distribuição
de generos alimenticios ficará a cargo dos syndicatos de empregados em armazens de seccos e
molhados. A de roupas caberá aos syndicatos de alfaiates, costureiras, empregados no
commercio, até que se fundem os armazens geraes. (...)”. 369 O processo de produção econômica
dos bens materiais estaria voltada para a própria autogestão dos trabalhadores, não mais
controlada pela burguesia proprietária.
No dia 29 de agosto, a comissão executiva das costureiras convidou todas a participarem
de uma reunião no dia 1º de setembro, no qual seria discutido os assuntos de interesse da classe,
com uma palestra da segunda secretária. Elas clamavam sempre pela união e pela solidariedade
entre as mulheres costureiras, frisando que sem esta união que teria como fim a luta coletiva,
elas não conseguiriam melhorias das condições de vida e de trabalho para todas. “Jamais patrão
algum deu melhorias aos seus empregados por ser bondoso ou por ser agradavel. Taes melhorias
foram sempre exigidas e obtidas pela cohesão e pelo entendimento coletivo.” 370
A costureira Elvira Fernandes, membro da União, publicou um artigo na Voz do Povo,
referente à expulsão do pintor anarquista José Romero do Brasil. Ela pedia a liberdade de
Romero, que se encontrava em uma “masmorra” na Espanha, e clamava pelo protesto dos
trabalhadores brasileiros. A deportação ocorreu com a separação de José Romero de seus
amigos e família construída no país. Este é mais um exemplo do envolvimento das operárias
costureiras com as questões gerais do proletariado. 371
No dia 3 de setembro, ocorreu uma assembleia geral da União das Costureiras, presidida
pela associada Aida Morais, e secretariada por Elvira Boni. Ocorreu uma renovação na
ocupação dos cargos da comissão executiva. A costureira Isabel Pelereiro pediu demissão do
cargo de primeira secretária, ocupando o seu lugar Amelia Catão. Os cargos de tesoureira e
auxiliares de secretária também estavam vagos, pois as associadas não estavam dando conta de

368 SCHNEIDER, 2017.


369 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.
370 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 ago. 1920. Ultima hora: Vida

associativa dos Trabalhadores, p. 2.


371 FERNANDES, Elvira. José Romero. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 set. 1920, p. 2.
79

cumprir suas tarefas, e assim foram eleitas Benedicta Bueno, Thereza Indinacelli e Catharina
Dutra Abrantes. As eleições foram informadas no Jornal do Brasil, periódico da grande
imprensa que publicava semanalmente os anúncios de reuniões da União, e na Voz do Povo.372
A comissão executiva convidou a todas as costureiras para participarem de uma
assembleia no dia 10 de setembro, uma sexta-feira à noite. Elas convidaram todas as costureiras
para que comparecessem, em sua folga, para se unirem coletivamente contra a “ira patronal” e
com um discurso mais radicalizado, que delineia os princípios do seu projeto de emancipação.
Segundo elas, este grande esforço das mulheres se concretiza “(...) porque um ideal as anima
para a luta pelo futuro, que desejam de fraternidade, de justiça, sem explorados nem
exploradores, sem escravas como somos nós (...).” 373
Em outubro de 1920, foi fundada a Federação dos Trabalhadores Maritimos e Anexos,
em uma assembleia da qual participou Elvira Boni, da União das Costureiras, companheiros da
União dos Operários da Construção Civil e representantes da Voz do Povo. O evento contou
com uma apresentação musical da Orquestra Social 4 de Abril e outras canções entoadas pelos
trabalhadores, como “A Internacional”, conduzida por Elvira Boni, e “(...) outros cantos
expressivos das aspirações proletárias.” 374
No dia 12 de outubro, a secretária Amélia de B. Catão chamou todas para comparecerem
a uma assembleia no período noturno do dia seguinte, para discutir um caso que ocorreu com a
auxiliar Catharina Dutra Abrantes na casa de Samuel Reich & Irmão, na rua do Lavradio n.
202. Os patrões acusaram Catharina de roubo de peças, e Amélia convidou especialmente as
trabalhadoras desta casa, para apurarem os fatos. 375
O jornal Voz do Povo era repleto de denúncias de abusos patronais. De acordo com
Nelson Werneck Sodré, a Voz do Povo era o único jornal do Rio que lutava contra as violências
antioperárias.376 Com a manchete “O suor feminino explorado”, da edição do dia 23 de outubro,
o jornal denunciou o casal de russos Adolpho e Eliza, a pedido de costureiras que trabalhavam

372 União das Costureiras e Artes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 set. 1920. O operariado, p. 9;
União das Costureiras e Artes Annexas. Assembleia realizada. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 04 set. 1920. Vida
associativa dos trabalhadores, p. 3.
373 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 10 set. 1920, p. 2.

374 A concretização de uma idéia grandiosa. Foi definitiva e solemnente fundada a Federação dos Trabalhadores

Maritimos e Annexos. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 11 out. 1920, p. 2.


375 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12 out. 1920. Vida associativa dos

trabalhadores, p. 3.
376 SODRÉ, 1977.
80

no estabelecimento do qual eles eram proprietários. O trabalho se estendia para além das 6 horas
da tarde, sem que as trabalhadoras recebessem pagamento pelas horas extras. 377
Assim, exploradas no salario e no horario, as pobres moças nem ao menos
podem reclamar contra o excesso de trabalho a que são obrigadas, porque a
Sra. Eliza lhes vem com quatro pedras na mão, ameaçando-lhes céus e terra.
Recorrem as operarias da casa para nós. 378

O conselho dado pelos redatores do jornal, recrutados entre os militantes do movimento


operário,379 foi para que elas se organizassem na União das Costureiras, que seriam solidárias
e a ajudariam a se livrarem das violências e explorações, para que melhorem suas condições
econômicas e sociais.380
Em assembleia, as costureiras se reuniram para pensar a questão da acusação de roubo
que sofreu Catharina Abrantes. Foi enviado um ofício para a casa de Samuel Reich, porém o
proprietário não quis atestar suas palavras por escrito, afirmando apenas que havia provas e que
as próprias companheiras de trabalho de Catharina poderiam confirmar o fato. Elas foram
convidadas para a reunião, porém, segundo as associadas, não compareceram por medo de
serem despedidas.381
Como Reich não confirmou a acusação oficialmente, a interpretação da União das
Costureiras foi que se tratava de acusações falsas. 382 Não é possível saber, mas se isto fosse
verdade, a acusação falsa poderia ter sido feita pelo patrão pois Catharina Abrantes fazia parte
da comissão executiva de um sindicato de resistência, e os industriais organizavam listas com
nomes de operários “indesejados”, tentando prejudicá-los de diversas formas, sobretudo neste
período de repressão.383 Era comum que os operários que constavam nestas listas fossem
acusados de roubo.384
Elas protestaram n’O Imparcial, jornal da grande imprensa: “(...) enquanto Moni &
Samuel Reich não provarem cabalmente e por escripto suas accusações a União manterá bem

377 O suor feminino explorado. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 23 out. 1920, p. 2.
378 Ibidem.
379 SODRÉ, 1977.

380 Idem.

381 As costureiras victimas dos patrões protestam. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 out. 1920, p. 5.

382 Ibidem.

383 SODRÉ, 1977.

384 “Apenas para o ano de 1925, a lista de ‘indesejáveis’ contém 36 nomes, e, desses, 35 são acusados de roubo ou

furto. Do total de demissões, constam 22 mulheres.” FRACCARO, 2018, p. 53.


81

alto o seu protesto, conservando na lista de infames e perversos esses individuos que
espezinham desse modos as operarias que não lhes caem no agrado.” 385
No início de novembro, as associações co-irmãs, ligadas à Federação dos Trabalhadores
do Rio de Janeiro, participaram da assembleia de posse da nova comissão executiva da União
dos Caixeiros em Casas de Pasto, Petisqueiras e Anexas, dentre elas, a União das Costureiras,
como um “voto de solidariedade”.386
Em uma reunião cotidiana da União das Costureiras, no dia 3 de novembro, foi nomeada
uma comissão para tratar sobre as atas atrasadas, junto a ex-secretária Placida Santos,
substituindo a companheira Elvira Fernandes. A reunião noturna foi presidida por Benedicta
Bueno e secretariada por Amelia Catão e Annita Villanova.387 A bibliotecária foi substituída
por Quinta Villanova – curiosamente, ela tem o mesmo sobrenome de Annita, então é possível
levantar a hipótese de que elas poderiam ser irmãs, primas ou parentes, e isto era comum nas
associações e organizações de mulheres operárias.388
Nesta mesma reunião, as costureiras convidaram Domingos Passos, da União dos
Operários da Construção Civil, para realizar uma conferência em sua sede. 389 Domingos Passos
foi um homem anarquista e negro, que ficou conhecido como “o Bakunin brasileiro”. Um dos
temas de sua palestra foi a relação do anticlericalismo com a sociedade capitalista:
(...) o camarada Passos fala sobre as vantagens da organisação da mulher para
o combate dos preconceitos nefastos creados pela sociedade burgueza e
analysa a obra nefasta do clero na humanidade (...) Mostra que apesar de o
não matarás dos mandamentos, os morcegos humanos correm presurosos a

385 As costureiras victimas dos patrões protestam. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 out. 1920, p. 5.
386 União dos Caixeiros em Casas de Pasto, Petisqueiras e Annexos. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 03 nov. 1920.
Ultima hora: Vida associativa dos trabalhadores, p. 2.
387 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Ultima hora: Vida

associativa dos trabalhadores, p. 2.


388 A análise das fontes e circulares dos patrões permite adentrar nas relações de trabalho das mulheres. Em São

Paulo, América Montorso e Ersília Montorso, como Cornelia Bagnini e Olga Bagnini, e Ida Kenik e Helena Kenik,
que foram operárias consideradas “indesejáveis” pelo patronato e que organizaram greves, revelam um padrão de
sociabilidade feminina que envolvia a família e a vizinhança, e esta escolha “(...) promovia o conforto e alguma
segurança para aquelas que tinham a sua honra questionada todo o tempo (...)”. As irmãs Ida e Helena, organizaram
uma greve na fábrica Fiação e Tecelagem Santo Elias em 1935, que mobilizou 300 pessoas. Suas companheiras
grevistas tiveram os seus nomes convertidos para o masculino, no relatório do Deops, de Francisca Alegretti para
Francisco, e Benta Alves, para Bento. FRACCARO, 2018, p. 54-56.
389 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Ultima hora: Vida

associativa dos trabalhadores, p. 2.


82

benzer as armas com que a humanidade se trucida e se destroe, desde que isto
satisfaça aos detentores do poder. 390
Domingos Passos continuou sua conferência dizendo que as mulheres devem ter cuidado
ao frequentar as festas burguesas, e dar prioridade para as festas, festivais e bailes proletários,
“(...) pois em sua maioria os frequentadores destas festas são individuos degenerados e indignos
de se hombrear com as nossas companheiras.” Em relação ao carnaval, Passos alertou às
costureiras do perigo da prostituição que ocorria neste contexto. Apesar de parecer uma atitude
paternalista de um operário do sexo masculino, já alertada por Margareth Rago, as anarquistas
viam a prostituição como uma forma de exploração, semelhante à exploração sofrida pela
operária, e não como uma vocação biológica, que era respaldada pelo discurso dominante
produzido pelos médicos, sanitaritas e higienistas.391
Um certo “moralismo” de alguns anarquistas a formas de lazer promovidas pela classe
dominante, como o uso de álcool, pode ser explicado pela tentativa de escape da penalidade do
Estado. A imagem do movimento operário confundia-se com a criminalidade e a
marginalidade.392
Sua última pauta foi o perigo da educação patriótica – como antimilitarista, Passos
afirmava que a guerra armava os trabalhadores para lutarem uns com os outros, e não contra o
seu inimigo comum, que eram os burgueses. No final, ele concita às companheiras a
encorajarem os companheiros homens na luta em prol da humanidade, e segundo o jornal, a
palestra foi bastante aplaudida. 393
A costureira Elvira Fernandes escreveu novamente à Voz do Povo no dia 5 de novembro.
Desta vez, ela protestou contra as violências e a repressão contra o movimento operário em
Pernambuco, se referindo a estes eventos como “terrorismo policial”. Elvira falou em nome de
um grupo de mulheres anarquistas. 394
Poucos dias depois, ocorreu o festival da Federação Operária do Estado do Rio. No
programa, haveria a participação de Maurício de Lacerda, que por motivos pessoais não

390 Ibidem.
391 “São também numerosos os estudos que pretendem provar através da antropologia criminal que as prostitutas,
assim como os criminosos e anarquistas, possuem uma configuração do cérebro diferente e alguns sinais o rgânicos
que as distinguem da maioria das pessoas normais.” RAGO, 1985, p. 90.
392 Idem.

393 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Ultima hora: Vida

associativa dos trabalhadores, p. 2.


394 FERNANDEZ, Elvira. O terrorismo policial em Pernambuco. Fala a companheira Elvira Fernandes. Voz do

Povo, Rio de Janeiro, 05 nov. 1920. Os successos de Recife, p. 1.


