Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
“AVANTE, COMPANHEIRAS!”:
AS LUTAS SINDICAIS DAS OPERÁRIAS DO RIO DE JANEIRO NA UNIÃO DAS
COSTUREIRAS A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE ELVIRA BONI (1919-1922)
GUARULHOS
2021
BEATRIZ LUEDEMANN CAMPOS
“AVANTE, COMPANHEIRAS!”:
AS LUTAS SINDICAIS DAS OPERÁRIAS DO RIO DE JANEIRO NA UNIÃO DAS
COSTUREIRAS A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE ELVIRA BONI (1919-1922)
GUARULHOS
2021
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico
para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.
Aprovação: 03/03/2021
Agradeço à toda minha família, minha mãe Cecília, meu pai Fernando, minha irmã Laura,
minhas avós Cecília e Tereza, todas as minhas amigas e amigos: especialmente Natália, Manu,
Violeta e Leandro, e meu namorado Derek, que me acompanharam com carinho nesta trajetória.
Agradeço especialmente à Zeni, Consuelo e Eneida, pela gentileza e disponibilidade de
conversar sobre a Elvira, foi uma alegria conhecê-las.
Agradeço a todos os professores da Unifesp pela minha formação, e especialmente à
Edilene, pela incrível orientação e incentivo, e Glaucia e Luigi, por aceitarem gentilmente fazer
parte da banca e pelas grandes contribuições.
“Se hoje somos, é porque antes outras já foram.”
Carolina O.1
1 O., Carolina, RESSUREIÇÃO, 1923. Apud: MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil:
(1900-1930): entre esquecimentos e resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII.
DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil (1918-2018).
RESUMO
ABSTRACT
This work goes deeper into the construction of the women’s resistance association União
das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas (1919-1922), in Rio de Janeiro, and the trajectory
of Elvira Boni, one of its main members, and contributes to the historiography of the struggles
of women workers. The main objective is to present the narratives and perspectives of women
workers, as well as their organizational capacity. From the analysis of mainstream and working
press sources, Oral History through interviews with Elvira and her family and the biographical
genre, it is possible to affirm that the seamstress of the First Republic were constituted as
political subjects, and were organized around ideas and practices such as revolutionary
unionism, anarchism and communism. The struggles of women at União das Costureiras took
place through a victorious strike for the improvement of working conditions, participation in
the meetings, assemblies and Terceiro Congresso Operário Brasileiro, organization of evening
classes, mutual solidarity with other unions, and other fighting tatics, aimed at the emancipation
of women and working class.
Keywords: Social History of Work. Workers movement in First Republic. History of women.
Elvira Boni.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Agulhas, dedaes e outras cousas mais... O Malho, s.d., 1910. p. 14.
Figura 2 – Vencerão, devem vencer!... A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas
as classes. A Razão, 18/06/1919. p. 32.
Figura 3 – A agitação operária. Continua o movimento grevista. A Época, 18/06/1919. p. 35.
Figura 4 – As costureiras agitam-se e querem reivindicações. O dia de hontem nos ateliérs de
costuras. Gazeta de Noticias, 18/06/1919. p. 37.
Figura 5 – As costureiras em gréve. As primeiras victorias do movimento. A Razão,
18/06/1919. p. 41.
Figura 6 – O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo
Bonfim. A Rua, 26/06/1919. p. 51.
Figura 7 – 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, 01/05/1920. p. 64.
Figura 8 - Elvira Boni na mesa diretora do 3º Congresso Operário Brasileiro, 1920
(Rodrigues, s.d.). HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão! Memória operária,
cultura e literatura no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2002, p. 266. p. 65.
LISTA DE SIGLAS
1 INTRODUÇÃO 10
2 CAPÍTULO I - 1919: A FUNDAÇÃO DO SINDICATO E A GREVE DAS
COSTUREIRAS 21
3 CAPÍTULO II - 1920: AS COSTUREIRAS, O JORNAL VOZ DO POVO E O
TERCEIRO CONGRESSO OPERÁRIO 59
4 CAPÍTULO III - 1921 E 1922: A EDUCAÇÃO OPERÁRIA FEMININA, A
REORGANIZAÇÃO E A DISSOLUÇÃO DA UNIÃO 88
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 104
REFERÊNCIAS 106
ANEXO – TRANSCRIÇÃO: ENTREVISTA SOBRE ELVIRA BONI 114
10
1 INTRODUÇÃO
2 BATALHA, Claudio Henrique Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
3 Idem.
4 Idem.
5 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de
da Unicamp, 2011.
11 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à História
Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 59, vol. 29, p. 607 -626, set./dez. de 2016.
12
12 COSTA, Emilia Viotti da. A nova face do movimento operário na Primeira República. Conferência realizada no
Dep. História – FFLCH-USP, maio, 1982.
13 BITTENCOURT, Icaro. O operariado no Brasil da Primeira República: alguns apontamentos teórico-
metodológicos e historiográficos. Revistas Sociais e Humanas, Santa Maria, n. 1, vol. 20, jan./jun. 2007.
14 LOBO, Elisabeth Souza. A classe operária tem dois sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991.
15 RAGO, Luzia Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
anarquistas.19 Angelo e Tersilla chegaram no porto de Santos em 1895, com três filhos: Stefano,
Amilcare,20 e Luigi,21 que faleceu com 15 meses.22
A partir de 1903, com a expansão da economia, formou-se um terreno fértil para a
proliferação de movimentos reivindicativos dos trabalhadores.23 As mulheres, já integradas no
mundo do trabalho das fábricas, nunca estiveram ausentes destes movimentos, no Brasil e no
mundo.24 Um exemplo marcante é a história da anarquista e sindicalista revolucionária Lucy
Parsons, descendente de negros e indígenas dos Estados Unidos, que nasceu escravizada e
participou ativamente da luta por direitos trabalhistas em Chicago no fim do século XIX e início
do XX.25
É possível citar como exemplo nas agitações brasileiras, fugindo do eixo Rio-São Paulo,
que é privilegiado nas pesquisas, a greve das cigarreiras da fábrica de cigarros Laffayete em
1903, em Recife, Pernambuco, causada por demissões de mulheres operárias. 26 Há também
estudos sobre as greves femininas no sul do país, em Pelotas e Rio Grande.27
As costureiras do Rio de Janeiro, junto aos alfaiates, na primeira década do século XX,
se organizaram na Sociedade Dançante Carnavalesca União das Costureiras (Figura 1). Esta
associação, que existiu entre os anos de 1906 a 1910, promovia assembleias, bailes e
participações no Carnaval e na Festa da Penha, grandes festas populares que ocorriam no Rio
de Janeiro, representativos da cultura negra. Para o historiador Eric Brasil, nesta Sociedade
Dançante havia “(...) uma maior mistura entre os sexos, (...) Presença marcante de mulheres
negras parece ter sido a marca dos bailes da União das Costureiras.” 28
23 BATALHA, 2000.
24 FRACCARO, 2018. SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia
26 SOUZA, Felipe Azevedo e. As cigarreiras revoltosas e o movimento operário: história da primeira greve
feminina do Recife e as representações das mulheres operárias na imprensa. Cadernos pagu, n. 55, 2019 .
27 SILVA, Maria Amélia Gonçalves. Rompendo o silêncio: mulheres operárias em Pelotas e Rio Grande (1890-
1920). Dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1998.
28 BRASIL, Eric. Carnavais atlânticos: cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio de Janeiro e Por-of-Spain,
Figura 1 – “Sociedade Dançante Carnavalesca União das Costureiras: grupo tirado na noite de um animado baile.
Como se vê, ha tambem grande numero de costureiros, provavelmente alfaiates ou outros campeões da agulha...”
Fonte: O Malho, s. d., 1910.
A associação foi reprimida pelo Estado, através da ação policial, neste período em que o
samba, a “vadiagem” e a capoeira eram criminalizados pelo Código Civil de 1890, 29 sendo
alegado pela imprensa a “devassidão”, e estas mulheres foram classificadas como
“pecadoras”.30 João da Silva Cruz Freitas, homem negro da União dos Operários Estivadores,
que buscava melhorias de condições de vida para a classe trabalhadora, como assistência para
mulheres grávidas, foi presidente da S. D. C. União das Costureiras. 31
Em São Paulo, as mulheres, proeminentes principalmente na indústria têxtil, ao decorrer
da Primeira República, participaram de greves, se organizaram em sindicatos e reivindicaram
29 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
30 BRASIL, 2016.
31 Idem.
15
32 FRACCARO, 2018.
33 BIONDI, 2011.
34 GONÇALVES, Caroline. Alma e Vida: os deslocamentos de Ernestina Lesina, o cotidiano e a luta das mulheres
operárias. 2011.
35 Idem.
resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII. DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil
(1918-2018).
37 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
40 TOLEDO, Edilene. “Para a união do proletariado brasileiro”: a Confederação Operária Brasileira, o sindicalismo
e a defesa da autonomia dos trabalhadores no Brasil da Primeira República. Cad ernos Perseu, n. 10, Ano 7, 2013.
41 BATALHA, 2000.
42 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:
44 BIONDI, Luigi. TOLEDO, Edilene. Uma revolta urbana: a greve geral de 1917 em São Paulo. São Paulo:
Paulo. Rev. Bras. Hist. [online], n. 76, vol. 37, p. 73-90, 2009.
17
o movimento operário, que retomou com força suas atividades em 1919, com o enfrentamento
direto das organizações do patronato.46
O presente trabalho pretende se aprofundar na constituição da União das Costureiras,
Chapeleiras e Classes Anexas (1919-1921), fundada neste contexto, um sindicato de resistência
feminino que reunia mulheres de ofícios similares no ramo da costura: elas trabalhavam em
oficinas, ateliês, fábricas ou em domicílio. O fio condutor da pesquisa é um recorte da biografia
de Elvira Boni, uma de suas integrantes, que circulou entre diferentes correntes políticas, como
o anarquismo, o sindicalismo revolucionário e o comunismo. Para Toledo, que inseriu a
trajetória do operário militante Giulio Sorelli em sua pesquisa, “Voltar a atenção para a história
de vida de um indivíduo pode revelar mais sobre a complexidade das experiências do
movimento operário, graças à análise da relação entre o particular e o contexto histórico.”47
De acordo com as reflexões do historiador Benito Schmidt, os historiadores da Escola dos
Annales questionaram o modelo de biografias de “grandes homens”, um recurso historiográfico
comum na História Política, e deram lugar às grandes interpretações sociais e econômicas. Em
contrapartida, a partir de meados da década de 1980, o gênero biográfico retornou com força
na historiografia, junto com as questões e problemas em torno dele. Schmidt argumenta que as
novas biografias históricas foram transformadas e não são as mesmas que as anteriores ao
século XIX, e que a análise da trajetória de um indivíduo pode ser benéfica à historiografia, por
muitas questões, como a representatividade e a compreensão de um período histórico. As novas
biografias devem estar aliadas a uma história-problema, e devem articular-se com os limites e
possibilidades de ação deste indivíduo, bem como até que ponto ele é produto ou agente da
sociedade em que se insere.48
Uma das grandes críticas é o elitismo presente nas biografias de “grandes homens”, que
normalmente faziam parte de elites políticas, econômicas e militares. Porém, muitas biografias
de “homens comuns” estão sendo produzidas, como Schmidt aponta, no Brasil, as biografias de
indivíduos das classes populares, como trabalhadores escravizados e livres, militantes,
camponeses, a partir de novas fontes.49 Um dos intuitos desta pesquisa é se inserir nesta corrente
de transformação da História das biografias. É importante apontar também que este trabalho
46 BATALHA, 2000.
47 TOLEDO, 2004, p. 17.
48 SCHMIDT, Benito Bisso. Biografias e regimes de historicidade. MÉTIS: história & cultura, n. 3, v. 2, p. 57-72,
jan./jun. 2003.
49 Idem.
18
foca nas experiências de Elvira, mas inserida no coletivo de mulheres que construíram a União
das Costureiras.
O primeiro capítulo da monografia trata da fundação da União em maio de 1919, e, um
mês depois, da greve organizada pelas costureiras. As principais fontes utilizadas foram as da
grande imprensa, nas quais os acontecimentos da greve foram diariamente noticiados. O
período grevista foi marcado pelos conflitos de classe entre os patrões e patroas e as operárias.
O segundo capítulo engloba os acontecimentos do ano de 1920. O Terceiro Congresso
Operário Brasileiro contou com a presença de duas delegadas da União das Costureiras: Elvira
Boni e Noemia Lopes. O principal jornal utilizado como fonte foi a Voz do Povo, periódico da
Federação de Trabalhadores do Rio de Janeiro, de orientação sindicalista revolucionária, que,
como parte da imprensa operária, publicava os manifestos e convites para reuniões da União e
adentrava de forma mais ampla no cotidiano de trabalho das mulheres.
O terceiro capítulo reúne os eventos dos anos de 1921 e 1922, com o recrudescimento
da repressão, as alternativas de luta das operárias e a importância da educação ope rária
feminina, que as levou a organizar aulas noturnas na sede do sindicato. Este capítulo discute,
finalmente, os fatores que contribuíram para a dissolução da União. Os jornais da grande
imprensa também foram fontes importantes para a investigação sobre o sindicato neste capítulo.
As pesquisas no campo da História por meio da imprensa têm sido consideradas apenas
a partir da década de 1970. Até então o conteúdo de jornais e periódicos foram julgados como
não imparciais o suficiente para que sejam incorporados à historiografia, que valorizava
documentos históricos com veracidade comprovada e com certa neutralidade. Neste período, é
constituída a Nova História pela terceira geração dos Annales e um dos principais expoentes é
Jacques Le Goff, uma História que demanda novos temas e fragmentos, já afastada de uma
“história total” ou “global”. Paralelamente, a New Left Review transforma a historiografia
marxista ao abandonar a ortodoxia econômica e partir para a história dos “de baixo”, como os
historiadores ingleses Edward Palmer Thompson, Eric Hobsbawm e Raymond Williams, com
foco nos estudos culturais, trouxe novos personagens e temas jamais investigados, com o uso
de novas fontes.50
De fato, a imprensa é carregada de discursos ideológicos, de influências de grupos
econômicos e do Estado, porém Ana Maria de Almeida Camargo foi pioneira a defender o uso
50LUCA, Tânia Regina de. A História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINKSY, Carla Bassanezi. Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2015.
19
dos jornais como fontes para os historiadores, com os filtros necessários. A História do
movimento operário teve os jornais e periódicos como fontes privilegiadas em seu ápice
acadêmico – entre as décadas de 1970 e 1990. O Arquivo Edgar Leuenroth, instituição de
guarda da imprensa operária, teve e tem imenso valor para as pesquisas neste campo.51
A abordagem e metodologia apresentadas por Tânia Regina de Luca abrangem a
materialidade dos jornais impressos, a divisão interna do conteúdo, a localização nas
publicações de história da imprensa e a análise da iconografia. Apreender o grupo social ou os
indivíduos que produzem o jornal, os redatores, os colaboradores e os contextos de circulação
é essencial.52
Para a compreensão dos jornais utilizados, entre os anos 1919 e 1922, utilizamos como
referência Nelson Werneck Sodré, que considera a história da imprensa como a própria história
do desenvolvimento da sociedade capitalista, demarcando neste período da Primeira República,
a passagem da imprensa artesanal para a empresa jornalística. Por outro lado, Sodré demarca a
origem de classe dos periódicos, definindo a imprensa burguesa como grande imprensa, e a
imprensa alternativa como imprensa proletária. Para o tratamento da imprensa carioca, Sodré
indica os principais periódicos da disputa política da Primeira República, as reações referentes
às lutas dos trabalhadores, bem como a constituição da imprensa proletária deste período, no
processo de organização da classe trabalhadora.53
Além dos periódicos, utilizamos como fonte os depoimentos de Elvira Boni em
entrevista à historiadora Angela de Castro Gomes em 1983, que se insere em um livro composto
por quatro entrevistas com operários militantes do início do século XX, produzidas com o
objetivo de resgatar suas memórias. Também foram incorporados os depoimentos de Zeni,
Consuelo e Eneida Pamplona, filha e netas de Elvira, em uma entrevista que realizamos em
novembro de 2020. Portanto, a História Oral faz parte da metodologia de pesquisa.
Alessandro Portelli reflete sobre os usos e abordagens da História Oral. Ao apresentar
memórias e entrevistas com militantes comunistas italianos, já idosos, que participaram da
resistência contra o fascismo, o autor percebe que parte das informações relatadas por ele estão
“erradas”, ou fazem parte de sua imaginação. Para Portelli, não é o intuito de distorcer os fatos,
mas colocar as experiências de uma forma que eles gostariam que tivesse acontecido. As
51 Idem.
52 Idem.
53 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977.
20
narrativas são construídas a partir de fatores sociais e coletivos, e as memórias devem se inserir
no contexto histórico da realização da entrevista. 54
A História Oral é um recurso primordial para resgatar histórias das mulheres da classe
trabalhadora na Primeira República, que tiveram pouco ou nenhum acesso à educação formal
ou à cultura letrada para deixar registros escritos de suas próprias narrativas, que poderiam ser
usados como fontes históricas.55
Para melhor compreender as diferentes correntes políticas de pensamento das
costureiras da União, nos três capítulos há menções sobre associações paralelas das quais
algumas delas faziam parte, como a Liga Comunista Feminina e o Centro Feminino de Estudos
Sociais.
Um dos principais objetivos deste trabalho é demonstrar que as mulheres operárias se
constituíram como sujeitos políticos e conseguiram se auto-organizar em um sindicato de
resistência, debatendo com as visões da historiografia que enquadravam as mulheres como
“fura-greves” e sem consciência política.56
De acordo com Emilia Viotti da Costa, os estudos de caso são mais valiosos quando
permitem compreender as relações entre as experiências das mulheres trabalhadoras e as
estruturas econômicas, políticas e sociais do período estudado.57 Portanto, esta pesquisa
pretende estabelecer uma relação entre a particularidade da vida de Elvira Boni e da União das
Costureiras com o contexto da Primeira República e da organização das trabalhadoras nos
níveis nacional e internacional.
54 PORTELLI, Alessandro. Sonhos ucrônicos: memórias e possíveis mundos de trabalhadores. Proj. História, São
Paulo, n. 10, dez. 1993.
55 MENDES, 2018.
56 FRACCARO, 2018.
57 COSTA, Emilia Viotti da. Estruturas Versus Experiência. Novas tendências na História do movimento operário
e das classes trabalhadoras na América Latina: o que se perde e o que se ganha. BIB, Rio de Janeiro, n. 29, p. 3 -
16, 1º sem. 1990.
21
58 BATALHA, Claudio Henrique Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000.
59 Elvira Boni afirma que as costureiras tiveram bastante ajuda dos companheiros de profissão, os alfaiates, para a
construção de seu sindicato. LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES,
Angela de Castro. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. Era comum a solidariedade
entre alfaiates e costureiras, visto que em São Paulo, em 1919, fo i fundada a União das Costureiras e Alfaiates,
que depois optaram por se organizar somente na União das Costureiras, em 1923. FRACCARO, Glaucia Cristina
Candian. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil. (1917-1937). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2018.
60 As costureiras organisam-se – Uma grande assembléa na União dos Alfaiates – Foi creada a sua associação de
63 BATALHA, 2000.
22
que, com sua coragem, vingaria o sangue derramado pelos “irmãos” assassinados. 64 O rumo do
discurso de Elisa chegou a um importante questionamento do sexismo, que integrava a
ideologia dominante e caracterizava a mulher como um cidadão de segunda categoria:
Se os homens, colligados, enérgicos e bem unidos podem conquistar as
melhorias pelas quaes, conscientemente se batem, porque motivo nós, as
mulheres, que também trabalhamos sem tréguas, nem descanso, dez, onze e
doze horas diárias, sofrendo as arrogâncias dos patrões, por que nós, também,
companheiras, firmes e unidas não podemos vencer a nossa causa?
Nós que somos tratadas de “sexo fraco” e que dizem, dever ter comnosco um
modo de tratar mais delicado e mais suave, porque razão nos impingem mais
horas de trabalho, sem ter quasi o tempo precioso para uma ligeira refeição?
O “sexo fraco”, por conseguinte, sujeito a essas irregularidades, a essa
escravidão, não acaba, talvez, demonstrando que é mais forte que o “sexo
forte”? 65
Já neste primeiro discurso, Elisa Gonçalves rompia com o modelo de mulher construído
pela sociedade burguesa, a “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família”: características deste
modelo eram impostas, como se a mulher fosse natural e biologicamente frágil, casta, vigilante
e voltada ao lar.66 Sobre a ideologia da domesticidade, a filósofa Angela Davis contribui para
compreender que este modelo nunca foi uma realidade para mulheres escravizadas e da classe
trabalhadora, que sempre tiveram que trabalhar arduamente fora de casa para lutar por sua
sobrevivência,67 tal como questionavam as costureiras.
Elisa clamou por uma união entre as mulheres costureiras, chapeleiras, bordadeiras, como
todas do ramo da confecção de roupas, e ainda para que as operárias presentes fizessem
propaganda da União com suas colegas de trabalho para a aderirem ao sindicato. Clamou
também por uma união de todo o proletariado, chamando a atenção para as agitações no Rio de
Janeiro e no Brasil neste período, com os alfaiates,68 sapateiros, para que caminhassem juntos
com solidariedade de classe.69
64 As costureiras organisam-se. Uma grande assembléa na União dos Alfaiates. Foi creada a sua associação de
classe. A Razão, Rio de Janeiro, 19 mai. 1919, p. 4.
65 Ibidem.
66 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil ( 1890-1930). Rio de Janeiro:
68 De acordo com Elvira, os alfaiates sustentaram uma greve em 1919 por 54 dias. LACERDA, 1983. Apud:
GOMES, 1988.
69 As costureiras organisam-se. Uma grande assembléa na União dos Alfaiates. Foi creada a sua associação de
De acordo com a redação do jornal A Razão, ela foi muito aplaudida. Também discursou
um membro do Partido Comunista, cujo nome não foi revelado. Na mesma reunião, ficou
decidido o cargo de tesoureira para Elvira Boni, enquanto Carmen Ribeiro e Elisa Gonçalves
ficaram como secretárias. Aderiram ao sindicato operárias de 39 casas e ateliês de moda, cujas
proprietárias eram as “Madames”, em sua maioria francesas, e outras de fábricas maiores como
a “Casa Colombo” e a “Moda Elegante”. 70 Segundo Elvira, “Naquele tempo tudo era francês:
os materiais, os figurinos, as próprias madames. Já havia revistas brasileiras, mas a moda era
mesmo francesa.”.71
As “madames”, mulheres da classe burguesa, geralmente eram imigrantes, que
empregavam costureiras e vendedoras.72 Dentre suas preocupações, destacavam-se o
casamento, o lar, a estética e a moda,73 com um código de vestimenta que definia sua posição
social.74 Elvira classifica como “madames” tanto as proprietárias dos estabelecimentos quanto
as clientes das lojas, que consumiam as roupas de luxo que as costureiras dos ateliês produziam.
Estas senhoras ricas costumavam passear pelas ruas do centro do Rio, tomar café no Colombo
olhar as vitrines e visitar as lojas de roupas, que muitas vezes ficavam em sobrados onde
funcionavam também as oficinas e eram as residências das proprietárias, em diferentes
andares.75
A costura em domicílio era uma prática comum das mulheres no século XIX, e foi um
trabalho que se transformou durante este período, com o fenômeno da industrialização e o
aparecimento das oficinas e ateliês de costura. Referente a este período, Joana Monteleone
insere o ofício de costureira no trabalho de criadas: 76
No Rio de Janeiro, em 1870, “71% das mulheres ativas eram criadas, o que
significava 34 mil mulheres trabalhando como mucamas, pajens, amas-de-
leite, cozinheiras, copeiras, arrumadeiras, carregadoras de água, lavadeiras,
passadeiras e costureiras. Brancas e negras, livres ou escravas, elas
trabalhavam juntas, exercendo atividades semelhantes.” Muitas eram
escravas, outras, mesmo livres, trabalhavam por casa e comida (CARVALHO,
2008, p. 248). 77
70 Ibidem.
71 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 29.
72 MONTELEONE, Joana de Moraes. Costureiras, mucamas, lavadeiras e vendedoras: o trabalho feminino no
século XIX e o cuidado com as roupas (Rio de Janeiro, 1850-1920). Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n.
1, vol. 27, 2019.
