Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
O artigo ao discutir a prática pedagógica libertária
das Escolas Modernas na Espanha e no Brasil, demonstra
como essa experiência educacional, de grande influência
no movimento operário europeu do início do século XX,
tinha, entre seus inúmeros colaboradores, dois geógrafos e
anarquistas, casos de Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Ambos,
mas principalmente Eliseé Reclus, procuraram apontar a
necessidade de uma renovação do conteúdo ministrado
nas aulas de Geografia, visto que naquele momento, essa
disciplina escolar fomentava a competição, o nacionalismo e
a colonização das chamadas “raças inferiores”. Como forma
de percebermos essa influência educacional anarquista,
analisamos os jornais estudantis da Escola Moderna de São
Paulo e de estabelecimentos educacionais que de alguma
forma foram co-participantes dessa experiência, caso das
escolas dirigidas pelo professor João Penteado. Com esse
artigo procuramos destacar a presença de uma Geografia
libertária nas salas de aula, mais crítica e que possibilitava
uma maior participação discente.
*
Doutor em Geografia Humana- USP. E-mail: elhakim@ig.com.br.
131
Lessons of geography in the modern schools:
Theory and practice of anarchist education
Abstract
The article discussing the libertarian pedagogical of
the Modern Schools in Spain and Brazil demonstrates how this
educational experience of great influence in the European labor
movement of the early twentieth century, had among its many
collaborators two geographers and anarchists, cases of Eliseé
Reclus and Piotr Kropotkin. Both, but mainly Eliseé Reclus, sought
to point out the need for a renewal of the content taught in
geography lessons, since that time, the school discipline fostered
competition, nationalism and colonization of the so-called
“inferior races”. As a means to realize this educational anarchist
influence, we analyzed students newspaper from Modern School
of São Paulo and educational institutions that somehow were co-
participants of this experience, case of schools run by Professor
João Penteado. With this article we emphasize the presence of
a libertarian geography in classrooms, more critical and that
allowed greater student participation.
Introdução
132
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
133
1. A organização operária no início do século
XX em São Paulo
134
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
135
Os historiadores e cientistas sociais1 qualificam os operários
do início do século passado, como majoritariamente organizados
sob a ideologia anarcossindicalista, devido à predominância
de ideias de cunho libertário nos meios operários, ou seja, os
operários se organizariam nos sindicatos, que se aglutinariam
em ligas e federações sem perder a autonomia, para finalmente
federarem-se numa confederação.
Entretanto, é digno de nota que, tendo-se em conta essa
ligação entre o sindicato e o anarquismo, existiram aqueles que,
apesar de anarquistas, defendiam que o sindicato deveria ter uma
neutralidade política ou religiosa. Leuenroth, um dos principais
“líderes” operários, declaradamente anarquista, defendia essa
neutralidade. Diz Maran (1975, p.92) sobre isso:
1
Entre eles podemos citar: Hardmann, Francisco Foot. História da in-
dústria e do trabalho no Brasil (das origens aos anos 20), São Paulo,
Editora Global, 1982; De Decca, Maria A. G. A Vida fora das fábricas:
Cotidiano operário em São Paulo (1920-1934), Editora Paz e Terra,
1987; e Rago, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia disciplinar no
Brasil (1890-1930), entre outros.
136
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
137
Sobre a participação dessas ligas na organização da greve,
Fausto (1986, p.204) aponta que:
138
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
139
que poderiam concretizar-se nos seguintes pontos:
a) Caráter ambivalente do processo educativo.
b) Racionalismo (laicização e cientificismo)
c) Antiautoritarismo e antiestatismo
d) Igualitarismo
e) Idealismo
f) Respeito à personalidade do aluno
g) Superação da divisão entre trabalho manual e
intelectual.
h) Formação Integral.
140
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
2
O episódio conhecido como Semana Trágica refere-se às várias mani-
festações anti-clericais ocorridas na Espanha contra a guerra na África,
quando diversos monastérios foram invadidos, resultando na morte de
padres e freiras.