83

compareceu. A abertura da festa foi feita pela Orquestra Social 4 de Abril, que tocou a
“Marselhesa de Fogo”. Falou no auditório o sr. Ruy Gonçalves contra a censura dos jornais e
revistas operárias, por se posicionarem contra o capitalismo e o clericalismo. Ele se referiu à
Voz do Povo como o jornal que defende as classes trabalhadoras e para que continuem
realizando festas em benefício destes periódicos, valorizando-os. “É necessário, diz ainda, que
os operarios se organisem e se instruam para fazer ruir por terra a burguezia que espol ia os que
produzem;”.395
Um outro camarada concitou a todos os operários presentes para que continuassem
realizando suas tarefas de propaganda, para que um dia todos os trabalhadores se organizem.
Todos cantaram a Internacional dos Trabalhadores, e depois a palavra foi passada para Carlos
Vilanova, da Federação dos Marítimos. Carlos se desculpou por não ter a instrução oratória dos
“filhos de burgueses”, porém falou o que sentia: se lamentava pela necessidade da Voz do Povo
de realizar festivais para arrecadar dinheiro e da sua pior situação frente aos jornais
burgueses.396
O governo, diz ainda aquelle camarada, vendo que a <Voz do Povo> é o
verdadeiro órgão dos trabalhadores, não perde occasião de tentar callar o
nosso jornal; assim é que encarregou certo funccionario da Prefeitura a
publicar um jornaleco a que deu o nome de <Proletario>, cujo fim era,
desvirtuando o caminho que os trabalhadores teem de trilhar, conseguir fazer
desapparecer o sustentaculo e o porta-voz dos espoliados. 397

O jornal Proletário, citado por Carlos Vilanova como uma farsa, era impresso no mesmo
local do Jornal do Commercio e o seu conteúdo era revisado pelo 3º delegado auxiliar. Carlos
chamou a atenção para os trabalhadores darem os braços para as mulheres operárias, “suas
filhas, esposas, mães e irmãs”, para que se organizem, pois “(...) a mulher não se destina
unicamente a lavar pratos e que como tal deve interessar-se por sua emancipação sem a qual
não conseguirá a dos trabalhadores.” 398 É provável, que pelo sobrenome e pelas suas ideias,
Carlos tenha sido da família das costureiras Annita e Quinta Villanova, que faziam part e da
comissão executiva da União.
É interessante como a História Oral pode trazer mais indícios. Elvira Boni se lembra de
uma greve dos marinheiros e remadores, que trabalhavam nos navios: “Muitos deles foram

395 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12
nov. 1920, p. 2.
396 Ibidem.

397 Ibidem.

398 Ibidem.
84

presos. Lembro até que fui visitar um rapaz na cadeia, com as irmãs dele.” 399 É possível levantar
a hipótese que o marítimo Carlos Vilanova era este rapaz, e as irmãs dele eram Annita e Quinta,
da União das Costureiras, companheiras próximas de Elvira.
Um camarada representante da Voz do Povo falou em seguida, e caracterizou o jornal
como principal veículo dos trabalhadores e das ideias do sindicalismo revolucionário. Para ele,
a vida do jornal era a vida das organizações, que um dependia do outro, pois através dele elas
poderiam publicar as suas reuniões, ideias, manifestos e denúncias. Ele se lembrou dos
companheiros que foram deportados para Espanha, como José Romero e Fernandes Madeira,
presos pelo “crime de querer um futuro melhor para os trabalhadores”. No entanto, todos os
outros trabalhadores estavam livres para concretizar os seus sonhos de liberdade – e este
camarada anônimo frisou que, não apenas os homens, mas também as mulheres. O seu discurso
foi marcado pelo anticapitalismo, antimilitarismo e anticlericalismo. 400
Depois dele, discursou Elvira Boni. Elvira se dirigiu às companheiras de Niterói, para se
organizarem seus sindicatos e contarem a ajuda de seus companheiros, para que se defendam
das espoliações sofridas no trabalho. Segundo ela, “(...) às vezes eu ia a Niterói. Me juntava
com as outras que faziam parte do sindicato em Niterói e ia pra lá.” 401
Elvira terminou a sessão recitando “(...) uma poesia libertaria dedicada à mulher
proletaria.”402 Desde os seus 12 anos, Elvira recitava poemas na Liga Anticlerical,403 como se
verifica no jornal anarquista de São Paulo A Lanterna,404 em que Elvira recitava a poesia “O
Padre”,405 e sua irmã Carolina recitou “Ave Humanitás”, em ocasião de um evento pró-
Francisco Ferrer.406
O irmão de Elvira, Amílcar Boni, organizou um leilão de prendas no festival, no qual um
dos prêmios era uma edição do jornal paulista A Plebe, organizado por Edgar Leuenroth.

399 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 50.


400 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12
nov. 1920, p. 2.
401 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 35.

402 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12

nov. 1920, p. 2.
403 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 50.

404 Fundado em 1901, por Benjamin Mota, anticlerical e maçom. Lima Barreto foi colaborador sob o pseudônimo

de “Dr. Bogoloff”. SODRÉ, 1977. Angelo Boni, pai de Elvira, assinava este jornal. LACERDA, 1983. Apud:
GOMES, 1988.
405 Liga Anticlerical do Rio de Janeiro. A Lanterna, São Paulo, 10 fev. 1912, p. 3.

406 O 13 de outubro no Rio. A reunião da Liga Anticlerical. Pro Ferrer. A Lanterna, São Paulo, 18 out. 1913, p.

2.
85

Amílcar chamou a atenção de que o periódico sofria muitas perseguições pela polícia em São
Paulo. O leilão foi bem-sucedido e a A Plebe foi valorizada, vendida por 10$000. Ao final, os
trabalhadores cantaram “A Internacional” e outros “cânticos rebeldes”. 407
Elvira se recorda de uma festa em benefício da Voz do Povo, que ocorreu na Quinta da
Boa Vista, que confirma a grande adesão dos operários cariocas:
Essa festa paralisou a cidade inteira. Não havia um café, um botequim onde
se pusesse tomar um copo d’água. Foi todo mundo para a Quinta da Boa Vista.
Eu também fui, é claro. Foi uma festa com barraquinhas, coisas para comer,
livros para vender. (...) foi impressionante. Não me lembro de ter havido outro
caso nessas condições: paralisar uma cidade inteira! 408

Em uma reunião cotidiana da Associação dos Maieiros, Caixoteiros, Corrieiros, Selleiros


e Artes Correlativas, no dia 20 de novembro, foi mencionada a questão das violências praticadas
pela polícia contra as operárias costureiras. Não foram encontradas mais fontes para adentrar
neste caso, porém os camaradas desta associação decidiram por realizar um protesto íntimo,
“(...) por o protesto publico ser já uma formula um tanto platonica.” 409 É interessante perceber
as pontes construídas entre os sindicatos, e a decisão por fazer um protesto mais tímido pode
ter ocorrido pelo medo da repressão, já que envolvia as autoridades policiais. Nestas últimas
edições da Voz do Povo, alertava-se sobre o “perigo” envolvendo a sobrevivência do jornal, que
por falta de recursos, passou a ter apenas duas páginas. 410
No dia 26 de novembro, ocorreu uma fusão sindical dos trabalhadores marítimos, sendo
fundado o Sindicato dos Taifeiros, Culinários e Panificadores Marítimos. A Voz do Povo
comemorou este feito, dando os créditos aos trabalhos realizados no Terceiro Congresso, pela
fundação de um novo sindicato, pelos trabalhadores do mar, orientado pelo sindicalismo
revolucionário. Foram convidadas pelo marítimo Carlos Vilanova para discursar as
companheiras costureiras Annita Villanova e Elvira Boni. 411 Novamente, eles aparecem juntos.
Annita conduziu a canção “A Internacional”, e Elvira Boni incitou aos trabalhadores
para que aprendam a se emancipar. Elvira pediu ao secretário-geral “(...) para fazer uma
saudação ao rubro-negro pavilhão, o qual numa eloquente oração sauda os camaradas que em

407 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12
nov. 1920, p. 2.
408 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 36.

409 Associação dos Maieiros, Caixoteiros, Corrieiros, Selleiros e Artes Correlativas. Voz do Povo, Rio de Janeiro,

20 nov. 1920. Ultima hora: Vida associativa dos trabalhadores, p. 2.


410 Ibidem.

411 A sessão inaugural do Syndicato dos Taifeiros, Culinarios e Panificadores Maritimos. Voz do Povo, Rio de

Janeiro, 26 nov. 1920, p. 2.


86

bôa hora se uniram, estendendo-se sobre a acção que desenvolverá o Syndicato para o
engrandecimento da classe (...)”. A redação concluiu dessa maneira: “Oxalá que todos os
camaradas maritimos saibam seguir o mesmo caminho, dando um golpe de morte no
presidencialismo e syndicalisando as suas bases.”412
Em um sábado do mês de dezembro, dia 4, a União das Costureiras organizou um
festival de propaganda em benefício de seus cofres sociais. Foram organizados um programa e
um baile familiar, que contou com a presença dos músicos da Orquestra Social 4 de Abril. A
Voz do Povo divulgou o festival, e a venda dos ingressos foi realizada em sua redação, pelo
companheiro Cancio de Souza.413
Pouco tempo depois, no dia 11 de dezembro, ocorreu na União dos Chapeleiros do Rio
de Janeiro um outro festival, no teatro do Centro Galego. O ingresso foi vendido a 1$000 réis,
e novamente Elvira Boni realizou uma palestra em nome da União das Costureiras. Houve três
apresentações teatrais feitas pelo Grupo Germinal: “Plebeus” de Santos Barbosa, “Os doidos
com juízo” de Romualdo Figueiredo, e “Amores em Christo” de Lenon d’Almeida. A festa foi
divulgada pelo periódico A Razão e pelo Jornal do Brasil.414
Os chapeleiros organizavam-se na Federação Sul-Americana dos Operários Chapeleiros,
e o evento contou com a presença de companheiros de Montevidéu, Uruguai. 415 Este fato é
importante para pensar as relações transnacionais do movimento operário na América Latina.
Inclusive, há fontes que indicam o encontro entre as operárias da União das Costureiras, antes
de sua fundação, com mulheres libertárias argentinas, como Juana Rocco Buela, que foram para
o Rio de Janeiro em 1919.416
No fim de 1920, a Voz do Povo já se encontrava quase sem fôlego, com poucos recursos
para sobreviver, de acordo com suas páginas. 417 No entanto, segundo Nelson Werneck Sodré,
o jornal foi mais do que empastelado, mas “estrangulado”: a polícia invadiu a redação e prendeu
os redatores, militantes operários. 418 O episódio reforça a intensa repressão pela qual o

412 Ibidem.
413 União das Costureiras e Classes Annexas. Grandioso festival de propaganda. Orchestra Social 4 de abril. Voz
do Povo, Rio de Janeiro, 04 nov. 1920. Ultima hora: Vida associativa dos trabalhadores, p. 1 -2.
414 União dos Chapeleiros do Rio de Janeiro. A Razão, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Pelo mundo operario, p. 6;

União dos Chapeleiros do Rio de Janeiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 nov. 1920. O operariado, p. 8.
415 União dos Chapeleiros do Rio de Janeiro. A Razão, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Pelo mundo operario, p. 6.

416 GRIGOLIN, Fernanda. Abrindo sulcos e traçados: o borda da encruzilhada. s.d. Disponível em:

http://tendadelivros.org/jornaldeborda/wp-content/uploads/2019/06/borda-6-baixa-simples.pdf
417 Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 04 nov. 1920, p. 2.

418 SODRÉ, 1977.


87

movimento operário estava passando neste período após as agitações e greves entre 1917 e
1919, e como o jornal e a organização dos trabalhadores em torno do sindicalismo
revolucionário representavam uma ameaça à ordem social vigente. Morria, naquele moment o,
um importante jornal que sustentava e divulgava as associações de resistência operárias do Rio
Janeiro.
88

4 CAPÍTULO III – 1921 E 1922: A EDUCAÇÃO OPERÁRIA FEMININA, A


REORGANIZAÇÃO E DISSOLUÇÃO DA UNIÃO

Logo no início do ano de 1921, a União das Costureiras organizou uma reunião na sede
da União dos Operários em Fábricas de Tecidos. Havia uma forte presença feminina na
categoria de tecelões. Foi convidado, para o dia 9 de janeiro, um propagandista proletário para
falar sobre a emancipação operária feminina, antes da sessão ser aberta – as mulheres operárias
de todas as categorias foram chamadas para tomar parte da reunião. 419
No dia 29 de janeiro, O Paiz noticiou sobre a greve do Lloyd brasileiro, uma companhia
de navegação. Elvira Boni, Amelia Catão e Annita Pereira, da União das Costureiras, estiveram
na sede da Associação dos Marinheiros e Remadores. De acordo com o jornal, Amelia expôs
os motivos da presença da comissão, no entanto, O Paiz não os revelou. Devido à aliança de
solidariedade entre as costureiras e os trabalhadores marítimos, construída em 1920, elas
estavam, provavelmente, dando apoio às causas da greve. 420
A União das Costureiras, no dia 8 de março, anunciaram uma reunião cotidiana e noturna
para o dia seguinte, para discutir as suas pautas mais imediatas, que foram publicadas no jornal
O Imparcial:
1º - Obter aumento progressivo dos ordenados.
2º - Reduzir o dia de trabalho à 8 horas.
3º - Reclamar o melhoramento das condições hygienicas das officinas.
4º - Abrir aulas nocturnas, de ensino primario, e aulas de córte para instrucção
de suas associadas. 421

Como as negociações com os patrões foram realizadas diretamente, o Estado não se


colocou como intermediário e ainda não havia leis que regulamentassem o trabalho, as
conquistas da greve de 1919 foram paulatinamente sendo retiradas pelos proprietários.
Novamente, a maioria delas se encontrava com baixos salários e jornadas de trabalho mais
longas do que as oito horas.422 A ideia da abertura das aulas noturnas, já pensadas em 1919,
estava começando a se colocar em prática. 423

419 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, 08 jan. 1921, Rio de Janeiro. O operariado, p. 10.
420 A greve dos maritimos. O Paiz, Rio de Janeiro, 29 jan. 1921, p. 4.
421 União das Costureiras e Classes Annexas. O Imparcial, Rio de Janeiro, 08 mar. 1921, p. 9.

