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Empreendedorismo, privatização

e o trabalho sujo da educação


Carolina Catini
Auttapon Moonsawad/123RF
resumo abstract

O artigo apresenta uma crítica das The article critiques the changes that
mudanças pelas quais o Ensino Médio está High School is going through, chaired
passando, presididas pelo empresariado by the business community organized
organizado em think tanks de política e in think tanks of educational policy and
trabalho social educativo. O protagonismo social work. Youth protagonism and
juvenil e o empreendedorismo, que estão entrepreneurship, which are at the core of
no núcleo da reforma e das propostas reform and flexible curricular proposals,
curriculares flexíveis, em conjunto com along with life projects and socio-
os projetos de vida e as habilidades emotional skills, are studied based on the
socioemocionais, são estudados a responses of the business community to
partir das respostas do empresariado às secondary occupations and, above all,
ocupações secundaristas e, sobretudo, by analyzing the previous experience of
pela análise da experiência precedente non-formal education of peripheral youth
da educação não formal da juventude organized by such social training institutes
periférica organizada por tais institutos and foundations. The article concludes
e fundações sociais de formação. with the analysis of education strategically
Conclui-se com a análise da educação transformed into a mechanism for the
estrategicamente transformada em management and containment of social
mecanismo de gestão e contenção dos conflicts and discipline for precarious work.
conflitos sociais, além de disciplinamento
para o trabalho precário. Keywords: entrepreneurship; education
privatization; entrepreneurs; youth;
Palavras-chave: empreendedorismo; containment.
privatização da educação; empresariado;
juventude; contenção.
Viperfzk/123RF
EDUCAÇÃO SEM ESTUDO estão querendo fazer? Estão querendo tirar
nossos estudos?” (Catini, 2015).

D
Uma resposta foi dada ao estudante algum
tempo depois, em meio a uma celebração
urante a primeira onda do dos vencedores da ocasião, simbolizada não
movimento secundarista apenas pelo fechamento na surdina de muitas
de ocupações de esco- salas de aulas e diminuição de vagas nas
las, em 2015, John, que redes públicas de educação, mas também,
estudava no centro de e sobretudo, pela “reforma empresarial” do
Campinas e morava na Ensino Médio (Freitas, 2018), que teve apro-
periferia da cidade, dizia vação como medida provisória em 2016 e se
que, se fechassem os tornou projeto de lei em 2017. Em matéria
cursos noturnos, ele não publicada em fevereiro de 2018 pelo jornal
teria tempo de sair do El País, figuras centrais do Todos Pela Edu-
trabalho e chegar a uma cação comemoram a reforma e a mudança
escola mais distante. O na estratégia pedagógica, que deve colocar o
plano de “reorganização” currículo de formação de jovens em conso-
contra o qual estudantes lutavam previa o nância com o mercado de trabalho, ambos,
fechamento de escolas, salas de aulas e cur- enfim, “flexibilizados”. O Todos pela Edu-
sos noturnos da rede pública estadual pau- cação se define como uma organização da
lista, em função da alegada necessidade de sociedade civil não governamental, sem fins
otimizar o atendimento, separando, defini- lucrativos, apartidária e que atua para mudar
tivamente, as escolas por ciclos e deixando
o Ensino Médio livre para uma forma espe-
cífica de intervenção empresarial. De frente
CAROLINA CATINI é professora da
para a câmera com a qual eu capturava a Faculdade de Educação da Universidade
entrevista, John me perguntou: “O que eles Estadual de Campinas (Unicamp).

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a educação e produzir qualidade. Uma think há motivos para escarafunchar um pouco


tank que reúne fundações e institutos sociais mais a proposta de transformar a educação
empresariais, num conglomerado de política controlada pelo empresariado num local de
de educação e trabalhos sociais. Entre as trabalho para a juventude da classe oposta.
saudações do empresariado ao novo currí- Apropriar-se privadamente da educação esta-
culo é Ricardo Paes de Barros, economista- tal não apenas para controlar a orientação da
-chefe do Instituto Ayrton Senna e fundador formação, mas também o próprio trabalho
do Todos Pela Educação, que apresenta a estudantil, para além do trabalho educativo,
reforma como oportunidade para resolver seria mais uma volta no parafuso e uma
o problema dos jovens que precisam traba- hipótese até agora pouco considerada nas
lhar. Um dos responsáveis pelo programa pesquisas sobre a privatização da educação.
Bolsa Família, Paes de Barros pensa que De fato, o mais provável é que não seja pos-
“a necessidade de trabalhar durante o dia sível ir tão longe assim, mas isso não nos
para complementar a renda familiar não é livra da necessidade de investigar as formas
impeditivo para aulas em tempo integral”. atuais de relação entre trabalho e educação
Essa problemática que pareceu insolúvel ao e analisar criticamente as propostas de quem
longo da história da educação seria equa- efetivamente preside os processos massivos
cionada se o jovem encontrasse “motivação” de educação, cujo caminho contribui para
para permanecer na escola em jornada inte- compreender as mudanças em curso e os
gral, caso a “escola possa transformar-se em motivos do processo de privatização.
local de trabalho”. Isso mesmo, o especialista
em desigualdades sociais considera que a PROTAGONISMO NEGATIVO
própria escola, lugar voltado à formação de
trabalhadores e trabalhadoras, deve se tornar Para nos aproximarmos deste estudo,
local de trabalho dos próprios estudantes, podemos olhar o desenho do currículo esco-
com produção e venda de serviços. Ainda lar paulista, um dos documentos que regu-
segundo a referida reportagem: lamentam a reforma do Ensino Médio no
estado de São Paulo, publicado neste ano de
“Para o especialista, a escola, por exemplo, 2020 (CEE, 2020). Nele, o currículo flexí-
poderia ter um espaço onde se pode produ- vel é apresentado como modo de fortalecer
zir, como nas unidades de ensino agrícola. o protagonismo juvenil, organizado a partir
Usando sua estrutura, é possível gerar ser- de alguns eixos estruturantes, com destaque
viços, com a utilização de laboratórios, para para o empreendedorismo. Assim, dentre as
produtos de informática e design, por exem- atividades eletivas, os exemplos apresentados
plo, que podem ser vendidos. Isso qualifica- costumam ser disciplinas como empreendedo-
ria os estudantes e coibiria sua ida para um rismo e educação financeira. Cada escola tem
mercado de trabalho que pouco demanda das o núcleo básico de português e matemática
habilidades dos estudantes” (Pinheiro, 2018). e deve ofertar, pelo menos, mais dois “itine-
rários” formativos, além de língua inglesa.
Poderia ser apenas um devaneio ou Quando a escola básica optar por incluir o
opinião disparatada do economista, mas itinerário formativo de formação técnica e