73 RAGO, 1985.
74 MONTELEONE, 2019.
76 MONTELEONE, 2019.
77 Idem, p. 2.
24
A partir da década de 1870, o uso das máquinas de costura começou a ser mais comum
no Rio, substituindo as agulhas. As modistas dos ateliês costumavam possuir mão de obra
feminina e escravizada. Depois da Abolição, o trabalho de costureira passou a ser passível de
recebimento de salários. A contratação de mulheres nestes estabelecimentos de costura era
justificada pela sua suposta “vocação natural” do cuidado com as roupas, como uma extensão
do trabalho doméstico.78
O primeiro manifesto da União das Costureiras foi publicado nos jornais A Noite,79 no
dia 23 de maio, e O Imparcial,80 no dia 24. O conteúdo era pequeno e resumido, porém com
importantes informações: o manifesto apresentou as pautas mais imediatas da categoria, como
a diminuição da jornada de trabalho e o aumento dos salários. Elas se posicionavam claramente
contra a “exploração capitalista”, e faziam convites para outros camaradas discursarem, o que
evidencia a presença de operárias anarquistas, socialistas e comunistas na União. 81 E este fato,
unido às reivindicações imediatas, revelam o caráter sindicalista revolucionário da União das
Costureiras.
O sindicalismo de ação direta, revolucionário, de acordo com a historiadora Edilene
Toledo, foi a principal corrente política do movimento operário brasileiro, baseado na luta de
classes e na união do proletariado, que privilegiava as pautas por melhorias imediatas nas
condições de trabalho e projetava para o futuro um novo modelo de sociedade. O sindicalismo
revolucionário abraçava operários de diversas correntes políticas, e teve inspiração na
Confédération Générale du Travail (CGT) francesa, e foi um fenômeno transnacional,
expressivo em diversas organizações como a Industrial Workers of the World (IWW), nos
Estados Unidos, e a COB, no Brasil.82
As justificativas para as pautas das costureiras foram colocadas no manifesto. Elas
atrelavam as longas jornadas de trabalho a questões de saúde: “Trabalhar menos é defender -se
78 Idem.
79 Fundado em 1911, por Irineu Marinho, no calor da luta política, junto aos oposicionistas liberais do governo
Hermes da Fonseca. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições do
Graal, 1977.
80 Fundado em 1912, sob direção de José Eduardo de Macedo Soares, preso pelo governo Hermes por incitar
manifesto dos operarios. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. A agitação operaria, p. 3.
82 TOLEDO, Edilene Teresinha. Anarquismo e sindicalismo revolucionário: trabalhadores e militantes na Primeira
das agressões da moléstia – da tuberculose traiçoeira, que tantas vidas ceifa diariamente”. Para
além da necessidade do descanso, trabalhar menos lhes daria mais tempo para elas se dedicarem
ao estudo e ao lazer, além das outras tantas tarefas cotidianas. 83 A questão do aumento de
salários era muito importante principalmente pela carestia dos bens de necessidade primária,
como a alimentação.
No mesmo dia, 24 de maio, A Razão, na seção O Movimento Operário à Noite, publicou
este mesmo manifesto da União das Costureiras, na sua versão completa. É muito provável que
os outros dois jornais tenham censurado parte do texto. Esta versão ampliada do manifesto
incluía as especificidades em relação à crítica da ideologia sexista, presente no discurso da
sociedade burguesa e da Igreja, que justificava e legitimava a exploração da mulher
trabalhadora:84
Já se foram os tempos que os poetas consideravam a mulher – “Um formoso
ser para chorar nascido” e as religiões comquanto tivessem na mulher o seu
maior sustentáculo eram unanimes em deprecia-la, chamando-a “a origem do
peccado”, ser sem alma, cheio de maldades mil, hypocrita, mentirosa e
mysterio indecifrável (...)85
83 O manifesto da União das Costureiras. A Noite, Rio de Janeiro, 23 mai. 1919. Agitação operaria, p. 4; Um
manifesto dos operarios. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. A agitação operaria, p. 3.
84 RAGO, 1985.
85 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.
5.
86 RAGO, 1985.
26
operárias (...)”.87 Esta citação se refere aos abusos sexuais e morais que as mulheres sofriam no
ambiente de trabalho, uma especificidade da opressão de gênero.88
Rago questiona o discurso operário masculino, que por vezes tratou a mulher como o
“sexo frágil”, ao reproduzir valores burgueses, e tratava as mulheres trabalhadoras com uma
“atitude paternalista”: eles deveriam protege-las dos “dom juans” das fábricas, dos patrões que
as assediavam.89 Entretanto, como exemplo, Maria Antônia Soares, trabalhadora anarquista da
Liga Operária do Belenzinho, em São Paulo, afirmava que a igualdade salarial, a liberdade, a
legislação, o voto e a independência econômica não emancipariam de fato a mulher, tanto
quanto o respeito o faria.90
As costureiras chamaram a atenção para o fato de que as mulheres possuíam as mesmas
capacidades que os homens,91 trabalhavam pelo mesmo número de horas, mas não tinham os
mesmos direitos e os salários eram mais baixos, e que isto era uma grande injustiça que deveria
ser combatida.92 Em relação aos salários, de acordo com o Recenseamento de 1920, no setor de
confecções de roupas, as mulheres operárias recebiam o salário médio diário de 3$652,
enquanto os homens recebiam 6$712, uma diferença de 84%.93 Elas clamavam pela união de
toda classe trabalhadora para que ambos, homem e mulher, lutassem, lado a lado, contra a
miséria a que estavam submetidos. 94
No dia 25 de maio, ocorreu uma reunião promovida pela União das Costureiras, que foi
dirigida pela operária Maria de Lourdes Nogueira, ao lado de Elvira Boni, Elisa Gonçalves e
Margarida de Brito.95 O discurso de Maria de Lourdes foi completamente voltado à situação
difícil da mulher da classe trabalhadora, durante o período integral de suas vidas:
87 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.
5.
88 Para compreender o abuso sexual como arma de dominação, ver Angela Yvonne Davis, que compreende também
o estupro como terrorismo colonial, racista e de classe, amplamente usada contra as mulheres negras escravizadas
nos Estados Unidos e as vietnamitas pelo Exército norte-americano. DAVIS, 2016.
89 RAGO, 1985.
90 FRACCARO, 2018.
91 As mulheres anarquistas desmistificavam esta ideologia que legitimavam a sua condição de oprimida, afirmando
5.
93 FRACCARO, 2018.
94 O manifesto da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 24 mai. 1919. Movimento operario á noite, p.
5.
95 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 26 mai. 1919. Movimento operario: Reuniões, p. 6.
27
Cada uma de nós sabe quão difficil é a posição da mulher que tem por si
apenas o seu esforço. As longas horas de trabalho mal remunerado, o preço
elevado dos artigos indispensaveis á existencia, dentro de pouco tempo, fazem
de uma mulher robusta e cheia de vida, um ente magro, envelhecido, acabado..
E depois de uma existencia cheia de trabalhos, cheia de lutas, cheia de
dissabores, que velhice nos espera! É um quarto escuro, sem agua, sem luz e
um pedaço de pão secco, ou então um logar por favor dessas casas, que se
chamam Asylos de Caridade... 96
Maria de Lourdes, que era comunista, afirma que apenas a união entre as operárias e a
sua luta pelo direito à vida poderia levá-las para a emancipação. Na mesma reunião, foram
discutidas as tabelas das casas de moda “Aguia”, “Zaniaê”, “Magazine”, “Mme. Lassange”,
“Mme. Lima”, “A Moda”, “Casa Colombo”, “A Fama”, “A Paulicéa”, “Mme. Virgília”, “Mme.
Orsaline” e “J. Campos”, e as associadas presentes concluíram a insignificância dos salários
que variavam entre 15$000 mensais para aprendizes e 150$000 para costureiras
especializadas.97
Na reunião do dia 26 de maio, as costureiras trataram de suas reivindicações, e fizeram
as eleições oficiais. Como primeira e segunda secretárias, ficaram Carmen Ribeiro e Elisa de
Oliveira, respectivamente, como primeira e segunda tesoureiras, Annita Cruz e Elvira Boni,
auxiliares, Emilia Bragança e Hilda Alpe, e bibliotecária, Clara Costa. De acordo com o jornal
A Noite, que noticiou a reunião na seção As reivindicações operárias, elas trabalharam com
muito entusiasmo.98 Estas informações também estão presentes no jornal A Época,99 na seção
A agitação operária.100
De acordo com Elvira Boni, a estrutura do sindicato se enquadrava nos moldes
anarquistas, sem presidência, gerido por um conselho executivo.101 Na verdade, esta era uma
característica sindicalista revolucionária, que tinha inspiração na autogestão anarquista, com
direções sindicais colegiadas e não hierárquicas.102 Esta reunião noturna da União foi também
96 Ibidem.
97 Ibidem.
98 As costureiras arregimentam-se. A Noite, Rio de Janeiro, 26 mai. 1919. As reivindicações operarias, p. 4.
99 Fundado em 1912 por Vicente Piragibe, que foi preso como oposicionista liberal pelo governo Hermes por
apoiar rebeliões populares. No entanto, noticiou as greves dos operários cariocas em 1918 de forma crítica: “O
Maximalismo no Brasil?”. SODRÉ, 1977.
100 A reunião das costureiras. A Época, Rio de Janeiro, 27 mai. 1919. A agitação operaria, p. 2.
noticiada pelo periódico A Razão, em que informou sobre as reclamações de várias costureiras
em relação a sua situação nas oficinas de costura. 103
Em um domingo, dia 1º de junho de 1919, de acordo com A Razão, aconteceu uma
assembleia da União das Costureiras. Elas organizaram uma tabela para a Casa Colombo,
estabelecendo os salários considerados justos que deveriam ser pagos por cada peça
confeccionada, da seção de roupas masculinas, que foi discutida e aprovada. O ponto seguinte
que foi debatido foi a abolição dos serões, ou seja, das horas extras. Várias costureiras
explanaram sobre o assunto, e ficou decidido a existência dos serões por no máximo quatro
horas, e que pelo trabalho extra elas deveriam receber o salário de um dia de trabalho ou 50%
do valor. Elas também decidiram pela organização de tabelas e memoriais para serem entregues
às oficinas, com suas reivindicações. 104
A partir desta assembleia, ficaram estabelecidas reuniões semanais, toda quarta-feira, às
8 horas da noite, na rua da Alfândega, n. 182, em uma sede provisória. As reuniões eram
noturnas por causa da disponibilidade das mulheres de comparecerem, já que a maioria
trabalhava ao longo de todo o dia. Para além das operárias que trabalhavam em
estabelecimentos, “São convidadas a comparecer às reuniões, as costureiras em domicilio, que
não devem faltar, todo interesse é vosso.” 105
Elvira Boni revelou que a maioria das operárias que trabalhavam nos ateliês eram, em
sua maioria, jovens e não tinham filhos. Quando engravidavam, tinham muita dificuldade em
continuar o trabalho, principalmente quando eram mães solteiras e não tinham companheiros
que pudessem ajudá-las:106 “Não havia uma lei que as favorecessem. (...) Não havia esse
negócio de hospital, nada disso. Tinha uma Santa Casa, naturalmente, como sempre teve, mas
lá elas eram tratadas daquela maneira que nós sabemos.” 107 Quando uma costureira tinha filhos:
“Em geral parava de trabalhar fora e fazia o que podia em casa. As que tinham máquina de
costura podiam costurar, as que não tinham precisavam se arrumar de qualquer maneira:
lavando roupa, fazendo outro serviço qualquer. Cada uma tinha que puxar a brasa para sua
sardinha.”108
103 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 27 mai. 1919. Movimento operario á noite, p. 5.
104 União das Costureiras. A reunião de hontem. Seção de roupas de homens. A Razão, Rio de Janeiro, 02 jun.
1919. Movimento operario: Reuniões, p. 6.
105 Idem.
108 Ibidem.
29
109 Reunião das costureiras. A União das Costureiras. Hoje vai ser enviada a tabella aos patrões. Gazeta de
Noticias, Rio de Janeiro, 14 jun. 1919. Ultima hora: Movimento operario, p. 5; A União das Costureiras. As
costureiras reunem-se. O Imparcial, Rio de Janeiro, 15 jun. 1919. A agitação do operariado, p. 4.
110 BATALHA, 2000.
111 Fundado em 1875, por José Ferreira de Sousa Araújo, período em que se caracterizou como um dos principais
jornais, tendo participado da campanha abolicionista e pela liberdade religiosa. Em 1880, incitou a manifestação
popular contra o imposto do vintém que elevou o preço do transporte público. Na República, foi um dos principais
jornais cariocas, mas que colocou na direção Henrique Chaves, jornalista português, voltado para o crescimento
comercial e para a posição governista: apoiou o governo Hermes e Artur Bernardes. Por outro lado, contribuiu
para o avanço do jornalismo de reportagem, com a publicação das crônicas jornalísticas de Paulo Barreto (João do
Rio). SODRÉ, 1977.
112 As costureiras reunem-se. O Imparcial, Rio de Janeiro, 15 jun. 1919. A agitação do operariado, p. 4.
113 Reunião das costureiras. A União das Costureiras. Hoje vai ser enviada a tabella aos patrões. Gazeta de
periódico O Paiz, na seção Casos de Policia, noticiou a mesma reunião, afirmando o entusiasmo
e o crescente número de costureiras organizadas, potenciais grevistas. 115
No dia 16 de junho, A Razão publicou um manifesto da União das Costureiras, que
demandavam suas pautas como a jornada de oito horas, e se reivindicavam como “produtoras”,
no direito de conquistarem as pautas comuns a todo o movimento operário. Trabalhando, em
média, 10 horas por dia, elas demandavam tempo livre para o estudo econômico e social, bem
como para a educação e o cuidado com seus filhos, e o aumento de salários, que não
acompanhavam a inflação que subia desde o fim da Primeira Guerra. A questão da saúde retorna
com força no manifesto, atrelada ao problema das horas extras a que eram submetidas:
“Eliminar das officinas, de uma vez para sempre os serões, porque delles emana a grande
depauperação visual e tambem o atrophiamento physico.” 116
O memorial incorporado ao manifesto apresentava as seguintes reivindicações: oito horas
de trabalho; um dia de descanso semanal, no domingo; estabilidade do pagamento mensal, no
dia 5; entrar às 8 horas e sair às 5, com uma hora de almoço; aumento dos salários das
corpinheiras, ajudantes, aprendizes, bordadeiras e ajureiras; aumento dos preços das peças de
roupas confeccionadas em casa, em 40%; 117 e o reconhecimento do sindicato União das
Costureiras. Neste memorial enviado aos patrões e patroas, elas pedem para que nenhuma
costureira seja demitida sem motivo justificado. 118
O trabalho das costureiras, de acordo com Elvira Boni, era dividido entre as aprendizes,
ajudantes e perfeitas: as saieiras e corpinheiras. As chapeleiras normalmente trabalhavam em
lugares separados, somente com chapéus. 119 “O primeiro trabalho de aprendiz era catar
alfinetes do chão, passar a vassoura na sala, chulear, arrematar as costuras.” 120 A filha de Elvira,
Zeni, conta que o trabalho de chulear as roupas e vestidos por dentro era difícil e minuncioso. 121
Além disso, as aprendizes tinham o dever de chegar antes das outras trabalhadoras nos ateliês,
para deixar tudo em ordem.122
pagamento era irrisório, e o valor caía cada vez mais. MONTELEONE, 2019.
118 União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 16 jun. 1919. Movimento operario: Manifestos, p. 6.
121 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
Elvira deu mais informações sobre o cotidiano de trabalho das costureiras e a confecção
das vestimentas, nos ateliês e oficinas em que trabalhou:
Haviam mais ou menos seis pessoas em cada mesa, e eram duas mesas. (...)
As saieiras faziam as saias, as corpinheiras o corpinho, e depois montavam o
vestido no manequim. As aprendizes faziam qualquer coisa, e as ajudantes
ainda não eram profissionais perfeitas, estavam acabando de apren der. Não
faziam os trabalhos mais difíceis, como cortar, por exemplo. Isso era feito pela
chefe da mesa. Esqueci de dizer que havia também as profissionais que só
faziam mangas. Porque naquele tempo as mangas eram trabalhosas, tinham
feitio, eram mais bufantes. (...) As saias eram bem compridas e drapeadas. 123
126 Idem.
127 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
129 Vencerão! devem vencer...! A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas as classes. Aspecto do
movimento. Uma violencia deprimente. A União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 1.
32
Figura 2 – “Grupo de costureiras em frente à sede de sua sociedade e a comissão que visitou varias offi cinas,
procurando adhesões para a gréve” Fonte: A Razão, 18/06/1919
130 Ibidem.
131 SODRÉ, 1977.
132 CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. São
A opinião pública, de acordo com A Razão, se posicionou ao lado das costureiras, que as
viam marchando em grupos pelas ruas. Os comentários dos transeuntes eram: “– Pobresinhas!
Como são exploradas! – Que vençam as costureiras! – É a classe mais soffredora e
desamparada! Pobres abelhas do luxo...!”. Ao percorrer as oficinas, procurando por mais
operárias grevistas, elas entraram em diversos conflitos com os patrões e as patroas.133
Uma comissão de costureiras grevistas subiu para a oficina que se localizava no segundo
andar do Café S. Paulo, “(...) conseguindo voltar com duas pequenas que abandonavam o
trabalho.” As demais operárias não aderiram à greve. O “bando”, como se referia o jornal,
prosseguiu caminhando, exclamando: “– Coragem! (...) – Nós venceremos a greve! A miséria
terá um termo!”.134 O discurso do jornal apoiava as reivindicações das costureiras, contra a
exploração patronal:
Nota interessante: aquelas infellizes, - infelizes porque o querem seus patrões
– caminhavam sorridentes e alegres como pássaros felizes.
Era uma hora da tarde.
Muitas ainda não tinham almoçado. Outras, porém, sentiam-se fortes, porque,
tiveram o seu almoço diario: um copo de leite, um pãosinho de milho!... 135
133 Vencerão! devem vencer...! A gréve das costureiras desperta enthusiasmo em todas as classes. Aspecto do
movimento. Uma violencia deprimente. A União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919, p. 1.
134 Ibidem.
135 Ibidem.
136 Ibidem.
137 Ibidem.
34
dos Alfaiates, lotada na parte da manhã do dia 17, com inúmeras costureiras entusiasmadas com
a greve. Neste mesmo dia, apesar da hostilidade de muitos patrões, elas receberam a primeira
resposta positiva, que aceitava as demandas propostas no memorial, da casa de Adolpho
Marchesini, que ficava na rua Visconde de Itaúna, n. 88. 138 O primeiro dia de greve foi bem-
sucedido, no sentido das adesões:
Essas comissões, apesar de terem soffrido affrontas de varios patrões
retrogrados, alcançaram um resultado compensador no seu esforço, pois qu e
à tarde eram poucas as casas que trabalhavam. (...) A União espera que hoje a
paralysação seja total em todas as officinas de costuras. 139
141 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: contribuições à
História Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 59, vol. 29, p. 607 -626, set./dez. de
2016.
142 GOMES, Flávio. NEGRO, Antonio Luigi. As greves antes da grève: as paralisações do trabalho feitas por
escravos no século XIX. Ciência e cultura, São Paulo, vol. 65, p. 56-59, abr./jun. 2013.
143 Lima Barreto, escritor e destacado jornalista da Primeira República, analisou o tratamento da grande imprensa
com relação aos movimentos grevistas daquele período, e indicou um procedimento policialesco, caracterizando
os anarquistas como estrangeiros exploradores de operários brasileiros, além de desclassificar e criminalizar as
motivações da greve, enquanto exalta a “doçura e o patriotismo do operário brasileiro”. SODRÉ, 1977, p. 365.
144 GOMES; NEGRO, 2013.
35
O exemplo da greve das costureiras endossa esta tese contra o mito da passividade das
mulheres negras, que são quase totalmente invisibilizadas pela historiografia do movimento
operário deste período. É possível levantar a hipótese de que estas mulheres herdaram o
movimento paredista das lutas provenientes da comunidade negra brasileira. O historiador João
José Reis publicou recentemente o livro Ganhadores, sobre a greve negra de 1857 na Bahia,
evento que reforça a tese acima apresentada. 145
Figura 3 – “As grevistas reunidas na União dos Alfaiates”. Fonte: A Época, 18/06/1919
Uma fotografia semelhante (Figura 3), das costureiras na frente da sede da União dos
Alfaiates, foi publicada no jornal A Época, na seção A agitação operária, acompanhando as
notícias sobre a greve. Segundo o jornal, as costureiras grevistas que percorriam as ruas em
145 REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
36
A Época noticiou o movimento grevista que ocorria paralelamente à greve das costureiras,
como a greve dos alfaiates, seus companheiros de profissão e de solidariedade, dos marmoristas,
e do “pessoal das lavanderias”, uma greve com provável presença majoritária de mulheres
negras:
O pessoal das Lavanderias continua na attitude assumida antehontem de só
voltarem ao trabalho mediante à aquisciencia dos patrões às suas exigências.
De todos os operários em greve, estes são os que mais sympathias merecem,
pois trabalham dez horas a fio, num serviço estafante, e percebem apenas a
insignificância diaria de 1$500 a 2$000, tão irrisoria que chega a despertar
sentimentos de piedade...
Os patrões, no entanto, segundo a declaração à policia, estão no firme
proposito de não transigir. Preferem fechar os estabelecimentos a conceder o
que pleiteam as suas infelizes e pobres operárias. 148
Ainda no mesmo dia 18, referente ao primeiro dia da greve, o jornal Gazeta de Noticias
deu um destaque para as costureiras, com uma fotografia (Figura 4) das mulheres em frente à
sede da União dos Alfaiates: “Uma greve de saias... As costureiras agitam -se e querem
reivindicações. O dia de hontem nos ateliérs de costuras”. A fotografia revela a presença de
algumas meninas muito novas, crianças, no movimento grevista. 149 O jornal chamou a atenção
para a exploração vivida pelas costureiras, e se posicionou a favor da conquista de seus direitos:
146 A greve das costureiras. A Época, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919. A agitação operaria, p. 3.
147 Ibidem.
148 O pessoal das lavanderias. A Época, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919. A agitação operaria, p. 3.
149 Uma greve de saias... As costureiras agitam-se e querem reivindicações. O dia de hontem no movimento
Figura 4 – “As costureiras na séde da União dos Alfaiates, á rua da Alfandega”. Fonte: Gazeta de Noticias,
18/06/1919
150 Ibidem.
151 Ibidem.
38
marmita, porém não tinham um local específico para comer, e para não sujar as roupas e o local
de trabalho, elas comiam no banheiro. 152 Como vimos, muitas almoçavam apenas um copo de
leite ou um pão de milho, e em alguns estabelecimentos, segundo Elvira, contratavam
cozinheiras que eram orientadas a fazer comidas de qualidade diferentes para a patroa e para as
operárias.153
O jornal alertava para estas condições e se posicionou ao lado das costureiras, além de
cobrar o Congresso para estabelecer as leis acordadas na Conferência de Paris. Assim como em
A Razão, a Gazeta de Noticias descreveu as costureiras nas ruas como “Alegres, risonhas,
convencidas da victoria de sua causa (...)” Elas conseguiram a adesão de companheiras das
casas “A Fama”, na rua Gonçalves Dias, e “Nos Armazéns de Paris”, na rua do Teatro. 154
De acordo com a Gazeta de Noticias, a greve conseguiu paralisar o trabalho em inúmeros
ateliês, mas em nenhuma fábrica maior. Este jornal realizou entrevistas com os patrões e
funcionários de altos cargos das oficinas, ateliês e indústrias, mas não entrevistou nenhuma
costureira grevista.155
A “Casa Colombo”, indústria de confecção de roupas que empregava cerca de 300
operárias, segundo o diretor da seção, o sr. Werneck, afirmou que “(...) a greve não attingiu a
casa. Nem tinha receio disto porque pagava bons preços (...).” A “Casa Colombo” pagava por
peças confeccionadas, e não por salários pagos mensalmente, o que, segundo Werneck, permitia
maiores férias para as costureiras. 156
Nas casas de modas “Au Palais Royal” e “A’ Voga”, a partir da perspectiva dos patrões,
não faltou nenhuma costureira ao trabalho pois elas estariam satisfeitas com os salários e
ordenados pagos. O sr. Setubal, proprietário de “A’ Voga”, reconhecia que havia ateliês que
submetiam as operárias a sacrifícios, mal forneciam alimentação e afirmou que elas estavam
satisfeitas com a jornada de 10 horas em seu estabelecimento. Segundo os proprietários, na
“Casa Sucena”, “Aguia de Ouro” e “Casa Sloper” também não faltou nenhuma operária. 157
O proprietário das casas “A Fama” e “Grand Palais”, sr. Melin, afirmou que faltaram
quatro costureiras ao trabalho, e se mostrou, para o jornal, disposto a dialogar e atender as
152 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
153 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
154 Uma greve de saias... As costureiras agitam-se e querem reivindicações. O dia de hontem no movimento
156 Ibidem.
157 Ibidem.
39
demandas. O sr. Ferreira Lobo, da casa “A Moda”, informou que já havia se entendido com as
costureiras que lá trabalhavam. Entretanto, quanto à reivindicação de reconhecimento da União
das Costureiras como sindicato e legítimo intermediário das relações de trabalho, nenhum dos
patrões entrevistados a aceitou. 158
Destacam-se as experiências no “Atelier Mme. Judith”, onde não compareceu nenhuma
costureira, e na “Casa Osorio”, onde ocorreu um caso de cárcere privado – semelhante ao
noticiado em A Razão. A costureira Maria, que chegou com um grupo de grevistas pedindo o
aumento de salários, foi presa dentro de um quarto pelo proprietário. “Só a muito custo a
prisioneira foi solta horas depois.” 159
Na reunião das costureiras após o primeiro dia de greve, muitas falaram em
solidariedade ao movimento. Foi decidida a formação de uma comissão permanente para
atender as demandas das associadas, que ficaria presente o dia todo na sede social. 160 Os
conflitos provenientes do acirramento da luta de classes foram expostos:
Falaram ainda outras oradoras, umas suggerindo medidas a serem adoptadas
no actual momento e outras censurando o procedimento de alguns patrões que
as tem recebido de um modo pouco cortês.