422 LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES, Angela de Castro

Gomes. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.


423 União das Costureiras e Classes Annexas. O Imparcial, Rio de Janeiro, 08 mar. 1921, p. 9.
89

No dia 10 de março, A Razão publicou os acontecimentos desta reunião do dia 9. A mesa


foi composta por Izabel Pelettoni, Amelia Catão e Elvira Boni, que havia se tornado secretária.
Elvira discursou sobre a necessidade de uma união das costureiras, em suas palavras “as mais
exploradas do elemento feminino que trabalha e vive de salários”. O valor da União dependia
da solidariedade delas, “(...) para angariarem o pão de cada dia.” Outras companheiras falaram,
e Elvira propôs que houvesse assembleias toda quarta-feira, proposta que foi aprovada.
Anteriormente, estas reuniões já aconteciam, porém com os abalos da repressão e contra a Voz
do Povo, provavelmente foi necessário o cancelamento destes encontros por alguns meses. 424
O Jornal do Brasil foi fundado em 1891 por Rodolfo de Souza Dantas e Joaquim Nabuco,
e a partir 1918, foi dirigido por Ernesto Pereira Carneiro, é uma das principais fontes que
publicava os anúncios das reuniões da União das Costureiras, entre 1921 e 1922.425 Segundo
Elvira Boni, “Quando divulgávamos alguma coisa, publicávamos na grande imprensa. Muitas
vezes eles até nos procuravam para dar alguma nota. O Jornal do Brasil, por exemplo, fazia
isso.”426 “Por incrível que pareça, o Jornal do Brasil daquela época nos recebeu muito bem.”427
De acordo com o Jornal do Brasil, na mesma reunião, Amelia Catão concitou às
companheiras a fazerem propaganda da União das Costureiras, e Elvira Boni lamentou, em sua
fala, a pouca adesão ao sindicato e às reuniões naquele momento. Elvira e as companheiras das
casas “Pare Royal”, “Casa Aguia” e de outros estabelecimentos, falaram sobre os maus-tratos
e as condições higiênicas das oficinas clandestinas. Segundo o Jornal do Brasil, Elvira falou
sobre a importância da “reorganização da classe”, após este momento de desestabilização do
movimento operário.428
De acordo com O Jornal, as costureiras da “Casa Colombo”, do “1º Barateiro”, e de “O
Pavilhão” também compareceram à reunião. Elvira Boni se recordou dos “(...) dias de felicidade
da União quando sustentando a defesa da classe conseguiu melhorias de salarios e horario
melhorado em alguns estabelecimentos desta capital.”, referindo se à greve vitoriosa de junho
de 1919. As demais operárias concordaram com a intensificação da propaganda da União das

424 União das Costureiras e Classes Annexas. A grande assembléa de hontem. A Razão, Rio de Janeiro, 10 mar.
1921. Pelo mundo operario: No Rio – Movimento á noite, p. 8.
425 Tornou-se uma referência na modernização da empresa jornalística do Rio de Janeiro, exemplo da grande

imprensa neste período, com 62 mil exemplares diários, e modernização das máquinas de impressão em cores. O
jornal era composto por mais de 85% de pequenos anúncios. SODRÉ, 1977.
426 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 36.

427 Idem, p. 34.

428 União das Costureiras – A classe se reorganiza. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 mar. 1921. O operariado,

p. 8.
90

Costureiras e com o seu reerguimento. 429 De acordo com o Jornal do Brasil, ficou decidida a
realização de uma assembleia de propaganda associativa. 430
A sessão ocorreu no dia 16 de março, na sede social localizada na rua Senhor dos Passos,
8-A. A assembleia começou às oito horas da noite, e de acordo com O Jornal, compareceram
muitas operárias. A secretária, provavelmente Elvira Boni, discursou sobre a importância de
todas a se associarem na União e se conectarem com toda a congregação operária. 431 Várias
oradoras falaram, e uma delas “(...) pediu à mesa que não prolongasse tanto aquela reunião,
pois muitas associadas moravam nos suburbios e não podiam permanecer até tarde fóra de suas
residencias”432, e “(...) alem de tudo sem jantar” 433. A comissão da União concordou e marcou
a próxima reunião para quarta-feira.434435
O Jornal do Brasil publicou mais detalhes sobre esta reunião. Segundo este periódico, a
sessão foi aberta por uma associada, que falou sobre a União das Costureiras ser o “único meio
de defesa da exploração dos seus patrões” e clamou para que todas ajudassem na construção do
sindicato ao lado da comissão executiva. Elas também falaram sobre a falta de conforto e
higiene na maioria das oficinas, citando algumas casas. 436 A defesa do sindicato como o único
órgão capaz de garantir melhorias das condições de vida dos trabalhadores a curto e longo prazo
é uma forte característica do sindicalismo revolucionário. 437 Elvira Boni fez uma palestra sobre
“o valor da mulher mãe, esposa e operária”, depois de falas de diversas costureiras.438
No dia 26 de março, um homem chamado Octavio Lucena, provavelmente militante do
movimento operário, publicou n’A Razão um texto intitulado “Pela organisação das mulheres
proletarias”. Nele, Lucena comemora com satisfação a última assembleia realizada pela União
das Costureiras e Classes Anexas, a qual assistiu. Porém, ele se lamenta de ter se iludido, pois

429 A reunião de hontem na União das Costureiras. O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mar. 1921. Ultimas noiticas, p.
12.
430 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 mar. 1921. O operariado, p. 8.

431 A congregação de costureiras e chapeleiras. Sessões de propaganda associativa. O Jornal, Rio de Janeiro, 17

mar. 1921. Os ultimos telegrammas, p. 12.


432 Ibidem.

433 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1921. O operariado, p. 8.

434 Ibidem.

435 A congregação de costureiras e chapeleiras. Sessões de propaganda associativa. O Jornal, Rio de Janeiro, 17

mar. 1921. Os ultimos telegrammas, p. 12.


436 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1921. O operariado, p. 8.

437 TOLEDO, Edilene Teresinha. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes na

Primeira República. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.


438 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1921. O operariado, p. 8.
91

supostamente a mulher trabalhadora carioca não tinha muitas simpatias com as organizações
operárias. Octavio reconhece que o capitalismo e o patronato, com o “seu manto de opressão”,
fazem as operárias trabalharem dia e noite. No texto, ele saudou personalidades como Samuel
Smile e Guerra Junqueiro.439 Dirigindo-se às mulheres trabalhadoras:
Não vos illudis com os detentores do ouro, os quaes, afim de collocar-vos
numa situação deprimente, procuram isolar-vos do compromisso associativo,
apregoando cynicamente que as associações são verdadeiras fontes de
anarchismo. E a falta de compreensão sobre a palavra citada, fez com que
muitas companheiras se afastassem do nosso convívio. 440

De fato, a grande imprensa e o discurso da burguesia tendiam a demonizar o anarquismo,


afastando mulheres e homens das organizações sindicais. A imprensa burguesa situava o
anarquismo e o comunismo como “ideias fora do lugar”, que só faziam sentido na Europa, e
não no Brasil.441 No entanto, o que explicaria a adoção destas correntes políticas por inúmeros
integrantes da classe operária brasileira senão a aplicação de suas táticas de luta em sua
realidade concreta?
Outro aspecto relevante que pode ter limitado a adesão das operárias em sindicatos é que
estes podem ter sido excludentes, de acordo com a historiadora estadunidense Alice Kessler -
Harris. Glaucia Fraccaro identifica organizações e greves lideradas por operárias neste período
que ocorriam fora das estruturas sindicais – nas fábricas onde trabalhavam e nas ligas dos
bairros, e que privilegiavam suas pautas próprias, como o fim dos abusos sexuais no ambiente
de trabalho, a questão da igualdade salarial e da licença-maternidade.442
Elvira Boni também conta sobre as atitudes de alguns homens anarquistas e anticlericais
que afastavam as mulheres, contrapondo-os:
Muitas vezes, nos sindicatos, os operários diziam que nem em casa podiam
fazer uma propaganda intensa, porque as mulheres não se conformavam com
a falta de religião. Eles diziam: “Temos um grande inimigo, que são as
mulheres. Porque elas ouvem aquilo que a gente fala, depois vão se confessar
e contam ao padre o que a gente diz, o que a gente faz.” E eu tive muita
oportunidade de dizer: “Não são as mulheres que são inimigas de vocês. Vocês
é que não sabem captar a simpatia das mulheres. Porque a religião é a última
coisa que se tira de uma mulher. Vocês querem tirar em primeiro lugar, vocês
é que tão errados. (...) Sempre fui uma pessoa, modéstia à parte, muito correta
no meu procedimento. Fazia questão de ser correta para dar exemplo. Falava

439 LUCENA, Octavio de Oliveira. Pela organisação das mulheres proletarias. A Razão, Rio de Janeiro, 26 mar.
1921. Pelo mundo operario, p. 6.
440 Ibidem.

441 SODRÉ, 1977.

442 FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917 -1937). Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 2018.


92

contra a religião, dizia que não acreditava em Deus, que não acreditava nos
santos, mas não espantava ninguém devido ao meu procedimento, porque
sempre procurei ser uma boa filha, uma boa companheira e uma boa amiga.
443

Ela se recorda que tentava conversar com as costureiras no ambiente de trabalho sobre as
questões do anarquismo e do anticlericalismo, mas geralmente não era muito ouvida. Elvira se
lembra de uma companheira de trabalho negra, chamada Fausta, que acreditava na boa vontade
de suas ideias.444
Através do jornal A Razão, Octavio Lucena convidava as mulheres para participarem dos
festivais e reuniões da União das Costureiras, como uma forma de propaganda para que as
mulheres se associassem.445 Porém, apenas a propaganda não convencia a adesão: muitas das
mulheres trabalhadoras, principalmente as que eram mães e donas de casa, com duplas ou triplas
jornadas de trabalho, não tinham tempo para participar de assembleias noturnas, sendo a falta
de disponibilidade um fator.446 As mulheres da União, em geral, eram jovens, não eram casadas
e nem tinham filhos. As mães costureiras normalmente trabalhavam em casa, como Elvira fez
após o nascimento das filhas Vanda e Zeni Lacerda.447
Como exemplo, na época, Elvira Boni vivia com com uma família de nove pessoas, com
a renda do pai metalúrgico, dos dois irmãos que trabalhavam como ferreiros e dela e das quatro
irmãs, costureiras e bordadeiras. Para ela, era possível participar ativamente das reuniões e
organizar os festivais. Os pais normalmente proibiam, enquanto o pai e os irmãos de Elvira
sempre a ajudaram e incentivaram a se envolver no meio sindical.448 Há de se considerar que
havia, por vezes, o impedimento dos maridos para as mulheres participarem das atividades
associativas.449
A partir do final de ano de 1922, com a União já dissolvida, depois que se casou com
Olgier Lacerda e teve as duas filhas, passou a trabalhar em casa e participou cada vez menos
do Grupo Dramático 1º de Maio e comparecia apenas a algumas reuniões do PCB.450 Olgier

443 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


444 Idem.
445 LUCENA, Octavio de Oliveira. Pela organisação das mulheres proletarias. A Razão, Rio de Janeiro, 26 mar.

1921. Pelo mundo operario, p. 6.


446 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930). Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985.


447 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

448 Idem.

449 RAGO, 1985.

450 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.


93

Lacerda foi um dos integrantes do Grupo dos 12, os fundadores do PCB em 1922, e eles se
conheceram neste grupo de teatro da Liga Anticlerical. 451
Apesar de todas as dificuldades, as costureiras se organizavam e tentavam se unir em
torno deste sindicato feminino, construído e sustentado por mulheres, que era a União das
Costureiras. No dia 1º de abril, elas publicaram no jornal A Razão um chamado “Pela
organisação operária feminina”, apresentando o seu programa, e convidando a todas as
trabalhadoras da categoria para se associarem.452
O programa contava com o aumento de salários, a jornada de oito horas, a melhora das
condições higiênicas das oficinas e a abertura das aulas de ensino primário e de corte, no período
noturno. “Vêde bem, trabalhadoras, se não conseguirmos as vantagens expostas, o que
apresentamos diante do patronato que tão vilmente nos explora? (...) Afastae, portanto, o
desprezo que muitas de vós tendes pelas associações e vinde à União das Costureiras e Classes
Annexas (...)”.453
No dia 6 de abril, ocorreu uma reunião, em que as costureiras discutiram os pormenores
das questões sobre a reorganização da classe e de sua coletividade, assim como a propaganda.
A elaboração de um memorial que reunia as principais reivindicações da classe ficou como
tarefa para a próxima reunião. 454
A União das Costureiras se reuniu novamente no dia 21 de abril. A secretária falou sobre
a importância da união das costureiras e chapeleiras do Rio de Janeiro para que a conquista de
maiores salários e a regulamentação das oito horas de trabalho. Os ordenados eram muito
irrisórios, porém, de acordo com elas, a falta de coesão da classe tornava impossível para que
conquistassem o aumento. Algumas das operárias presentes reclamaram sobre sua falta de
direitos e outras compareceram em busca de emprego. 455
A comissão executiva da União das Costureiras enviou o seguinte manifesto para ser
publicado no Jornal do Brasil:
“É tempo de nossas companheiras reflectirem melhor sobre o seu modo de
encarar a situação difficil em que se debatem.
Nada de esmorecimento.
Ponhamos de parte os preconceitos que tolhem as nossas iniciativas.