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profissional, estudantes podem receber habili- habilidades socioemocionais, foco para o
tações e certificações técnicas diretamente da qual se voltam todas as atenções nos con-
empresa empregadora que estabelece parceria textos de crise, os quais, não obstante, tor-
com a escola, e a formação pode incluir uma naram-se permanentes. As “metodologias
“fase prática em ambiente real de trabalho no ativas” são colocadas em curso com vigor
setor produtivo ou em ambientes simulados” para aumentar a “atratividade” do Ensino
(CEE, 2020, p. 16). Médio, que, segundo o Instituto Unibanco,
Nos programas educacionais não há sinal novo especialista em educação, foi atingido
de qualquer negatividade conjuntural. Pelo por uma grave “crise de audiência”, conforme
contrário, a sinergia entre a reforma do expressão utilizada para falar dos índices
Ensino Médio e as “competências para o crescentes e alarmantes de evasão escolar
século XXI” é apresentada como certeza de (Instituto Unibanco, 2008).
impacto positivo na “empregabilidade futura Com as habilidades socioemocionais
dos jovens, na redução das taxas de abandono o empresariado pretende ensinar a juven-
e evasão e no clima escolar” (São Paulo, tude trabalhadora, a partir de exercícios
2019, p. 23). O programa Inova Educação práticos – é claro, pois a teoria é pouco
tem participação especial do Instituto Ayrton atrativa e menos importante na nova fun-
Senna, que recentemente passou a liderar o ção escolar –, coisas como amabilidade,
Movimento Inova1, outro grande conglome- “resiliência emocional” e autogestão. Sim,
rado de fundações e institutos sociais que a autogestão. Não basta a classe dominante
atua em nível estadual, deixando assim de querer ensinar quem trabalha a sacrificar-
integrar o grupo de empresas que compõe -se e ser amável: pretende ainda transfor-
o Todos Pela Educação e que tem atuação mar autogestão em atributo pessoal. Uma
na gestão da educação em âmbito federal. forma organizativa do trabalho coletivo
No programa do Inova as palavras-chave e sem patrão organizada por movimen-
são educação integral, projeto de vida dos tos anticapitalistas agora pode se tornar
estudantes, as eletivas do currículo flexível, um princípio emocional no novo projeto
cuja escolha fomenta o protagonismo juvenil pedagógico empresarial.
e a introdução de tecnologia, sempre aliando Essa arte de assimilação e inversão semân-
formação cognitiva e não cognitiva. Essa tica é antiga nos esquemas de dominação e
última se refere a um dos carros-chefes do acompanha a entrada das organizações pri-
Instituto Ayrton Senna: as competências e vadas na gestão dos direitos sociais. O léxico
não é desimportante nesse projeto, pois faz
parte da produção de consensos a dissolu-
ção dos conflitos também na linguagem, con-
1 O Movimento Inova é composto pelo Instituto Ayrton
Senna, empresas e fundações de direito público ou traindo o pensamento em ideias sem história
privado, como a Fundação para o Desenvolvimento
da Educação (FDE), o Instituto de Corresponsabili- e sem conflito, escamoteando o fato de que já
dade pela Educação (ICE), a Fundação Lemann, a houve contestação radical a tal forma de vida.
Fundação Telefônica Vivo, a Sabesp, a Microsoft, a
Fundação Vanzolini, entre outras. Cf. site do Inova. Por vários ângulos, os planos indicam
Disponível em: https://inova.educacao.sp.gov.br/
uma ampliação do tempo de educação, com
movimento-inova/movimento-inova-2019. Acesso
em: 12/11/2020. diminuição dos conteúdos, no qual o apren-