Uma delas, porém, levou ao conhecimento da assembléia certos factos
summamente desagradáveis. Em algumas casas os patrões prendiam as
operárias nos quartos dos estabelecimentos quando não as recebia com agua.
Não póde deixar de ser censurado o procedimento desses patrões pela
assemblêa, terminou. 161
158 Ibidem.
159 Ibidem.
160 Ibidem.
161 Ibidem.
162 Ibidem.
críticas à União Soviética e aos “tiranos vermelhos”.164 As notícias sobre as greves operárias
no Rio de Janeiro eram colocadas ao lado de notícias sobre crimes hediondos e acidentes graves,
em uma divisão nomeada Casos de Policia.165 Ao divulgar a greve das costureiras, no dia 18
de junho, o jornal apresentou todas as suas reivindicações e tabelas, colocando-as como
“simpáticas” e que estavam dispostas a dialogar com seus patrões. 166
A greve das lavadeiras, com possível relação com as costureiras, mulheres operárias que
declararam o movimento paredista no mesmo dia, também foram mencionadas, bem como a
dos alfaiates, os marmoristas, os tecelões, os operários em calçados e da construção civil. Em
seu discurso, O Paiz arquitetou um contraste entre estas greves pacíficas e a greve dos padeiros.
Com uma grande manchete com os dizeres “Uma padaria dynamitada”, o jornal apresentou um
grupo ou indivíduo, que por vingança, teria jogado uma bomba em uma padaria, que
“provocou” a intervenção da polícia, se referindo a estes padeiros como “elementos maos”. 167
A ação direta, da qual fazem parte as greves, boicotes e sabotagens, era uma prática comum do
anarquistas e sindicalistas revolucionários. 168
O jornal A Época, no dia seguinte, 19 de junho, confirmou as informações sobre a greve
das costureiras contadas nos demais jornais, com a nova informação de que as trabalhadoras
das grandes casas de modas estavam aderindo ao movimento.169 Sobre a assembleia das
costureiras, no dia 18:
Uma das oradoras prendeu a attenção das companheiras, frizando com
vehemencia, as miserias que se verificam em uns tantos “ateliers” de costuras,
sua falta de hygiene, a maldade, a descortezia e até mesmo arrogante das
contra-mestras e dos patrões. Ha costureiras que trabalham das 7 às 8 e até às
22 horas, mal alimentadas, tendo, às vezes, como almoço, um simples copo
de leite... 170
164 CORREA, Mariana Bethania Sampaio. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa sobre o
PCB (1922-1989). Tese de Doutoramento apresentada ao Curso de Linguística do Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, 1996.
165 O Paiz, fundado em 1884 por João José dos Reis Júnior, era um jornal ligado à política tradicional da República
oligárquica, e foi fechado na Revolução de 1930. Articulador de campanhas políticas como a de Hermes da
Fonseca, estava sempre envolvido em negócios de corrupção com deputados em troca de grandes somas de
dinheiro público para o jornal. SODRÉ, 1977.
166 O numero de costureiras grevistas augmenta consideravelmente. O Paiz, Rio de Janeiro, 18 jun. 1919. Casos
de policia: A greve, p. 6.
167 Ibidem.
169 União das Costureiras. A Época, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919. A agitação operaria: A greve das costureiras
prosegue, p. 2.
170 Ibidem.
41
Figura 5 – “As costureiras grévistas que percorreram hontem os “ateliers” solicitando adhesões á gréve. Um grupo
de adhesistas”. Fonte: A Razão, 19/06/1919.
171 Ibidem.
172 As costureiras em gréve. As primeiras victorias do movimento. A Razão, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 1.
42
Os patrões impediam a entrada das grevistas, porque “(...) estes negociantes, acostumados
como estão a explorar à sua vontade as moças e as creanças, não supportam a idéa de que se
possa extinguir a escravidão por elles adoptada nas officinas.” O jornal transmitiu a informação
de que moças operárias de 16 a 18 anos recebiam “minguados salários” de 15$000 a 20$000, e
as meninas de 12 a 14 anos recebiam 10$000 mensais, “(...) gastando muito mais do que ganham
em bondes ou trem, que as conduzem aos lugares em que residem.”173 A fotografia (Figura 5)
na capa do jornal foca na presença de crianças grevistas. A própria Elvira Boni começou a
trabalhar com 12 anos de idade como aprendiz: “Trabalhei três meses sem ganhar um tostão.
No fim de três meses é que a madame me deu dez mil-réis. Não dava nem para pagar a passagem
do bonde...”174 Neste ano, em que se fundou o sindicato e construiu a greve com suas
companheiras, ela ainda era bem jovem: tinha cerca de 19 ou 20 anos. 175
Uma grande reunião da classe das costureiras aconteceu às 4 horas na sede da Associação
dos Gráficos, onde discursou o anarquista Carlos Dias, que fez uma palestra sobre a mulher na
sociedade e foi muito aplaudido pelas operárias. Também falaram o sr. Macedo e Elvira Boni,
“(...) concitando suas companheiras a não se esmorecerem nessa luta, visto que a victoria já se
approxima.” A principal decisão da assembleia foi a continuação da maior propaganda a favor
da greve, para garantir adesões de mais costureiras.176
O Paiz, ao informar o consentimento do patrão Marchesini e da patroa Madame
Passalacqua, colocou como manchete “Parece vencedora a causa das costureiras”. O jornal
lamentou a paralisação de diversos setores industriais da capital, e de forma diferent e da maioria
dos jornais analisados, que costumavam tratar como dignas as reivindicações feitas pelos
operários em geral e se mantinham relativamente imparciais, afirmaram que el es pleiteavam
por “regalias e vantagens”.177
No dia 20 de junho, ocorreu uma assembleia na Associação dos Gráficos, que contou com
a presença de poucas costureiras por causa da chuva. De acordo com A Razão, muitas
173 Ibidem.
174 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 25.
175 É interessante o debate suscitado por Glaucia Fraccaro em relação aos salários das crianças. Em geral, o trabalho
infantil era mais desvalorizado. Meninos e meninas recebiam os menores salários, e os rendimentos quase não se
diferenciavam pelo gênero. Em relação aos homens e mulheres adultos, o salário das mulheres era muito mais
desigual em relação ao dos homens. FRACCARO, 2018, p. 28-29.
176 As costureiras em gréve. As primeiras victorias do movimento. A Razão, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919, p. 1.
177 Parece vencedora a causa das costureiras. O Paiz, Rio de Janeiro, 19 jun. 1919. Casos de Policia: A greve, p.
6.
43
O jornal afirmou que a maioria das costureiras eram crianças, e que foi justamente por
causa da excessiva exploração das menores que o movimento assumiu o caráter de greve
geral.181 O Estado brasileiro da Primeira República apresentou uma parca legislação trabalhista.
Em 1891, o Decreto 1313 regulamentou o trabalho de menores nas fábricas do Rio de Janeiro,
porém, não havia a fiscalização necessária para a aplicação da lei.182
Na “Casa Cohen”, por exemplo, cujo proprietário era um homem “israelita”, todas as
operárias abandonaram o trabalho e ele preencheu os lugares vagos apenas com crianças
aprendizes, de 9 a 12 anos, com salário de 20$000 por mês. Segundo o jornal, as meninas
181 Ibidem.
estavam passando fome e recebendo maus tratos. 183 A partir disto, ocorreram os seguintes
conflitos:
As pobres creanças não tendo senão lições rudimentares de costuras, ficaram
impossibilitadas de dar conta das encommendas, razão por que começaram a
soffrer uma série de brutalidades. Como protestassem, o gerente mandou que
a mãe de uma menina fosse ter à officina, onde apontou sua filha como
grevista.
O resultado serviu para conter o ânimo das demais, porque aquella senhora,
que de mãe só tem o nome, applicou uma valente surra na própria filha, dando
ordem aos donos da casa para imita-la caso necessário. 184
183 As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun. 1919, p. 2.
184 Ibidem.
185 Ibidem.
186 Fundado em 1919 por Renato Toledo Lopes, O Jornal foi comprado por Assis de Chateuabriand com o auxílio
do então presidente da República, Epitácio Pessoa, dando início a um império jornalístico. SODRÉ, 1977.
187 As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun. 1919, p. 2.
45
prisioneiras para continuar trabalhando e produzindo para os patrões, presas para que não
recebessem as grevistas.188
A Razão e Gazeta de Noticias publicaram um manifesto da União das Costureiras,
elaborado pelo comitê da greve. Nele, elas relembram os motivos da greve, como os salários
irrisórios, as extenuantes jornadas de trabalho, e dão força para que o movimento continue. Elas
recuperaram a história da União, na qual um grupo de costureiras ativas decidiram criar uma
associação, e a partir dela, surgiu a ideia do movimento grevista, para melhorarem suas
condições. O manifesto clamava pela coragem de suas companheiras que ainda não
abandonaram o trabalho, apesar da atmosfera de medo e de terror que os patrões e a sua ligação
com a polícia criavam.189 Citamos um trecho do manifesto, que questiona a ideologia sexista e
clama pela resistência feminina:
Aquelles que exploram com o nosso trabalho só cederão aos nossos justos
pedidos quando souberem que estamos dispostas a enfrentar a sua ira de gente
farta que pretende que nós a nada temos direito, que somos creaturas inferiores
e submissas. Aqui fica, pois, o nosso apelo à vossa dignidade.
Lembrai-vos que já é tempo de protestarmos contra as inominaveis injustiças
de que sois victimas e de levantar bem alto fronte exigindo tudo a que temos
direito. 190
188 Ibidem.
189 Uma greve de saias... Uma sessão agitada. O que ficou hontem resolvido. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro,
22 jun. 1919, p. 3; As costureiras em gréve. Cresce o enthusiasmo da classe. A Razão, Rio de Janeiro, 22 jun.
1919, p. 2.
190 Ibidem.
191 Ibidem.
46
O próprio discurso presente nos manifestos da União contraria a visão despolitizada das
costureiras, pois elas se posicionavam contra a exploração do sistema capitalista. A questão da
“exploração” do plano dos comunistas configura uma inversão da realidade, que oculta a
exploração do trabalho e coloca como “exploradores” aqueles que a combatem.
Entre os aliados das costureiras estavam alguns anarquistas como Edgar Leuenroth e
Carlos Dias, que eram muito bem recebidos em suas assembleias e reuniões, dentre muitos
outros que veremos adiante. Algumas das próprias operárias e líderes sindicais, como Elvira
Boni, tinha uma trajetória de militância anarquista. Elvira participou, desde os seus 12 anos, da
Liga Anticlerical e do Grupo Dramático 1º de Maio.194 Estes anarquistas eram coletivistas,
publicavam jornais, formavam grupos de propaganda e atuavam no interior de sindicatos e
associações.195
Os anarquistas não tinham ideias homogêneas e divergiam em muitos aspectos. Haviam
anarquistas que atuavam em associações que valorizavam a luta cotidiana e abraçavam o
sindicalismo revolucionário, como Elvira Boni, de forma diferente dos anarcocomunistas que
viam os sindicatos como um espaço de propaganda, e os anarquistas individualistas que não
consideravam a luta de classes. 196 As mulheres anarquistas, em geral, sugeriam que as operárias
se organizassem em sindicatos de resistência.197
192 A policia prohibiu a realização do Congresso Communista Anarchista. O Paiz, Rio de Janeiro, 23 jun. 1919.
Casos de policia: o momento operario, p. 4.
193 Ibidem.
202 Idem.
Waldemira Fernandes e Rosa Leal, no dia 21 de maio de 1919. 205 De acordo com o jornal A
Razão, uma das fundadoras teve a ideia de se reunir para um Congresso Feminista no Rio de
Janeiro nos mesmos dias do Congresso Comunista: 20, 21 e 22 de junho,206 o que firmava
declaradamente a sua ligação com o crescente movimento comunista, também conhecido por
“maximalista”, pois apresentava o programa máximo dos bolcheviques.207
Este mesmo Congresso, que ocorreria no Centro Cosmopolita, onde funcionava a sede
dos operários que trabalhavam em hotéis, foi fechado pela polícia e o material de propaganda
foi apreendido. Segundo O Paiz, os papéis previam o seu “caráter perigoso”. “O programma
dessa collecctividade assenta, entre outras cousas, ‘na supressão do Estado, na abolição de todas
as leis, na suppressão da família, (...) na suppressão da propriedade, do exercito, da policia, da
justiça, do Parlamento, etc.” 208 De fato, os anarquistas defendiam uma transformação radical da
sociedade e o fim da propriedade privada e das instituições repressivas do Estado, mas o jornal
oculta os outros elementos e valores antiautoritários anarquistas como o bem-estar social, a
solidariedade e a forma organizativa a partir de livres associações. 209
O discurso do jornal apresenta uma visão sexista, como se a imposição de “elementos
perniciosos”, “individuos” do sexo masculino corromperia a luta pacífica das mulheres
costureiras, como se os próprios homens comunistas e anarquistas estivessem fundando uma
organização feminina, e que esta não poderia ser construída por elas próprias. O discurso d’O
Paiz segue a esteira da ideologia burguesa que vê as mulheres como naturalmente dóceis e
submissas.210 A Liga Comunista Feminina realmente existiu e contou com a participação de
mulheres costureiras, como veremos adiante.
Durante o decorrer da greve, no dia 26 de junho, o jornal A Rua,211 noticiou uma série de
violências cometidas pelo patrão Domingues e pelo delegado Severo Bonfim contra algumas
211 Fundado por Viriato Correia, em 1914, anti-hermista, se uniu à oposição liberal. Ficou conhecido como o
primeiro jornal a empregar uma mulher, Eugênia Brandão, na função de repórter. SODRÉ, 1977.
49
Outros jornais denunciaram a violência patronal, racista e policial, com mais versões da
história. Segundo o periódico Gazeta de Noticias, mesmo com a greve chegando ao fim, as
violências não cessaram – o patrão Domingues havia descontado 1$000 do pagamento de cada
uma, e elas não concordaram com esta “medida arbitrária”. Em resposta, Domingues “(...)
chamou uma dellas e falou que não queria negras vagabundas em sua casa.” As costureiras
protestaram e Laudelina se levantou contra a violência racista sofrida, assim, “(...) o patrão
chamou um guarda e mandou prendê-la”. Três delas foram presas: além de Laudelina Silva,
Judith Corrêa e Almerinda Machado. 215
Segundo Cláudio Batalha, eram práticas comuns do Estado contra o operariado as prisões
arbritárias, espancamentos e invasões de domicílio. Quanto à repressão aos movimentos
grevistas, a importância e o porte da indústria eram determinantes.216
Na delegacia, o delegado Severo Bonfim, “um pobre diabo”, “(...) depois de maltratar as
moças, (...) quiz mette-las no xadrez. É bom notar que trata-se de jovens de 12 a 17 anos!”.
212 O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo Bonfim. A Rua, Rio de
Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.
213 Ibidem.
214 Ibidem.
215 Uma greve de saias... A policia prende uma grevista. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.
217 O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo Bonfim. A Rua, Rio de
Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.
218 Uma greve de saias... A policia prende uma grevista. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 26 jun. 1919, p. 2.
219 O movimento paredista. Na fabrica do Domingues. Mais uma do delegado Severo Bonfim. A Rua, Rio de
Figura 6 – “Sentadas, as tres operarias que foram violentamente levadas á policia. De pé, á direita, as duas
delegadas da ‘União’, e á esquerda, duas das operárias dispensadas”. Fonte: A Rua, 26/06/1919.
só sabiam fazer barulho e mais nada. Eu digo: “Não, nós temos idéias próprias.
Não vamos nos deixar levar por ninguém.”224
Na assembleia do dia 27, foi decidido dar continuidade à greve, sem voltar ao trabalho,
até que elas recebessem as respostas dos patrões. Ocorreram mais protestos contra os abusos
no estabelecimento de J. J. Domingues, por parte das oradoras, e foi decidida a criação de uma
comissão para atuar junto à imprensa para continuar as denúncias não somente contra os
patrões, mas também contra a polícia.225
De acordo com O Paiz, na edição do dia 28, “A União das Costureiras move intensa
propaganda entre as moças para que a parede seja generalizada.”, reforçando que não apenas as
costureiras estavam sendo convidadas para as reuniões, mas também “as modistas de
chapéus”,226 as operárias chapeleiras e as operárias bordadeiras, 227 como visto no Correio da
Manhã.228
Já em julho, dia 2, a greve prosseguia, e a coluna Gazeta Operária, do periódico Gazeta
de Noticias, informou que o ateliê “Mme. Alzira G. Gomes”, na rua Uruguayana n. 10,
concedeu as oito horas de trabalho e o aumento dos salários. 229 Não foi possível, através das
fontes da imprensa, dizer ao certo quando a greve teve o seu fim. Ainda no dia 27 do mês
anterior, o mesmo jornal informava que as costureiras estavam esperando a resposta de alguns
patrões para o retornar ao trabalho. 230
Em sua entrevista, Elvira Boni se recorda da greve, que foi noticiada como “a greve das
abelhas do luxo”, visto que muitas das operárias trabalhavam em ateliês de alta costura e
produziam roupas luxuosas para mulheres de classe alta. De acordo com sua memória, a
227 As costureiras agem. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 jun. 1919. O movimento grevista nesta capital, p.
3.
228 Fundado em 1901, sob direção de Edmundo Bittencourt, e com equipe de jornalistas brasileiros que defendia o
patriotismo e oposição política. Se destacou no calor da luta política, e m oposição ao principal jornal do Rio de
Janeiro, O Paiz, rapidamente se tornou um jornal popular, apoiando a Revolta da Chibata, em 1910, e condenando
as medidas repressivas do governo Hermes da Fonseca. Em 1912, Bittencourt foi preso pelo governo Hermes por
apoiar as rebeliões populares. Com o fim do governo Hermes, o Correio da Manhã, incitou a invasão do jornal O
Paiz. Nas eleições de 1919, apoiou Rui Barbosa, que perdeu para Epitácio Pessoa, sendo o principal crítico a este
governo. SODRÉ, 1977.
229 União das Costureiras e Classes Annexas. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 02 jul. 1919. Gazeta Operaria,
p. 4.
230 Uma greve de saias... A greve continúa. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 27 jun. 1919, p. 4.
53
conquista das oito horas de trabalho tinha sido imediata. 231 No entanto, ao cruzar as fontes orais
com as fontes da imprensa, é possível afirmar que para a vitória coletiva das costureiras, elas
passaram por diversas formas de violência, como a prisão, as ofensas, o racismo e o cárcere
privado. Portanto, as costureiras conquistaram a vitória de suas pautas reivindicadas, depois de
cerca de duas semanas de intensos conflitos de classe.
Os acontecimentos da greve, que revelaram conflitos entre patroas e operárias, associam-
se também às greves de 1907 em São Paulo, uma década antes. Neste contexto, é possível citar
o caso das proprietárias de casas de moda Clementina Zona e Annita Franchini, que
curiosamente tinham tendências socialistas, e por este motivo estavam mais abertas ao diálogo
e à concessão das nove horas de trabalho reivindicadas pelas costureiras. 232
Na entrevista para Angela Gomes, Elvira Boni, ao responder sobre as reações das patroas
em relação ao seu posicionamento político, se lembra de uma proprietária que não se importava
com os cartões postais de Francisco Ferrer que Elvira distribuía nas oficinas. 233 No entanto, a
prática se demonstrava diferente, com o exemplo da greve da União das Costureiras do Rio de
Janeiro em 1919 e de Annita Pennazzi, a secretária da Liga das Costureiras de São Paulo durante
a greve de 1907.234
A operária socialista Annita Pennazzi debateu com a senhora Clementina Zona, dona de
uma casa de moda e esposa do socialista Arcangelo Zona, e denunciou os seus posicionamentos
antilibaneses e os baixos salários que pagava às operárias de sua oficina, evidenciando que
“considerava melhor ‘ser explorada pelos turcos, que socialisticamente’ por ela, que lhe pagava
muito menos.”235 Provavelmente Annita Pennazi foi uma inspiração para Elvira e as demais
integrantes da União das Costureiras.
Em um momento de sua trajetória, Elvira Boni tentou alugar uma sala e abrir um ateliê,
em que as lojas encomendavam os vestidos e pagavam por peça. Entretanto, Elvira não
conseguiria trabalhar sozinha e precisaria contratar algumas meninas. 236 Seu pai, o anarquista
Angelo Boni, a aconselhou e apontou uma contradição, que a colocaria em uma posição de
exploração de classe:
Meu pai disse: “Minha filha, assim não pode. Ou o sindicato, ou a
costura.” Eu disse: “Então eu quero o sindicato.” (...) De maneira que
desisti do ateliê para ficar só na União das Costureiras, para lutar em
favor das costureiras. Se eu tivesse abandonado o sindicalismo, indo
contra as minhas idéias, teria sido possível manter o ateliê. Por que aí
eu não teria pena de ninguém. Eu diria: “Se você quiser, vai ganhar
tanto e nada mais”, como faziam os patrões. Mas eu tinha idéias de
trabalhar em favor da humanidade, e o resultado foi esse.237
O festival da União das Costureiras. A Razão, Rio de Janeiro, 09 ago. 1919. Movimento operario, p. 6.
240 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
241 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 ago. 1919, p. 10.
242 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 ago. 1919. O operariado, p. 9.
55
de burlar a exploração cometida contra as aprendizes. Zeni se lembra que Elvira aprendeu a
fazer chapéus na União.243
Foram anunciadas também futuras aulas de português, pela importância da alfabetização
e a falta de acesso à educação básica, e de francês,244 provavelmente para melhor entenderem e
se comunicarem com as proprietárias de origem francesa. Ainda no manifesto, elas convidaram
as costureiras do Rio de Janeiro para se associarem, sob o pagamento de 1$000 mensais para o
sindicato.245
Às quartas e sextas-feiras, à noite, uma comissão ficava na sede da União dos Alfaiates,
à disposição das costureiras, e a tesoureira Elvira Boni recebia as mensalidades e as prestações
de contas do festival que ocorreu no mesmo mês. No dia 21, ela publicou uma mensagem sobre
o assunto na grande seção do Movimento Operário do jornal A Razão.246
As costureiras Elisa Gonçalves de Oliveira, a segunda secretária da União, e Emma
Silveira, que participou das comissões de greve, fizeram parte da Liga Comunista Fem inina.247
As reuniões ocorriam no Centro Cosmopolita, e a operária Rosa Leal, que participou da
fundação da Liga Feminista Brasileira com Elvira, da qual não foram encontradas mais fontes,
era a tesoureira.248 Em setembro de 1919, Emma e Elisa presidiram uma reunião, quando
discutiram sobre a organização dos arquivos da associação, a publicação de um folheto escrito
pela professora Maria de Lourdes Nogueira e da festa em prol do jornal Spártacus,249 um
periódico anarquista e comunista que foi fundado em agosto de 1919.250 Um destes festivais
pró-Spártacus ocorreu em agosto, e contou com a participação de Elvira Boni e de duas de suas
irmãs, Carolina e Ernestina.251
A Liga Comunista Feminina foi fundada em maio do mesmo ano, por algumas mulheres
proletárias, e tinha ligação direta com o recém-fundado Partido Comunista do Brasil, que ainda
243 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
244 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 ago. 1919, p. 9.