451 Idem. Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
452 Pela organisação operaria feminina: União das Costureiras e Classes Annexas. Ao publico e á classe em geral.
A Razão, Rio de Janeiro, 01 abr. 1921. Pelo mundo operario, p. 6.
453 Ibidem.

454 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 abr. 1921. O operariado, p. 9.

455 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 abr. 1921. O operariado, p. 8.
94

Nós operárias não podemos de modo nenhum continuarmos a sermos


exploradas.
E o que devemos fazer para não sermos? Unirmo-nos.
E como fazer essa união?
- Procurando a séde da União das Costureiras e Classes Annexas, à rua Senhor
dos Passos, A 8.
E será tarefa fácil?
- Sim, basta querermos.
Vinde, pois, companheiras de luta à nossa reunião de quarta-feira, às 19 horas.
Trazei-nos o concurso de vossa opinião.
Aqui, na séde de nossa classe, só se discute o nosso bem estar. – A
COMISSÃO.”456

A União das Costureiras realizou uma assembleia de propaganda no dia 1º de Maio, ao


meio-dia, em comemoração à “(...) data histórica que marca uma nova era de progresso no
mundo proletário, (...)”. As operárias convidaram não apenas as costureiras, mas todos os
trabalhadores e suas famílias. Algumas companheiras fizeram o uso da palavra, neste dia de
protesto contra as violências e tiranias praticadas contra o proletariado.457
À noite, Elvira Boni participou das comemorações do Grêmio Artístico Renovação, no
Centro Galego.458 Mesmo construindo ativamente a União das Costureiras, ela contou na
entrevista que nunca deixou de realizar as apresentações teatrais do Grupo Dramático 1º de
Maio, que costumavam acontecer no Centro Galego, e que apenas comparecia menos do que
antes durante os anos de lutas sindicais.459
Elvira foi atriz da peça “1º de Maio”, de Pietro Gori, junto a outra costureira da União,
Amelia Catão, Olgier Lacerda, futuro marido, dentre outros: Leonidas Teles, Ernesto Paes,
Alduino Burlini, M. Cruz e Alcina Machado. 460 Segundo ela, a peça apresentava a importância
de não trabalhar no primeiro de maio. 461 Depois do teatro, Carlos Dias realizou uma conferência
sobre o dia dos trabalhadores, e ocorreu uma apresentação da comédia “Os Espectros”, com
atuação amadora de outros camaradas anarquistas.462
No dia 18 de maio, completou-se o segundo ano de existência da União das Costureiras.
As associadas organizaram uma festa na sede social, com uma palestra e a presença de uma

456 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 abr. 1921. O operariado, p. 8.
457 Grêmio Artístico Renovação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 1921. O operariado, p. 9.
458 Ibidem.

459 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

460 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 1921. O operariado, p. 9.

461 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

462 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 1921. O operariado, p. 9.
95

orquestra. Elas convidaram os “(...) trabalhadores em geral e especialmente os do sexo


feminino.”463
Em junho, as costureiras continuaram realizando suas reuniões, e discutindo sobre a
reorganização, os métodos de propaganda, e seu novo programa de reivindicações
trabalhistas.464 E, no mês de julho, as mulheres da União finalmente conseguiram organizar
para que ocorressem as aulas noturnas em sua sede, sendo estas de português e aritmética, e
futuramente, de geometria, corte e geografia. 465 As costureiras convidaram a todas para que se
matriculassem e buscassem informações com a comissão. O chamado foi realizado por
intermédio dos periódicos Jornal do Brasil, no dia 14 de julho, e A Razão, no dia 21:
As aulas são absolutamente gratuitas e logo que o numero fôr preenchido,
serão inauguradas.
O analphabetismo campeia entre as classes trabalhadoras, em especial modo
no elemento feminino.
Instruir a mulher é eleva-la, enaltece-la, dignifica-la e encaminha-la para sua
emancipação!
Para o emprehendimento desta grande obra, a União conta com todos os
trabalhadores, aos quaes dirige o mais vivo appelo. 466

Na Primeira República, a falta de acesso para a educação pública entre as mulheres


trabalhadoras era uma realidade, especialmente para as mulheres negras. 467 A auto-organização
das costureiras com o propósito da alfabetização era uma forma que encontravam para torná-
las mais autossuficientes. As anarquistas acreditavam na alfabetização, na educação, na
instrução e na formação teórica e política das mulheres como uma forma de emancipação. 468
Elvira Boni estudou durante um tempo em Espírito Santo do Pinhal, sua cidade natal,
durante a infância, porém não completou o curso primário.469 Elvira teve que abandonar a escola
para cuidar de um irmão doente, com paralisia infantil, e foi um momento triste na vida dela: 470

463 União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mai. 1921. O operariado, p. 8.
464 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 jun. 1921, p. 8.
465 A União das Costureiras a educação da classe operaria feminina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 jul. 1921.

Pela instrucção, p. 9; Pela instrucção da classe operaria feminina. Ao publico em geral. A Razão, Rio de Janeiro,
21 jul. 1921. Pelo mundo operario, p. 6.
466 Idem.

467 SANTOS, Jucimar Cerqueira dos. SANTOS, Mayara Priscilla de Jesus dos. Da educação primária ao ensino

superior: o desafio das mulheres de cor e trabalhadoras para alcançar a educação escolar no Brasil entre o final do
século XIX e o início do século XX.
468 MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil: (1900-1930): entre esquecimentos e

resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII. DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil
(1918-2018). RAGO, 1985.
469 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

470 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
96

“Lembro que quando minha irmãzinha começou a escola – ela é mais moça que eu cinco anos
– eu ficava chorando atrás da porta com o menininho no colo. As meninas passavam e
chamavam na rua: ‘Vamos embora! Tá na hora, tá na hora!’ E eu não podia ir. O meu desejo
era ser professora. Quer dizer, bobagem de criança...”. 471 A educação das mulheres, segundo
Margareth Rago, era voltada para o trabalho doméstico e de cuidados, e não para uma vida
profissional.472
No mesmo chamado para as aulas, as costureiras chamavam as associadas que deixaram
de participar das reuniões para que voltassem, mesmo com o pagamento atrasado, que não seria
cobrado.473 As dificuldades da vida, como a falta de dinheiro, 474 poderiam tê-las afastado do
sindicato, e a falta de companheiras nas assembleias e reuniões trazia a necessidade do seu
retorno.
Em setembro, Elvira Boni fez parte do Comitê de Socorros aos Flagelados Russos, devido
à crise e à fome na União Soviética pós-guerra civil. Ela contou na entrevista que José Oiticica
colocou o seu nome na lista do comitê sem questioná-la, pois ele acreditava que ela gostaria de
participar e ajudar.475 O Jornal do Brasil divulgou esta organização:
Em grande reunião de elementos proletarios e libertarios, (...) tomaram os
presentes o conhecimento de um appello feito pelos trabalhadores russos aos
trabalhadores do mundo inteiro, no sentido de um soccorro imediato às
populações attingidas pela grande secca de desastrosas consequencias, havida
em vasta região do sul da Russia. 476

O comitê de socorros do Rio de Janeiro contou com a participação, além de Elvira Boni
e José Oiticica, de Domingos Passos, Laura Brandão, Octávio Brandão, Astrojildo Pereira, Cruz
Júnior, Marques da Costa, Cezar Leitão, Antonio Carvalho, Teophilo Ferreira, Pedro Bastos,
Miguel Capelouch, Aurelio do Nascimento e Fabio Luz.477 Em um domingo, 11 de setembro,
os operários anarquistas e comunistas se reuniram para discutir a promoção de formar comitês
por todo o Brasil, organizar um festival e um “pic-nic” operário, e publicar uma folha única de

471 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 24.


472 RAGO, 1985.
473 A União das Costureiras a educação da classe operaria feminina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 jul. 1921.

Pela instrucção, p. 9; Pela instrucção da classe operaria feminina. Ao publico em geral. A Razão, Rio de Janeiro,21
jul. 1921. Pelo mundo operario, p. 6.
474 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

475 Idem.

476 A grande secca na Russia. Um comité de soccorros no Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1921,

p. 6.
477 Idem. A Grande Secca na Russia. O Jornal, Rio de Janeiro, 14 set. 1921, p. 4. A fome na Russia. Movimento

internacional do proletariado em favor dos famintos. O Combate, São Paulo, 17 set. 1921, p. 1.
97

propaganda com numerosa tiragem. De acordo com o Jornal do Brasil, no fim da reunião eles
conseguiram arrecadar a grande quantia de 62$100. 478
O jornal paulista O Combate,479 deu mais detalhes sobre a questão da fome na Rússia e
sobre o Comitê. Tratava-se de um movimento internacional do proletariado, respondendo ao
apelo da República dos Sovietes. Astrojildo Pereira, que se tornaria uma figura importante na
fundação e nos primeiros anos do PCB, foi nomeado como secretário-geral. Os participantes
vendiam os folhetos de propaganda por 500 réis, “(...) arrecadando, desse modo, os primeiros
recursos a serem enviados para a Europa.” Segundo O Combate, os operários de São Paulo, no
dia 17 de setembro, estavam também promovendo uma reunião. 480
Elvira Boni entrou de cabeça na organização das festas e atos do Comitê, que ocorreram
no Centro Cosmopolita, na sede da Federação Operária, no Centro Galego e no Teatro Lírico.
Na última festa realizada em benefício dos flagelados russos contou com a apresentação da peça
“Dar cordas para se enforcar”, representada pelo Grupo Dramático 1º de Maio. 481 Elvira disse
que desta vez não atuou como atriz, porque estava organizando tudo: “Iam trabalhadores e
outras pessoas também. Fazíamos o convite pelos jornais, fazíamos volantes anunciando que ia
haver um ato público em tal lugar, e distribuíamos pelas ruas.” 482
Depois da festa no Teatro Lírico, Elvira compareceu ao Comitê para prestar contas, e
contou que neste dia tomou conhecimento dos conflitos entre anarquistas e comunistas. Em
uma discussão entre Fábio Luz, José Oiticica, Astrojildo Pereira e outros operários, ouviu eles
dizendo que na União Soviética alguns anarquistas foram presos e fuzilados, 483 e segundo
informações do Partido Comunista Francês, os anarquistas estavam contra a Revolução
Russa.484 Para Elvira:
Até essa ocasião, eram todos anarquistas. Mas aí se separaram, começaram a
ficar os anarquistas e comunistas. (...) Aí, volta e meia saíam discussões entre

478 A grande secca na Russia. Um comité de soccorros no Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1921,
p. 6.
479 Fundado em 1891, por Pardal Mallet, fez parte da Aliança Liberal, em apoio a Getúlio Vargas. Muitas vezes os

jornalistas eram presos pelos governantes da Primeira República. SODRÉ, 1977.


480 A fome na Russia. Movimento internacional do proletariado em favor dos famintos. O Combate, São Paulo,

17 set. 1921, p. 1.
481 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.

482 Idem, p. 52.

483 Dentre as mulheres anarquistas, Emma Goldman foi uma grande crítica da União Soviética. LOBO, Elizabeth

Souza. Emma Goldman: a vida como revolução. São Paulo: Brasiliense, 1983. Elvira Boni, por sua vez, apesar de
condenar as práticas repressivas do Estado soviético, apoiou o movimento revolucionário dos trabalhadores russos.
LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
484 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
98

os anarquistas e comunistas nos sindicatos. (...) A gente fica triste com essas
coisas. Uma vez assisti a um debate entre José Oiticica e José Elias da Silva,
na sede dos tecelões, na rua do Acre 19. Houve uma grande discussão entre
eles, com muita gente presente. Mas eu tinha um sentimento muito grande,
porque achava que todos estavam errados. Deviam fazer uma comunhão mais
íntima, conversa, e não discussão, como acontecia. Quando não há razão,
quem grita mais é que tem razão. Ficaram gritando, e a razão... Minha mãe
tinha um diatado que dizia: “A razão se dá aos loucos.” 485

Da metade do ano de 1921 para frente, as fontes de imprensa sobre a União das
Costureiras foram escassas. Sabe-se que as reuniões continuaram acontecendo, e em novembro
elas realizaram uma assembleia, com todo o esforço para a reorganização da classe. As aulas
de português e aritmética já estavam em realização, de forma regular, no período noturno das
quartas e sextas. Elas continuavam clamando pela presença das costureiras, associadas ou não,
em suas reuniões e assembleias, pela emancipação feminina. 486 Foi no mês de novembro que,
também, foram iniciadas as aulas de geometria e corte. 487
No dia 24 de dezembro, de acordo com o Jornal do Brasil, a administração da União foi
renovada. “As novas administradoras da União estão empenhadas em levarem a cabo a tarefa
que tomaram de reerguer a sua classe, collocando-a ao nivel das associações congeneres de
organização modelar.”. As novas companheiras da comissão executiva saudaram as conquistas
das costureiras anteriores, como as aulas gratuitas e o curso de corte, como a disponibilidade
do cirurgião-dentista Custodio Gomes para as associadas. 488
A União das Costureiras promoveu uma conferência, em janeiro de 1922, feita pelo
camarada Carlos Dias, na sede da União dos Operários em Fábricas de Tecidos. É bem possível
que elas buscassem uma aliança com as mulheres tecelãs, visto que convidaram todos os
trabalhadores, mas especialmente as operárias. O Jornal do Brasil publicou o chamado e o
acontecimento, como sempre na seção O Operariado.489
No dia 31 de janeiro, as costureiras associadas percorreram as oficinas e ateliês de costura,
distribuindo um manifesto, que foi publicado pelo Jornal do Brasil no dia seguinte. Neste
manifesto, elas apelaram para o convencimento das trabalhadoras se organizarem na União,
falando sobre as arrogâncias por parte dos patrões e dos contramestres, da tristeza causada pelos

485 Idem, p. 52-53.


486 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 nov. 1921. O operariado, p. 17.
487 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 nov. 1921, p. 15.