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dizado prático e “não cognitivo” deve se Do ponto de vista do empregador e do


dar em detrimento do ensino de geografia, consumidor, a prestação de serviços por
história, sociologia etc. Com isso, os proje- aplicativo aparece como um trabalho just
tos de vida tendem a se tornar força motriz in time, justamente porque do outro lado
do currículo com base numa relação que há há a maior estocagem em massa de tra-
tempos se instalou, relativa à centralidade balhadores e trabalhadoras, sempre aler-
do estudante e da aprendizagem, que tem tas para não perder a chance de realizar
como contrapartida o apagamento do tra- um serviço com o máximo de eficiência,
balho docente e do ensino. Essa orientação ser bem avaliados, ganhar pontos e ficar
“para a vida” cindida da formação teórica entre os primeiros na próxima chamada. E
vai convidando o docente a assumir o papel assim, nas formas de viver a concorrência
de coach, pois a tarefa de identificar, avaliar diminuta, presente em cada simples tarefa,
e preencher os déficits de habilidades torna- distrai-se da tortura que a devastação pela
-se missão motivacional para amoldamento generalização de trabalho simples impõe
a atributos genéricos e formas de reação ao trabalhador. Como já dizia Marx n’ O
às instabilidades previstas pelos mercados capital, a introdução de maquinaria não nos
e investimentos (Laval et al., 2012). livra do trabalho, mas livra o trabalho de
O entusiasmo cheio de sentimento e pro- conteúdo e faz dele uma tortura dilatada
tagonismo dos programas de educação para no tempo. O capital expropria da atividade
o trabalho do século XXI contrasta com a viva do trabalho o conhecimento, que passa
objetividade predatória do trabalho no período a se concentrar nos meios de trabalho, como
que costumamos chamar de neoliberalismo. propriedade do trabalho morto. Essa cisão
E aqui também há esforços de apresentar o entre trabalho e conhecimento seria apenas
trabalho pelos seus contrários. Pelo menos um dos momentos negativos do trabalho
até as lutas massivas dos trabalhadores de que seria necessário reter para analisar sua
aplicativos durante a pandemia2, por exemplo, relação com a educação. Mas o fato é que a
chamava-se de autonomia e empreendedo- tortura é mais evidente pela intensificação
rismo os precários vínculos empregatícios da da jornada e pela gravidade do baratea-
força de trabalho com grandes empresas de mento da força de trabalho, cuja imagem
prestação de serviços. Propagava-se assim o mais emblemática é a do trabalhador que
ilusionismo inventado pelas empresas de que entrega marmitas com fome3.
não há relação trabalhista, porque os contratos Do ponto de vista de nosso economista
são tão precários que o disfarce de cadastro e especialista em desigualdades sociais, não
em aplicativos os veste quase perfeitamente.

3 “É tortura passar fome carregando comida nas costas”,


2 Entregadores de aplicativos realizaram dois dias de disse Galo, um dos entregadores que se organizou nas
greve e mobilização nacional no mês de julho de lutas por melhores condições de trabalho por aplica-
2020, em meio à pandemia. Cf. reportagem do jornal tivos, em São Paulo, 2020. Cf. reportagem disponível
Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefa- em: http://abet-trabalho.org.br/entregadores-se-unem-
to.com.br/2020/07/30/a-guerra-continua-prometem- -por-melhores-condicoes-de-trabalho-nos-aplicativos-
-entregadores-dos-breques-contra-apps. Acesso em: -entrego-comida-com-fome-diz-ciclista. Acesso em:
12/11/2020. 12/11/2020.

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se vê nem se sente o terror que redunda de EMPREENDEDORISMO
uma mobilização total pelo trabalho, con-
“SEM FINS LUCRATIVOS”
traposta pela fraqueza dos vínculos criados
pelos empregos precários, cujo exercício
temporário e intermitente já significa uma Maria Alice Setubal (2015), herdeira do
vitória num verdadeiro campo de batalha Itaú no país e figura central da filantropia
da concorrência, das reestruturações produ- educacional dos braços sociais do banco, sau-
tivas, de escassez e privações de todo tipo. dou as ocupações secundaristas como uma
Vera Telles (1999) já apontava um índice “aula de cidadania”, exigindo “resposta con-
alarmante da “sociedade do desmanche” sistente a esse clamor por mais democracia
em meados dos anos 90, quando quase 60 e serviços de melhor qualidade”. Com mui-
por cento da população ativa vivia à mar- tos elogios ao protagonismo da juventude, as
gem de qualquer proteção social, entre o fundações empresariais passaram a apresen-
desemprego massivo e a imensa extensão tar as manifestações secundaristas como um
da informalidade do trabalho. De lá para dado da confluência entre as reivindicações
cá se cavou um tanto mais o fosso criado estudantis e as mudanças que o empresariado
entre a cobrança excessiva para dar conta estava planejando há mais de década para o
do recado das metas sempre crescentes e o Ensino Médio. Não foi muita gente que notou
reconhecimento tácito da descartabilidade “algo de podre no ar” (Passa Palavra, 2016).
de cada um de nós. A generalização da pre- A naturalização do fato de que uma insti-
cariedade objetiva e subjetiva do trabalho tuição como o banco mais lucrativo do país
(Linhart, 2014) se relaciona com a “inten- possa ser educador da juventude trabalha-
sificação do sofrimento social” do período dora está em vias de se consolidar plena-
neoliberal, segundo expressão de Dejours mente. E isso não se dá somente por conta
(2006), e tem consequências brutais na con- da atuação na produção de influência nas
solidação de uma “centralidade negativa do políticas de educação, mas também pelas
trabalho”, como lê Paulo Arantes (2011). mudanças materiais que estão conseguindo
Essa centralidade negativa do trabalho colocar em prática pontos nevrálgicos das
marca nosso modo de viver e nos divide. formas de organização social. Ainda que faça
“Do ponto de vista da nova organização sentido considerar que o interesse privado
capitalista”, diz Silvia Viana (2013, p. 49), na educação das classes populares está na
“somos todos potencialmente lixo, porém, captura de recursos estatais e na amplia-
enquanto alguns podem se reciclar, o resto ção de mercados – como analisa a maior
é orgânico”. É preciso mexer nessa sujeira parte da produção teórica crítica sobre a
toda e ver como o trabalho de triagem sele- privatização da educação –, a conquista da
tiva se traduz na “educação ao longo da hegemonia não passa só pelas altas esferas,
vida”. O estudo da educação da juventude mas se deve também à capilaridade que os
trabalhadora controlada pela classe empre- institutos privados conquistaram nas escolas
sarial exige o máximo distanciamento do e nas periferias, pelo desenvolvimento de
idealismo que nasce agarrado feito unha uma miríade de programas e projetos de
na carne do debate educacional. educação não formal e em parceria com a

