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WELITON DE CARVALHO
Florianópolis, SC
2017
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WELITON DE CARVALHO
Banca Examinadora:
Orientadora:
__________________________________________________________________________
Prof. Dra.Valeria Maria Fuser Bittar
Centro de Artes - UDESC
Membros:
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Zamith Almeida
Centro de Artes - UDESC
__________________________________________________________________________
Prof. Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs
Centro de Artes - UDESC
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Guto e Lu, por estarem ao meu lado apoiando e aconselhando,
concordando e discordando, em silêncio e dialogando, pelas caminhadas à beira mar, pelos
choros, risadas e esforços sem medidas. Não tenho como dizer e agradecer o que são e o
quanto fazem parte deste percurso. Obrigado por serem presentes sempre, muito orgulho e
amor por vocês!
À toda família: minha irmã Helen, pela história compartilhada, e meu cunhado Jimmy,
os quais admiro; minha prima Lais pela amizade e irmandade singulares desde sempre; meus
amados avôs, avós, tios, tias, primos, primas. Vocês são incríveis!
Aos queridos amigos de Imbituba e de Florianópolis pelo contato e afeto
indispensáveis, entre sanidade e loucura, amo cada um e todos!
Ao pessoal da UDESC, em especial os funcionários e acadêmicos do Centro de Artes,
onde faço a maior parte de minhas andanças em vida e em arte durante os anos da graduação.
Pelo vaivém dos olhares e passos, gratidão.
Ao meu orientador artístico, professor Dr. Maurício Zamith pelo cuidado, paciência e
atenção em cada passo do meu processo de aprendizagem pianística durante esses anos de
graduação. Ainda temos um recital de formatura pela frente. Obrigado pelo diálogo e parceria
nesta trajetória!
Ê, tatuarambá
Ô, calar o corpo do samba
Ê, sujar o corpo de samba
segura o rabo do samba, ta aí, pintou
[...]
RESUMO
Esta pesquisa tem como vontade primeira refletir acerca do trabalho do performador
musical em performance, o que gera um mapeamento inicial em torno de algumas palavras,
suas camadas e seus campos de atuação. Tomando o corpo como elemento articulador da
pesquisa bibliográfica proposta, o trabalho irá observar, num primeiro momento, como a
experiência viva do músico performador com o próprio fazer podem se relacionar com sua
pesquisa acadêmica e artística. Num segundo momento, estudará a sociedade disciplinar
produtora dos corpos dóceis que se põe a investir (FOUCAULT, 2014) o corpo do músico e
seus fazeres em formação e em performação através de um adestramento técnico-mecânico
fundamentado na abstração dos processos artísticos operados em música e, especificamente
aqui, em técnica pianística. A partir disso, num terceiro momento, se aproxima de possíveis
caminhos desviantes à mentalidade disciplinar, indo em direção a uma vivificação do corpo
do músico atuante em Ato através da abordagem somática proposta pela Técnica Klauss
Vianna de escuta do corpo (BITTAR, 2012).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08
1 A N D A N Ç A S..................................................................................................................33
2.2.4 Ação pianística – vias e possíveis desvios por uma abordagem somática.................89
RESSONÂNCIAS..................................................................................................................112
REFERÊNCIAS....................................................................................................................115
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INTRODUÇÃO
estuda possíveis posições que o performador de música pode tomar enquanto pesquisador de
seus próprios fazeres. Tendo em vista a relação com a questão do corpo na performance que
as ‘danças’ e os ‘andares’ rememorados na trajetória do primeiro capítulo delineiam, o
próximo passo é dado em direção a uma observação acerca da formação em música e suas
implicações histórico-político-culturais no aprender e no fazer [desempenhar?] do
performador.