245 Ibidem.
246 União das Costureiras e Classes Annexas. A Razão, Rio de Janeiro, 21 ago. 1919. Movimento operario, p. 6.
247 Ibidem.
248 Liga Communista Feminina. A Razão, Rio de Janeiro, 26 jul. 1919. Movimento operario, p. 6.
249 O jornal Spártacus foi dirigido pelo anarquista José Oiticica. Foi perseguido e empastelado pela repressão. Foi
Movimento operário á noite, p. 5. O irmão de Elvira, Amílcar, foi preso em uma ocasião em que buscava
exemplares do Spártacus para fazer propaganda. Ele trabalhava na Light, e depois de solto, descobriu que estava
demitido. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
251 O nosso festival. Spártacus, Rio de Janeiro, 09 ago 1919, p. 3.
56
não era oficialmente o PCB (este foi fundado em 1922), baseado em ideias anárquicas-
comunistas, neste período logo após a Revolução Russa.252 Na Rússia soviética, além da
participação massiva de mulheres operárias e camponesas revolucionárias, foi a primeira nação
a instituir o sufrágio universal e mais uma série de direitos para as mulheres, como o aborto e
o divórcio, na Constituição de 1918.253
Em outubro, a Liga Comunista Feminina organizou um festival com a participação do
propagandista anarquista Carlos Dias, apresentações teatrais e baile, e com alianças com outros
operários, como o companheiro Manuel Rocha, da União dos Operários da Construção Civil.
O festival foi anunciado no jornal A Rua, na divisão Vida Proletária.254
Não é possível neste trabalho aprofundar muito em relação à constituição e aos debates
promovidos na Liga Comunista Feminina, porém o jornal Spártacus é uma fonte que permite
adentrar ao pensamento das mulheres operárias comunistas neste período. Como exemplo, elas
debatiam a questão da família no regime comunista. Elas também organizavam protestos, como
contra o assassinato de companheiros em Niterói. 255
A Razão publicou, em junho, os objetivos da Liga: a emancipação feminina e o
estreitamento dos laços com o proletariado mundial, seguindo os princípios do “comunismo
anárquico”. Os cargos da comissão executiva da Liga Comunista Feminina eram similares à
estrutura sindical da União das Costureiras: havia secretárias, tesoureiras e uma bibliotecária, e
as companheiras que fossem associadas deveriam contribuir com uma quantia mensal. 256
O socialismo anárquico, que as operárias da Liga eram adeptas e denominavam como
comunismo, envolvia uma série de princípios. Nesta sociedade futura, todos os homens que
estão aptos a trabalhar deverão trabalhar; o trabalho deverá ser útil; os meios de produção
deverão ser coletivizados; o trabalho manual e intelectual deverão estar aliados, sem
hierarquias; as condições de trabalho deverão ser discutidas nas associações; não haverá classes
ou governos que exercerão poder; as trocas de produtos serão feitas entre as associações; e as
252 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
253 SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética. São
257 Ibidem.
258 Ibidem.
259 Para Margareth Rago, a opressão de gênero recai de maneira mais forte sobre a moral. Para combatê-la, as
mulheres anarquistas reivindicavam o “amor livre” contra o modelo de casamento burguês. RAGO, 1985. Ver
também: LOBO, Elisabeth Souza. Emma Goldman: a vida como revolução. São Paulo: Brasiliense, 1983 A
comunista Alexandra Kollontai delineou os princípios do “amor camaradagem”. Ver: KOLLONTAI, Alexandra.
A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
260 BANDEIRA, 2004.
261 Os textos das bolcheviques Alexandra Kollontai e Nadiédja Krupskaia descrevem este movimento. Ver:
SCHNEIDER, 2017.
262 DAVIS, 2016, p. 226.
263 Idem.
58
59
No ano de 1920, foi fundado o jornal Voz do Povo, órgão da Federação dos Trabalhadores
do Rio de Janeiro, herdeiro da FORJ, que havia sido fechada pela polícia em 1917 e era ligada
à COB, organização nacional dos operários de todo o Brasil, de orientação sindicalista
revolucionária.264 O jornal teve uma vida curta, com um ano de duração. No entanto, o número
de publicações e informações sobre a União das Costureiras e Classes Anexas foi essencial para
a pesquisa, visto que se trata de um periódico cujos redatores e administradores eram militantes
e operários sindicalistas. Elvira Boni e seu irmão Amílcar eram colaboradores do jornal. 265
No dia 6 de fevereiro, de acordo com a Voz do Povo, a comissão executiva da União das
Costureiras estava elaborando um manifesto de propaganda organizadora a ser distribuído nas
oficinas de costura. Foi apresentada a situação difícil que as costureiras, bordadeiras e
chapeleiras estavam enfrentando: os baixos salários e os ambientes de trabalho anti -
higiênicos.266
Após o carnaval, no dia 28, o referido Manifesto da União das Costureiras foi publicado
no jornal, convidando as sócias e não sócias para uma reunião no dia 3 de março. Elas clamavam
para que a classe se unisse, para assim ter a possibilidade de trocar ideias e experiências para
garantir a melhoria de suas condições de vida e de trabalho. A questão das condições higiênicas
das oficinas se tornou uma pauta importante. Elas prezavam pela coletividade e união das
mulheres trabalhadoras: “Separados somos fracos, somos fortes bem unidos.”267
Emma Silveira, que participava da União das Costureiras e da Liga Comunista Feminina,
fundou e foi diretora geral do Grupo Feminino Instrutivo e Recreativo Operário, onde havia
algumas operárias matriculadas em julho. A Voz do Povo julgou sua atitude como uma “bella
iniciativa”. As aulas oferecidas eram de português, francês, aritmética, contabilidade,
266 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 fev. 1920. A vida dos trabalhadores,
p. 3.
267 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 28 fev. 1920. Vida dos trabalhadores:
Manifestos, p. 3.
60
datilografia, corte, costura, confecção de chapéus, espartilhos e bordados. “Nesse grupo poder -
se-ha matricular creanças, moças e mesmo senhoras edosas.”268
Elas organizariam festivais de dois em dois meses, que proveriam a sua renda, visto que
os cursos seriam gratuitos. O Grupo foi formado pela Emma, costureira, professora de francês
e de datilografia, a bordadeira Corina Liccurso, a ajureira Graziella Braga, a encadernadeira
Luiza de Castro, a chapeleira Maria José e a coleteira Olga de Castro. 269
Em abril, ocorreu o Terceiro Congresso Operário Brasileiro no Rio de Janeiro, um evento
que reuniu delegados de sindicatos operários de todo o país, para discutir os rumos coletivos
das lutas da classe. O discurso da Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro era
sindicalista revolucionária, buscando a união do proletariado e a emancipação da “tuttela
capitalista”. Eis a avaliação da Voz do Povo, em março, sobre a futura realização do Congresso:
“(...) E o enthusiasmo com que os trabalhadores, não só da Capital como dos Estados, têm
acolhido a iniciativa do Congresso, leva-nos a dizer que a sua emancipação está bem mais
proxima do que a gente pensa...”.270
No dia 20 de março, foram confirmadas a presença de trabalhadores de São Paulo,
Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. A União das Costureiras já
havia aderido à participação, com a contribuição de 150$000, uma quantia que revela um
provável número significativo de associadas. 271
Na União dos Operários em Construção Civil, ocorreu no dia 5 de abril uma sessão solene
envolvendo as associações de resistência “co-irmãs”, sendo uma delas a União das Costureiras.
Participaram todos os representantes destes sindicatos, sejam aquelas que reuniam
trabalhadores por categoria, como a União Geral dos Metalúrgicos, ou por bairro, como a União
dos Operários Fabril de São Cristóvão, e a reunião foi presidida pelo presidente do jornal Voz
do Povo. Estava na ordem do dia um protesto contra a prisão de alguns “camaradas” que foram
encarcerados pela polícia carioca e sentenciados à deportação. 272 Durante a Primeira República,
muitos operários estrangeiros envolvidos na militância política dos trabalhadores foram
268 Uma bella iniciativa. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 07 mar. 1920, p. 2.
269 Ibidem.
270 Terceiro Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 20 mar. 1920. A vida dos trabalhadores,
p. 3.
271 Ibidem.
272 União dos O. C. Civil. Sessão solemne. Voz do Povo, 06 abr. 1920. Vida dos trabalhadores, p. 3.
61
deportados para seus países de origem, como uma tática de repressão para desestabilizar o
movimento.273
Um artigo foi publicado pela Voz do Povo, assinado por “Um Detento”. Ele protestou
contra as deportações dos camaradas, e condenou a ação dos “amarelos”, que colaboravam com
os patrões e a polícia com a entrega de outros trabalhadores. 274 “Amarelos” era uma forma
pejorativa que os sindicalistas revolucionários, ou outros adversários políticos, denominavam
os sindicalistas reformistas. 275 Ele salientou a importância das mulheres que escreviam em prol
das lutas revolucionárias, como a costureira Elisa Gonçalves, Thereza Escobar e Maria de
Lourdes Nogueira.276
Elisa e Maria de Lourdes faziam parte do Centro Feminino de Estudos Sociais.
Paralelamente à União das Costureiras, as trabalhadoras se organizavam também em diversas
associações próprias. No final de março de 1920, elas protestaram contra a repressão do governo
de Epitácio Pessoa contra os trabalhadores em greve nos últimos tempos, sobretudo dos
operários da Leopoldina Railway e da Federação de Condutores de Veículos.277 Esta foi uma
das grandes paralisações que ocorreram no Rio, com muita adesão e solidariedade da Federação
de Trabalhadores do Rio de Janeiro.278 De acordo com a Voz do Povo foram presos mais de
dois mil grevistas.279 Várias sociedades operárias foram invadidas. Foram quatro dias de
repressão por parte da polícia e das tropas do Exército.280 Em seu comício, as operárias do
Centro Feminino também se centraram na questão da mulher operária, “(...) victima de todas as
miserias e violencias.”281
A professora Maria de Lourdes Nogueira, também da Liga Comunista Feminina, escreveu
para a Voz do Povo no dia 19 de março um trecho sobre a “Era Nova”, anunciando “tumultos
revolucionários” e saudando as companheiras organizadas no Centro Feminino de Estudos
277 O Comicio do Centro Feminino de E. Sociaes. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1. Elvira se
lembra desta greve, os meios de transporte da cidade paralisaram, e ela foi andando do Cordovil, subúrbio onde
morava, para o centro, onde trabalhava. LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983.
Apud: GOMES, Angela de Castro. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
278 BATALHA, 2000.
279 Aos trabalhadores em geral. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1.
281 O Comicio do Centro Feminino de E. Sociaes. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 29 mar. 1920, p. 1.
62
Sociais. É interessante a menção das mulheres brasileiras e de suas “irmãs” no além -mar, o que
demonstra o contato e diálogo entre mulheres anarquistas e comunistas era internacional. 282
Em fevereiro, as mulheres do Centro Feminino de Estudos Sociais haviam lançado um
manifesto na Voz do Povo. Sua associação foi formada no dia 22 de janeiro de 1920, e no
manifesto elas convidavam todas as mulheres, independente de raça, nacionalidade, crença ou
profissão, para protestarem contra a escravização econômica, moral e jurídica, “(...) que
asfyxiam, degradam e aviltam o sexo feminino.” Assim como ressaltavam a importância de sua
instrução e compreensão da sociedade em que vivem. “Professoras, funccionarias, costureiras,
floristas, operarias em fábricas ou ‘ateliers’, trabalhadoras em artes domésticas: Vinde, vinde
até nós, que sereis jubiliosa e fraternamente acolhidas.” 283
No dia 21 de abril, o tesoureiro da comissão organizadora do Terceiro Congresso
Operário informou na Voz do Povo as quantias das doações para o evento, com a relação de
cada sindicato envolvido, totalizando 1:277$000. A União dos Operários em Construção Civil
arrecadou 200$000, sendo a associação que doou maior quantia. Em segundo lugar, ficou a
União das Costureiras com seus 150$000, uma doação expressiva, considerando o
compromisso feminino com o Congresso. 284
A sessão inaugural do Terceiro Congresso, ocorreu no dia 23 de abril, na sede da União
dos Operários em Fábricas de Tecidos, e todos os trabalhos foram realizados em sete dias. Neste
primeiro dia, foram discutidas as normas do Congresso. As delegadas eleitas pela União das
Costureiras para participarem do Congresso foram Elvira Boni e Noemia Lopes. 285 A Voz do
Povo informou que Elvira precisou sair mais cedo no primeiro dia, e emocionou os camaradas
presentes ao exclamar com entusiasmo: “Paz entre nós, guerra aos senhores!”, trecho da canção
“A Internacional”, significativa para a união dos trabalhadores contra a classe que os explora. 286
O periódico O Imparcial, ao noticiar sobre o Congresso, relatou o ocorrido, informando que
282 NOGUEIRA, Maria de Lourdes. Era Nova. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 mar. 1920, p. 2.
283 Grupo Feminino de Estudos Sociaes. Um manifesto á mulher brasileira. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 07 fev.
1920, p. 1.
284 Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 21 abr. 1920. A vida dos
trabalhadores, p. 3.
285 Ibidem. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
286 Paz entre nós: guerra aos senhores. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 24 abr. 1920. O Terceiro Congresso: A
Elvira lamentou que os trabalhos se estenderam até muito tarde, e que os seus pais a esperavam
preocupados em casa, sendo este o motivo de sua saída. 287
Sobre a sessão do dia 25, a Voz do Povo publicou: “A esplendida assembleia de hontem
constituía ainda uma admiravel affirmação de energia e de solidariedade, neste momento de
repressão e reacção capitalista.”. 288 No período do Terceiro Congresso, a COB já não existia
mais, pois o momento era de intensa repressão às organizações operárias após as
movimentações de 1917 a 1919. No entanto, este congresso foi importante para afirmar os
esforços de união e solidariedade da classe trabalhadora. Este aspecto do sindicalismo
revolucionário tem influências do marxismo, como a conhecida frase do Manifesto Comunista,
de Karl Marx e Friederich Engels: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”, com forte caráter
internacionalista.289
Os operários do Congresso enviaram saudações para os operários e o movimento
libertário de todo o mundo, especialmente a União Geral dos Metalúrgicos, a União dos
Operários da Construção Civil, de São Paulo, e do Rio, cujo delegado foi o anarquista
Domingos Passos. A União das Costureiras e a Aliança dos Trabalhadores em Marcenaria
enviaram saudações especiais para o proletariado russo: “(...) que tão alto tem erguido o facho
da revolta triumphante, abrindo o caminho do bem-estar e da liberdade aos trabalhadores
mundiaes.”290 É um fato significativo que estreita os laços entre as mulheres costureiras e a
Revolução Russa. Estas mesmas associações enviaram saudações especiais também ao
proletariado português, por suas lutas e resistências às tiranias do capitalismo.291
Após as saudações, foram apresentadas as reivindicações e pautas do Congresso. Dentre
elas, estavam a organização associativa e a jornada de oito horas para os trabalhadores do
campo, o desenvolvimento das escolas operárias, a questão da repressão e da perseguição contra
militantes e operários e o protesto contra a lei de expulsão, a centralidade da luta de classes e o
acolhimento das divergências políticas no interior dos sindicatos. Algumas propostas
interessantes levantadas pelos delegados foram a fundação de um Partido Sindicalista brasileiro
287 O terceiro Congresso Operario. Realisou-se hontem a primeira sessão preliminar. As resoluções tomadas. O
Imparcial, Rio de Janeiro, 24 abr. 1920, p. 14. Elvira afirmava que tinha muita liberdade para a época: às vezes,
saía ao meio-dia e voltava para casa à meia-noite. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
288 A installação do 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 1.
289 TOLEDO, Edilene. Para a união do proletariado brasileiro: a Confederação Operária Brasileira, o sindicalismo
e a defesa da autonomia dos trabalhadores no Brasil da Primeira República. Cadernos Perseu, n. 10, Ano 7, 2013.
290 A installação do 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 1.
291 Ibidem.
64
Figura 7 – “Dois aspectos da sessão de encerramento: ao alto, a mesa que dirigiu os trabalhos, presidida pela
camarada Elvira Boni e secretariada pelos camaradas José Salazar, Orlando Martins e Isidoro Diego; em baixo,
um aspecto da assembléa.
292 Ibidem.
293 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
294 A instalação do 3º Congresso Operario Brasileiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 abr. 1920, p. 1.
295 U. das Costureiras e C. Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920. A vida dos trabalhadores, p. 3.
296 3º Congresso Operario. A sua 7ª e ultima reunião. A Razão, Rio de Janeiro, 30 abr. 1920, p. 5.
297 A grande realisação. As resoluções do 3º Congresso. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920, p. 2.
65
Figura 8 – “Elvira Boni na mesa diretora do 3º Congresso Operário Brasileiro, 1920 (Rodrigues, s.d.).” Fonte:
HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. São Paulo:
Editora Unesp, 2002, p. 266.
Elvira Boni e Noemia Lopes foram as únicas duas mulheres no Congresso, dentre 116
delegados. Sobre o seu discurso na mesa de encerramento:
Eu era um pouco inibida nessa ocasião, não me achava com grande
possibilidade de conversar, de dissertar sobre os assuntos. Sabia o que queria,
mas não sabia me expressar. Mas presidi a última sessão do congresso,
quiseram que eu presidisse. (...) Apenas me comuniquei com os companheiros
presentes. Nem escrevi. Demonstrei apenas satisfação por ter tomado parte e
desejei que aquilo continuasse, se tornasse uma realidade. 298
trabalho nocturno e os seus salarios equiparados aos dos homens.” 299 Foram incorporadas
reivindicações historicamente importantes para as mulheres, como a pauta do “trabalho igual,
salário igual”, e o “ambiente de respeito” refere-se à contraposição aos abusos sexuais
cometidos pelos patrões.300
Um dos delegados do Pará, José Placido de Albuquerque, faleceu durante sua estadia no
Rio. Ele estava internado no Hospital da Misericórdia. O seu corpo foi transportado para a sede
da União dos Operários da Construção Civil, e velado durante o dia e a noite, 30 de abril. A
União das Costureiras e outras tantas associações participaram do velório, e todas as despesas
do enterro foram pagas pela Comissão Executiva do Terceiro Congresso. 301
Era comum que, quando algum operário ficasse doente, as associações se organizassem
e angariassem fundos para o seu benefício.302 Quando a costureira Elisa Gonçalves de Oliveira
adoeceu, em 1920, a Voz do Povo arrecadou dinheiro através festivais de apoio mútuo, no
Centro Cosmopolita303 e no Centro Galego, para a sua a melhoria de sua saúde. 304
As páginas do jornal Voz do Povo nos permite adentrar mais a fundo no cotidiano das
costureiras. Dentro da seção Vida dos Trabalhadores, na coluna O povo reclama, no dia 26 de
abril de 1920, houve uma denúncia contra Angelina Fontes, contra-mestra da “Casa Colombo”,
que insultava as operárias: “(...) chama as infelizes costureiras de ladras e de outros nomes que
a decencia não permitte dizer. Além disso, na distribuição do serviço, é de uma injustiça capaz
de revoltar a creatura mais cordata deste mundo.” 305
299 A grande realisação. As resoluções do 3º Congresso. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920, p. 2.
300 A questão da proibição do trabalho noturno suscitou debates complexos. Algumas feministas afirmavam que
as leis que proibiam o trabalho noturno para as mulheres e a licença-maternidade a protegiam dentro do modelo
da mulher “mãe” e “guardiã do lar”, causando expulsão da mão de obra feminina no mercado de trabalho. É
interessante a análise dos impactos da presença e da ausência desta legislação no cotidiano do trabalho feminino.
Em muitos casos, as operárias reclamavam que a permissão para o trabalho noturno significava apenas a extensão
do trabalho diurno, sem limite e sem o pagamento adequado. Ver: FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os
direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2018; RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
301 3º Congresso Operario. A morte de um dos delegados do Pará. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 mai. 1920,
p. 21.
302 BATALHA, 2000.
303 Grande Festival no Centro Cosmopolita. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 26 mai. 1920. Vida associativa dos
trabalhadores, p. 3.
304 Apoio mutuo. Grande festival. No Centro Gallego. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12 jun. 1920, p. 1; O festival
Elas destacaram a importância das mulheres se organizarem, e além delas, chamaram seus
irmãos, pais e noivos, para que compreendam as especificidades da luta operária feminina e
engrossem as suas fileiras.307 É significativo que as mulheres, tanto da União quanto de outros
grupos de operárias, reforcem o convite à participação e união independente de gênero, raça ou
nacionalidade, neste período de forte repressão à liberdade da mulher, do nacionalismo
exacerbado crescente do entre-guerras e da importação das teorias raciais “científicas” da
Europa, que sustentavam o racismo e o colonialismo no âmbito internacional.308
No final do manifesto, elas convidaram todas as costureiras, chapeleiras e bordadeiras
para comparecerem à próxima reunião, em que haveria uma pequena palestra feita por uma das
companheiras. E terminam: “Viva a ‘emancipação da mulher!’”. 309
No dia 9 de maio, as costureiras da União publicaram na Voz do Povo um convite à
próxima assembleia, reafirmando a importância da união de resistência no sindicato, para a
306 U. das Costureiras e C. Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 27 abr. 1920. A vida dos trabalhadores: nos
syndicatos, nas officinas, nas obras e nas fabricas – Notas e informações, p. 3.
307 Ibidem.
308 “As influências das ideias racistas e deterministas das Teorias Raciais serão introduzidas no Brasil no fim do
século XIX e perduraram de forma intensa até o fim da Primeira República em 1930. Os discursos racistas
travestidos de cientificidade foram propagandeados pelo Brasil, pelos museus, institutos históricos, faculdades de
direito e principalmente faculdades de medicina.” SANTOS, Maíra Rodrigues dos. SILVA, Thiago Dantas da. A
Abolição e a manutenção das injustiças: a luta dos negros na Primeira República brasileira. Cadernos Imbondeiro.
João Pessoa, v. 2, n. 1, 2012, p. 2.
309 U. das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 27 abr. 1920. A vida dos trabalhadores:
nos syndicatos, nas officinas, nas obras e nas fabricas – Notas e informações, p. 3.
68
defesa de seus interesses enquanto trabalhadoras. Sobre a participação da União das Costureiras
no Terceiro Congresso Operário, elas julgaram este feito como uma “grande missão”, e que as
orientações deveriam ser seguidas. Como de costume, elas terminaram o apelo com a palavra
de ordem “Avante, companheiras! – Associai-vos! Todas á União!”.310
No dia 17 de maio, A Noite divulgou a comemoração do primeiro aniversário da União
das Costureiras e Classes Anexas, neste mesmo dia no período noturno, na sede na rua Senhor
dos Passos, 8-A, que dividiam com a União dos Alfaiates. 311 O movimento operário tinha um
calendário de importantes datas comemorativas para a classe: o 1º de Maio era o principal, mas
também incluía o dia do assassinato do anarquista catalão Francisco Ferrer, dia 13 de outubro,
o dia da queda da Bastilha, 14 de julho, e os aniversários das fundações de associações
operárias.312
Na seção Última Hora – Vida dos Trabalhadores, a Voz do Povo também divulgou o
evento das costureiras. Enquanto A Noite falava sobre uma agremiação e sociedade, de “(...)
sympathicas e modestas artistas que, com o seu labor obscuro, contribuem para o esplendor da
elegância carioca (...)” 313, a Voz do Povo, enquanto imprensa operária, se referia como o
aniversário das “companheiras”, e falava sobre a importância do “(...) conhecimento dos fins a
que se propõe a União, lutando sempre pela organização da classe.” 314 O Jornal também
mencionou o evento, com poucos detalhes, também se referindo às costureiras como
“modestas”.315
A Voz do Povo publicou um convite no dia 31 de maio para que as costureiras, bordadeiras
e chapeleiras comparecessem à assembleia da União das Costureiras, no dia 2 de junho, em sua
sede social.316 As pautas discutidas foram a eleição de uma nova comissão executiva, o que
310 União das costureiras e classes annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 09 mai. 1920. Ultima hora: Vida dos
trabalhadores, p. 2.