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educação formal, os quais perfazem quadro sociais, que passam a ser objeto da inter-
significativo das políticas sociais. venção privada e a se dirigir para “públicos-
Cada uma dessas organizações sociais é -alvo”. É política social para a juventude e
um “aparelho privado de hegemonia”, nas não mais política educativa. As políticas são
palavras de Virgínia Fontes (2017), o que focais para o público e totais pelo espec-
se pode ver pelo grau de integração entre tro de ação, envolvendo segurança, trabalho,
tais entidades e o Estado, ou pela sua inser- cultura, educação e assistência mesclados na
ção indiferenciada em diferentes projetos de política social. Que esse público seja apre-
governo. Em conjunto com as decisões políti- sentado com idade, mas sem classe, nem
cas, a concentração de poder econômico criou raça, não escamoteia o fato de que são esses
um poder que age como razão de Estado. O mesmos elementos que tornam a juventude
Estado “não é apenas uma plataforma que alvo das novas políticas sociais empresariais.
as classes dominantes usam para assegurar Fomentar o tal do protagonismo juvenil
a sua coesão, nem um simples instrumento foi uma das estratégias das políticas sociais
de opressão dos explorados”, como diz João empresariais para a juventude, antes de fazer
Bernardo (2018): “[...] na sociedade atual a moda chegar à escola. Desde os anos 1990
uma classe domina na medida em que dita ampliou-se muito a esfera de atuação educa-
a organização interna da classe dominada”, cional por meio de todo fomento à criação
oferecendo “o quadro e as modalidades em de organizações sociais da sociedade civil,
que se organiza” (Bernardo, 2018, p. 14). com as quais o contraturno passou a ser
O empresariado tem dominado não apenas povoado de propostas socioeducativas do
o campo da produção, mas também o da repro- terceiro setor, uma verdadeira rede paralela
dução social, ao reorganizar os direitos sociais de educação, de modo que “jovens pobres
e, com isso, oferecer um quadro empresarial de são cada vez mais submetidos à ação inten-
organização de trabalhadores e trabalhadoras cional de duas redes educativas: escolar e
que dependem de tais serviços. O domínio do não escolar” (Sposito, 2008, p. 90). Ambas
trabalho social pelas organizações sem fins são organizadas tanto pelas fundações e ins-
lucrativos transformou a questão social numa titutos quanto pelas organizações da socie-
questão empresarial, sem nunca deixar de ser, dade civil, que atuam independentemente ou
vale dizer, assunto policial. terceirizando o atendimento dos programas
Na mesma matéria do El País, Ana Inoue, de assistência social. O protagonismo juve-
assessora para assuntos educacionais do Itaú nil fundamenta projetos de parcela expres-
BBA, comenta as políticas desenvolvidas em siva de entidades privadas que trabalham
conjunto com o Instituto Unibanco para atuar com juventude, como o Instituto Ayrton
no problema da falta de perspectiva para a Senna, a Fundação Educar DPaschoal, a
juventude egressa do Ensino Médio e conclui Fundação Odebrecht e tantas outras, como
que “precisamos de uma política eficaz vol- mostra pesquisa de Regina Magalhães de
tada aos jovens de 18 a 24 anos” (Pinheiro, Souza (2008). Os programas costumam se
2018). Ela nos lembra que não se trata apenas organizar numa tríade: auxílio financeiro,
de uma transformação da política educacio- presença em atividade educativa no con-
nal, mas de uma reengenharia dos direitos traturno escolar e contrapartidas.