488 União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 dez. 1921. O operariado, p. 17.

489 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jan. 1922. O operariado, p. 14;

União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, 31 jan. 1922. O operariado, p. 11.
99

baixos salários, das condições anti-higiênicas das oficinas e a exposição a doenças, como a
tuberculose, e comparando a situação da classe com um regime de escravidão. 490
As costureiras lamentaram no manifesto a falta de interesse de suas companheiras pelo
sindicato e pelas aulas que ofereciam, e as convidaram para uma reunião no dia 1º de fevereiro.
Segundo elas, não era possível conquistar a felicidade esperando a bondade dos patrões: “(...)
nunca a alcançareis, porque a sua exploração não cessará, emquanto o germen da revolta não
vos dominar. Aqui vos esperamos. Não sejaes indifferentes às nossas palavras. Queremos mais
pão, mais luz, mais saber, com menos sacrifício.” 491
A propaganda teve êxito, visto que esta assembleia ocorreu “com bastante
concorrencia”. As operárias Luiza de Castro e Catharina Dutra Abrantes discursaram sobre a
importância da reorganização da classe e sobre as suas necessidades coletivas enquanto
trabalhadoras costureiras. Elas falaram sobre a “reabertura” das aulas de português e aritmética,
o que nos traz a informação de que foram temporariamente suspensas. Por fim, convidaram a
todas para a palestra com Ruy Gonçalves no dia 11 de fevereiro sobre estudos sociais, e para a
assembleia geral na interessante data do 8 de Março, o Dia da Mulher Trabalhadora, quando
elas lançariam o próximo manifesto, que infelizmente não tivemos acesso. 492
No dia 5 de fevereiro, tendo como intermediário o Jornal do Brasil, a União das
Costureiras publicou uma reflexão sobre as horas de trabalho e os baixos salários impostos
pelos patrões, que se aproveitavam da falta de organização das costureiras para explorá-las
ainda mais. Assim, elas convidaram a todas para que se associassem, para poder garantir e
exigir dos patrões suas reivindicações e melhorias. 493
As costureiras da União, no dia 10 de fevereiro, anunciaram além da palestra com Ruy
Gonçalves que ocorreu no dia seguinte, o retorno definitivo das aulas noturnas. “Está ainda
aberta a matricula para o curso nocturno mantido pela União das Costureiras e Classes Annexas.
As associadas que desejarem frequentar as aulas, deverão se dirigir à secretaria, afim de serem
matriculadas.”494

490 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 fev. 1922. O operariado, p. 12.
491 Ibidem.
492 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 fev. 1922, O operariado, p. 11.

493 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 fev. 1922. O operariado, p. 9.

494 União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 fev. 1922. O operariado, p. 14.
100

No entanto, apesar de aparentemente tudo estar caminhando bem, no dia 18 de abril, dois
meses depois, o jornal O Brasil 495 anunciou um fim para a União das Costureiras. A comissão
executiva convocou uma assembleia para decidir os rumos e os destinos da organização, que
segundo O Brasil, “(...) equivale a uma declaração da impossibilidade de se manter a
mesma.”496 As palavras deste periódico defenderam o direito delas de se associarem, sobretudo
porque eram muito exploradas, mas com um porém:
Essa associação, porém, devia ser fundada em moldes menos revolucionarios,
mais moderados e compativeis com a timidez das mocinhas que devem ser
associadas.
A “União” deve desapparecer, para que se cuide da creação de outra
associação, que não tenha a pécha de revolucionaria e que não se entregue a
mentores barbados e exaltados. 497

Mais uma vez, O Brasil, como O Paiz, atribuiu o caráter revolucionário de um sindicato
feminino à influência masculina. E a “timidez das mocinhas” é colocada como um fato
biológico, e como todas as mulheres fossem tímidas, sendo que, na verdade, era um padrão de
comportamento imposto pelo sexismo.498
A opção pelo sindicalismo revolucionário foi uma escolha delas próprias – a União e
sua comissão eram compostas apenas por mulheres. Assim como a escolha de convidar alguns
homens do movimento libertário para palestras e estabelecer alianças de solidariedade com
sindicatos masculinos e mistos. E o próprio sindicalismo revolucionário cumpria o papel de
unir a classe operária em torno de objetivos comuns, para melhorias de condições de trabalho,
que não englobava apenas “revolucionários”, mas também outras correntes políticas mais
reformistas.499
No mesmo dia, o Jornal do Brasil informou que a União das Costureiras continuava se
esforçando para a reorganização. Elas realizaram a distribuição de um manifesto no dia
anterior.500 As reuniões e os convites continuaram ocorrendo durante estes dois meses501,
porém o Jornal do Brasil divulgou que a União se dissolveu no dia 19 de abril.502

495 Jornal monarquista, fundado em 1891. Sua permanência na Primeira República demonstra a variedade política
dos jornais do Rio de Janeiro. SODRÉ, 1977.
496 Écos operarios. O Brasil, 18 abr. 1922, Rio de Janeiro. Vida proletária, p. 5.

497 Ibidem.

498 RAGO, 1985.

499 TOLEDO, 2004.

500 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 abr. 1922. O operariado, p. 6.

501 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mai. 1922. O operariado, p. 8.

502 Foi dissolvida a União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mai. 1922, p. 13.
101

O motivo divulgado pelo Jornal do Brasil foi a falta de correspondência da classe com
o sacrifício das poucas associadas que ainda estavam ativas na construção do sindicato. Os bens
ficaram com Elvira Boni, e com outras companheiras interessadas. 503
Para Elvira, muitas mulheres costureiras não se interessavam pelo movimento sindical
pela falta de identidade operária. Segundo ela, algumas de suas companheiras de trabalho
“Achavam que não eram operárias, e sim artistas, porque faziam coisas bonitas, vestidos... (...)
operário trabalhava com máquina. (...) E sindicato era coisa de operário. (...) E é.”.504
No dia 30 de junho, O Jornal, do estado do Maranhão, organizou uma reportagem sobre
o cotidiano das chapeleiras e costureiras do Rio de Janeiro, “as creadoras do luxo”. Sobre suas
condições de trabalho, eles expuseram os salários: “(....) as perfeitas (...) ganham geralmente,
de 120$ a 200$ por mez. As ajudantes, (...) ganham de 45$000 a 120$ por mez. As aprendizes,
essas, às vezes não ganham nada, ou então 15$, 20$, 25$ até o maximo de 30$000 mensaes.
Coiza que mal dá para a passagem do bonde...”. O jornal os descreveu como “subsalarios”, que,
muitas vezes, em ateliês que não permitiam o almoço, eram gastos na pensão em que comiam. 505
A redação entrevistou uma “costureirinha”, que expôs as horas de trabalho: geralmente,
10 horas por dia, entrando às oito e saindo às sete. 506 Muitas vezes ainda levavam trabalho para
casa, sem remuneração. A jovem trabalhadora falou da dificuldade de sair da condição de
aprendiz para se tornar ajudante, e de ajudante para “perfeita”, e que era necessário mudar de
emprego para ter sua qualificação desejada. 507
O periódico maranhense, ao caracterizar as condições de vida das costureiras como
“exploração elevada ao quadrado”, explicava a sujeição delas pela necessidade de
complementar a renda familiar, para que não vivessem na miséria. 508
O Jornal também entrevistou Elvira Boni sobre a União das Costureiras, e ainda não
sabiam sobre o seu fim:
A senhorita Elvira Boni, antiga secretaria da União, disse-nos à queima roupa:
- A União não existe mais.
- Como assim?

503 Ibidem.
504 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988. p. 37.
505 As creadoras do luxo. Chapeleiras e costureiras. O Jornal, Maranhão, 30 jun. 1922, p. 2.

506 Elvira se lembra do seu cotidiano de trabalho: “Eu morava no subúrbio, me levantava às cinco e meia da manhã,

saía às seis e quinze e só estava de volta às oito da noite, isso quando chegava cedo.” E, durante a noite, costurava
as próprias roupas e as de suas irmãs com a máquina de costura que possuía. LACERDA, 1983. Apud: GOMES,
1988, p. 30-31.
507 As creadoras do luxo. Chapeleiras e costureiras. O Jornal, Maranhão, 30 jun. 1922, p. 2.

508 Ibidem.
102

- Morreu de inanição... 509

Elvira contou para O Jornal a história do sindicato das costureiras para o jornal, desde a
fundação em 1919, “em um momento de efervescência geral do proletariado”, a primeira greve
que durou duas semanas e conquistou as oito horas de trabalho. Segundo ela, a União chegou a
ter 400 associadas.510 Eis a sua avaliação sobre a dissolução publicada no periódico:
Minhas colegas entenderam depois, que deviam deitar sobre os louros
conquistados. O rezultado é esse que vemos: as 8 horas foram pouco a pouco
se perdendo, voltando o trabalho à norma antiga de 10 horas. Quanto aos
salarios, a mesma coiza: foram diminuindo aos poucos. E dessa inatividade
das costureiras rezultou ainda o enfraquecimento progressivo da União, cujas
associadas foram dezertando, uma a uma, esquecidas dos benefícios
alcançados. Finalmente rezolvemos, meia duzia de companheiras mais
tenazes, dissolve-la de vez. 511

Um dos principais fatores que desorganizou a classe foi a repressão ao movimento


operário. A União começou a se desagregar entre 1920 e 1921, no mesmo período em que foi
empastelado o jornal Voz do Povo, principal órgão de divulgação das associações sindicais
atreladas à Federação dos Trabalhadores do Rio. Ao período de greves e agitações, entre 1917
e 1919, prosseguiu um período de repressão do Estado, aliado aos burgueses, para desestabilizar
as organizações operárias.
Além das dificuldades exponenciadas pela tripla jornada e das barreiras para alcançar
os sindicatos, é possível que o peso do medo da prisão e da perseguição política recaísse mais
ainda sobre as mulheres, vistas como o sustentáculo da família. A propaganda anticomunista e
a demonização do movimento anarquista, promovidos pelas elites dominantes, também foram
fatores de afastamento das mulheres e dos operários em geral das lutas sindicais.
Mesmo com a União dissolvida, Elvira disse que elas não desanimaram: as operárias
costureiras estavam pensando em outras formas de ação e táticas de luta de classe e de
propaganda, como as conferências e publicações. “É um trabalho lento, porem seguro. Os frutos
hão de vir, inevitavelmente, com o tempo.”512 Ainda, Elvira anunciou a possibilidade da
fundação de um jornal, destinado à propaganda associativa das mulheres operárias. 513
Este jornal-manifesto foi provavelmente o Nosso Jornal, de 1923, escrito por mulheres
do Grupo pela Emancipação Feminina: há indícios de que algumas participantes ativas da União

509 Ibidem.
510 Ibidem.
511 Ibidem.

512 Ibidem.

513 Ibidem.
103

das Costureiras o construíram e se inspiraram no Nuestra Tribuna, que pertencia às mulheres


libertárias da Argentina. 514 Samanta Mendes analisou um artigo sobre o 1º de Maio no Nosso
Jornal, que foi assinado por várias mulheres, incluindo Carolina Boni, irmã de Elvira, que era
bordadeira.515
Mesmo com a União dissolvida, para além da Liga Anticlerical, Elvira Boni continuou
atuando nos movimentos de socorro mútuo operários. Como exemplo, ela, sua irmã Carolina e
seu irmão Amílcar realizaram peças de teatro em uma festa de caridade na Resistência dos
Cocheiros, em benefício dos órfãos e da viúva do sapateiro Abílio Teixeira, no dia 1º de julho
de 1922.516
As costureiras voltaram a se organizar em um sindicato no Rio, nomeado também como
União das Costureiras, em 1935.517 No entanto, os moldes sindicais já estavam estabelecidos
pelo governo de Getúlio Vargas, portanto deveriam ser atrelados ao Estado.
A avaliação de Elvira Boni sobre o golpe, ou revolução de 1930, de acordo com
interpretações historiográficas diferentes, foi inicialmente positiva, ela estava entusiasmada,
pensava que ia votar, mas se decepcionou com as prisões e as perseguições da ditadura do
Estado Novo.518
Aos 84 anos, Elvira atribuiu aos trabalhadores e trabalhadoras as suas próprias conquistas:
“Acho que chegamos a adiantar bastante, porque se não fôssemos nós Getúlio Vargas não teria
assinado as leis trabalhistas que assinou, e que mesmo assim continuam até hoje a ser burladas.
Realmente, digo que o sacrifício foi muito grande, mas acho que começaria tudo de novo se
fosse possível. (...) faria tudo de novo.” 519
As conquistas dos direitos trabalhistas nos anos 1930 se deve a todos os trabalhadores
que lutaram durante décadas, se organizaram e fizeram greves, como as próprias costureiras.
Este depoimento de Elvira reforça a tese de Glaucia Fraccaro: a luta das mulheres operárias foi
determinante para a conquista de direitos no âmbito do Estado brasileiro durante o século
XX.520

514 GRIGOLIN, Fernanda. Abrindo sulcos e traçados: o borda da encruzilhada. s.d. Disponível em:
http://tendadelivros.org/jornaldeborda/wp-content/uploads/2019/06/borda-6-baixa-simples.pdf
515 MENDES, 2018.