141
filhos de operários. Para Carone (1979, p.12) essas escolas
foram necessárias já que “o operário é antes de mais nada um
autodidata, ele aprende ouvindo seu companheiro discursar ou
escutando-o ler.”
Localizadas nos bairros do Brás e do Belenzinho, de grande
presença operária, tinham aulas diurnas e noturnas, além de
cursos especiais aos sábados, para crianças dos dois sexos sendo
também frequentadas por adultos.
Um dos grandes incentivadores dessas Escolas Modernas
em São Paulo foi o Professor João Penteado. Com o apoio de
alguns sindicatos (como o de vidreiros), dirigiria duas escolas,
uma fundada em 1909 na Avenida Celso Garcia nº 262, e outra
em 1912 na Rua Cotegipe nº 26.
142
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
143
3 . O ensino de G eografia nas escolas
racionalistas: Teoria e prática anarquistas
144
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
145
O papel do professor de Geografia deveria ser oposto
àquele demonstrado acima: incentivar na criança o espírito
crítico, para que melhor entendesse a realidade em que vivia,
com todos os seus encantamentos, sem esquecer jamais também
de suas mazelas, frutos de uma sociedade desigual. Mas,
indignado, compreende que essas discussões eram ainda muito
diferentes daquelas cotidianamente aceitas:
146
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
147
Ao discutirmos nas seções anteriores a influência dos
geógrafos anarquistas no ensino racionalista, demonstramos como
eles foram importantes para a elaboração de uma Geografia mais
crítica.
Analisando os dois opúsculos da Escola Moderna paulistana
(“Boletim da Escola Moderna” e “O inicio”, este último
órgão feito pelos alunos) vimos indicativos de que a prática
anarquista construía uma Geografia mais libertária, por isso,
menos preocupada com que os alunos apenas memorizassem
estatísticas, etc. Entretanto, como essas fontes demonstram
um pequeno período de duração dessa pedagogia, optamos em
analisar também jornais e documentos da trajetória de um dos
principais incentivadores desse modelo escolar em São Paulo, o
prof. João Penteado.
João Penteado nasceu em Jaú na década de 1870 e morreu
em 1965. Autodidata, foi professor de primeiras letras e militou
na imprensa operária e anarquista. Depois de dirigir a Escola
Moderna do Brás, Penteado foi diretor de outros colégios, como a
Escola Nova e a Academia de Comércio Saldanha Marinho, entre
as décadas de 1920 e 1940.
Embora esses colégios já não fossem voltados exclusivamente
para a classe operária, é notório que as práticas libertárias ainda
estavam presentes na organização de ambas as escolas. Sobre
isso, vemos que o jornal O início, surgido na década de 1910
continuou existindo com o mesmo nome até o final da década
de 1950 (1958), fazendo com que Fregoni (2007), estudiosa da
pedagogia libertária, afirmasse que “alguns de seus objetivos,
presentes na Escola Moderna nº1, foram mantidos durante todo
o período em que o jornal foi publicado”(2007, p.104).
Como forma de melhor apresentarmos os conteúdos de
Geografia ministrados, optamos por trabalhar alguns tópicos
que são recorrentes nas leituras dos jornais e que demonstram
minimamente o ambiente escolar.
148
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
149
sendo que esses exercícios extraclasse enriqueciam o conteúdo
de várias disciplinas, inclusive a Geografia.