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O Itaú Social, este sim “protagonista” roupa de profissionalizar “hobbies” e paixões
da reforma do Ensino Médio e do Todos e realização de projeto pessoal. A contra-
Pela Educação, coordenou políticas sociais partida é a presença na escola e o próprio
para a juventude fora da escola, e deve ter empreendedorismo social que, supostamente,
aprendido bastante sobre os benefícios de leva desenvolvimento para o bairro.
colocar em curso, em escala reprodutível, Para dar um outro exemplo, a Fundação
o protagonismo juvenil nas periferias das DPaschoal, que também faz parte do Todos
grandes cidades. Por mais de uma década, de Pela Educação, realiza formação de jovens
2004 a 2017, por exemplo, a Fundação Itaú periféricos em parcerias com escolas públicas
Social financiou o Programa Jovens Urbanos, desde a década de 1990. Atualmente, a for-
executado pelo Centro de Estudos e Pesquisas mação se baseia em dinâmicas semelhantes
em Educação, Cultura e Ação Comunitária às de processo seletivo para vaga de emprego,
(Cenpec) em parceria com associações de com desafios propostos e avaliação das con-
moradores e outras instituições locais nos dutas e atitudes dos jovens, por três tardes
bairros periféricos de grandes cidades. Numa da semana. As dinâmicas e oficinas devem
avaliação do programa se lê: ser replicadas na escola pelos estudantes e
educandos da fundação. O tripé funciona no
“Cada vez mais jovens têm protagonizado primeiro ano em que o estudante frequenta
projetos pessoais voltados para a produção o projeto e, no ano seguinte, é selecionado
e gestão de cultura e arte. Organizados em um pequeno grupo que se torna monitor do
coletivos e pequenos empreendimentos inde- mesmo programa em troca de um curso de
pendentes, eles têm sido responsáveis por ver- línguas. No terceiro ano, alguns são selecio-
dadeiras revoluções no campo dos negócios, nados para outros projetos ou para o traba-
guiados pela ideia de ganhar a vida fazendo lho em algum setor da produção e venda de
o que gostam, profissionalizando seus hobbies autopeças, num regime de oito horas por dia
e suas paixões. Além disso, as novas formas e meio salário mínimo. Muitos dos jovens se
de produção impactam também na necessi- mantêm ligados apenas pelo trabalho social
dade de reinventar o conceitual relacionado voluntário da fundação por largos anos, inde-
ao trabalho, seja pela indução contínua a pendentemente de estarem ocupando ou não
novas ocupações, seja pelas modalidades de alguma posição na empresa.
emprego formal, autônomo, virtual ou pon- A formação da juventude pelas funda-
tual” (Itaú Social, 2013, p. 30, grifos meus). ções e institutos sociais a mantém ligada
às empresas pelo voluntariado nos trabalhos
O protagonismo aparece absolutamente sociais e pelas chances de empregos tempo-
ligado ao empreendedorismo periférico cul- rários na própria empresa, ou, ainda, pela
tural, cuja revolução no campo dos negócios indução da formulação de novos projetos
nada mais é do que a necessidade de se sociais, com os quais se dá a reprodutibili-
engajar de corpo e alma, não apenas para dade dos direitos sociais privatizados. Com
conseguir um emprego, mas também para a isso, canaliza-se boa parte da participação
criação dos próprios empregos. A reinvenção do “protagonista juvenil” para o desenvol-
conceitual é a boa e velha exploração com vimento de tais projetos e submissão desses

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aos prêmios e editais dos institutos. Projetos, das entidades privadas que realizam traba-
portfólios, planos de pesquisa e interven- lhos sociais responderam que não realizam
ção na cidade ao mesmo tempo criativos e atividades educativas e 40 por cento delas
amoldados pelos editais, de tal maneira que faziam parcerias com escolas.
projetos juvenis e programas empresariais O empreendedorismo juvenil nas políti-
se confundem. O trabalho sem remuneração cas sociais ensina a “sobreviver na adversi-
antecipado dos jovens serve para concorrer dade”, como analisam Corrochano e Tom-
com outros grupos, para conseguir financia- masi (2020), mas também ensina a reproduzir
mento, para ofertar um serviço social pre- essa forma de vida. Assim, em nome do
cário e com contrapartidas, tal qual tiveram protagonismo se aceita trabalhar para ofe-
acesso. Enquanto isso, as empresas vestidas recer direitos, destituído de todos eles. Esse
de institutos sociais sem fins lucrativos rea- modelo de gestão da pobreza pelas “estraté-
lizam processos seletivos para o mercado de gias de condução de condutas” faz com que
trabalho social onde estão dominando, sem a racionalidade apareça como “autonomia
que isso se apresente como trabalho, mas sim do self”, na qual os indivíduos são incitados
como geração de “oportunidades” para que desde cedo a “viver como se fossem proje-
as pessoas realizem seus projetos de vida. tos” (Tommasi & Velazco, 2013).
Quase toda grande empresa hoje tem Essa reprodutibilidade é um dos elementos
sua atuação filantrópica, seja por meio de que colocam o protagonismo juvenil como
projetos simples e pontuais, ou de progra- uma tecnologia social, que educa e difunde
mas complexos e tecidos em diversas redes um modo de vida na prática, alterando a
articuladas, com a extensão digna de pro- reprodução social. A reprodução passa a ser
gramas estatais em todo o país, como é o agenciada pela empresa totalitária, que não
caso da Itaú Unibanco Holding, com seu controla “apenas” o trabalho diretamente a
complexo de institutos sociais e culturais, ela subordinado, mas também a formação de
com prêmios e editais de fomento e “for- trabalhadores e trabalhadoras na educação
talecimento” da sociedade civil. Vale notar formal e não formal, e o trabalho social que
que, dentre as cerca de 300 mil fundações ela subcontrata por seus institutos.
e associações sem fins lucrativos do Brasil, Com isso se alimenta uma cadeia de
quase 65 por cento delas não tinham nenhum subcontratações de trabalho social, gesto-
vínculo empregatício em 2016, apoiadas em res, trabalhadores e trabalhadoras, num ciclo
trabalho voluntário, trabalho intermitente, de educação ligada ao emprego precário,
prestação de serviços por tempo determi- ambos organizados pelo mesmo empregador-
nado etc. (IBGE, 2016). Além disso, amaioria -educador. Como muitas vezes a empresa
delas atua na área da educação: segundo o que emprega é a mesma que educa, o pró-
Grupo de Instituições, Fundações e Empre- prio processo educativo pode ser visto como
sas (Gife)4, em 2014, apenas 15 por cento um imenso processo seletivo. Centrada nas
atitudes e comportamentos, a formação dos
jovens acaba perfazendo exercícios diários
4 Disponível em: https://gife.org.br/. Acesso em:
de treinamento de performances. Com isso,
12/11/2020. o processo se reduz a um aprendizado não