O segundo capítulo, tendo em vista que o percurso desta pesquisa bibliográfica é
delineado pela presença do corpo, pretende mapear práticas e discursos inscritos na formação
e na performance musical também de um ponto de vista ‘micropolíticotecnológico’ [unindo
os termos “foucaultianos”]. Para isto, o autor enfrenta um caminho metodológico que se
aprofunda na história da sociedade ao estudar o momento “das disciplinas” e dos “corpos
dóceis” conforme o que é postulado por Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir (2014
1ªed. 1975). Depois, juntamente com a tese da flautista Valeria Bittar, Músico e Ato (2012), o
estudo se direciona para a formação e a performação do músico ocidental que operam sob a
mentalidade observada inicialmente, lançando prerrogativas e condutas padronizadas para o
fazer musical que é gerado num terreno de abstração e de anulação do sujeito músico em
performance. Por fim, a discussão é conduzida ao âmbito da técnica pianística de forma a
mapear alguns discursos e tecer observações acerca da ação didático-política operada sobre o
corpo de quem toca piano.
A terceira parte diz respeito às considerações finais do trabalho e pretende ensaiar
possíveis caminhos desviantes ao percurso de formação para a performance inscrito na
mentalidade observada no capítulo anterior. Isto se dá através do diálogo com as áreas de:
Comunicação e Semiótica, Teatro pós-dramático, Performance musical, Dança
contemporânea e Educação somática que estudam o corpo, a cena e a performance a partir de
uma reformulação das próprias condutas em arte. O que pode, no mínimo, servir de interesse
para o músico. Pois acredito que, na dimensão em que este trabalho arrisca se movimentar, da
mesma forma que xs artistas da cena são artistas do corpo, também xs artistas da performance
musical são artistas do corpo. E trabalham por meio do corpo e de “suas forças”
(FOUCAULT, 2012) ou, se isto for possível em música, através do corpo e de sua presença
em performance.
Através deste percurso o presente trabalho de conclusão pretende tramar a
possibilidade de uma abordagem somática para a performance musical, tanto para com a
didática quanto para com a técnica, que pelo viés dessa abordagem não estão separadas nos
processos de fazer, criar e ensinar do artista.
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Para delimitar o terreno em que atuo no desenrolar desta pesquisa, cabe aqui esclarecer
alguns dos termos utilizados nos capítulos que seguem, de acordo com sua origem e
localidade teórica na forma de um “glossário introdutório”. Conceitos como performance,
interpretação, performador, corpo, soma (educação somática), ação pianística e experiência
musical serão pensados junto a diversos autores. Ao longo deste estudo inicial, que tem como
ideia estrutural um glossário, proporei discussões em diálogo com trabalhos acadêmicos
acerca das noções e conceituações dos termos em questão, dando início a um mapeamento de
seus respectivos discursos. As ideias geradas por estas palavras serão desenvolvidas e
articuladas no desenrolar do trabalho, juntamente com o referencial teórico adotado. Então,
por que tais palavras? O que cada termo significa e qual sentido carrega, implica diretamente
no rumo que as discussões propostas tomarão.
Sempre que me refiro ao fazer musical como atuação utilizarei a palavra performance.
A intenção de usar esta palavra não se relaciona diretamente com o termo atual dicionarizado
que irá sugerir uma definição, ou avaliação da atividade performativa em música como
desempenho e resultado, conforme posto nos Dicionários Michaelis, Aurélio e Houaiss.
Tendo em vista que neste campo a palavra desempenho estará diretamente conectada com a
maneira que uma tarefa é executada, sofrendo, em seguida à sua execução, a graduação de sua
eficácia a ser analisada e avaliada.
De acordo com o Dicionário Aurélio, o desempenho de algum trabalho ou atividade
exige fatores como competência e eficiência; a maior parte do verbete se refere ao conjunto
“de características ou de possibilidades de atuação de máquina, motor ou veículo, tais como
velocidade, capacidade de carga, agilidade, autonomia de movimentos, rendimento, etc.”
(AURÉLIO, a, p. 641). Assim ficam explícitos os parâmetros que estão em jogo na utilização
desses fatores e palavras, quais sejam, moldam uma mentalidade que permeia o discurso na
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daqueles que dão forma, que fazem (performadores) e daqueles que recebem ou interagem
com estas ações de forma presente e participativa, ativa, viva (audiência).