516 Uma festa de caridade. O Brasil, Rio de Janeiro, 27 jun. 1922. Vida proletária, p. 4.

517 Syndicato de tesoura e linha... Uma agremiação de fins elevados, que promette não “dar panno pras mangas”.

Arregimentam-se as costureiras do Districto Federal. A Noite, Rio de Janeiro, 11 set. 1935, p. 1.


518 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988

519 Idem, p. 67.

520 FRACCARO, 2018.


104

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a acelerada industrialização na virada do século XIX para o XX, as mulheres,


brasileiras ou imigrantes, passaram a integrar a classe operária e o mundo do trabalho urbano.
De acordo com Emilia Viotti da Costa, ao conciliar as tarefas domésticas com o trabalho fora
do lar, as mulheres trabalhadoras passaram a questionar a ausência de seus direitos. 521
A contribuição deste trabalho para a historiografia é inserir-se na corrente de pesquisa da
História Social do Trabalho que vê a potencialidade das mulheres operárias de se organizar em
sindicatos, realizar greves e lutar por direitos, contrariando o padrão de comportamento que foi
imposto a elas pela sociedade burguesa 522 e as narrativas historiográficas que mutilaram a
consciência política da mulher.523
Para Elvira Boni, a vida era uma militância. 524 Elvira foi uma mulher, aprendiz,
costureira, sindicalista, anarquista, atriz, curiosa,525 e satisfeita com as lutas que travou durante
a vida.526 De acordo com as palavras de sua filha Zeni, ela era uma “guerreira mansa”, 527 o que
traduz o seu ímpeto revolucionário diante de uma sociedade que visa aprisionar mulheres da
classe trabalhadora.
O estudo da construção da União das Costureiras e da biografia de Elvira Boni permitiu
o contato próximo com estas mulheres, suas narrativas e suas lutas, que se constituíram como
sujeitos políticos, reivindicaram pautas próprias e pensaram em projetos de emancipação que
visavam a superação do capitalismo, à margem do feminismo hegemônico. 528
Há uma grande importância em afirmar a presença das mulheres negras nas lutas e
organizações da Primeira República, visto que elas são as mais invisibilizadas pela
historiografia do movimento operário, inclusive para combater o racismo e a opressão de gênero

521 COSTA, Emilia Viotti da. Patriarcalismo e patronagem: mitos sobre a mulher no século XIX. In: COSTA,
Emilia Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1999.
522 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930). Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1985.


523 FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917 -1937). Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 2018.


524 Conforme depoimento gravado com Eneida Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

525 Conforme depoimento gravado com Consuelo Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

526 LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES, Angela de Castro

Gomes. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.


527 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.

528 Idem.
105

no âmbito da escrita da História. Acredito que deixo uma abertura de perspectivas para os
futuros historiadores. As reflexões de Benito Schmidt ampliam ainda mais a questão da
interseccionalidade ao incluir, nas pesquisas históricas, as lutas das pessoas LGBT no mundo
do trabalho.529
Acredito também que o conhecimento acadêmico não deve ficar dentro dos muros da
universidade e que, portanto, é necessário lutar pela incorporação destas novas pesquisas
historiográficas no currículo escolar, nos cursinhos populares, cursos de formação política,
museus, casas de cultura, produções documentais e cinematográficas, e em outros espaços, para
que a sociedade conheça a História que está sendo produzida e dar visibilidade para sujeitos
históricos, individuais e coletivos, que estiveram ausentes da historiografia tradicional.
Finalmente, acredito que este trabalho tem um sentido político. Apesar do ofício do
historiador ser um trabalho científico e com o máximo de objetividade, a própria escolha do
tema já é uma escolha política. Portanto, a pesquisa sobre um sindicato feminino de orientação
sindicalista revolucionária, movimento que buscava a união dos trabalhadores independente de
suas diferenças, e a busca pela trajetória e pensamento de mulheres anarquistas e comunistas,
visam o rompimento com o Brasil de hoje que é o Brasil de ontem, e a construção de uma
sociedade mais justa e igualitária.
Vivemos em um contexto político neoliberal, com o fascismo, a retirada de direitos
trabalhistas, o aumento da violência contra a mulher, o alto desemprego e a pandemia. É
importante que os historiadores virem sua atenção aos temas relacionados às lutas das classes
populares e ao feminismo popular, que em diversos períodos históricos e contextos, pois há
muito ainda a ser conhecido e apreendido, que possa projetar caminhos de transformação social
para o futuro. Elvira Boni, em sua entrevista nos anos 1980, apresentou sua opinião: “Aliás,
agora estou ficando contra as greves, porque elas não estão adiantando mais. O que é preciso é
uma coisa mais enérgica. Revolução, por exemplo.” 530

529 SCHMIDT, Benito. Complexificando a interseccionalidade: Perspectivas queer sobre o mundo do trabalho.
Mundos do trabalho, n. 19, vol. 10, 2018.
530 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
106

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Entrevista com Elvira Boni, por Ângela de Castro Gomes (1983)
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Gazeta de Noticias – RJ (1919)
O Jornal – RJ (1920-1921)
O Jornal – MA (1922)
Jornal do Brasil – RJ (1919-1922)
O Imparcial – RJ (1919-1921)
A Lanterna – SP (1913-1915)
O Malho – RJ (1910)
A Noite – RJ (1919-1935)
O Paiz – RJ (1919-1921)
A Razão – RJ (1919-1921)
A Rua – RJ (1919)
Voz do Povo – RJ (1920)
Fonte: Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional
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Fonte: Arquivo Edgar Leuenroth
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114

ANEXO – TRANSCRIÇÃO: ENTREVISTA SOBRE ELVIRA BONI

Entrevistadas: Zeni Lacerda Pamplona, Consuelo Pamplona e Eneida Pamplona


Entrevistadora: Beatriz Luedemann Campos
Perguntas que orientaram a entrevista:
1) Conte um pouco sobre vocês.
2) Quais são as memórias que vocês têm da Elvira?
3) O que ela mais gostava de contar?
4) O que ela falava sobre a experiência dela como costureira? Ela fez amizades com suas
colegas de trabalho? Ela falava algo sobre a presença de meninas novas nas oficinas? E sobre
abusos no ambiente de trabalho?
5) E sobre sua atuação política? O que ela contava sobre o sindicato União das Costureiras? E
sobre o grupo de teatro da Liga Anticlerical?
6) Qual era a avaliação dela sobre a Revolução Russa e a União Soviética?
7) Como vocês vêem, pensando na Elvira, a conciliação da militância política com as tarefas
domésticas e a maternidade?
8) Ela falava sobre as diferenças de suas experiências em São Paulo e no Rio de Janeiro?
9) Quais são suas memórias sobre o Olgier Lacerda (pai/avô)?
10) Vocês têm documentos ou fotos?
Entrevista
Beatriz Campos: Meu nome é Beatriz, eu estudo História na Universidade Federal de São
Paulo e a minha pesquisa é sobre a Elvira Boni e a União das Costureiras, principalmente.
Porque o TCC é menorzinho, então acho que para o mestrado vou ampliar e fazer uma biografia
maior, e é isso. Assim, fiz as perguntas, e aí vocês veem como vocês querem responder: eu
pergunto, vocês respondem, ou vocês vão falando só. Isso tanto faz.
Consuelo Pamplona: É bom você ir falando as perguntas.
Eneida Pamplona: Começa você perguntando.
BC: Tá bom. É... a primeira pergunta é pra contar um pouco sobre vocês.
CP: Contar um pouco sobre a gente. Então, vou começar.
BC: Tá bom.
CP: Eu sou Consuelo, sou neta, né, da Elvira, sou filha da Zeni. Sou jornalista, sou astróloga
hoje em dia, taróloga. E eu tenho assim, em comunhão com a minha, como eu sou astróloga né,
eu tenho em comunhão com a vovó o signo de Gêmeos. Ela era uma criatura super interessada
115

em tudo né, assim, super curiosa, muito interessada em tudo, super diversificada. E eu sempre
tive vontade de fazer isso que você ta fazendo, mas depois me afastei, de escrever sobre esse
momento da História né, que foi um momento assim tão rico, tão importante né. E assim, o que
eu lembro, relativo a essa questão do signo né, é que ela, ela estudou muito pouco na vida dela,
né. Ela estudou uns dois ou três anos só, mas ela tinha uma letra linda, né, e fazia conta, tudo
direitinho né. E os Gêmeos, a coisa mais importante que tem pro Gêmeos é justamente o estudo,
né. Então eu imagino o quanto deve ter sido difícil pra ela não poder permanecer na escola. Ela
teve que sair para cuidar de um irmão, né.
BC: Sim.
CP: Então eu imagino quanto isso deve ter sido difícil pra ela, né. Mas agora onde ela tá com
certeza deve tá estudando tudo o que ela quer. (risos) Então é isso né, é, sobre mim mesma e
sobre né. Tá bom a minha apresentação?
BC: Adorei. (risos)
CP: (risos) Então vai lá, mãe, se apresenta.
Zeni Pamplona: Na realidade foi um momento muito triste na vida dela, ela ter que largar o
colégio né, porque ela tinha uma sede de saber, de querer, de poder, enfim. E ela não pôde. Eles
tiveram um irmão com problema de paralisia infantil, então ele precisava... ele era um menino
que precisava de ficar no colo durante muito tempo... Não tinha, enfim. E minha vó tinha...
enfim, tinha as obrigações da casa, como se dizia naquela ocasião, né. As obrigações da casa, e
mais, eles tinham aqui no Rio, quando vieram e conseguiram se estabelecer no Rio, meu tio fez,
conseguiu fazer uma oficina, porque os filhos já estavam iniciados na profissão. Ferreiros, né?
CP: Ferreiro, profissão de ferreiros.
BC: Qual é o nome do seu tio?
CP: Ah, olha só um parênteses mamãe, é... São dois, tá? Tem o Estevam Boni e o Amílcar
Boni. Os dois foram fundadores do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Se você for
lá no prédio em Niterói, Niterói? São Cristóvão, tem a placa com o nome deles.
BC: Nossa, que interessante.
CP: É, foram fundadores do Sindicato dos Metalúrgicos. Então, pode continuar mamãe. E eles,
só andando um pouquinho pra trás né, eles eram anarquistas né, o meu bisavô e a minha bisavó
eram anarquistas.
BC: Seus bisavôs? Ah, é, sim.
CP: Continua mamãe, continua.
ZP: Já vieram da Itália anarquistas, né. Já tinham sido, já estavam, já tinham pegado o... o vírus.
(risos)
116

BC: O vírus? (risos)