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só de como agir para ser o selecionado, o A tríade transferência de renda, edu-
líder, o protagonista, o herói – para mencio- cação e empreendedorismo social tornou-
nar os termos infantis dos programas socio- -se paradigma de políticas assistenciais
emocionais empresariais para a juventude para a juventude há muito tempo (Sposito,
que agora invadem a escola –, mas também 2008) nos programas governamentais exe-
para naturalizar a existência dos não sele- cutados pelo terceiro setor. Um aparente
cionados, dos liderados, dos coadjuvantes, paradoxo resultava das condicionalidades
dos que não têm salvação. Ou os que devem que o direito impõe: jovens em situação
ser eliminados, como diz o comando social de vulnerabilidade social devem se tornar
que vem do trabalho. protagonistas e empreendedores sociais. A
Com isso também a ideia de uma moeda aparência se dissolve quando se observa a
de troca para um serviço social vai se realização das contrapartidas, em forma de
consolidando por meio das contrapartidas, trabalhos “voluntários” e bastante precá-
que se realizam sobretudo na forma do rios nos bairros periféricos. A contrapar-
protagonismo, o famoso trabalho precá- tida como “ação voluntária compulsória”
rio, sub-remunerado, gratuito. “Nada de (Sposito & Corrochano, 2005) conforma
direitos sem contrapartidas!”, dizem Dar- já faz tempo uma política de penalização
dot e Laval (2016), repetindo a palavra da juventude e criminalização da pobreza.
de ordem da consolidação de uma relação Reformas de parques, manutenção de pra-
na qual o acesso a certos bens e serviços ças, escolas, organização de mutirões etc.
é “resultado de uma transação entre um são atividades da juventude protagonista.
subsídio e um comportamento esperado, ou É grande a semelhança com a rede de
um custo-direito para o usuário” (Dardot assistência social mercantilizada que opera
& Laval, 2016, p. 381). os programas de transferência de renda anali-
Não é por acaso que a gestão da pobreza sada por Loïc Wacquant em Punir os pobres
se dê por meio de trabalho ou simulação de (2003). Uma rede de “políticas de contenção
trabalho organizados pela classe empresarial repressiva”, na qual os beneficiários dos ser-
através da educação. “O empreendedorismo viços sociais devem aceitar trabalhar “sob
dos pobres não é nenhuma esquina da histó- pena de abdicar de seu direito à assistência”
ria nacional, mas uma saída de emergência (Wacquant, 2003, p. 28). Trata-se de “trans-
para o colapso da sociedade salarial”, nos formar os serviços sociais em vigilância e
diz Paulo Arantes (2014, p. 375). No fundo, controle das novas classes perigosas” (p. 29),
é a condição periférica que se expande e o que corresponderia à passagem de um wel-
torna obrigatória uma adaptação genera- fare state para um workfare. Nesse caso, que
lizada a esse modo de vida, já que para é o da maioria da população jovem brasileira,
a população negra e periférica “a socie- o sistema de contenção social está absolu-
dade salarial sempre fora uma quimera”, tamente ligado às outras políticas radicais
de modo que, na operação ideológica, o para a juventude, dentre as quais o genocídio
“empreendedorismo positiva sua variante e o encarceramento em massa.
popular, a viração, e oculta sua essência Vale notar aqui mais uma simetria:
de precariedade” (Costa, 2020, p. 7). enquanto Wacquant (2003) fala criticamente