O significado de performance a partir de desempenho, de acordo com Valeria Bittar
(2012, p. 142), se direciona ao “padrão de treinamento instaurado no século XIX, cuja
ferramenta é a repetição desacordada e mecânica”. Neste caso, a performance musical
aproxima-se do conceito da performance esportiva, cuja finalidade é o desempenho, a
demonstração e a avaliação de habilidades.
Sendo assim, estabeleço neste trabalho, em continuidade a linha que está sendo
traçada, o conceito de performance como “constitutiva da forma” (ZUMTHOR, 2007, p. 30),
de acordo com o que é proposto de maneira muito singular pelo medievalista suíço Paul
Zumthor, conforme trecho abaixo transcrito, extraído de seu livro Performance, Recepção e
Leitura:
Entre o sufixo designando uma ação em curso, mas que jamais será dada por
acabada, e o prefixo globalizante, que remete a uma totalidade inacessível, se não
inexistente, performance coloca a “forma”, improvável. Palavra admirável por sua
riqueza e implicação, porque ela refere menos a uma completude do que a um desejo
de realização. Mas este não permanece único. A globalidade, provisória. Cada
performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a
cada performance ela se transmuda. (ZUMTHOR, 2007, p. 33)
Ou seja, neste caso a pessoa “responsável” por executar a obra prima do compositor,
sujeita-se como um “servidor inteligente” que age por uma atitude concentradamente
racional-analítica da obra, distanciada do corpo e seu fluxo. Porém, ‘distanciada do corpo’
somente na medida em que isto se torna possível através dos ‘mecanismos de controle e
docilidade investidos pelas disciplinas ao longo da formação em música’ (Ver capítulo 2 deste
trabalho), pois em Zumthor (Performance, recepção e leitura, 2007) é possível perceber que
performar implica necessariamente um “engajamento do corpo”. Portanto, nesta concepção
conceitual de executante/execução, não são levados em consideração aspectos reais presentes
na realização musical, incluindo aqueles relacionados ao performador, que também pensa
(como o Musikdenker), cria, atua. A saber: a percepção, a memória, a corporeidade, a
performatividade e as relações estabelecidas entre fazedor, compositor, instrumento, espaço e
ouvintes. Caberia aqui perguntar “qual é o lugar onde o pensamento pensa?”.
Consultando novamente o Dicionário Aurélio (2004) percebemos como o verbo
executar está relacionado às atividades jurídicas na sociedade e ao campo tecnológico das
informações. Apesar de também definir atividades artísticas como “tocar, cantar, representar,
interpretar, encenar” (para música e teatro), a palavra chega a se relacionar (talvez indo ao
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encontro de um sentido mais lógico e estrito) com o verbo “supliciar” 1. Portanto, com base na
significação proposta pelos dicionários atuais, considero que a mesma mentalidade que
permeia estas palavras, poderá gerar um discurso a ser incorporado em nosso fazer artístico, a
prática de performance musical, no que diz respeito à tarefa de executar algo externo ao
próprio corpo, ao hic et nunc e às relações. Neste discurso proferido e encarnado em nós
mesmos, até que ponto “executamos”, até que ponto somos executados?
1
Neste sentido, esta prática punitiva será abordada de acordo com o livro Vigiar e Punir (2014) de Michel
Foucault no inicio do segundo capítulo deste TCC.
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Schenker, como sendo “a rigor, todos extramusicais – representam os meios para que a
‘dissimulação’ de ‘efeitos’ possa ter efetivamente lugar” e permitem ao intérprete “sublinhar
certos detalhes estruturais da obra com mais eficiência em termos técnicos e com maior
fidelidade em termos de expressão, dinâmica, estilo e forma”. (KUEHN, 2011, p. 8)
Neste caso, mesmo levando em conta “que a questão performativa da prática musical
não existia na época de Schenker da forma como ela se coloca hoje em dia, estando em Schenker
limitada a tópicos de técnica e de gestualidade da execução ao vivo de uma obra” (Idem), o que
se manifesta é, novamente, uma concepção de performance que atenta para a destreza no
(des)empenho do intérprete. Este, partindo de seu conhecimento e experiência prévia, tem
suas ações reduzidas à compreensão submissa do texto musical, e o texto tem seus elementos
intramusicais sublinhados pelo intérprete para o ouvinte através de elementos ou ferramentas
extramusicais. Nesta abordagem, o performativo é considerado como algo extramusical, fora
da música. É desta maneira que a “‘obra de arte’ – isto é, a partitura de uma determinada
composição musical – constitui para Schenker uma espécie de entidade ontológica inviolável
que, sagrada, nunca deve ser sacrificada em favor da sala, do público, ou dos dedos”.