311 A União das Costureiras e Classes Annexas vae commemorar, amanhã, o seu primeiro anniversario. A Noite,
313 A União das Costureiras e Classes Annexas vae commemorar, amanhã, o seu primeiro anniversario. A Noite,
trabalhadores, p. 2.
315 A União das Costureiras e Classes Annexas. O seu primeiro anniversario. O Jornal, Rio de Janeiro, 18 mai.
1920, p. 2.
316 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 31 mai. 1920. Vida dos trabalhadores,
p. 3.
69
revela a alternância de poder e o caráter democrático da União, e a discussão dos meios para
conseguir melhorias para a categoria:
Se todas as companheiras desejam diminuir os seus soffrimentos, obtendo um
pouco mais de liberdade, devem attender a este convite, para que todas unidas
possam conquistar tudo que de direito lhes pertence.
É tempo de lutarmos sem temor, sem medo, pela nossa emancipação!
A união faz a força. – A Comissão. 317
A assembleia geral das costureiras do dia 5 de junho foi presidida por Maria Lopes e
secretariada por Isabel Pelereiro e Emma Silveira. A tesoureira Elvira Boni palestrou para as
companheiras sobre as resoluções do Congresso que participou e as condições do proletariado
nacional. Nesta assembleia, a secretária Aida Morais foi substituída por Placida Santos. Emma
Silveira também falou às companheiras, para que lessem cotidianamente a Voz do Povo, “(...)
o unico que defende fielmente a nossa causa, na qual se publicam todas as nossas notas.”. Ficou
decidido, ao final, para que organizassem uma palestra com o deputado Maurício de Lacerda,
aberta para todos os operários e especialmente para todas as mulheres trabalhadoras, não apenas
do ramo da costura.318
Em junho de 1920, a Voz do Povo publicou uma notícia que denunciava os abusos
patronais sofridos pela “camarada” Elvira Boni no estabelecimento “Moda Elegante”. Com
detalhes, o jornal discursava sobre a violência dos patrões contra os operários, que não eram
casos isolados e nem mesmo excepcionais em contextos de greve. “Note-se, ainda, que não são
só os operarios que soffrem as consequencias da estupidez crassa desses gananciosos. As moças
operarias também, não só nas fábricas, como nas officinas e ateliers de costura.”319
O texto é detalhado, e evidencia o caráter de exploração dos trabalhadores pela burguesia
– gananciosos, ambiciosos, prepotentes, estúpidos, mesquinhos – que sugam o suor das
proletárias e ainda as tratam com desrespeito. “Os gananciosos, além de explorá-las, tentam
ainda subjuga-las, impor-lhes serões, maltrata-las e para o cumulo de todas as ignorancias,
quando ellas reclamam e se revoltam, calumnia-las e infama-las. Não sabem esses traficantes
que são moças de familia, que merecem todo o respeito, todo o acatamento.” 320
317 Ibidem.
318 União das Costureiras e Classes Annexas. Assemblea Geral. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 05 jun. 1920. Vida
associativa dos trabalhadores, p. 3.
319 Na “Moda Elegante”. A camarada Elvira Boni victima da prepotencia e da estupidez dum espertalhão. Voz do
Segundo a Voz do Povo, Elvira tentou confeccionar a peça o mais rápido possível, porém
não conseguiu terminar. Como castigo, o patrão Bastos a demitiu, e Elvira retrucou, como uma
boa sindicalista, dizendo que as condições de trabalho apresentadas inicialmente foram
violadas. Bastos insultou-a verbalmente, com “palavrões inadmissíveis”, e a empurrou para a
rua, praticando violência física. 323
No dia seguinte, Elvira voltou à oficina acompanhada de uma companheira, para receber
o pagamento, e:
(...) foi de novo, estupidamente recebida por Bastos e por Bessa que
continuaram nas suas injurias, provocando dentro do estabelecimento um
escandalo, que mereceu reprovação visivel da freguezia que alli se encontrava.
Bastos chegou a chamar um guarda civil para prender as duas moças, víctimas
de sua estupidez e do seu desbrio. 324
O intuito do jornal foi denunciar a violência sofrida por Elvira e sua companheira, e alertar
as demais costureiras do perigo que ofereciam o patrão e a patroa deste local. A exploração de
classe é algo inerente ao capitalismo, porém, o aviso para que não busquem emprego na “Moda
Elegante” servia para evitar que sofressem mais ainda com os insultos, ataques violentos, os
injustos serões e as ameaças de prisão, sem rastros de diálogo.325
Em um domingo, 27 de junho, o dr. Maurício de Lacerda fez a referida conferência na
União das Costureiras, e a Voz do Povo divulgou o convite para o “operariado em geral”. 326
321 Ibidem.
322 Ibidem.
323 Ibidem.
324 Ibidem.
325 Ibidem.
326 União das Costureiras e Classes Annexas. Conferencia pelo dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de
Maurício de Lacerda foi um deputado federal importante, que defendia os direitos dos
trabalhadores na Câmara. Inclusive, de acordo com a pesquisa de Glaucia Fraccaro, Lacerda
apresentou projetos de lei que abordavam o trabalho feminino e infantil.327 Estas informações
cruzadas revelam o diálogo direto do deputado com as trabalhadoras.
A presença de um deputado federal em uma organização sindicalista revolucionária pode
soar contraditória, pois esta orientação política recusava a luta político-parlamentar, enquanto
o sindicalismo reformista apresentava candidatos operários às eleições.328 No entanto, haviam
exceções: a historiadora Angela de Castro Gomes caracteriza Maurício de Lacerda como um
deputado “indiscutivelmente um político popular”, que discursava e defendia os trabalhadores
contra a repressão na Câmara,329 e Nelson Werneck Sodré afirma que ele “(...) lutava sozinho
contra nova lei de repressão aos trabalhadores, nela confundidos com os contraventores da mais
variada espécie (...)”.330 Pai de Carlos Lacerda, Elvira revelou suas memórias sobre Maurício
na entrevista: “Por sinal, fez muitas conferências no nosso meio. Gostava muito dele, achava-o
uma pessoa muito correta, muito honesta. Falava muito bem, era bem diferente do filho.” 331
A edição do dia seguinte, 28, publicou os detalhes da conferência. Às 4 horas da tarde, o
salão estava cheio de mulheres operárias de “todas as classes associativas”, para além das
costureiras. Elvira Boni abriu a sessão e passou a palavra para Lacerda, que segundo o jornal,
“(...) foi ouvido com attenção e enthusiasmo durante sua magnifica conferencia.” 332
Lacerda falou sobre a exploração que a eram submetidas as costureiras nas oficinas por
seus patrões, e contou um pouco a história do movimento feminista. “Achou ineficazes esses
methodos de emancipar a mulher.” 333 É de se estranhar e julgar como sexista esta frase proferida
por um homem, ainda que seja um aliado na luta por direitos das mulheres da classe
trabalhadora.334 Porém, faz-se necessário historicizar o que se configurava e como se pensava
327 Os três projetos de lei formulados por Lacerda em 1917 foram relativos ao trabalho feminino, à criação de
creches nas indústrias e a criação de contratos de aprendizagem. Seus projetos envolviam contradições e limites,
que não cabe aqui aprofundar, mas visavam a proteção da mulher e o seu papel como cuidadora da família e
reprodutora da vida. FRACCARO, 2018, p. 95.
328 BATALHA, 2000.
332 Na União das Costureiras. A conferencia de hontem do dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de Janeiro,
28 jun. 1920, p. 1.
333 Ibidem.
o feminismo hegemônico naquele período, no âmbito nacional e internacional, que se abre para
um debate complexo que visa as intersecções entre gênero, raça e classe.
A revolucionária bolchevique Alexandra Kollontai, contemporânea das mulheres
costureiras deste estudo, criticava arduamente o feminismo das mulheres burguesas russas, que
lutava por direitos políticos como o voto feminino e excluía as pautas das mulheres
trabalhadoras. Kollontai afirmava que as feministas burguesas tentavam cooptar as mulheres da
classe trabalhadora para este feminismo, afastando-as dos homens da mesma classe, para
dissolver a união operária potencialmente revolucionária e manter a exploração.335
Glaucia Fraccaro critica a periodização do feminismo em ondas que colocou os
movimentos hegemônicos em primeiro plano, excluindo as lutas das mulheres de chão de
fábrica, que estavam construindo outras noções de feminismo:336 “O questionamento sobre o
uso da metáfora das ondas tem sido cada vez mais frequente por considerar que a periodização
entrincheira a percepção de um feminismo singular em que gênero é a a categoria predominante
de análise, deixando subsumidos os conflitos de raça e classe.”337
A filósofa estadunidense Angela Davis, feminista negra e marxista, resgatou a história do
feminismo nos Estados Unidos. As feministas da virada do século XIX para o XX eram
majoritariamente mulheres brancas de classe média e alta, sufragistas que se afastaram do
movimento abolicionista e apelaram para discursos supremacistas brancos, para defender o voto
feminino e seus interesses de classe em detrimento do voto dos homens negros, que estavam
sofrendo linchamentos com apoio da lei no período da pós-Abolição, no sul dos EUA.338
No caso das costureiras e as demais trabalhadoras cariocas que presenciaram e aplaudiram
a conferência de Maurício de Lacerda, a situação era semelhante. 339 Entre as costureiras e as
madames, suas patroas, a opressão de gênero as unia, porém a classe as separava. A exploração
do trabalho, por parte das mulheres burguesas, como os insultos e as violências praticadas por
elas, dentro e fora do contexto de greve, aproximava mais as costureiras de seus companheiros
homens da classe trabalhadora que também sofriam com os baixos salários, longas jornadas de
trabalho e mais abusos dos patrões, porém com diferentes intensidades.
335 SCHNEIDER, Graziela. A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética. São Paulo:
Boitempo, 2017.
336 FRACCARO, 2018.
338 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
339 Na União das Costureiras. A conferencia de hontem do dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de Janeiro,
28 jun. 1920, p. 1.
73
346 Idem.
347 Idem.
348 SANTOS, Judith Karine Cavalcanti. Participação das trabalhadoras domésticas no cenário político brasileiro.
350 Idem.
351 Idem, p. 78. Posteriormente, nos anos 1930, a FBPF se envolveu na produção de uma legislação trabalhista e
se aproximou de mulheres sindicalistas, diante das pressões das lutas de mulheres da classe trabalhadora e
comunistas.
75
Esta citação de Glaucia Fraccaro revela que mesmo que as mulheres operárias não se
identificassem com o feminismo hegemônico, o movimento de mulheres trabalhadoras se inclui
no campo do feminismo, pois reivindicava a igualdade de gênero. Neste período, algumas
mulheres libertárias rejeitavam o rótulo de “feministas”, por associarem este movimento a um
caráter elitista, liberal e burguês, porém, assim como as comunistas, elas estavam criando
noções de um feminismo popular que era profundamente ligado à condição das mulheres da
classe operária.352
Contar a história do feminismo por seus grupos hegemônicos foi uma
estratégia narrativa que escondeu os conflitos a ponto de escamotear tudo
aquilo que as trabalhadoras pensavam sobre sua condição. (...) Ao se retomar
a experiência de classe delas e observar a circularidade de ideias e
reivindicações, é possível encontrar projetos diferentes de igualdade em
disputa no campo do feminismo. 353
A luta pelo direito ao voto, reivindicado pelas mulheres da FBPF, não aparecia nos
manifestos da União das Costureiras. Com 80% da população brasileira analfabeta e excluída
do exercício do voto, estas mulheres costureiras confiavam mais na ação direta do que no
sufragismo, que envolvia a luta político-parlamentar no âmbito do Estado. Isto se dava porque
havia poucos direitos trabalhistas presentes na legislação, que eram as suas preocupações mais
imediatas, e estes não eram devidamente respeitados e fiscalizados.354
Encerrada a sessão com Maurício de Lacerda, Elvira Boni “(...) incitou as companheiras
para a solidariedade e para a união.” No fim, os operários entoaram “A Internacional”, um hino
de grande importância para a cultura operária internacional. 355 Muitos símbolos e alegorias do
movimento operário ao redor do mundo eram valorizados pelos trabalhadores brasileiros, como
estas músicas e a bandeira rubro-vermelha, que afirmavam o caráter internacional do
movimento.356 Era um costume, para os trabalhadores, cantarem a “A Internacional” no final
das reuniões e em suas festas e conferências:
“A pé! Ó vítimas da fome!
352 MENDES, Samantha Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil: (1900 -1930): entre esquecimentos e
resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII. DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil
(1918-2018). As anarquistas da Argentina combatiam este feminismo hegemônico, com publicações em seus
próprios jornais. Ver: MARTINS, Angela Roberti; SOUZA, Ingrid Ladeira. Vozes femininas do anarquismo na
Argentina dos séculos XIX e XX. LexCult, Mulher, poder e democracia, v. 2, 2018.
353 FRACCARO, 2018, p. 85.
355 Na União das Costureiras. A conferencia de hontem do dr. Maurício de Lacerda. Voz do Povo, Rio de Janeiro,
28 jun. 1920, p. 1.
356 BATALHA, 2000.
76
Elvira Boni, em sua entrevista para Angela Gomes em 1983, cantou este aclamado hino,
dentre muitas outras canções, 358 e se lamentou que naquela época todos os operários sabiam
cantar, e na segunda metade do século XX deixaram de fazê-lo nas manifestações de
trabalhadores.359 A sua neta Consuelo, na entrevista em 2020, recordou que a avó adorava
cantar “A Internacional”: ela e Zeni, filha de Elvira, também cantaram em sua memória.360
No início de julho, as costureiras organizaram uma reunião na qual Elvira, como
tesoureira, informou sobre as movimentações financeiras do sindicato desde a sua fundação,
que de acordo com o Jornal do Brasil, foi muito elogiada por sua precisão. 361
Em agosto, na Voz do Povo, o anarquista José Oiticica, próximo da família de Elvira, 362
publicou um programa de organização comunista, um projeto com pautas enumeradas. As
características deste programa tinham elementos anarquistas, socialistas e comunistas, mas o
que chama a atenção é a centralidade do sindicalismo revolucionário.363 O programa nomeado
como comunista projetava uma sociedade futura nos princípios do sindicalismo de ação direta,
em que os sindicatos, enquanto unidades produtivas autônomas, seriam o embrião e a
propriedade seria gerida coletivamente pelos próprios trabalhadores.364
Chama a atenção a seguinte resolução: “XII – Seria proveitoso confiar todo o serviço
burocratico dos sindicatos às mulheres, que, ou se filiarão a esses syndicatos ou se constituirão
em syndicato administrativo.” É interessante perceber que, apesar de ainda haver uma definição
de papéis de gênero, o programa comunista confiava à mulher trabalhadora cargos de chefia no
âmbito da administração destas células da nova sociedade. 365 Esta concepção a afasta dos papéis
relegados na sociedade capitalista da Primeira República, voltadas ao lar, como as tarefas
domésticas e a maternidade.366
E ainda: “XLII – A defesa da revolução compete a todos os trabalhadores armados de
ambos os sexos. Proceder-se-á para isso á distribuição dos armamentos disponiveis e se iniciará
a instrucção militar da massa consciente.” 367 As funções militares revolucionárias, que
tradicionalmente caberia aos homens, também seria uma tarefa das mulheres, como ocorria na
União Soviética. O papel das operárias russas neste período de Guerra Civil (1917-1921) contra
os contrarrevolucionários do Exército Branco foi imprescindível. Kollontai escreveu um texto
359 Idem.
360 Conforme depoimento gravado com Zeni e Consuelo Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
361 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 jul. 1920. O operariado, p. 10.
362 Elvira referia-se a ele como “professor Oiticica”. LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
363 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.
365 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.
367 Um programma. Da organização communista. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 19 ago. 1920, p. 2.
78
cumprir suas tarefas, e assim foram eleitas Benedicta Bueno, Thereza Indinacelli e Catharina
Dutra Abrantes. As eleições foram informadas no Jornal do Brasil, periódico da grande
imprensa que publicava semanalmente os anúncios de reuniões da União, e na Voz do Povo.372
A comissão executiva convidou a todas as costureiras para participarem de uma
assembleia no dia 10 de setembro, uma sexta-feira à noite. Elas convidaram todas as costureiras
para que comparecessem, em sua folga, para se unirem coletivamente contra a “ira patronal” e
com um discurso mais radicalizado, que delineia os princípios do seu projeto de emancipação.
Segundo elas, este grande esforço das mulheres se concretiza “(...) porque um ideal as anima
para a luta pelo futuro, que desejam de fraternidade, de justiça, sem explorados nem
exploradores, sem escravas como somos nós (...).” 373
Em outubro de 1920, foi fundada a Federação dos Trabalhadores Maritimos e Anexos,
em uma assembleia da qual participou Elvira Boni, da União das Costureiras, companheiros da
União dos Operários da Construção Civil e representantes da Voz do Povo. O evento contou
com uma apresentação musical da Orquestra Social 4 de Abril e outras canções entoadas pelos
trabalhadores, como “A Internacional”, conduzida por Elvira Boni, e “(...) outros cantos
expressivos das aspirações proletárias.” 374
No dia 12 de outubro, a secretária Amélia de B. Catão chamou todas para comparecerem
a uma assembleia no período noturno do dia seguinte, para discutir um caso que ocorreu com a
auxiliar Catharina Dutra Abrantes na casa de Samuel Reich & Irmão, na rua do Lavradio n.
202. Os patrões acusaram Catharina de roubo de peças, e Amélia convidou especialmente as
trabalhadoras desta casa, para apurarem os fatos. 375
O jornal Voz do Povo era repleto de denúncias de abusos patronais. De acordo com
Nelson Werneck Sodré, a Voz do Povo era o único jornal do Rio que lutava contra as violências
antioperárias.376 Com a manchete “O suor feminino explorado”, da edição do dia 23 de outubro,
o jornal denunciou o casal de russos Adolpho e Eliza, a pedido de costureiras que trabalhavam
372 União das Costureiras e Artes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 set. 1920. O operariado, p. 9;
União das Costureiras e Artes Annexas. Assembleia realizada. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 04 set. 1920. Vida
associativa dos trabalhadores, p. 3.
373 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 10 set. 1920, p. 2.
374 A concretização de uma idéia grandiosa. Foi definitiva e solemnente fundada a Federação dos Trabalhadores
trabalhadores, p. 3.
376 SODRÉ, 1977.
80
no estabelecimento do qual eles eram proprietários. O trabalho se estendia para além das 6 horas
da tarde, sem que as trabalhadoras recebessem pagamento pelas horas extras. 377
Assim, exploradas no salario e no horario, as pobres moças nem ao menos
podem reclamar contra o excesso de trabalho a que são obrigadas, porque a
Sra. Eliza lhes vem com quatro pedras na mão, ameaçando-lhes céus e terra.
Recorrem as operarias da casa para nós. 378
377 O suor feminino explorado. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 23 out. 1920, p. 2.
378 Ibidem.
379 SODRÉ, 1977.
380 Idem.
381 As costureiras victimas dos patrões protestam. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 out. 1920, p. 5.
382 Ibidem.
384 “Apenas para o ano de 1925, a lista de ‘indesejáveis’ contém 36 nomes, e, desses, 35 são acusados de roubo ou
alto o seu protesto, conservando na lista de infames e perversos esses individuos que
espezinham desse modos as operarias que não lhes caem no agrado.” 385
No início de novembro, as associações co-irmãs, ligadas à Federação dos Trabalhadores
do Rio de Janeiro, participaram da assembleia de posse da nova comissão executiva da União
dos Caixeiros em Casas de Pasto, Petisqueiras e Anexas, dentre elas, a União das Costureiras,
como um “voto de solidariedade”.386
Em uma reunião cotidiana da União das Costureiras, no dia 3 de novembro, foi nomeada
uma comissão para tratar sobre as atas atrasadas, junto a ex-secretária Placida Santos,
substituindo a companheira Elvira Fernandes. A reunião noturna foi presidida por Benedicta
Bueno e secretariada por Amelia Catão e Annita Villanova.387 A bibliotecária foi substituída
por Quinta Villanova – curiosamente, ela tem o mesmo sobrenome de Annita, então é possível
levantar a hipótese de que elas poderiam ser irmãs, primas ou parentes, e isto era comum nas
associações e organizações de mulheres operárias.388
Nesta mesma reunião, as costureiras convidaram Domingos Passos, da União dos
Operários da Construção Civil, para realizar uma conferência em sua sede. 389 Domingos Passos
foi um homem anarquista e negro, que ficou conhecido como “o Bakunin brasileiro”. Um dos
temas de sua palestra foi a relação do anticlericalismo com a sociedade capitalista:
(...) o camarada Passos fala sobre as vantagens da organisação da mulher para
o combate dos preconceitos nefastos creados pela sociedade burgueza e
analysa a obra nefasta do clero na humanidade (...) Mostra que apesar de o
não matarás dos mandamentos, os morcegos humanos correm presurosos a
385 As costureiras victimas dos patrões protestam. O Imparcial, Rio de Janeiro, 24 out. 1920, p. 5.
386 União dos Caixeiros em Casas de Pasto, Petisqueiras e Annexos. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 03 nov. 1920.
Ultima hora: Vida associativa dos trabalhadores, p. 2.
387 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Ultima hora: Vida
Paulo, América Montorso e Ersília Montorso, como Cornelia Bagnini e Olga Bagnini, e Ida Kenik e Helena Kenik,
que foram operárias consideradas “indesejáveis” pelo patronato e que organizaram greves, revelam um padrão de
sociabilidade feminina que envolvia a família e a vizinhança, e esta escolha “(...) promovia o conforto e alguma
segurança para aquelas que tinham a sua honra questionada todo o tempo (...)”. As irmãs Ida e Helena, organizaram
uma greve na fábrica Fiação e Tecelagem Santo Elias em 1935, que mobilizou 300 pessoas. Suas companheiras
grevistas tiveram os seus nomes convertidos para o masculino, no relatório do Deops, de Francisca Alegretti para
Francisco, e Benta Alves, para Bento. FRACCARO, 2018, p. 54-56.
389 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Ultima hora: Vida
benzer as armas com que a humanidade se trucida e se destroe, desde que isto
satisfaça aos detentores do poder. 390
Domingos Passos continuou sua conferência dizendo que as mulheres devem ter cuidado
ao frequentar as festas burguesas, e dar prioridade para as festas, festivais e bailes proletários,
“(...) pois em sua maioria os frequentadores destas festas são individuos degenerados e indignos
de se hombrear com as nossas companheiras.” Em relação ao carnaval, Passos alertou às
costureiras do perigo da prostituição que ocorria neste contexto. Apesar de parecer uma atitude
paternalista de um operário do sexo masculino, já alertada por Margareth Rago, as anarquistas
viam a prostituição como uma forma de exploração, semelhante à exploração sofrida pela
operária, e não como uma vocação biológica, que era respaldada pelo discurso dominante
produzido pelos médicos, sanitaritas e higienistas.391
Um certo “moralismo” de alguns anarquistas a formas de lazer promovidas pela classe
dominante, como o uso de álcool, pode ser explicado pela tentativa de escape da penalidade do
Estado. A imagem do movimento operário confundia-se com a criminalidade e a
marginalidade.392
Sua última pauta foi o perigo da educação patriótica – como antimilitarista, Passos
afirmava que a guerra armava os trabalhadores para lutarem uns com os outros, e não contra o
seu inimigo comum, que eram os burgueses. No final, ele concita às companheiras a
encorajarem os companheiros homens na luta em prol da humanidade, e segundo o jornal, a
palestra foi bastante aplaudida. 393
A costureira Elvira Fernandes escreveu novamente à Voz do Povo no dia 5 de novembro.
Desta vez, ela protestou contra as violências e a repressão contra o movimento operário em
Pernambuco, se referindo a estes eventos como “terrorismo policial”. Elvira falou em nome de
um grupo de mulheres anarquistas. 394
Poucos dias depois, ocorreu o festival da Federação Operária do Estado do Rio. No
programa, haveria a participação de Maurício de Lacerda, que por motivos pessoais não
390 Ibidem.
391 “São também numerosos os estudos que pretendem provar através da antropologia criminal que as prostitutas,
assim como os criminosos e anarquistas, possuem uma configuração do cérebro diferente e alguns sinais o rgânicos
que as distinguem da maioria das pessoas normais.” RAGO, 1985, p. 90.