Seguem dois relatos de alunos da Escola Moderna sobre
esses trabalhos de campo ambos publicados no jornal O Início,
de 04/09/1915, na sua página 2:
150
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
A Guerra Européia
Um destes dias conversava eu com um dos meus amigos
sobre a guerra e ele me perguntou: Qual é a sua opinião
sobre essa guerra infernal? Eu, meu querido amigo, que
quereis que eu te diga? O meu desejo é, em primeiro
lugar acabar com esses governadores, imperadores,
reis, e finalmente, com os burgueses, de todas as
classes, que são os causadores de toda essa monstruosa
catástrofe.... (O Início, 10/08/1916, p.03)
151
contra a guerra, o estudante também se declara favoerável à
eliminação de quaisquer tipos de governantes, demonstrando que
é pela presença dessa estrutura social que uma guerra mundial
surgiu e estaria infernizando milhares de pessoas.
Com relação aos soldados que iam para o campo de
batalha, o aluno teceu também algumas considerações:
152
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
O Pedreiro
O pedreiro é um operário que vive trabalhando para
dar conforto aos seus semelhantes . Constrói muros,
casas, pontes, palácios de muitos andares, etc.
153
Mas acontece que nem todos têm casas para morar
com sua família, havendo até alguns que moram em
cortiço. João B. Rocca, 12 annos. O início, 06.10.1928
(apud FREGONI, 2007, p.118)
3
Sobre a Geografia Crítica, Moraes (1987, p.126) aponta que: “A unidade
da Geografia Crítica manifesta-se na postura de oposição a uma realida-
de social e espacial contraditória e injusta, fazendo-se do conhecimento
geográfico uma arma de combate à situação existente.”
154
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
Considerações Finais
155
reproduzir os conteúdos apresentados pelo professor, nas Escolas
Modernas, bem como nas aulas o prof. João Penteado, percebe-
se uma maior liberdade de pensamento, ainda que a virulência
anarquista aparecesse na análise dos fatos, o que é demonstrado,
inclusive, pela presença de um jornal para os alunos exporem as
suas ideias.
Essa prática de incentivar a maior participação dos alunos
na organização da escola, ainda incomum em vários colégios
públicos e privados de São Paulo, tornava-os mais independentes
politicamente, possibilitando uma maior autonomia na vida que
se seguia após as aulas.
Desta forma, entende-se perfeitamente a grande oposição
da igreja e do Estado à metodologia utilizada na Escola Moderna,
do mesmo modo como, posteriormente, os motivos para que
o prof. João Penteado, de alguma forma, tentasse adaptá-la,
mas sem abrir mão dos princípios dessa pedagogia, para não
correr o risco de ter sua prática social mais uma vez tolhida pela
arbitrariedade do Estado.
Esperamos que esse artigo possa cumprir o seu papel
de informar , ainda que minimamente, as várias possibilidades
que a educação anarquista produziu no início do século XX,
assim como o fato de que suas várias propostas são de extrema
importância para a formação de uma escola dinâmica, plural,
autônoma, no qual todos participem de sua gestão, procurando
assim a formação de um espaço mais democrático e prazeroso
de trabalho e de formação educacional.
Fontes Primárias
156
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 92, 2012
REFERÊNCIAS
157
LA BLACHE, Vidal de. A Geografia na escola primária. In: REZENDE,
Eduardo Coelho M. et all (org). A Geografia fora da sala de aula.
São Paulo: Necropolis, 2008. pp 11-22.
LOPREATO, Christina R. O espírito da revolta: A greve geral
anarquista de 1917. São Paulo: Annablume, 2000.
MARAM, Lesli, S. Anarquistas. Imigrantes e o movimento operário
1890-1920. São Paulo: Editora Brasiliense.
PONTUSCHKA, Nídia et all. Estudo do meio: Teoria e prática.
Geografia (Londrina). Londrina, v. 18, n.2, pp.173-191, 2009.
RECLUS, Elisee. A evolução, a revolução e o ideal anarquista.
São Paulo: Editora Imaginário, 2002.
______________. Da ação humana na geografia física/Geografia
comparada no espaço e no tempo. São Paulo: Editora Imaginário/
Expressão e Arte Editora, 2010.
WARD, Colin. Anarchism – A very short introduction. Oxford:
Oxford University Press, 2004.
158