ZP: (risos) Lá na Itália. Aí já vieram com essa coisa, aí quando chegou aqui, no Brasil, com
aquela, primeiro a dificuldade de se estabelecer, né. A dificuldade da língua também. Mamãe
contava que ela tinha uma amiga dela, quer dizer, uma italiana que alugou um quarto na casa
dela, onde ela estava, e elas não se entendiam absolutamente. Porque só falavam em dialeto.
Uma era de um determinado lugar, e a vovó era do Vêneto. Então isso era uma dificuldade
muito grande que eles tinham de se estabelecer. Depois, com alguns problemas de família e tal,
a minha mãe foi trabalhar com 12 anos, a minha mãe foi ser... É, primeiro pra ser... Aprender.
BC: Aprendiz.
ZP: Então ela foi trabalhar, eu até procurei essa coisa mas não encontrei. Mas ela falava muito
nisso. Ela era... Era o... Ateliê Madame Marosini, na rua Gonçalves Dias, ela falava.
BC: Que ela começou a trabalhar?
ZP: Ela contava muito a respeito, né. O que? Não entendi.
EP: Você falou alguma coisa, Bia?
BC: Não, falei não, só repeti.
CP: E ela contava muito a respeito do que, mamãe?
BC: É, pode continuar falando.
ZP: Ela contava muito a respeito, ela contava muito a respeito da dificuldade, que eram ateliês
famosos na cidade, de primeira, de alta costura. Chamava de alta costura. Mas, na realidade, lá,
como em todo lugar né, como é que se diz? Exploravam muito as meninas que iam aprender.
Eles ficavam enrolando muito e elas não só iam, elas aprendiam aquela coisa que era bom pra
eles. Era o trabalho né. O trabalho. Porque naquela ocasião, em 1921, 22, a mamãe dizia que a
alta costura incluía o chuleado. Você sabe o que que é chuleado, da costura? O vestido tinha
que ser todo chuleado por dentro, todo, todo. Não podia, era parte da alta costura. E o avesso
do, o avesso da roupa tinha que ser tão perfeita quanto a parte, né.
BC: Ah, sim.
ZP: Então, isso tudo ela contava, das dificuldades, e que as meninas não tinham às vezes nem
lugar... elas todas levavam marmita, né. Porque não tinham dinheiro para comer fora. Elas
levavam marmita, e elas tinham, como é que diz? Dentro do ateliê, elas... Primeiro a dificuldade,
porque você não podia manusear as coisas com medo de sujar a roupa, sujar o lugar onde elas
estavam. Então elas não tinham lugar. Elas às vezes iam comer no banheiro. Então aquilo foi
uma dificuldade grande que elas passaram, e começando a se entender realmente por lutar né,
lutar contra essas coisas, né. Então, ela mais, e os meus tios também, aderiram ao movimento
117

anarquista, e já tinham vindo da Itália o meu avô, já com... Já tinha sido mordido lá né. Então
ele veio aqui (risos), eles começaram a se interessar. A relação do meu pai com a minha mãe...
CP: Ô mãe, só um minutinho.
ZP: Meu pai era um intelectual.
CP: Não, se você falou que ela começou a trabalhar com 12 anos, foi com 12 anos mesmo?
BC: É, ela falou também que foi com 12, na outra entrevista.
ZP: Ou com 13, é, com 12 anos ela teve que largar o colégio né, e começar a trabalhar. Eu não
sei até quanto tempo levou para arrumar um emprego, detalhes assim eu não sei, e ela agora
não (risos), não tá mais viva. Ela gostaria de contar detalhes, (risos) ela era muito minuciosa.
Mas aí, o meu pai, ele era um cara já mais intelectual e tal, e... porque a minha mãe se apaixonou
também pelo fato dele ter o estudo que ela não teve. Tinha esse detalhe. Ela tinha essa paixão
pelo saber dele, que ele era realmente muito, muito culto, e aí ele... ela qualquer coisa ela tinha
aquele, aquele relacionamento com uma pessoa que tinha um pouco mais de, que tinha mais,
assim, mais saber que ela, né. E mais, mas ela era uma mulher tão inteligente, e era tão... tinha
tantas possibilidades de ser mais organizada, a não ser que não tinha o problema da situação,
né, que eram pobres né. Todos eles eram pobres. Mas enfim, aí eu acho já que tô falando demais,
né?
EP: Não!
BC: Não, pode falar! Fica a vontade.
ZP: Que a mamãe, a minha mãe se interessava muito também pela parte intelectual do meu pai,
e tal, e... Agora, na realidade, ela era mais do batente, né? Na parte... e com meus tios também,
os meus tios eram... Ah, quando eles vieram pro Rio de Janeiro, eles conseguiram depois de um
certo tempo, os meus tios, já estavam, assim, miudinhos né, mas estavam... como é que diz?
Tavam já crescidinhos pra trabalhar, né? Trabalhavam o tempo todo dentro da oficina e tudo,
e... só sei dizer que quando eles atingiram a maioridade, o meu avô conseguiu fazer uma... uma,
sei lá, com um advogado, conseguiu fazer uma oficina. Que se chamava “Estevam Boni &
Irmãos”, que era os meus dois tios, um se chamava Amílcar e o outro Estevam. E... a luta em
casa era uma luta grande porque a minha vó ela era já parte das coisas da casa né, porque um
filho doente, não é? Como ela tinha. E ela tinha que cozinhar não só pra família toda como
também para os pouquíssimos, um ou dois, sei lá, ou três, não sei quantos empregados é que
eles podiam ter. Só aqueles que realmente precisavam mesmo. E... enfim, mas ela, eles
conseguiram se erguer, né. Então tinha assim, e a mamãe passou por isso e acabou casando com
o papai, em 1923.
EP: Só um minutinho, deixa eu entender aqui uma coisa. Ela entrou, foi trabalhar...
118

ZP: No movimento.
EP: Ela entrou, foi trabalhar como costureira, aí entrou pro movimento pequeno ainda,
participou da primeira greve, né?
ZP: É.
EP: E antes de conhecê-lo, ela participou do teatro da Liga Anticlerical, não foi?
ZP: Já, já conhecia.
BC: Já conhecia.
ZP: A ponte entre o teatro... A ponte que eu to falando quer dizer a relação né, é... Que a mamãe,
ele mais ou menos é quem tinha a parte cultural pra botar as peças, enfim, pra ter aquele. E ela,
tem, tem um muito engraçado que tem lá em casa, eu tenho, depois eu posso bater uma foto,
pra mandar pra vocês. E ela, ela trabalhava na peça. E meu pai também.
BC: Legal!
ZP: Gostava de teatro, desse programa.
EP: Ela tem o programa em casa, da peça de teatro que tanto o meu avô, quanto a minha avó,
fizeram juntos quando namorados.
BC: Ah, sim, que legal!
ZP: É, enfim. Tinha uma boa, uma boa relação mesmo. Então eles sabiam bastante de, das
peças de teatro, e sempre tinham, procuravam colocar aquele viés, aquele viés político, né
(risos). Tinham sempre essa preocupação. Mas é isso, enfim, me faça alguma pergunta porque
eu já to cansada (risos).
BC: (risos).
ZP: Eu tô cansada de falar.
CP: Ela botou por escrito né, o que que a gente lembra né, da vovó, e tal, e eu lembro de, é...
lembro muito dela cantando “A Internacional”, ela gostava muito de cantar.
BC: Uhum (risos). Sim.
CP: Né, adorava cantar. Então ela cantava “A Internacional”.
ZP: Ela gostava.
CP: É, e cantava também, ela cantava, até hoje não sei a letra da música, mas ela cantava, é...
a paródia, né. É uma música italiana “O Sole Mio”, né. “O Sole Mio” (cantando). E ela cantava
com a paródia.
O Sol dos Livres
Distinto Sol
Astro que brilhas da ciência em prol
Ao belo nos conduz
119

Tananã Brilho rubro


Ó Iconoclasta luz
Eu conheço esta letra mas em italiano é a outra né. (risos)
BC: (risos) Uhum.
CP: Tinha essas paródias, e eu lembro dela cantando isso, e ela gostava muito de cantar, né.
ZP: Ela cantava também uma paródia que fizeram, era eles que faziam em reunião as coisas,
uma paródia do coro dos ferreiros, da Ópera, da Ópera... e agora José? Eu esqueci. Coro dos
ferreiros. Até pouco tempo, lembra de uma coisa que aconteceu na Itália com... parece que
parou a... o espetáculo, e o povo todo começou a cantar. Lembra isso não, coro dos ferreiros?
Isso foi uma coisa que aconteceu há pouco tempo, não foi muito tempo não.
BC: É?
ZP: Mas enfim, é... o que eu posso te dizer era isso, e o papai, você perguntou se... Ah! Tem
um negócio importante.
BC: É?
ZP: Que nós vamos evidentemente que, é... Vai fotografar e vai dar pra vocês, é que papai tinha
assim um viés um pouco frustrado de não ter sido poeta né, então ele escreveu pra mamãe uma
poesia no aniversário de 51 anos de casados. É muito bonita, do ponto de vista inclusive...
BC: Uhum.
ZP: É muito bonitinha, é muito boa.
BC: Quero ver!
ZP: Então nós vamos dar, é... Bater uma foto. E dar pra vocês. (risos)
BC: (risos) Obrigada.
ZP: Eu não sei mais o que dizer. Dela, dela ter... como é que se diz? Feito essas coisas né, tinha
o que, que eu poderia dizer dela? Não me lembro...
CP: Oi! A Bia botou aqui uma pergunta, você lembra dela... Hã? Fala!
BC: Pode falar.
CP: Não, você diz, não me lembro da coisa, da pergunta.
BC: Você está respondendo várias já, e o que faltar eu falo depois.
ZP: Ah, é? (risos)
BC: Uhum, sim. (risos)
ZP: Mas eu vim com tanta pressa realmente que eu não, eu me lembro de uma assim mais que
você perguntava se eles conversavam sobre o movimento, né.
BC: É.
120

ZP: Se papai e mamãe conversavam sobre o movimento. Quer dizer, durante o tempo que eles
eram jovens lá, na luta, eu não me lembro dela comentar, de falar. Depois já ficou uma coisa
muito... durante a vida de casados que nós já éramos grandinhos, falavam de vez em quando,
tocavam em determinado assunto, mas não era uma coisa assim que pudesse, eu acho que se
tivesse mais, mais... valor como colaboração pra te dar, entendeu? Coisas muito comuns assim.
BC: Ah, mas pode falar.
ZP: Bem porque a vida era comum. E a vida era tão difícil, todos. (risos) Inclusive pra, até nós
mesmo crianças era, não era fácil, sabe?
BC: Sim.
ZP: Quer dizer, não era, nós éramos classe média pobre. (risos)
BC: (risos).
ZP: Classe média pobre. (risos). E a gente tinha certas, certos momentos de poder conversar,
de poder falar, e aqueles outros momentos mais difíceis de... Ah, meu amor, chega! (risos). Me
diga, faltou alguma coisa que você quer saber? Que eu posso dizer? Me ajudem, que vocês
conversavam tanto com a vovó. Podem me ajudar também.
BC: Ah, podem falar vocês duas também. É... Eu queria saber se ela fez alguma amizade com
alguma outra costureira naquela época, assim?
ZP: Ah, sim. Fez, fez. Depois ela foi trabalhar, ela foi, no coiso ela foi, na União das
Chapeleiras. Ela começou a estudar pra fazer chapéu, que era aquela moda, naquela época, tinha
a moda do chapéu, né. Até mesmo eu me lembro que... quer dizer, em 1900 e... eu já era, eu já
tinha uns seis, sete anos. Eu sou de 29, né. Eu tinha seis, sete anos, e naquela época as mulheres
não saíam sem chapéu. Era um chapéu, qualquer chapéu, qualquer mulambinho, pra botar de
chapéu, era importante. (risos).
BC: Sim. (risos).
ZP: No momento era mais importante o chapéu. (risos). Era muito engraçado. Então ela foi
trabalhar na União das Costureiras, lá ela aprendeu a fazer chapéu, e já tinha lá uns chapéus
bonitinhos que ela fazia e tudo. (risos).
BC: Ah! Sim.
ZP: Ai ai.
CP: E ela tinha alguma amiga, mãe? Que ela falava, que ela levava em casa, alguma pessoa
assim?
ZP: Não, não. Isso era muito difícil, levar amiguinha em casa, isso é coisa de agora. (risos).
BC: (risos).
121

ZP: Naquela época não era assim não, não dava. Assim, sempre morava uma longe da outra.
Uma morava, a outra morava. Minha avó morava... não lembro como é que chama o nome do
morro... morava no morro. O morro que tem ali, que sai. Acho que é Morro da Mangueira, não
tenho certeza, ela não sabia que era isso não. Ela nunca disse isso. Eu não me lembro. É, não
me lembro não. Mas ela morava... Então, ela assim, tinha assim muita amizadezinha. Tinha
muita amizade, muito era com todo mundo que era do... do movimento. Ela falava do
movimento, que era do movimento, então isso era mais, era uma coisa que a gente escutava
mais.
BC: Sim. E você lembra de algum nome?
ZP: E disso... Nome de alguma?
BC: Nome de alguma mulher do movimento? Não, não lembra?
ZP: Não lembro, eu não lembro. Sinceramente eu não lembro.
BC: Tudo bem.
ZP: É que talvez mais assim uma, uma coisa só um nome, de nome e sobrenome. Idalina,
lembro dela falar muito na Idalina.
BC: Idalina?
ZP: Idalina, mas não... Não sei outra coisa que ela pudesse ter. É isso querida.
BC: Muito bom. Obrigada pela fala. A Eneida quer falar um pouco também?
EP: Posso falar. É... eu sou, de formação eu sou psicóloga, atualmente eu sou produtora rural,
eu tive uma convivência bem próxima com a minha avó, e com meu avô. Ela era muito... Uma
mulher muito ligada às tarefas domésticas, né, à economia. Ela sempre trabalhou muito e
encarou muito as tarefas dela como trabalho, né. Não como, é...
ZP: Obrigação.
EP: É, não como obrigação. O meu avô era uma pessoa muito... era um intelectual, era muito
inteligente, mas ele era também muito exigente, né. E... eles tinham a militância, é... dentro do
cotidiano, não como uma coisa separada da vida, né. Pelo menos como eu entendia a fala deles,
né. A vida era uma militância. Então, também, né, tudo que você fazia né, era um exemplo,
porque como eles eram, claro, ela filha de anarquista né, e depois, meu avô, ele era na realidade
socialista.
BC: Aham.
EP: Ele foi...
ZP: Passou a ser, até fundar o Partido Comunista.
EP: Até fundar o Partido Comunista, mas...
ZP: Ele foi um dos fundadores.
122