392 Idem.
393 União das Costureiras e Classes Annexas. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Ultima hora: Vida
compareceu. A abertura da festa foi feita pela Orquestra Social 4 de Abril, que tocou a
“Marselhesa de Fogo”. Falou no auditório o sr. Ruy Gonçalves contra a censura dos jornais e
revistas operárias, por se posicionarem contra o capitalismo e o clericalismo. Ele se referiu à
Voz do Povo como o jornal que defende as classes trabalhadoras e para que continuem
realizando festas em benefício destes periódicos, valorizando-os. “É necessário, diz ainda, que
os operarios se organisem e se instruam para fazer ruir por terra a burguezia que espol ia os que
produzem;”.395
Um outro camarada concitou a todos os operários presentes para que continuassem
realizando suas tarefas de propaganda, para que um dia todos os trabalhadores se organizem.
Todos cantaram a Internacional dos Trabalhadores, e depois a palavra foi passada para Carlos
Vilanova, da Federação dos Marítimos. Carlos se desculpou por não ter a instrução oratória dos
“filhos de burgueses”, porém falou o que sentia: se lamentava pela necessidade da Voz do Povo
de realizar festivais para arrecadar dinheiro e da sua pior situação frente aos jornais
burgueses.396
O governo, diz ainda aquelle camarada, vendo que a <Voz do Povo> é o
verdadeiro órgão dos trabalhadores, não perde occasião de tentar callar o
nosso jornal; assim é que encarregou certo funccionario da Prefeitura a
publicar um jornaleco a que deu o nome de <Proletario>, cujo fim era,
desvirtuando o caminho que os trabalhadores teem de trilhar, conseguir fazer
desapparecer o sustentaculo e o porta-voz dos espoliados. 397
O jornal Proletário, citado por Carlos Vilanova como uma farsa, era impresso no mesmo
local do Jornal do Commercio e o seu conteúdo era revisado pelo 3º delegado auxiliar. Carlos
chamou a atenção para os trabalhadores darem os braços para as mulheres operárias, “suas
filhas, esposas, mães e irmãs”, para que se organizem, pois “(...) a mulher não se destina
unicamente a lavar pratos e que como tal deve interessar-se por sua emancipação sem a qual
não conseguirá a dos trabalhadores.” 398 É provável, que pelo sobrenome e pelas suas ideias,
Carlos tenha sido da família das costureiras Annita e Quinta Villanova, que faziam part e da
comissão executiva da União.
É interessante como a História Oral pode trazer mais indícios. Elvira Boni se lembra de
uma greve dos marinheiros e remadores, que trabalhavam nos navios: “Muitos deles foram
395 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12
nov. 1920, p. 2.
396 Ibidem.
397 Ibidem.
398 Ibidem.
84
presos. Lembro até que fui visitar um rapaz na cadeia, com as irmãs dele.” 399 É possível levantar
a hipótese que o marítimo Carlos Vilanova era este rapaz, e as irmãs dele eram Annita e Quinta,
da União das Costureiras, companheiras próximas de Elvira.
Um camarada representante da Voz do Povo falou em seguida, e caracterizou o jornal
como principal veículo dos trabalhadores e das ideias do sindicalismo revolucionário. Para ele,
a vida do jornal era a vida das organizações, que um dependia do outro, pois através dele elas
poderiam publicar as suas reuniões, ideias, manifestos e denúncias. Ele se lembrou dos
companheiros que foram deportados para Espanha, como José Romero e Fernandes Madeira,
presos pelo “crime de querer um futuro melhor para os trabalhadores”. No entanto, todos os
outros trabalhadores estavam livres para concretizar os seus sonhos de liberdade – e este
camarada anônimo frisou que, não apenas os homens, mas também as mulheres. O seu discurso
foi marcado pelo anticapitalismo, antimilitarismo e anticlericalismo. 400
Depois dele, discursou Elvira Boni. Elvira se dirigiu às companheiras de Niterói, para se
organizarem seus sindicatos e contarem a ajuda de seus companheiros, para que se defendam
das espoliações sofridas no trabalho. Segundo ela, “(...) às vezes eu ia a Niterói. Me juntava
com as outras que faziam parte do sindicato em Niterói e ia pra lá.” 401
Elvira terminou a sessão recitando “(...) uma poesia libertaria dedicada à mulher
proletaria.”402 Desde os seus 12 anos, Elvira recitava poemas na Liga Anticlerical,403 como se
verifica no jornal anarquista de São Paulo A Lanterna,404 em que Elvira recitava a poesia “O
Padre”,405 e sua irmã Carolina recitou “Ave Humanitás”, em ocasião de um evento pró-
Francisco Ferrer.406
O irmão de Elvira, Amílcar Boni, organizou um leilão de prendas no festival, no qual um
dos prêmios era uma edição do jornal paulista A Plebe, organizado por Edgar Leuenroth.
402 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12
nov. 1920, p. 2.
403 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 50.
404 Fundado em 1901, por Benjamin Mota, anticlerical e maçom. Lima Barreto foi colaborador sob o pseudônimo
de “Dr. Bogoloff”. SODRÉ, 1977. Angelo Boni, pai de Elvira, assinava este jornal. LACERDA, 1983. Apud:
GOMES, 1988.
405 Liga Anticlerical do Rio de Janeiro. A Lanterna, São Paulo, 10 fev. 1912, p. 3.
406 O 13 de outubro no Rio. A reunião da Liga Anticlerical. Pro Ferrer. A Lanterna, São Paulo, 18 out. 1913, p.
2.
85
Amílcar chamou a atenção de que o periódico sofria muitas perseguições pela polícia em São
Paulo. O leilão foi bem-sucedido e a A Plebe foi valorizada, vendida por 10$000. Ao final, os
trabalhadores cantaram “A Internacional” e outros “cânticos rebeldes”. 407
Elvira se recorda de uma festa em benefício da Voz do Povo, que ocorreu na Quinta da
Boa Vista, que confirma a grande adesão dos operários cariocas:
Essa festa paralisou a cidade inteira. Não havia um café, um botequim onde
se pusesse tomar um copo d’água. Foi todo mundo para a Quinta da Boa Vista.
Eu também fui, é claro. Foi uma festa com barraquinhas, coisas para comer,
livros para vender. (...) foi impressionante. Não me lembro de ter havido outro
caso nessas condições: paralisar uma cidade inteira! 408
407 Festival realisado domingo ultimo na Federação Operaria do Estado do Rio. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 12
nov. 1920, p. 2.
408 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 36.
409 Associação dos Maieiros, Caixoteiros, Corrieiros, Selleiros e Artes Correlativas. Voz do Povo, Rio de Janeiro,
411 A sessão inaugural do Syndicato dos Taifeiros, Culinarios e Panificadores Maritimos. Voz do Povo, Rio de
bôa hora se uniram, estendendo-se sobre a acção que desenvolverá o Syndicato para o
engrandecimento da classe (...)”. A redação concluiu dessa maneira: “Oxalá que todos os
camaradas maritimos saibam seguir o mesmo caminho, dando um golpe de morte no
presidencialismo e syndicalisando as suas bases.”412
Em um sábado do mês de dezembro, dia 4, a União das Costureiras organizou um
festival de propaganda em benefício de seus cofres sociais. Foram organizados um programa e
um baile familiar, que contou com a presença dos músicos da Orquestra Social 4 de Abril. A
Voz do Povo divulgou o festival, e a venda dos ingressos foi realizada em sua redação, pelo
companheiro Cancio de Souza.413
Pouco tempo depois, no dia 11 de dezembro, ocorreu na União dos Chapeleiros do Rio
de Janeiro um outro festival, no teatro do Centro Galego. O ingresso foi vendido a 1$000 réis,
e novamente Elvira Boni realizou uma palestra em nome da União das Costureiras. Houve três
apresentações teatrais feitas pelo Grupo Germinal: “Plebeus” de Santos Barbosa, “Os doidos
com juízo” de Romualdo Figueiredo, e “Amores em Christo” de Lenon d’Almeida. A festa foi
divulgada pelo periódico A Razão e pelo Jornal do Brasil.414
Os chapeleiros organizavam-se na Federação Sul-Americana dos Operários Chapeleiros,
e o evento contou com a presença de companheiros de Montevidéu, Uruguai. 415 Este fato é
importante para pensar as relações transnacionais do movimento operário na América Latina.
Inclusive, há fontes que indicam o encontro entre as operárias da União das Costureiras, antes
de sua fundação, com mulheres libertárias argentinas, como Juana Rocco Buela, que foram para
o Rio de Janeiro em 1919.416
No fim de 1920, a Voz do Povo já se encontrava quase sem fôlego, com poucos recursos
para sobreviver, de acordo com suas páginas. 417 No entanto, segundo Nelson Werneck Sodré,
o jornal foi mais do que empastelado, mas “estrangulado”: a polícia invadiu a redação e prendeu
os redatores, militantes operários. 418 O episódio reforça a intensa repressão pela qual o
412 Ibidem.
413 União das Costureiras e Classes Annexas. Grandioso festival de propaganda. Orchestra Social 4 de abril. Voz
do Povo, Rio de Janeiro, 04 nov. 1920. Ultima hora: Vida associativa dos trabalhadores, p. 1 -2.
414 União dos Chapeleiros do Rio de Janeiro. A Razão, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Pelo mundo operario, p. 6;
União dos Chapeleiros do Rio de Janeiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 nov. 1920. O operariado, p. 8.
415 União dos Chapeleiros do Rio de Janeiro. A Razão, Rio de Janeiro, 06 nov. 1920. Pelo mundo operario, p. 6.
416 GRIGOLIN, Fernanda. Abrindo sulcos e traçados: o borda da encruzilhada. s.d. Disponível em:
http://tendadelivros.org/jornaldeborda/wp-content/uploads/2019/06/borda-6-baixa-simples.pdf
417 Federação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro. Voz do Povo, Rio de Janeiro, 04 nov. 1920, p. 2.
movimento operário estava passando neste período após as agitações e greves entre 1917 e
1919, e como o jornal e a organização dos trabalhadores em torno do sindicalismo
revolucionário representavam uma ameaça à ordem social vigente. Morria, naquele moment o,
um importante jornal que sustentava e divulgava as associações de resistência operárias do Rio
Janeiro.
88
Logo no início do ano de 1921, a União das Costureiras organizou uma reunião na sede
da União dos Operários em Fábricas de Tecidos. Havia uma forte presença feminina na
categoria de tecelões. Foi convidado, para o dia 9 de janeiro, um propagandista proletário para
falar sobre a emancipação operária feminina, antes da sessão ser aberta – as mulheres operárias
de todas as categorias foram chamadas para tomar parte da reunião. 419
No dia 29 de janeiro, O Paiz noticiou sobre a greve do Lloyd brasileiro, uma companhia
de navegação. Elvira Boni, Amelia Catão e Annita Pereira, da União das Costureiras, estiveram
na sede da Associação dos Marinheiros e Remadores. De acordo com o jornal, Amelia expôs
os motivos da presença da comissão, no entanto, O Paiz não os revelou. Devido à aliança de
solidariedade entre as costureiras e os trabalhadores marítimos, construída em 1920, elas
estavam, provavelmente, dando apoio às causas da greve. 420
A União das Costureiras, no dia 8 de março, anunciaram uma reunião cotidiana e noturna
para o dia seguinte, para discutir as suas pautas mais imediatas, que foram publicadas no jornal
O Imparcial:
1º - Obter aumento progressivo dos ordenados.
2º - Reduzir o dia de trabalho à 8 horas.
3º - Reclamar o melhoramento das condições hygienicas das officinas.
4º - Abrir aulas nocturnas, de ensino primario, e aulas de córte para instrucção
de suas associadas. 421
419 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, 08 jan. 1921, Rio de Janeiro. O operariado, p. 10.
420 A greve dos maritimos. O Paiz, Rio de Janeiro, 29 jan. 1921, p. 4.
421 União das Costureiras e Classes Annexas. O Imparcial, Rio de Janeiro, 08 mar. 1921, p. 9.
422 LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES, Angela de Castro
424 União das Costureiras e Classes Annexas. A grande assembléa de hontem. A Razão, Rio de Janeiro, 10 mar.
1921. Pelo mundo operario: No Rio – Movimento á noite, p. 8.
425 Tornou-se uma referência na modernização da empresa jornalística do Rio de Janeiro, exemplo da grande
imprensa neste período, com 62 mil exemplares diários, e modernização das máquinas de impressão em cores. O
jornal era composto por mais de 85% de pequenos anúncios. SODRÉ, 1977.
426 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988, p. 36.
428 União das Costureiras – A classe se reorganiza. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 mar. 1921. O operariado,
p. 8.
90
Costureiras e com o seu reerguimento. 429 De acordo com o Jornal do Brasil, ficou decidida a
realização de uma assembleia de propaganda associativa. 430
A sessão ocorreu no dia 16 de março, na sede social localizada na rua Senhor dos Passos,
8-A. A assembleia começou às oito horas da noite, e de acordo com O Jornal, compareceram
muitas operárias. A secretária, provavelmente Elvira Boni, discursou sobre a importância de
todas a se associarem na União e se conectarem com toda a congregação operária. 431 Várias
oradoras falaram, e uma delas “(...) pediu à mesa que não prolongasse tanto aquela reunião,
pois muitas associadas moravam nos suburbios e não podiam permanecer até tarde fóra de suas
residencias”432, e “(...) alem de tudo sem jantar” 433. A comissão da União concordou e marcou
a próxima reunião para quarta-feira.434435
O Jornal do Brasil publicou mais detalhes sobre esta reunião. Segundo este periódico, a
sessão foi aberta por uma associada, que falou sobre a União das Costureiras ser o “único meio
de defesa da exploração dos seus patrões” e clamou para que todas ajudassem na construção do
sindicato ao lado da comissão executiva. Elas também falaram sobre a falta de conforto e
higiene na maioria das oficinas, citando algumas casas. 436 A defesa do sindicato como o único
órgão capaz de garantir melhorias das condições de vida dos trabalhadores a curto e longo prazo
é uma forte característica do sindicalismo revolucionário. 437 Elvira Boni fez uma palestra sobre
“o valor da mulher mãe, esposa e operária”, depois de falas de diversas costureiras.438
No dia 26 de março, um homem chamado Octavio Lucena, provavelmente militante do
movimento operário, publicou n’A Razão um texto intitulado “Pela organisação das mulheres
proletarias”. Nele, Lucena comemora com satisfação a última assembleia realizada pela União
das Costureiras e Classes Anexas, a qual assistiu. Porém, ele se lamenta de ter se iludido, pois
429 A reunião de hontem na União das Costureiras. O Jornal, Rio de Janeiro, 10 mar. 1921. Ultimas noiticas, p.
12.
430 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 mar. 1921. O operariado, p. 8.
431 A congregação de costureiras e chapeleiras. Sessões de propaganda associativa. O Jornal, Rio de Janeiro, 17
433 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 mar. 1921. O operariado, p. 8.
434 Ibidem.
435 A congregação de costureiras e chapeleiras. Sessões de propaganda associativa. O Jornal, Rio de Janeiro, 17
supostamente a mulher trabalhadora carioca não tinha muitas simpatias com as organizações
operárias. Octavio reconhece que o capitalismo e o patronato, com o “seu manto de opressão”,
fazem as operárias trabalharem dia e noite. No texto, ele saudou personalidades como Samuel
Smile e Guerra Junqueiro.439 Dirigindo-se às mulheres trabalhadoras:
Não vos illudis com os detentores do ouro, os quaes, afim de collocar-vos
numa situação deprimente, procuram isolar-vos do compromisso associativo,
apregoando cynicamente que as associações são verdadeiras fontes de
anarchismo. E a falta de compreensão sobre a palavra citada, fez com que
muitas companheiras se afastassem do nosso convívio. 440
439 LUCENA, Octavio de Oliveira. Pela organisação das mulheres proletarias. A Razão, Rio de Janeiro, 26 mar.
1921. Pelo mundo operario, p. 6.
440 Ibidem.
442 FRACCARO, Glaucia. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917 -1937). Rio de Janeiro:
contra a religião, dizia que não acreditava em Deus, que não acreditava nos
santos, mas não espantava ninguém devido ao meu procedimento, porque
sempre procurei ser uma boa filha, uma boa companheira e uma boa amiga.
443
Ela se recorda que tentava conversar com as costureiras no ambiente de trabalho sobre as
questões do anarquismo e do anticlericalismo, mas geralmente não era muito ouvida. Elvira se
lembra de uma companheira de trabalho negra, chamada Fausta, que acreditava na boa vontade
de suas ideias.444
Através do jornal A Razão, Octavio Lucena convidava as mulheres para participarem dos
festivais e reuniões da União das Costureiras, como uma forma de propaganda para que as
mulheres se associassem.445 Porém, apenas a propaganda não convencia a adesão: muitas das
mulheres trabalhadoras, principalmente as que eram mães e donas de casa, com duplas ou triplas
jornadas de trabalho, não tinham tempo para participar de assembleias noturnas, sendo a falta
de disponibilidade um fator.446 As mulheres da União, em geral, eram jovens, não eram casadas
e nem tinham filhos. As mães costureiras normalmente trabalhavam em casa, como Elvira fez
após o nascimento das filhas Vanda e Zeni Lacerda.447
Como exemplo, na época, Elvira Boni vivia com com uma família de nove pessoas, com
a renda do pai metalúrgico, dos dois irmãos que trabalhavam como ferreiros e dela e das quatro
irmãs, costureiras e bordadeiras. Para ela, era possível participar ativamente das reuniões e
organizar os festivais. Os pais normalmente proibiam, enquanto o pai e os irmãos de Elvira
sempre a ajudaram e incentivaram a se envolver no meio sindical.448 Há de se considerar que
havia, por vezes, o impedimento dos maridos para as mulheres participarem das atividades
associativas.449
A partir do final de ano de 1922, com a União já dissolvida, depois que se casou com
Olgier Lacerda e teve as duas filhas, passou a trabalhar em casa e participou cada vez menos
do Grupo Dramático 1º de Maio e comparecia apenas a algumas reuniões do PCB.450 Olgier
448 Idem.
Lacerda foi um dos integrantes do Grupo dos 12, os fundadores do PCB em 1922, e eles se
conheceram neste grupo de teatro da Liga Anticlerical. 451
Apesar de todas as dificuldades, as costureiras se organizavam e tentavam se unir em
torno deste sindicato feminino, construído e sustentado por mulheres, que era a União das
Costureiras. No dia 1º de abril, elas publicaram no jornal A Razão um chamado “Pela
organisação operária feminina”, apresentando o seu programa, e convidando a todas as
trabalhadoras da categoria para se associarem.452
O programa contava com o aumento de salários, a jornada de oito horas, a melhora das
condições higiênicas das oficinas e a abertura das aulas de ensino primário e de corte, no período
noturno. “Vêde bem, trabalhadoras, se não conseguirmos as vantagens expostas, o que
apresentamos diante do patronato que tão vilmente nos explora? (...) Afastae, portanto, o
desprezo que muitas de vós tendes pelas associações e vinde à União das Costureiras e Classes
Annexas (...)”.453
No dia 6 de abril, ocorreu uma reunião, em que as costureiras discutiram os pormenores
das questões sobre a reorganização da classe e de sua coletividade, assim como a propaganda.
A elaboração de um memorial que reunia as principais reivindicações da classe ficou como
tarefa para a próxima reunião. 454
A União das Costureiras se reuniu novamente no dia 21 de abril. A secretária falou sobre
a importância da união das costureiras e chapeleiras do Rio de Janeiro para que a conquista de
maiores salários e a regulamentação das oito horas de trabalho. Os ordenados eram muito
irrisórios, porém, de acordo com elas, a falta de coesão da classe tornava impossível para que
conquistassem o aumento. Algumas das operárias presentes reclamaram sobre sua falta de
direitos e outras compareceram em busca de emprego. 455
A comissão executiva da União das Costureiras enviou o seguinte manifesto para ser
publicado no Jornal do Brasil:
“É tempo de nossas companheiras reflectirem melhor sobre o seu modo de
encarar a situação difficil em que se debatem.
Nada de esmorecimento.
Ponhamos de parte os preconceitos que tolhem as nossas iniciativas.
451 Idem. Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
452 Pela organisação operaria feminina: União das Costureiras e Classes Annexas. Ao publico e á classe em geral.
A Razão, Rio de Janeiro, 01 abr. 1921. Pelo mundo operario, p. 6.
453 Ibidem.
454 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 abr. 1921. O operariado, p. 9.
455 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 abr. 1921. O operariado, p. 8.
94
456 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 abr. 1921. O operariado, p. 8.
457 Grêmio Artístico Renovação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 1921. O operariado, p. 9.
458 Ibidem.
460 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 1921. O operariado, p. 9.
462 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 1921. O operariado, p. 9.
95
463 União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mai. 1921. O operariado, p. 8.
464 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 jun. 1921, p. 8.
465 A União das Costureiras a educação da classe operaria feminina. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 jul. 1921.
Pela instrucção, p. 9; Pela instrucção da classe operaria feminina. Ao publico em geral. A Razão, Rio de Janeiro,
21 jul. 1921. Pelo mundo operario, p. 6.
466 Idem.
467 SANTOS, Jucimar Cerqueira dos. SANTOS, Mayara Priscilla de Jesus dos. Da educação primária ao ensino
superior: o desafio das mulheres de cor e trabalhadoras para alcançar a educação escolar no Brasil entre o final do
século XIX e o início do século XX.
468 MENDES, Samanta Colhado. As mulheres anarquistas no Brasil: (1900-1930): entre esquecimentos e
resistências. Revista Espaço Acadêmio n. 210, nov. 2018. Ano XVIII. DOSSIÊ: Experiências anarquistas no Brasil
(1918-2018). RAGO, 1985.
469 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
470 Conforme depoimento gravado com Zeni Lacerda Pamplona, em 12 de novembro de 2020.
96
“Lembro que quando minha irmãzinha começou a escola – ela é mais moça que eu cinco anos
– eu ficava chorando atrás da porta com o menininho no colo. As meninas passavam e
chamavam na rua: ‘Vamos embora! Tá na hora, tá na hora!’ E eu não podia ir. O meu desejo
era ser professora. Quer dizer, bobagem de criança...”. 471 A educação das mulheres, segundo
Margareth Rago, era voltada para o trabalho doméstico e de cuidados, e não para uma vida
profissional.472
No mesmo chamado para as aulas, as costureiras chamavam as associadas que deixaram
de participar das reuniões para que voltassem, mesmo com o pagamento atrasado, que não seria
cobrado.473 As dificuldades da vida, como a falta de dinheiro, 474 poderiam tê-las afastado do
sindicato, e a falta de companheiras nas assembleias e reuniões trazia a necessidade do seu
retorno.
Em setembro, Elvira Boni fez parte do Comitê de Socorros aos Flagelados Russos, devido
à crise e à fome na União Soviética pós-guerra civil. Ela contou na entrevista que José Oiticica
colocou o seu nome na lista do comitê sem questioná-la, pois ele acreditava que ela gostaria de
participar e ajudar.475 O Jornal do Brasil divulgou esta organização:
Em grande reunião de elementos proletarios e libertarios, (...) tomaram os
presentes o conhecimento de um appello feito pelos trabalhadores russos aos
trabalhadores do mundo inteiro, no sentido de um soccorro imediato às
populações attingidas pela grande secca de desastrosas consequencias, havida
em vasta região do sul da Russia. 476
O comitê de socorros do Rio de Janeiro contou com a participação, além de Elvira Boni
e José Oiticica, de Domingos Passos, Laura Brandão, Octávio Brandão, Astrojildo Pereira, Cruz
Júnior, Marques da Costa, Cezar Leitão, Antonio Carvalho, Teophilo Ferreira, Pedro Bastos,
Miguel Capelouch, Aurelio do Nascimento e Fabio Luz.477 Em um domingo, 11 de setembro,
os operários anarquistas e comunistas se reuniram para discutir a promoção de formar comitês
por todo o Brasil, organizar um festival e um “pic-nic” operário, e publicar uma folha única de
Pela instrucção, p. 9; Pela instrucção da classe operaria feminina. Ao publico em geral. A Razão, Rio de Janeiro,21
jul. 1921. Pelo mundo operario, p. 6.
474 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
475 Idem.
476 A grande secca na Russia. Um comité de soccorros no Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1921,
p. 6.
477 Idem. A Grande Secca na Russia. O Jornal, Rio de Janeiro, 14 set. 1921, p. 4. A fome na Russia. Movimento
internacional do proletariado em favor dos famintos. O Combate, São Paulo, 17 set. 1921, p. 1.