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de um “complexo comercial carcerário-assis- lim” para o trabalho precário, como obser-


tencial”, a fundação social da Kroton (hoje vava Paulo Arantes em 2014, mas agora
Cogna) nomeia a educação brasileira como se educa pelo próprio trabalho degradante,
um “sistema educacional penitenciário”. Logo sem lapso temporal.
depois das ocupações de escola, em 2016, a De olho na “pacificação social”, Mozart
Kroton lançou um programa voltado à “paci- Neves Ramos (2019), ex-presidente do Todos
ficação” da educação, chamado Olimpíada da Pela Educação e do Instituto Ayrton Senna,
Esperança, que liga diretamente a infância e que flertou com o cargo de ministro da
pobre aos sobreviventes do sistema prisional. Educação do governo Bolsonaro, sugere uma
Cada aro da Olimpíada é um eixo de traba- divisão radical no sistema educacional esta-
lho: primeira infância, escola, jovens vulne- tal, a divisão entre redes de educação: a
ráveis que se evadiram da escola, sistema rede formal, presidida pelo empresariado,
prisional e egressos do sistema prisional. para quem tem chance de se posicionar
Em 2018, o programa foi lançado nacional- no mundo do trabalho, e a rede de edu-
mente para diretores e diretoras de escolas, cação não formal, feita de trabalho social
com a presença de empresários, investidores e organizada pela filantropia empresarial,
e secretários de segurança pública, e apre- para quem já desistiu, entre o desalento e
sentado como um projeto total, pois “para o descarte precoce.
mudar um país, basta uma geração” (Fórum,
2018). A máxima atenção se volta à juventude “Se quisermos enfrentar essa grave crise da
sem futuro, essa “bomba-relógio prestes a empregabilidade em um ambiente sem os
explodir” que ameaça e coloca em perigo atuais níveis de violência, teremos que cui-
a classe dominante. Diz a embaixatriz da dar de uma oferta educacional de qualidade
Fundação Pitágoras da Kroton: “Se nossas não apenas para os que estão na escola,
escolas e nossas empresas não recrutarem os mas também para aqueles que já desis-
jovens, o PCC vai recrutar” (Fórum, 2018). tiram de estudar e estão fora do mundo
A gestão da pobreza procede de modo do trabalho. Teremos que cuidar também
preventivo e exacerba a possibilidade de dos ‘desalentados’, das pessoas de baixa
conflito numa operação de “contrainsur- escolaridade e dos 11,8 milhões de analfa-
gência sem insurgência”, que Paulo Arantes betos. É um esforço hercúleo, mas não há
pensa com o arranjo entre Estado, empre- outro caminho. Há 50 anos, o Papa Paulo
sas, terceiro setor e comunidades para o VI, em uma das encíclicas mais importan-
qual a pacificação é o próprio “processo tes da doutrina social da Igreja Católica,
de autoempresariamento sem fim – pouco a Populorum Progressio, afirmou: ‘A paz
importando o grau de ficção e padecimento é o novo nome do desenvolvimento’. Esse
do processo, bem como a predação concor- desenvolvimento passa tanto por uma Edu-
rencial que ele necessariamente comporta” cação formal de qualidade – para aqueles
(Arantes, 2014, p. 372). A diferença é que que estão na escola – como pela oferta de
a “virada punitivista da nossa guerra con- uma Educação não formal para aqueles
temporânea” não se apresenta mais como que deixaram de sonhar com uma vida
serviços sociais que servem como “trampo- próspera” (Ramos, 2019, p. 40, grifos meus).

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Essa, sim, parece ser uma ideia dispara- transferência de renda para a juventude mais
tada, mas como os tempos não estão para vulnerável, com bolsas de estudo para uma
brincadeira, é preciso ficar alerta para o que formação pós-Ensino Médio (Fraga, 2020).
seria a mais grave divisão e segmentação Em 2003, Chico de Oliveira já criticava
determinista de nossa educação. Quem teria os inúmeros programas de transferência de
que fazer o trabalho sujo de seleção e tria- renda colocados em curso nas reformas dos
gem não seria mais ninguém além de profes- anos 1990, porque considerava a política cen-
sores, professoras, educadores e educadoras trada em levar o consumo aos mais pobres
e não os formuladores da proposta, econo- como “o mais poderoso narcótico social”
mistas, assessores e assessoras de bancos de (Oliveira, 2003, p. 144). As “políticas piedo-
investimentos, gestores e gestoras da casta sas” para “treinar” e “qualificar” a mão de
que representa a hegemonia empresarial. obra consistiam num “trabalho de Sísifo”,
em sua opinião, pois mesmo que o ciclo
TRABALHO SUJO AO LONGO DA VIDA econômico de trabalho se reativasse, apenas
poderia ocorrer “de forma intermitente, sem
sustentabilidade previsível” (p. 143). Quase
Para a investigação do processo de pri-
20 anos depois, com a virada da qualifica-
vatização convém ainda acompanhar os pro-
ção para o empreendedorismo, pode-se dizer
cessos de transferência de renda já ofertados,
que o alvo não é a empregabilidade, mas
por exemplo, pelo Instituto Unibanco na Edu-
o próprio trabalho de Sísifo. A educação
cação Básica ou pelo Itaú Social no Ensino
permanente se tornou, ela mesma, um meio
Superior5. Aliás, é Ricardo Henriques, supe-
de gerir a pobreza para o apassivamento
rintendente executivo do Instituto Unibanco
dos conflitos sociais, pelo seu caráter de
e também economista, quem sugere que a
mobilização total e preenchimento do tempo,
estratégia de “busca ativa” dos jovens “que
que exige engajamento objetivo e subjetivo
estão na iminência de abandonar a escola”
tanto de quem realiza o trabalho social pre-
no pós-pandemia seja aliada a programas de
cário e intermitente de educar, quanto pelo
engajamento constante dos educandos e das
educandas dos programas.
5 O Itaú Social, pelo menos desde 2018, passou a pagar
A necessidade de a escola ter que fazer
bolsas de estudos a todos os estudantes ingressantes uma “busca ativa” dos estudantes é sinal de
cotistas da Universidade de São Paulo (USP). Por en-
quanto, que se saiba, a única contrapartida cobrada é um direito que serve mais para quem o planeja
a aprovação nas disciplinas e uma quantidade mínima e organiza do que para quem pode obtê-lo. O
de matrículas em disciplinas. Vale notar que em 2019 o
mesmo instituto instalou na USP um polo privado de processo de privatização e controle empresa-
formação dentro da universidade pública, que oferta
gratuitamente formação continuada a professores
rial da educação altera o sentido da educação.
e professoras da rede básica. O projeto Jovem de A forma pela qual está organizado o direito
Futuro, do Instituto Unibanco, é programa de gestão,
com o objetivo de evitar a evasão e melhorar os resul- à educação procura impor ao trabalho educa-
tados dos jovens nas avaliações. Para estabelecer as tivo a realização da educação como imenso
parcerias com as secretarias estaduais de Educação, o
instituto faz transferência de recursos para cada escola processo seletivo, que não está somente no
com doação por cada estudante por ano e, neste caso,
funciona como um investimento na escola que tenta
ato contínuo de avaliar, classificar, selecionar,
cumprir as contrapartidas. triar, mas também no próprio ensino dessa