EP: Mas no grupo dos 12, que fundou o Partido Comunista, ele era um socialista, e depois ele
passou a ser comunista.
BC: Ah, sim.
EP: A defender a comunista, né. Se você verificar, no grupo dos 12, tem socialistas né. E ele
escutava muito, na época da, eu nasci em 60 né, logo em 64 veio o golpe, e eu cresci escutando
eles escutarem a Rádio Ondas Curtas, pra poder saber das notícias que não chegavam no Brasil
porque eram proibidas. Eram censuradas, né.
BC: Sim, sim.
EP: Ele... eles eram muito, é. E como eles eram muito, os comunistas sempre foram muito
perseguidos, né, e eles tinham uma visão mais livre, digamos assim, menos preconceituosa do
que se refere à arte né, tanto que uma filha foi ser pianista e depois atriz, e a outra filha foi ser
bailarina, né.
BC: Sim.
EP: E já muito cedo, elas tinham muita responsabilidade né. E eles diziam que era porque elas
tinham que dar o exemplo. A vida deles tinha que ser um exemplo para os outros porque, justo
porque eles eram muito mal vistos por terem a militância política, então a vida deles tinha que
ser um exemplo. Não importava dela ser uma bailarina, ela cedo teve a chave de casa né, para
poder voltar pra casa. Tudo com muita responsabilidade. Então é o contrário do que se possa
imaginar, né, não eram loucos, oba-oba, o contrário. Talvez fossem mais rígidos do que
determinadas famílias tradicionais.
BC: Entendi.
EP: Eles tinham... as duas foram criadas com uma carga de responsabilidade grande. Porque
era muito importante dar o exemplo.
BC: Sim, que interessante.
EP: À medida que eu for lembrando, eu posso ir contribuindo pra você ali no WhatsApp, né.
BC: Tá bom.
EP: Mas isso foi uma coisa que marcou, né.
BC: Sim.
EP: E quanto à questão da União Soviética, que você perguntou.
BC: Ah, sim. Perguntei.
EP: É. A minha avó, eu não me lembro dela ter muita opinião, né, porque ela já era aquela
pessoa que tinha que colocar panos quentes em tudo, porque o meu avô era uma pessoa muito
nervosa, que demandava muito. É... o fato dele ser, é, comunista, e de ser um artista, não o
salvou de ser um grande machista.
123

BC: Sim.
EP: E de exigir da esposa né, tudo aquilo que se exige de uma esposa no princípio do século
passado. Retidão, comportamento, é... ser boa cozinheira, ter a casa limpa, né, e além de tudo
isso, ser companheira, militante etc, etc. Ou a mãe, etc né. É... ao longo da vida deles, né, ele
teve uma, não sei se você sabe, ele não foi só comerciante, ele teve uma farmácia, ele foi para
o Rio Grande do Sul, morou lá em Bajé, depois eles voltaram para o Rio de Janeiro...
ZP: A farmácia não era dele.
EP: Não, a farmácia não era dele, ele trabalhava na farmácia, em Bajé. A mamãe foi concebida
em Bajé, e veio, já a minha vó veio nos últimos meses da gravidez pro Rio de Janeiro de navio.
Que naquela época era muito comum viajar de navio, né, para encurtar as distâncias, né. E aqui,
por duas vezes, eles tiveram pensão. Então a minha avó também teve pensão, né. Com hóspedes,
com tudo. É... eu perguntei pra ela sobre o fato se junto com a minha avó existiam mulheres,
meninas negras, né, ou mulheres negras, minha mãe não soube.
ZP: Não soube.
EP: Não soube dizer isso. Não lembra disso né. O que ela lembra muito bem é esse Ateliê da
Madame Marosini que ficava na rua Gonçalves Dias. Eu fiz uma busca na internet mas eu não
achei. Ela arrisca dizer que era na Gonçalves Dias número 12, mas ela não tem certeza.
ZP: Não tenho certeza mesmo, não.
EP: É. E o que eu lembro muito da minha vó é a rigidez com a qual ela foi criada, né, e... a...
como é que eu posso te dizer isso?
ZP: Ela não dava sossego pra gente. (risos)
EP: Ela tinha uma disciplina e ela acreditava que nós deveríamos ser capazes de aprender e
executar as tarefas domésticas, e que deveríamos estar muito atentas né, na economia
doméstica. Então muito atentas a tudo que poderia poupar. Então eles, por exemplo, meu avô
guardava o palito de fósforo. Foram pessoas que viveram duas guerras, Beatriz. Isso faz muita
diferença na vida das pessoas, entendeu?
BC: Sim, é.
EP: Viver a guerra, viver a guerra em um mundo que não tinha nem telefone, né. Num mundo
que era um mundo de escassez, não era um mundo, né. Então ela guardava o palito de fósforo
usado porque o palito de fósforo usado servia para limpar o ralo do chuveiro. Se guardava o
algodão usado pra injeção porque esse algodão servia para limpar a ferrugem.
BC: Ah, sim.
EP: Da porta, da tranca, do que fosse né. Então era um estilo de vida muito, é...
ZP: Rígido, né?
124

EP: Rígido, né, muito atento ao não desperdício, afinal de contas foram pessoas que passaram
dificuldades porque o meu avô, ele foi um filho temporão, quando ele, é... quando a minha
bisavó tinha 7, 8 meses de gravidez, o marido morreu. Então ele foi um filho temporão criado
sem pai. Foi um pouco criado pelos irmãos mais velhos, né. E um irmão, que depois vinha
pouco pro Brasil. A gente pouco, não teve muito contato com essa família, né. Com essa família
do meu avô. É, mas ele teve um irmão médico.
BC: Um irmão médico.
EP: Então eu acredito que, a infância, ele deve ter trabalhado em farmácia, essa coisa, um pouco
essa influência. Na realidade ele se formou contador, né, ele era contador de formação.
CP: Farmacêutico também.
ZP: Ele também trabalhou... o que?
CP: Farmacêutico também, o anel dele, o anel de formatura dele tinha os dois símbolos, de
farmacêutico e de contador.
ZP: Tinha esquecido disso.
EP: É, a mamãe tinha esquecido disso e eu não sabia. E... ele, até esqueci o que eu tava falando.
ZP: (risos)
BC: (risos)
EP: Bom, eu esqueci o que eu tava falando.
BC: É, que ele se formou em conta... contador. É contação que fala, não?
CP: Contabilidade.
BC: Contabilidade, é. (risos)
ZP: Contabilidade, é.
EP: E é isso, se eu for lembrando mais de alguma coisa, eu posso te passar. Mas, essa... Ah, a
gente tava falando de como ele percebia a União Soviética né.
CP: É... não lembrava.
EP: E ele teve uma briga uma vez, né, forte, um embate teórico com né, com a minha mãe,
porque a minha mãe um pouco se revoltava com as... o regime de força mesmo, essa ditadura
comunista que aconteceu na União Soviética. E ele dizia que tinha que ser, pra poder garantir
que o regime funcionasse, é isso?
ZP: É.
EP: Para garantir que o regime funcionasse, algumas atitudes tinham que ser tomadas.
CP: Mas eu também lembro assim, é... dele falar, dele ser contra, ter falado em casa dele ter
ficado na geladeira, do Partido Comunista ter isolado ele. Por que? Porque talvez ele tinha
esperança na linha chinesa né, no Mao Tsé-Tung, e o Partido Comunista Brasileiro não, ele era
125

totalmente alinhado com a União Soviética. Então, o que que aconteceu? Eles tinham um
negócio chamado centralismo democrático, nos partidos comunistas. Então assim, eu posso não
concordar com a decisão da maioria, mas eu vou acatar essa decisão. O que eu lembro então de
ser dito a respeito dele é que ele tinha acatado o centralismo democrático embora ele não
concordasse com a União Soviética, e a... e tivesse esperança na linha... eu não sei se era chinesa
ou albanesa, tinha esse negócio aí da Albânia também.
BC: Ah, tá.
CP: Eu lembro assim de ter essa conversa. Quando ele morreu eu era muito nova, mas eu lembro
desse... dessa coisa até porque o que é ficar na geladeira? O que é centralismo democrático, né?
Eu queria entender o que era essas coisas. E a gente pega, eu, pelo menos né, eu pegava muito
na emoção. Como assim ele tá na geladeira? (risos)
BC: (risos).
ZP: Ai, ai. (risos)
BC: Interessante. É, então, só uma pergunta em relação a isso, ele era socialista, e depois virou
comunista, né?
CP: Eu nunca soube disso que ele era socialista, não.
BC: É? E a Elvira era anarquista.
CP: Ele era anarquista. Conheceu a minha avó no movimento anarquista, e depois fundou o
Partido Comunista. Sendo do Partido Comunista...
ZP: Ele já era comunista, quando ele... ele já era quando ele, isso teria que... as datas, agora eu
não me... eu não sei nada direito. Só sei que ele era comunista, e eu me lembro de comunista,
rígido, da coisa, e eu tinha um pouco mais de... era mais nova também, né.
CP: Agora as informações eram muito difíceis naquela época, era tudo censurado, foram duas
ditaduras, teve a ditadura do Getúlio, depois a ditadura militar, então era muito difícil conseguir
informação.
ZP: Eu me lembro, olha, eu me lembro, deixa eu contar isso. Eu me lembro que morava no
Angaraí, eu era criança, e já estava no colégio, tá ouvindo o que eu falei?
BC: Tô, tô ouvindo.
ZP: Morava no Angaraí, te contei? Morava no Angaraí, era criança, e... já estava no colégio
primário, primeiro ou segundo ano, não me lembro. Naquela ocasião, eu me lembro, porque
tudo era assim, dentro de casa se você via uma coisa, você não podia perguntar, entendeu?
Porque, exatamente por isso, por não ser uma criança que de repente chega um... um cara que
é, que é policial, sei lá, e você de repente fala alguma coisa. Então tudo era, era... Assim, não
pode perguntar. Eu me lembro que meu pai, de noite, bem tarde da noite, eu vi ele fazer uma...
126

uma embrulhada de jornal assim, botar lá e ficar. E eu perguntava pra que, (risos) e só fui saber
muito tempo depois, né. Que era pra ouvir Moscou. Que ele botava, naquele tempo já tinha o
rádio, e ele escutava aquilo em italiano, depois eu vejo melhor mais tarde quando. Lembro que
eu achava engraçado porque eles diziam “parla mosca”, mosca era Moscou, né. (risos) E aí eu
achava muito engraçado isso.
BC: (risos).
ZP: E aí eles tinham essa coisa, do não pode perguntar. E outra coisa também muito engraçada
é que a minha mãe tinha ensinado a... minha irmã, não pode rir, não pode falar. Isso, só pra
vocês saberem, que era “A Internacional”, né. Que era “lalalarara”, agora eu não sei.
CP: De pé, ó vítimas da fome
De pé, famélicos da terra
A ígnea chama que consome
A força bruta que a soterra
Cortai o mal bem pelo fundo
Tanãnãnã, não mais senhores!
Se nada somos em tal mundo
Sejamos tudo, ó produtores!
Bem unidos, façamos!
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional
Mãe, fala de novo, que eu cantei e a música apagou a sua voz. Tava cantando?
ZP: É o que?
CP: Você tava falando aí.
ZP: Eu também tava cantando.
BC: Tava cantando.
CP: Aí tem mais, mais um versinho.
ZP: Mas eu... Qual é?
BC: Pode falar, Zeni.
ZP: O que? Que versinho?
CP: Não, é, tem mais um versinho.
BC: Ah, um versinho.
CP: Ao rico é permitido, o pobre é explorado, ao rico tudo é permitido. Tem esse versinho
também mas eu não lembro da melodia dele.
127

BC: Aham.
ZP: (risos) Eu também não lembro mais. Eu não lembro não, é muita coisa...
BC: (risos)
ZP: Muita coisa, muita coisa. Graças a Deus tem muita coisa lá né, a mamãe relembra muita
coisa no... livro, que você leu, né?
BC: Ah, sim.
ZP: No Velhos Militantes. Ela lembra lá. Muita coisa lá, até de música.
BC: Ela lembra de várias, né.
ZP: Ela lembra de várias. Ela é uma guerreira mansa. (risos). Ela era assim uma pessoa tão...
Tão... Sei lá. Eu admirava muito a minha mãe com todos... tinha porquê admirá-la, tinha porquê
admirá-la.
BC: Sim.
ZP: Mas é isso, meu amor. Obrigada por tudo isso que vocês estão fazendo, é tão importante
isso.
BC: Obrigada vocês, Zeni! Eu fiquei muito feliz.
ZP: Comemoraremos depois, tá bom?
BC: Tá bom.
ZP: E, depois, alguma coisa assim, que eu lembre, a mais, eu dou um...
BC: Tá bom.
CP: As fotos vou mandar também pra você, tá?
BC: Vocês vão me falando, manda foto se quiser, aí depois eu vou pedir uma autorização pra
vocês assinarem, para mandar uma foto, eu não sei direito como que é, mas pra vocês
permitirem que eu use algumas coisas que vocês falaram no trabalho, tá bom? Vou falar com a
minha orientadora, tá?
CP: Pode deixar, querida!
ZP: Tá certo, meu amor.
BC: Tá bom?
ZP: Não tem problema nenhum.
BC: Tá bom.
ZP: Então tá. Um beijo grande!
BC: Beijo!
ZP: Tchau!
BC: Tchau!
CP: Tchau, Beatriz!
128

ZP: Beijo.
BC: Tchau! Beijo, gente.
CP: Vou desligar, mãe.
ZP: Tchau, querida.
BC: Tchau, Zeni.
ZP: Não sei desligar. Eneida! Tchau meu amor, eu não sei desligar. Como é esse negócio aqui?
BC: É só fechar.
ZP: Pera um pouquinho, vou fechar, só vou fechar aqui.
BC: Tchau!

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