97
propaganda com numerosa tiragem. De acordo com o Jornal do Brasil, no fim da reunião eles
conseguiram arrecadar a grande quantia de 62$100. 478
O jornal paulista O Combate,479 deu mais detalhes sobre a questão da fome na Rússia e
sobre o Comitê. Tratava-se de um movimento internacional do proletariado, respondendo ao
apelo da República dos Sovietes. Astrojildo Pereira, que se tornaria uma figura importante na
fundação e nos primeiros anos do PCB, foi nomeado como secretário-geral. Os participantes
vendiam os folhetos de propaganda por 500 réis, “(...) arrecadando, desse modo, os primeiros
recursos a serem enviados para a Europa.” Segundo O Combate, os operários de São Paulo, no
dia 17 de setembro, estavam também promovendo uma reunião. 480
Elvira Boni entrou de cabeça na organização das festas e atos do Comitê, que ocorreram
no Centro Cosmopolita, na sede da Federação Operária, no Centro Galego e no Teatro Lírico.
Na última festa realizada em benefício dos flagelados russos contou com a apresentação da peça
“Dar cordas para se enforcar”, representada pelo Grupo Dramático 1º de Maio. 481 Elvira disse
que desta vez não atuou como atriz, porque estava organizando tudo: “Iam trabalhadores e
outras pessoas também. Fazíamos o convite pelos jornais, fazíamos volantes anunciando que ia
haver um ato público em tal lugar, e distribuíamos pelas ruas.” 482
Depois da festa no Teatro Lírico, Elvira compareceu ao Comitê para prestar contas, e
contou que neste dia tomou conhecimento dos conflitos entre anarquistas e comunistas. Em
uma discussão entre Fábio Luz, José Oiticica, Astrojildo Pereira e outros operários, ouviu eles
dizendo que na União Soviética alguns anarquistas foram presos e fuzilados, 483 e segundo
informações do Partido Comunista Francês, os anarquistas estavam contra a Revolução
Russa.484 Para Elvira:
Até essa ocasião, eram todos anarquistas. Mas aí se separaram, começaram a
ficar os anarquistas e comunistas. (...) Aí, volta e meia saíam discussões entre
478 A grande secca na Russia. Um comité de soccorros no Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1921,
p. 6.
479 Fundado em 1891, por Pardal Mallet, fez parte da Aliança Liberal, em apoio a Getúlio Vargas. Muitas vezes os
17 set. 1921, p. 1.
481 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
483 Dentre as mulheres anarquistas, Emma Goldman foi uma grande crítica da União Soviética. LOBO, Elizabeth
Souza. Emma Goldman: a vida como revolução. São Paulo: Brasiliense, 1983. Elvira Boni, por sua vez, apesar de
condenar as práticas repressivas do Estado soviético, apoiou o movimento revolucionário dos trabalhadores russos.
LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
484 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
98
os anarquistas e comunistas nos sindicatos. (...) A gente fica triste com essas
coisas. Uma vez assisti a um debate entre José Oiticica e José Elias da Silva,
na sede dos tecelões, na rua do Acre 19. Houve uma grande discussão entre
eles, com muita gente presente. Mas eu tinha um sentimento muito grande,
porque achava que todos estavam errados. Deviam fazer uma comunhão mais
íntima, conversa, e não discussão, como acontecia. Quando não há razão,
quem grita mais é que tem razão. Ficaram gritando, e a razão... Minha mãe
tinha um diatado que dizia: “A razão se dá aos loucos.” 485
Da metade do ano de 1921 para frente, as fontes de imprensa sobre a União das
Costureiras foram escassas. Sabe-se que as reuniões continuaram acontecendo, e em novembro
elas realizaram uma assembleia, com todo o esforço para a reorganização da classe. As aulas
de português e aritmética já estavam em realização, de forma regular, no período noturno das
quartas e sextas. Elas continuavam clamando pela presença das costureiras, associadas ou não,
em suas reuniões e assembleias, pela emancipação feminina. 486 Foi no mês de novembro que,
também, foram iniciadas as aulas de geometria e corte. 487
No dia 24 de dezembro, de acordo com o Jornal do Brasil, a administração da União foi
renovada. “As novas administradoras da União estão empenhadas em levarem a cabo a tarefa
que tomaram de reerguer a sua classe, collocando-a ao nivel das associações congeneres de
organização modelar.”. As novas companheiras da comissão executiva saudaram as conquistas
das costureiras anteriores, como as aulas gratuitas e o curso de corte, como a disponibilidade
do cirurgião-dentista Custodio Gomes para as associadas. 488
A União das Costureiras promoveu uma conferência, em janeiro de 1922, feita pelo
camarada Carlos Dias, na sede da União dos Operários em Fábricas de Tecidos. É bem possível
que elas buscassem uma aliança com as mulheres tecelãs, visto que convidaram todos os
trabalhadores, mas especialmente as operárias. O Jornal do Brasil publicou o chamado e o
acontecimento, como sempre na seção O Operariado.489
No dia 31 de janeiro, as costureiras associadas percorreram as oficinas e ateliês de costura,
distribuindo um manifesto, que foi publicado pelo Jornal do Brasil no dia seguinte. Neste
manifesto, elas apelaram para o convencimento das trabalhadoras se organizarem na União,
falando sobre as arrogâncias por parte dos patrões e dos contramestres, da tristeza causada pelos
488 União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 dez. 1921. O operariado, p. 17.
489 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jan. 1922. O operariado, p. 14;
União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, 31 jan. 1922. O operariado, p. 11.
99
baixos salários, das condições anti-higiênicas das oficinas e a exposição a doenças, como a
tuberculose, e comparando a situação da classe com um regime de escravidão. 490
As costureiras lamentaram no manifesto a falta de interesse de suas companheiras pelo
sindicato e pelas aulas que ofereciam, e as convidaram para uma reunião no dia 1º de fevereiro.
Segundo elas, não era possível conquistar a felicidade esperando a bondade dos patrões: “(...)
nunca a alcançareis, porque a sua exploração não cessará, emquanto o germen da revolta não
vos dominar. Aqui vos esperamos. Não sejaes indifferentes às nossas palavras. Queremos mais
pão, mais luz, mais saber, com menos sacrifício.” 491
A propaganda teve êxito, visto que esta assembleia ocorreu “com bastante
concorrencia”. As operárias Luiza de Castro e Catharina Dutra Abrantes discursaram sobre a
importância da reorganização da classe e sobre as suas necessidades coletivas enquanto
trabalhadoras costureiras. Elas falaram sobre a “reabertura” das aulas de português e aritmética,
o que nos traz a informação de que foram temporariamente suspensas. Por fim, convidaram a
todas para a palestra com Ruy Gonçalves no dia 11 de fevereiro sobre estudos sociais, e para a
assembleia geral na interessante data do 8 de Março, o Dia da Mulher Trabalhadora, quando
elas lançariam o próximo manifesto, que infelizmente não tivemos acesso. 492
No dia 5 de fevereiro, tendo como intermediário o Jornal do Brasil, a União das
Costureiras publicou uma reflexão sobre as horas de trabalho e os baixos salários impostos
pelos patrões, que se aproveitavam da falta de organização das costureiras para explorá-las
ainda mais. Assim, elas convidaram a todas para que se associassem, para poder garantir e
exigir dos patrões suas reivindicações e melhorias. 493
As costureiras da União, no dia 10 de fevereiro, anunciaram além da palestra com Ruy
Gonçalves que ocorreu no dia seguinte, o retorno definitivo das aulas noturnas. “Está ainda
aberta a matricula para o curso nocturno mantido pela União das Costureiras e Classes Annexas.
As associadas que desejarem frequentar as aulas, deverão se dirigir à secretaria, afim de serem
matriculadas.”494
490 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 fev. 1922. O operariado, p. 12.
491 Ibidem.
492 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 fev. 1922, O operariado, p. 11.
493 União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 05 fev. 1922. O operariado, p. 9.
494 União das Costureiras e C. Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 fev. 1922. O operariado, p. 14.
100
No entanto, apesar de aparentemente tudo estar caminhando bem, no dia 18 de abril, dois
meses depois, o jornal O Brasil 495 anunciou um fim para a União das Costureiras. A comissão
executiva convocou uma assembleia para decidir os rumos e os destinos da organização, que
segundo O Brasil, “(...) equivale a uma declaração da impossibilidade de se manter a
mesma.”496 As palavras deste periódico defenderam o direito delas de se associarem, sobretudo
porque eram muito exploradas, mas com um porém:
Essa associação, porém, devia ser fundada em moldes menos revolucionarios,
mais moderados e compativeis com a timidez das mocinhas que devem ser
associadas.
A “União” deve desapparecer, para que se cuide da creação de outra
associação, que não tenha a pécha de revolucionaria e que não se entregue a
mentores barbados e exaltados. 497
Mais uma vez, O Brasil, como O Paiz, atribuiu o caráter revolucionário de um sindicato
feminino à influência masculina. E a “timidez das mocinhas” é colocada como um fato
biológico, e como todas as mulheres fossem tímidas, sendo que, na verdade, era um padrão de
comportamento imposto pelo sexismo.498
A opção pelo sindicalismo revolucionário foi uma escolha delas próprias – a União e
sua comissão eram compostas apenas por mulheres. Assim como a escolha de convidar alguns
homens do movimento libertário para palestras e estabelecer alianças de solidariedade com
sindicatos masculinos e mistos. E o próprio sindicalismo revolucionário cumpria o papel de
unir a classe operária em torno de objetivos comuns, para melhorias de condições de trabalho,
que não englobava apenas “revolucionários”, mas também outras correntes políticas mais
reformistas.499
No mesmo dia, o Jornal do Brasil informou que a União das Costureiras continuava se
esforçando para a reorganização. Elas realizaram a distribuição de um manifesto no dia
anterior.500 As reuniões e os convites continuaram ocorrendo durante estes dois meses501,
porém o Jornal do Brasil divulgou que a União se dissolveu no dia 19 de abril.502
495 Jornal monarquista, fundado em 1891. Sua permanência na Primeira República demonstra a variedade política
dos jornais do Rio de Janeiro. SODRÉ, 1977.
496 Écos operarios. O Brasil, 18 abr. 1922, Rio de Janeiro. Vida proletária, p. 5.
497 Ibidem.
500 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 abr. 1922. O operariado, p. 6.
501 União das Costureiras e Classes Annexas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mai. 1922. O operariado, p. 8.
502 Foi dissolvida a União das Costureiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mai. 1922, p. 13.
101
O motivo divulgado pelo Jornal do Brasil foi a falta de correspondência da classe com
o sacrifício das poucas associadas que ainda estavam ativas na construção do sindicato. Os bens
ficaram com Elvira Boni, e com outras companheiras interessadas. 503
Para Elvira, muitas mulheres costureiras não se interessavam pelo movimento sindical
pela falta de identidade operária. Segundo ela, algumas de suas companheiras de trabalho
“Achavam que não eram operárias, e sim artistas, porque faziam coisas bonitas, vestidos... (...)
operário trabalhava com máquina. (...) E sindicato era coisa de operário. (...) E é.”.504
No dia 30 de junho, O Jornal, do estado do Maranhão, organizou uma reportagem sobre
o cotidiano das chapeleiras e costureiras do Rio de Janeiro, “as creadoras do luxo”. Sobre suas
condições de trabalho, eles expuseram os salários: “(....) as perfeitas (...) ganham geralmente,
de 120$ a 200$ por mez. As ajudantes, (...) ganham de 45$000 a 120$ por mez. As aprendizes,
essas, às vezes não ganham nada, ou então 15$, 20$, 25$ até o maximo de 30$000 mensaes.
Coiza que mal dá para a passagem do bonde...”. O jornal os descreveu como “subsalarios”, que,
muitas vezes, em ateliês que não permitiam o almoço, eram gastos na pensão em que comiam. 505
A redação entrevistou uma “costureirinha”, que expôs as horas de trabalho: geralmente,
10 horas por dia, entrando às oito e saindo às sete. 506 Muitas vezes ainda levavam trabalho para
casa, sem remuneração. A jovem trabalhadora falou da dificuldade de sair da condição de
aprendiz para se tornar ajudante, e de ajudante para “perfeita”, e que era necessário mudar de
emprego para ter sua qualificação desejada. 507
O periódico maranhense, ao caracterizar as condições de vida das costureiras como
“exploração elevada ao quadrado”, explicava a sujeição delas pela necessidade de
complementar a renda familiar, para que não vivessem na miséria. 508
O Jornal também entrevistou Elvira Boni sobre a União das Costureiras, e ainda não
sabiam sobre o seu fim:
A senhorita Elvira Boni, antiga secretaria da União, disse-nos à queima roupa:
- A União não existe mais.
- Como assim?
503 Ibidem.
504 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988. p. 37.
505 As creadoras do luxo. Chapeleiras e costureiras. O Jornal, Maranhão, 30 jun. 1922, p. 2.
506 Elvira se lembra do seu cotidiano de trabalho: “Eu morava no subúrbio, me levantava às cinco e meia da manhã,
saía às seis e quinze e só estava de volta às oito da noite, isso quando chegava cedo.” E, durante a noite, costurava
as próprias roupas e as de suas irmãs com a máquina de costura que possuía. LACERDA, 1983. Apud: GOMES,
1988, p. 30-31.
507 As creadoras do luxo. Chapeleiras e costureiras. O Jornal, Maranhão, 30 jun. 1922, p. 2.
508 Ibidem.
102
Elvira contou para O Jornal a história do sindicato das costureiras para o jornal, desde a
fundação em 1919, “em um momento de efervescência geral do proletariado”, a primeira greve
que durou duas semanas e conquistou as oito horas de trabalho. Segundo ela, a União chegou a
ter 400 associadas.510 Eis a sua avaliação sobre a dissolução publicada no periódico:
Minhas colegas entenderam depois, que deviam deitar sobre os louros
conquistados. O rezultado é esse que vemos: as 8 horas foram pouco a pouco
se perdendo, voltando o trabalho à norma antiga de 10 horas. Quanto aos
salarios, a mesma coiza: foram diminuindo aos poucos. E dessa inatividade
das costureiras rezultou ainda o enfraquecimento progressivo da União, cujas
associadas foram dezertando, uma a uma, esquecidas dos benefícios
alcançados. Finalmente rezolvemos, meia duzia de companheiras mais
tenazes, dissolve-la de vez. 511
509 Ibidem.
510 Ibidem.
511 Ibidem.
512 Ibidem.
513 Ibidem.
103
514 GRIGOLIN, Fernanda. Abrindo sulcos e traçados: o borda da encruzilhada. s.d. Disponível em:
http://tendadelivros.org/jornaldeborda/wp-content/uploads/2019/06/borda-6-baixa-simples.pdf
515 MENDES, 2018.
516 Uma festa de caridade. O Brasil, Rio de Janeiro, 27 jun. 1922. Vida proletária, p. 4.
517 Syndicato de tesoura e linha... Uma agremiação de fins elevados, que promette não “dar panno pras mangas”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
521 COSTA, Emilia Viotti da. Patriarcalismo e patronagem: mitos sobre a mulher no século XIX. In: COSTA,
Emilia Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1999.
522 RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930). Rio de Janeiro:
526 LACERDA, Elvira Boni. Elvira Boni: Anarquismo em Família. 1983. Apud: GOMES, Angela de Castro
528 Idem.
105
no âmbito da escrita da História. Acredito que deixo uma abertura de perspectivas para os
futuros historiadores. As reflexões de Benito Schmidt ampliam ainda mais a questão da
interseccionalidade ao incluir, nas pesquisas históricas, as lutas das pessoas LGBT no mundo
do trabalho.529
Acredito também que o conhecimento acadêmico não deve ficar dentro dos muros da
universidade e que, portanto, é necessário lutar pela incorporação destas novas pesquisas
historiográficas no currículo escolar, nos cursinhos populares, cursos de formação política,
museus, casas de cultura, produções documentais e cinematográficas, e em outros espaços, para
que a sociedade conheça a História que está sendo produzida e dar visibilidade para sujeitos
históricos, individuais e coletivos, que estiveram ausentes da historiografia tradicional.
Finalmente, acredito que este trabalho tem um sentido político. Apesar do ofício do
historiador ser um trabalho científico e com o máximo de objetividade, a própria escolha do
tema já é uma escolha política. Portanto, a pesquisa sobre um sindicato feminino de orientação
sindicalista revolucionária, movimento que buscava a união dos trabalhadores independente de
suas diferenças, e a busca pela trajetória e pensamento de mulheres anarquistas e comunistas,
visam o rompimento com o Brasil de hoje que é o Brasil de ontem, e a construção de uma
sociedade mais justa e igualitária.
Vivemos em um contexto político neoliberal, com o fascismo, a retirada de direitos
trabalhistas, o aumento da violência contra a mulher, o alto desemprego e a pandemia. É
importante que os historiadores virem sua atenção aos temas relacionados às lutas das classes
populares e ao feminismo popular, que em diversos períodos históricos e contextos, pois há
muito ainda a ser conhecido e apreendido, que possa projetar caminhos de transformação social
para o futuro. Elvira Boni, em sua entrevista nos anos 1980, apresentou sua opinião: “Aliás,
agora estou ficando contra as greves, porque elas não estão adiantando mais. O que é preciso é
uma coisa mais enérgica. Revolução, por exemplo.” 530
529 SCHMIDT, Benito. Complexificando a interseccionalidade: Perspectivas queer sobre o mundo do trabalho.
Mundos do trabalho, n. 19, vol. 10, 2018.
530 LACERDA, 1983. Apud: GOMES, 1988.
106
FONTES
Entrevista com Zeni Lacerda Pamplona, Consuelo Pamplona e Eneida Pamplona (2020)
Entrevista com Elvira Boni, por Ângela de Castro Gomes (1983)
Livros da Hospedaria dos Imigrantes – Arquivo do Estado de São Paulo
IMPRENSA
O Brasil – RJ (1922)
O Combate: Independência, Verdade, Justiça – RJ (1921)
Correio da Manhã – RJ (1919-1920)
A Época – RJ (1919)
Gazeta de Noticias – RJ (1919)
O Jornal – RJ (1920-1921)
O Jornal – MA (1922)
Jornal do Brasil – RJ (1919-1922)
O Imparcial – RJ (1919-1921)
A Lanterna – SP (1913-1915)
O Malho – RJ (1910)
A Noite – RJ (1919-1935)
O Paiz – RJ (1919-1921)
A Razão – RJ (1919-1921)
A Rua – RJ (1919)
Voz do Povo – RJ (1920)
Fonte: Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional
Spártacus – RJ (1919)
Fonte: Arquivo Edgar Leuenroth
107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Ano vermelho: a Revolução Russa e os seus reflexos no
Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
_____. Vida associativa: por uma nova abordagem da História institucional nos estudos do
movimento operário. Anos 90, Porto Alegre, n. 8, dez. 1997.
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história, 1940. In: _____. Obras escolhidas.
Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 222-232.
BIONDI, Luigi. Classe e nação: trabalhadores socialistas italianos em São Paulo, 1890-1920.
Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
_____. TOLEDO, Edilene. Uma revolta urbana: a greve geral de 1917 em São Paulo. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2018.
108
BRASIL, Eric. Carnavais atlânticos: cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio de Janeiro
e Port-of-Spain, Trinidad (1838-1920). Niterói, 2016. Tese de doutoramento apresentado ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3.
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
_____. Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
COSTA, Emilia Viotti da. Estruturas Versus Experiência. Novas tendências na História do
movimento operário e das classes trabalhadoras na América Latina: o que se perde e o que se
ganha. BIB, Rio de Janeiro, n. 29, p. 3-16, 1° sem. 1990.
FARIAS, Cláudia Maria de. SILVA, Fernanda Oliveira da. SILVA, Júlio Cláudio da. Dossiê
História de Mulheres Negras no Pós-Abolição. Revista do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Amazonas, n. 2, vol. 6, out./dez. 2019.
109
_____. Mulheres, sindicato e organização política nas greves de 1917 em São Paulo. Rev. Bras.
Hist. [online], n. 76, vol. 37, p.73-90, 2009.
_____ (coord.). Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
GOMES, Flávio. NEGRO, Antonio Luigi. As greves antes da grève: as paralisações do trabalho
feitas por escravos no século XIX. Ciência e cultura, São Paulo, n. 2, vol. 65, p. 56-59,
abr./jun. 2013.
_____. Ernestina Lesina e o Anima e Vita: trajetórias, escritos e lutas de mulheres operárias
(inícios do século XX – São Paulo). Mestrado em História Social na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. São Paulo, 2013.
HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura
no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular,
2005.
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São
Paulo: Ática, 1984.
LOBO, Elisabeth Souza. A classe operária tem dois sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991.
_____. Emma Goldman: a vida como revolução. São Paulo: Brasiliense, 1983.
LUCA, Tânia Regina de. A História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINKSY, Carla
Bassanezi. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2015.
MATOS, Vanessa Cristina Santos. Rompendo paradigmas através da luta: a greve das/os
tecelãs/ões em setembro de 1919 (Salvador-Bahia). Antíteses, Londrina, n. 6, vol. 3, jul./dez.
2010, p. 1027-1046.
MORAES, Mirtes de. Por detrás dos panos: O cotidiano das costureiras nas fábricas, nos lares
e na arte. In: XX Encontro Regional de História: História em Tempos de Crise. Uberaba, jul.
2016.
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil (1890-1930).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
_____. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos pagu, vol. 11, p. 89-98, 1998.
_____. As mulheres na historiografia brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes (Org.). Cultura
Histórica em Debate. São Paulo: UNESP, 1995.
REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
SANTOS, Jucimar Cerqueira dos. SANTOS, Mayara Priscilla de Jesus dos. Da educação
primária ao ensino superior: o desafio das mulheres de cor e trabalhadoras para alcançar a
educação escolar no Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX. Revista do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, n. 2,
vol. 6, out/dez 2019.
112
SANTOS, Maíra Rodrigues dos. SILVA, Thiago Dantas da. A Abolição e a manutenção das
injustiças: a luta dos negros na Primeira República brasileira. Cadernos Imbondeiro. João
Pessoa, v. 2, n. 1, 2012, p. 2.
SCHMIDT, Benito Bisso. Biografias e regimes de historicidade. MÉTIS: história & cultura,
n. 3, v. 2, p. 57-72, jan./jun. 2003.
SILVA, Maria Amélia Gonçalves. Rompendo o silêncio: mulheres operárias em Pelotas e Rio
Grande (1890-1920). Dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 1998.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 2 ed.. Rio de Janeiro: Edições do
Graal, 1977.
_____. A trajetória anarquista no Brasil na Primeira República. In: FERREIRA, Jorge. FILHO,
Daniel Aarão Reis. (Org.) A formação das tradições (1889-1945) – Coleção “As Esquerdas
no Brasil”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
113
VIEIRA, Bianca. Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares sociais. Dissertação
de Mestrado apresentada ao Departamento de História do IFCH da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Campinas, 2018.
114
em tudo né, assim, super curiosa, muito interessada em tudo, super diversificada. E eu sempre
tive vontade de fazer isso que você ta fazendo, mas depois me afastei, de escrever sobre esse
momento da História né, que foi um momento assim tão rico, tão importante né. E assim, o que
eu lembro, relativo a essa questão do signo né, é que ela, ela estudou muito pouco na vida dela,
né. Ela estudou uns dois ou três anos só, mas ela tinha uma letra linda, né, e fazia conta, tudo
direitinho né. E os Gêmeos, a coisa mais importante que tem pro Gêmeos é justamente o estudo,
né. Então eu imagino o quanto deve ter sido difícil pra ela não poder permanecer na escola. Ela
teve que sair para cuidar de um irmão, né.
BC: Sim.
CP: Então eu imagino quanto isso deve ter sido difícil pra ela, né. Mas agora onde ela tá com
certeza deve tá estudando tudo o que ela quer. (risos) Então é isso né, é, sobre mim mesma e
sobre né. Tá bom a minha apresentação?
BC: Adorei. (risos)
CP: (risos) Então vai lá, mãe, se apresenta.
Zeni Pamplona: Na realidade foi um momento muito triste na vida dela, ela ter que largar o
colégio né, porque ela tinha uma sede de saber, de querer, de poder, enfim. E ela não pôde. Eles
tiveram um irmão com problema de paralisia infantil, então ele precisava... ele era um menino
que precisava de ficar no colo durante muito tempo... Não tinha, enfim. E minha vó tinha...
enfim, tinha as obrigações da casa, como se dizia naquela ocasião, né. As obrigações da casa, e
mais, eles tinham aqui no Rio, quando vieram e conseguiram se estabelecer no Rio, meu tio fez,
conseguiu fazer uma oficina, porque os filhos já estavam iniciados na profissão. Ferreiros, né?