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relação e sua perpetuação. A radicalidade que ração. De resto, nossa atividade é simulacro
pode tomar a segmentação entre jovens entre de trabalho a moto-perpétuo, completamente
diferentes tipos de investimento na educação subordinado ao capital.
merece nossa máxima atenção. A educação ensina a vivermos para os
A educação ao longo da vida, pregada por desígnios do capital como se fossem os nos-
muitos anos pelo “aprender a aprender” e sos, mesmo sem patrão, sem vínculo empre-
“aprender a ser” da Unesco dos anos 19906, gatício, sem metas estipuladas externamente.
se materializa hoje no esvaziamento de con- Os fios invisíveis que nos ligam à explo-
teúdos da escolarização, no fomento e expan- ração funcionam 24/7, sem a intermitência
são do mercado filantrópico de trabalho de dos contratos. E assim, somos governados.
educação social, somada ao fato do direito à Transformar toda ação em trabalho ou simu-
educação se colocar a serviço da contenção e lacro de trabalho é o que dá à empresa a
da pacificação de uma sociedade à beira do capacidade de operar com amplo domínio,
conflito generalizado. O trabalho educativo pois maneja como ninguém esse campo de
para os pobres não prepara para nada além gerenciamento, que nasceu de suas entranhas.
de preparar para a educação contínua. Nunca Concorremos entre nós e deixamos de enfren-
tivemos tanto acesso à educação e nunca tar o que comanda nossas ações.
fomos tão privados e privadas de formação. Para continuar a conversa com John, o
Na falsificação de uma educação que pre- ex-secundarista que ocupou sua escola para
para os jovens com amabilidade e dinâmi- não perder os estudos, é possível dizer que a
cas ativas e os envia para o abatedouro da reorganização escolar não previa somente a
concorrência mercantil neoliberal, o ensino eliminação física das escolas, mas a manu-
do empreendedorismo cumpre seu papel tenção das outras escolas com parte impor-
de privação da formação intelectual, mas tante dos estudos subtraídos. No fundo, a
também de ocupação de tempo integral sob expropriação da formação intelectual tem
tutela de confinamento territorial. O ensino diferentes graus, distribuídos pelos níveis de
do empreendedorismo é uma forma de gestão pobreza e “periculosidade” do público-alvo
da pobreza não apenas pelo trabalho com- a que se destina o direito à educação. De
pulsório, mas também pelo disciplinamento qualquer forma, para a maioria, o conheci-
a uma nova ordem do capital. Nessa nova mento vai se cindindo da educação, assim
ordem capitalista devemos dispor integral- como do trabalho.
mente nosso tempo para o capital fazer uso É preciso reconhecer que, assim como o
dele sem nenhuma perda de tempo na explo- trabalho, a educação pode não ser formativa.
Ela é uma relação objetiva que pode mesmo
ser um obstáculo para a formação. Uma edu-
6 Cf. “Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para cação em estado falso, para contenção, para
a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação
para o século XXI”, cujo trabalho de análise e reco- subserviência, alienação, aceitação e adap-
mendações para a educação foi coordenado por tação a condições cada vez mais brutais de
Jacques Delors, e que por isso ficou conhecido como
o famoso “Relatório Delors”. Foi publicado em 1996 e existência. Nossa cumplicidade e colabora-
em 1998 no Brasil. Disponível em: http://dhnet.org.br/
dados/relatorios/a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_des-
ção com esse sistema seria um verdadeiro
cobrir.pdf. Acesso em: 4/11/2020. trabalho sujo na história da educação.

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