CP: Ferreiro, profissão de ferreiros.
BC: Qual é o nome do seu tio?
CP: Ah, olha só um parênteses mamãe, é... São dois, tá? Tem o Estevam Boni e o Amílcar
Boni. Os dois foram fundadores do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Se você for
lá no prédio em Niterói, Niterói? São Cristóvão, tem a placa com o nome deles.
BC: Nossa, que interessante.
CP: É, foram fundadores do Sindicato dos Metalúrgicos. Então, pode continuar mamãe. E eles,
só andando um pouquinho pra trás né, eles eram anarquistas né, o meu bisavô e a minha bisavó
eram anarquistas.
BC: Seus bisavôs? Ah, é, sim.
CP: Continua mamãe, continua.
ZP: Já vieram da Itália anarquistas, né. Já tinham sido, já estavam, já tinham pegado o... o vírus.
(risos)
116
anarquista, e já tinham vindo da Itália o meu avô, já com... Já tinha sido mordido lá né. Então
ele veio aqui (risos), eles começaram a se interessar. A relação do meu pai com a minha mãe...
CP: Ô mãe, só um minutinho.
ZP: Meu pai era um intelectual.
CP: Não, se você falou que ela começou a trabalhar com 12 anos, foi com 12 anos mesmo?
BC: É, ela falou também que foi com 12, na outra entrevista.
ZP: Ou com 13, é, com 12 anos ela teve que largar o colégio né, e começar a trabalhar. Eu não
sei até quanto tempo levou para arrumar um emprego, detalhes assim eu não sei, e ela agora
não (risos), não tá mais viva. Ela gostaria de contar detalhes, (risos) ela era muito minuciosa.
Mas aí, o meu pai, ele era um cara já mais intelectual e tal, e... porque a minha mãe se apaixonou
também pelo fato dele ter o estudo que ela não teve. Tinha esse detalhe. Ela tinha essa paixão
pelo saber dele, que ele era realmente muito, muito culto, e aí ele... ela qualquer coisa ela tinha
aquele, aquele relacionamento com uma pessoa que tinha um pouco mais de, que tinha mais,
assim, mais saber que ela, né. E mais, mas ela era uma mulher tão inteligente, e era tão... tinha
tantas possibilidades de ser mais organizada, a não ser que não tinha o problema da situação,
né, que eram pobres né. Todos eles eram pobres. Mas enfim, aí eu acho já que tô falando demais,
né?
EP: Não!
BC: Não, pode falar! Fica a vontade.
ZP: Que a mamãe, a minha mãe se interessava muito também pela parte intelectual do meu pai,
e tal, e... Agora, na realidade, ela era mais do batente, né? Na parte... e com meus tios também,
os meus tios eram... Ah, quando eles vieram pro Rio de Janeiro, eles conseguiram depois de um
certo tempo, os meus tios, já estavam, assim, miudinhos né, mas estavam... como é que diz?
Tavam já crescidinhos pra trabalhar, né? Trabalhavam o tempo todo dentro da oficina e tudo,
e... só sei dizer que quando eles atingiram a maioridade, o meu avô conseguiu fazer uma... uma,
sei lá, com um advogado, conseguiu fazer uma oficina. Que se chamava “Estevam Boni &
Irmãos”, que era os meus dois tios, um se chamava Amílcar e o outro Estevam. E... a luta em
casa era uma luta grande porque a minha vó ela era já parte das coisas da casa né, porque um
filho doente, não é? Como ela tinha. E ela tinha que cozinhar não só pra família toda como
também para os pouquíssimos, um ou dois, sei lá, ou três, não sei quantos empregados é que
eles podiam ter. Só aqueles que realmente precisavam mesmo. E... enfim, mas ela, eles
conseguiram se erguer, né. Então tinha assim, e a mamãe passou por isso e acabou casando com
o papai, em 1923.
EP: Só um minutinho, deixa eu entender aqui uma coisa. Ela entrou, foi trabalhar...
118
ZP: No movimento.
EP: Ela entrou, foi trabalhar como costureira, aí entrou pro movimento pequeno ainda,
participou da primeira greve, né?
ZP: É.
EP: E antes de conhecê-lo, ela participou do teatro da Liga Anticlerical, não foi?
ZP: Já, já conhecia.
BC: Já conhecia.
ZP: A ponte entre o teatro... A ponte que eu to falando quer dizer a relação né, é... Que a mamãe,
ele mais ou menos é quem tinha a parte cultural pra botar as peças, enfim, pra ter aquele. E ela,
tem, tem um muito engraçado que tem lá em casa, eu tenho, depois eu posso bater uma foto,
pra mandar pra vocês. E ela, ela trabalhava na peça. E meu pai também.
BC: Legal!
ZP: Gostava de teatro, desse programa.
EP: Ela tem o programa em casa, da peça de teatro que tanto o meu avô, quanto a minha avó,
fizeram juntos quando namorados.
BC: Ah, sim, que legal!
ZP: É, enfim. Tinha uma boa, uma boa relação mesmo. Então eles sabiam bastante de, das
peças de teatro, e sempre tinham, procuravam colocar aquele viés, aquele viés político, né
(risos). Tinham sempre essa preocupação. Mas é isso, enfim, me faça alguma pergunta porque
eu já to cansada (risos).
BC: (risos).
ZP: Eu tô cansada de falar.
CP: Ela botou por escrito né, o que que a gente lembra né, da vovó, e tal, e eu lembro de, é...
lembro muito dela cantando “A Internacional”, ela gostava muito de cantar.
BC: Uhum (risos). Sim.
CP: Né, adorava cantar. Então ela cantava “A Internacional”.
ZP: Ela gostava.
CP: É, e cantava também, ela cantava, até hoje não sei a letra da música, mas ela cantava, é...
a paródia, né. É uma música italiana “O Sole Mio”, né. “O Sole Mio” (cantando). E ela cantava
com a paródia.
O Sol dos Livres
Distinto Sol
Astro que brilhas da ciência em prol
Ao belo nos conduz
119
ZP: Se papai e mamãe conversavam sobre o movimento. Quer dizer, durante o tempo que eles
eram jovens lá, na luta, eu não me lembro dela comentar, de falar. Depois já ficou uma coisa
muito... durante a vida de casados que nós já éramos grandinhos, falavam de vez em quando,
tocavam em determinado assunto, mas não era uma coisa assim que pudesse, eu acho que se
tivesse mais, mais... valor como colaboração pra te dar, entendeu? Coisas muito comuns assim.
BC: Ah, mas pode falar.
ZP: Bem porque a vida era comum. E a vida era tão difícil, todos. (risos) Inclusive pra, até nós
mesmo crianças era, não era fácil, sabe?
BC: Sim.
ZP: Quer dizer, não era, nós éramos classe média pobre. (risos)
BC: (risos).
ZP: Classe média pobre. (risos). E a gente tinha certas, certos momentos de poder conversar,
de poder falar, e aqueles outros momentos mais difíceis de... Ah, meu amor, chega! (risos). Me
diga, faltou alguma coisa que você quer saber? Que eu posso dizer? Me ajudem, que vocês
conversavam tanto com a vovó. Podem me ajudar também.
BC: Ah, podem falar vocês duas também. É... Eu queria saber se ela fez alguma amizade com
alguma outra costureira naquela época, assim?
ZP: Ah, sim. Fez, fez. Depois ela foi trabalhar, ela foi, no coiso ela foi, na União das
Chapeleiras. Ela começou a estudar pra fazer chapéu, que era aquela moda, naquela época, tinha
a moda do chapéu, né. Até mesmo eu me lembro que... quer dizer, em 1900 e... eu já era, eu já
tinha uns seis, sete anos. Eu sou de 29, né. Eu tinha seis, sete anos, e naquela época as mulheres
não saíam sem chapéu. Era um chapéu, qualquer chapéu, qualquer mulambinho, pra botar de
chapéu, era importante. (risos).
BC: Sim. (risos).
ZP: No momento era mais importante o chapéu. (risos). Era muito engraçado. Então ela foi
trabalhar na União das Costureiras, lá ela aprendeu a fazer chapéu, e já tinha lá uns chapéus
bonitinhos que ela fazia e tudo. (risos).
BC: Ah! Sim.
ZP: Ai ai.
CP: E ela tinha alguma amiga, mãe? Que ela falava, que ela levava em casa, alguma pessoa
assim?
ZP: Não, não. Isso era muito difícil, levar amiguinha em casa, isso é coisa de agora. (risos).
BC: (risos).
121
ZP: Naquela época não era assim não, não dava. Assim, sempre morava uma longe da outra.
Uma morava, a outra morava. Minha avó morava... não lembro como é que chama o nome do
morro... morava no morro. O morro que tem ali, que sai. Acho que é Morro da Mangueira, não
tenho certeza, ela não sabia que era isso não. Ela nunca disse isso. Eu não me lembro. É, não
me lembro não. Mas ela morava... Então, ela assim, tinha assim muita amizadezinha. Tinha
muita amizade, muito era com todo mundo que era do... do movimento. Ela falava do
movimento, que era do movimento, então isso era mais, era uma coisa que a gente escutava
mais.
BC: Sim. E você lembra de algum nome?
ZP: E disso... Nome de alguma?
BC: Nome de alguma mulher do movimento? Não, não lembra?
ZP: Não lembro, eu não lembro. Sinceramente eu não lembro.
BC: Tudo bem.
ZP: É que talvez mais assim uma, uma coisa só um nome, de nome e sobrenome. Idalina,
lembro dela falar muito na Idalina.
BC: Idalina?
ZP: Idalina, mas não... Não sei outra coisa que ela pudesse ter. É isso querida.
BC: Muito bom. Obrigada pela fala. A Eneida quer falar um pouco também?
EP: Posso falar. É... eu sou, de formação eu sou psicóloga, atualmente eu sou produtora rural,
eu tive uma convivência bem próxima com a minha avó, e com meu avô. Ela era muito... Uma
mulher muito ligada às tarefas domésticas, né, à economia. Ela sempre trabalhou muito e
encarou muito as tarefas dela como trabalho, né. Não como, é...
ZP: Obrigação.
EP: É, não como obrigação. O meu avô era uma pessoa muito... era um intelectual, era muito
inteligente, mas ele era também muito exigente, né. E... eles tinham a militância, é... dentro do
cotidiano, não como uma coisa separada da vida, né. Pelo menos como eu entendia a fala deles,
né. A vida era uma militância. Então, também, né, tudo que você fazia né, era um exemplo,
porque como eles eram, claro, ela filha de anarquista né, e depois, meu avô, ele era na realidade
socialista.
BC: Aham.
EP: Ele foi...
ZP: Passou a ser, até fundar o Partido Comunista.
EP: Até fundar o Partido Comunista, mas...
ZP: Ele foi um dos fundadores.
122
EP: Mas no grupo dos 12, que fundou o Partido Comunista, ele era um socialista, e depois ele
passou a ser comunista.
BC: Ah, sim.
EP: A defender a comunista, né. Se você verificar, no grupo dos 12, tem socialistas né. E ele
escutava muito, na época da, eu nasci em 60 né, logo em 64 veio o golpe, e eu cresci escutando
eles escutarem a Rádio Ondas Curtas, pra poder saber das notícias que não chegavam no Brasil
porque eram proibidas. Eram censuradas, né.
BC: Sim, sim.
EP: Ele... eles eram muito, é. E como eles eram muito, os comunistas sempre foram muito
perseguidos, né, e eles tinham uma visão mais livre, digamos assim, menos preconceituosa do
que se refere à arte né, tanto que uma filha foi ser pianista e depois atriz, e a outra filha foi ser
bailarina, né.
BC: Sim.
EP: E já muito cedo, elas tinham muita responsabilidade né. E eles diziam que era porque elas
tinham que dar o exemplo. A vida deles tinha que ser um exemplo para os outros porque, justo
porque eles eram muito mal vistos por terem a militância política, então a vida deles tinha que
ser um exemplo. Não importava dela ser uma bailarina, ela cedo teve a chave de casa né, para
poder voltar pra casa. Tudo com muita responsabilidade. Então é o contrário do que se possa
imaginar, né, não eram loucos, oba-oba, o contrário. Talvez fossem mais rígidos do que
determinadas famílias tradicionais.
BC: Entendi.
EP: Eles tinham... as duas foram criadas com uma carga de responsabilidade grande. Porque
era muito importante dar o exemplo.
BC: Sim, que interessante.
EP: À medida que eu for lembrando, eu posso ir contribuindo pra você ali no WhatsApp, né.
BC: Tá bom.
EP: Mas isso foi uma coisa que marcou, né.
BC: Sim.
EP: E quanto à questão da União Soviética, que você perguntou.
BC: Ah, sim. Perguntei.
EP: É. A minha avó, eu não me lembro dela ter muita opinião, né, porque ela já era aquela
pessoa que tinha que colocar panos quentes em tudo, porque o meu avô era uma pessoa muito
nervosa, que demandava muito. É... o fato dele ser, é, comunista, e de ser um artista, não o
salvou de ser um grande machista.
123
BC: Sim.
EP: E de exigir da esposa né, tudo aquilo que se exige de uma esposa no princípio do século
passado. Retidão, comportamento, é... ser boa cozinheira, ter a casa limpa, né, e além de tudo
isso, ser companheira, militante etc, etc. Ou a mãe, etc né. É... ao longo da vida deles, né, ele
teve uma, não sei se você sabe, ele não foi só comerciante, ele teve uma farmácia, ele foi para
o Rio Grande do Sul, morou lá em Bajé, depois eles voltaram para o Rio de Janeiro...
ZP: A farmácia não era dele.
EP: Não, a farmácia não era dele, ele trabalhava na farmácia, em Bajé. A mamãe foi concebida
em Bajé, e veio, já a minha vó veio nos últimos meses da gravidez pro Rio de Janeiro de navio.
Que naquela época era muito comum viajar de navio, né, para encurtar as distâncias, né. E aqui,
por duas vezes, eles tiveram pensão. Então a minha avó também teve pensão, né. Com hóspedes,
com tudo. É... eu perguntei pra ela sobre o fato se junto com a minha avó existiam mulheres,
meninas negras, né, ou mulheres negras, minha mãe não soube.
ZP: Não soube.
EP: Não soube dizer isso. Não lembra disso né. O que ela lembra muito bem é esse Ateliê da
Madame Marosini que ficava na rua Gonçalves Dias. Eu fiz uma busca na internet mas eu não
achei. Ela arrisca dizer que era na Gonçalves Dias número 12, mas ela não tem certeza.
ZP: Não tenho certeza mesmo, não.
EP: É. E o que eu lembro muito da minha vó é a rigidez com a qual ela foi criada, né, e... a...
como é que eu posso te dizer isso?
ZP: Ela não dava sossego pra gente. (risos)
EP: Ela tinha uma disciplina e ela acreditava que nós deveríamos ser capazes de aprender e
executar as tarefas domésticas, e que deveríamos estar muito atentas né, na economia
doméstica. Então muito atentas a tudo que poderia poupar. Então eles, por exemplo, meu avô
guardava o palito de fósforo. Foram pessoas que viveram duas guerras, Beatriz. Isso faz muita
diferença na vida das pessoas, entendeu?
BC: Sim, é.
EP: Viver a guerra, viver a guerra em um mundo que não tinha nem telefone, né. Num mundo
que era um mundo de escassez, não era um mundo, né. Então ela guardava o palito de fósforo
usado porque o palito de fósforo usado servia para limpar o ralo do chuveiro. Se guardava o
algodão usado pra injeção porque esse algodão servia para limpar a ferrugem.
BC: Ah, sim.
EP: Da porta, da tranca, do que fosse né. Então era um estilo de vida muito, é...
ZP: Rígido, né?
124
EP: Rígido, né, muito atento ao não desperdício, afinal de contas foram pessoas que passaram
dificuldades porque o meu avô, ele foi um filho temporão, quando ele, é... quando a minha
bisavó tinha 7, 8 meses de gravidez, o marido morreu. Então ele foi um filho temporão criado
sem pai. Foi um pouco criado pelos irmãos mais velhos, né. E um irmão, que depois vinha
pouco pro Brasil. A gente pouco, não teve muito contato com essa família, né. Com essa família
do meu avô. É, mas ele teve um irmão médico.
BC: Um irmão médico.
EP: Então eu acredito que, a infância, ele deve ter trabalhado em farmácia, essa coisa, um pouco
essa influência. Na realidade ele se formou contador, né, ele era contador de formação.
CP: Farmacêutico também.
ZP: Ele também trabalhou... o que?
CP: Farmacêutico também, o anel dele, o anel de formatura dele tinha os dois símbolos, de
farmacêutico e de contador.
ZP: Tinha esquecido disso.
EP: É, a mamãe tinha esquecido disso e eu não sabia. E... ele, até esqueci o que eu tava falando.
ZP: (risos)
BC: (risos)
EP: Bom, eu esqueci o que eu tava falando.
BC: É, que ele se formou em conta... contador. É contação que fala, não?
CP: Contabilidade.
BC: Contabilidade, é. (risos)
ZP: Contabilidade, é.
EP: E é isso, se eu for lembrando mais de alguma coisa, eu posso te passar. Mas, essa... Ah, a
gente tava falando de como ele percebia a União Soviética né.
CP: É... não lembrava.
EP: E ele teve uma briga uma vez, né, forte, um embate teórico com né, com a minha mãe,
porque a minha mãe um pouco se revoltava com as... o regime de força mesmo, essa ditadura
comunista que aconteceu na União Soviética. E ele dizia que tinha que ser, pra poder garantir
que o regime funcionasse, é isso?
ZP: É.
EP: Para garantir que o regime funcionasse, algumas atitudes tinham que ser tomadas.
CP: Mas eu também lembro assim, é... dele falar, dele ser contra, ter falado em casa dele ter
ficado na geladeira, do Partido Comunista ter isolado ele. Por que? Porque talvez ele tinha
esperança na linha chinesa né, no Mao Tsé-Tung, e o Partido Comunista Brasileiro não, ele era
125
totalmente alinhado com a União Soviética. Então, o que que aconteceu? Eles tinham um
negócio chamado centralismo democrático, nos partidos comunistas. Então assim, eu posso não
concordar com a decisão da maioria, mas eu vou acatar essa decisão. O que eu lembro então de
ser dito a respeito dele é que ele tinha acatado o centralismo democrático embora ele não
concordasse com a União Soviética, e a... e tivesse esperança na linha... eu não sei se era chinesa
ou albanesa, tinha esse negócio aí da Albânia também.
BC: Ah, tá.
CP: Eu lembro assim de ter essa conversa. Quando ele morreu eu era muito nova, mas eu lembro
desse... dessa coisa até porque o que é ficar na geladeira? O que é centralismo democrático, né?
Eu queria entender o que era essas coisas. E a gente pega, eu, pelo menos né, eu pegava muito
na emoção. Como assim ele tá na geladeira? (risos)
BC: (risos).
ZP: Ai, ai. (risos)
BC: Interessante. É, então, só uma pergunta em relação a isso, ele era socialista, e depois virou
comunista, né?
CP: Eu nunca soube disso que ele era socialista, não.
BC: É? E a Elvira era anarquista.
CP: Ele era anarquista. Conheceu a minha avó no movimento anarquista, e depois fundou o
Partido Comunista. Sendo do Partido Comunista...
ZP: Ele já era comunista, quando ele... ele já era quando ele, isso teria que... as datas, agora eu
não me... eu não sei nada direito. Só sei que ele era comunista, e eu me lembro de comunista,
rígido, da coisa, e eu tinha um pouco mais de... era mais nova também, né.
CP: Agora as informações eram muito difíceis naquela época, era tudo censurado, foram duas
ditaduras, teve a ditadura do Getúlio, depois a ditadura militar, então era muito difícil conseguir
informação.
ZP: Eu me lembro, olha, eu me lembro, deixa eu contar isso. Eu me lembro que morava no
Angaraí, eu era criança, e já estava no colégio, tá ouvindo o que eu falei?
BC: Tô, tô ouvindo.
ZP: Morava no Angaraí, te contei? Morava no Angaraí, era criança, e... já estava no colégio
primário, primeiro ou segundo ano, não me lembro. Naquela ocasião, eu me lembro, porque
tudo era assim, dentro de casa se você via uma coisa, você não podia perguntar, entendeu?
Porque, exatamente por isso, por não ser uma criança que de repente chega um... um cara que
é, que é policial, sei lá, e você de repente fala alguma coisa. Então tudo era, era... Assim, não
pode perguntar. Eu me lembro que meu pai, de noite, bem tarde da noite, eu vi ele fazer uma...
126
uma embrulhada de jornal assim, botar lá e ficar. E eu perguntava pra que, (risos) e só fui saber
muito tempo depois, né. Que era pra ouvir Moscou. Que ele botava, naquele tempo já tinha o
rádio, e ele escutava aquilo em italiano, depois eu vejo melhor mais tarde quando. Lembro que
eu achava engraçado porque eles diziam “parla mosca”, mosca era Moscou, né. (risos) E aí eu
achava muito engraçado isso.
BC: (risos).
ZP: E aí eles tinham essa coisa, do não pode perguntar. E outra coisa também muito engraçada
é que a minha mãe tinha ensinado a... minha irmã, não pode rir, não pode falar. Isso, só pra
vocês saberem, que era “A Internacional”, né. Que era “lalalarara”, agora eu não sei.
CP: De pé, ó vítimas da fome
De pé, famélicos da terra
A ígnea chama que consome
A força bruta que a soterra
Cortai o mal bem pelo fundo
Tanãnãnã, não mais senhores!
Se nada somos em tal mundo
Sejamos tudo, ó produtores!
Bem unidos, façamos!
Nesta luta final!
Uma terra sem amos
A Internacional
Mãe, fala de novo, que eu cantei e a música apagou a sua voz. Tava cantando?
ZP: É o que?
CP: Você tava falando aí.
ZP: Eu também tava cantando.
BC: Tava cantando.
CP: Aí tem mais, mais um versinho.
ZP: Mas eu... Qual é?
BC: Pode falar, Zeni.
ZP: O que? Que versinho?
CP: Não, é, tem mais um versinho.
BC: Ah, um versinho.
CP: Ao rico é permitido, o pobre é explorado, ao rico tudo é permitido. Tem esse versinho
também mas eu não lembro da melodia dele.
127
BC: Aham.
ZP: (risos) Eu também não lembro mais. Eu não lembro não, é muita coisa...
BC: (risos)
ZP: Muita coisa, muita coisa. Graças a Deus tem muita coisa lá né, a mamãe relembra muita
coisa no... livro, que você leu, né?
BC: Ah, sim.
ZP: No Velhos Militantes. Ela lembra lá. Muita coisa lá, até de música.
BC: Ela lembra de várias, né.
ZP: Ela lembra de várias. Ela é uma guerreira mansa. (risos). Ela era assim uma pessoa tão...
Tão... Sei lá. Eu admirava muito a minha mãe com todos... tinha porquê admirá-la, tinha porquê
admirá-la.
BC: Sim.
ZP: Mas é isso, meu amor. Obrigada por tudo isso que vocês estão fazendo, é tão importante
isso.
BC: Obrigada vocês, Zeni! Eu fiquei muito feliz.
ZP: Comemoraremos depois, tá bom?
BC: Tá bom.
ZP: E, depois, alguma coisa assim, que eu lembre, a mais, eu dou um...
BC: Tá bom.
CP: As fotos vou mandar também pra você, tá?
BC: Vocês vão me falando, manda foto se quiser, aí depois eu vou pedir uma autorização pra
vocês assinarem, para mandar uma foto, eu não sei direito como que é, mas pra vocês
permitirem que eu use algumas coisas que vocês falaram no trabalho, tá bom? Vou falar com a
minha orientadora, tá?
CP: Pode deixar, querida!
ZP: Tá certo, meu amor.
BC: Tá bom?
ZP: Não tem problema nenhum.
BC: Tá bom.
ZP: Então tá. Um beijo grande!
BC: Beijo!
ZP: Tchau!
BC: Tchau!
CP: Tchau, Beatriz!
128
ZP: Beijo.
BC: Tchau! Beijo, gente.
CP: Vou desligar, mãe.
ZP: Tchau, querida.
BC: Tchau, Zeni.
ZP: Não sei desligar. Eneida! Tchau meu amor, eu não sei desligar. Como é esse negócio aqui?
BC: É só fechar.
ZP: Pera um pouquinho, vou fechar, só vou fechar aqui.
BC: Tchau!