(SCHENKER, 2000 apud KUEHN, 2011, p. 6, grifo meu)
Agora, outro entendimento que o fazer musical contemporâneo instaurou nos papéis e
nas relações entre compositor e performador para a constituição da obra musical surge nos
trabalhos de compositores como Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen, por exemplo.
Após período com experiências musicais de produção eletrônica, a qual prescinde das ações
do intérprete, Stockhausen, reconhecendo a expressividade que é possível apenas na
performance humana, retoma em sua criação técnicas que implicam a materialidade física do
fazedor de música, contando inclusive com suas limitações técnico-físicas para a realização
sonora da obra.3 Neste caso, fica saliente o interesse do compositor pela música instrumental e
a interação em arte que se torna possível na relação com o “intérprete”/performador. De
maneira semelhante, o compositor Pierre Schaeffer em seu Tratado dos Objetos Musicais
(1998) se põe a questionar acerca da supremacia das “notas musicais” enquanto texto fixo e
abstrato. Ao refletir em suas considerações acerca do “próprio curso dos sons” implicando na
realização da obra musical é possível perceber que, em seu discurso, entra em jogo a
performance como materialização, concretização dos sons no espaço. Seguem algumas
interrogações do compositor:
Por acaso acreditamos que no Ocidente somos insensíveis a este jogo de alturas
aproximadas, das que apenas ousamos nos dar conta? Uma boa voz em um lied que
lhe permita brilhar se expressa somente pelas alturas que a partitura indica? Não há
nas interpretações verdadeiramente sutis uma variedade de alturas quase asiática e um
jogo de timbres no próprio curso dos sons? (SCHAEFFER, 1998, p. 289)
3
Se, após um ano e meio trabalhando exaustivamente em composições eletrônicas, eu agora trabalho em peças
para piano ao mesmo tempo, é porque nas composições mais fortemente estruturadas eu sou exposto contra
fenômenos musicais essenciais que não são quantificáveis. Eles não são menos reais, reconhecíveis, concebíveis
ou palpáveis por isso. Estes eu posso melhor clarificar – no momento – com a ajuda de um instrumento ou
intérprete do que dos meios eletrônicos de composição. Sobretudo isso tem a ver com a concepção de um novo
senso de tempo musical, expresso de maneira mais real pelas nuances ‘irracionais’ infinitamente sutis, tensões e
agógicas de um bom intérprete do que por qualquer medida em centímetros. Tal critério ‘estatístico’ irá abrir
uma perspectiva completamente nova e até então desconhecida sobre a relação entre fatores instrumentais e de
performance. (STOCKHAUSEN apud MACONIE, 1990, p. 43).
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diferentes fazeres em música em nome da obra de arte em si? Daquilo que é evocado no
espaço e no tempo entre os corpos.
Ainda sobre a maneira que o termo reprodução é utilizado por Frank Kuehn (2012), a
despeito do pensamento de Schenker apresentado anteriormente, observa-se outra articulação
teórico-conceitual. Evocando a recorrência ao termo “reprodução musical” em Theodor
Adorno, e ponderando elaboradamente suas considerações de acordo com traduções e
contextualizações teóricas, Kuehn trabalha sobre os termos reprodução, interpretação e
performance musical na proposição de um trinômio [reprodução: interpretação –
performance] que pretende servir como “uma espécie de arcabouço conceitual da(s) prática(s)
interpretativa(s)”. O autor utiliza este termo a partir do que elabora Adorno e o esclarece
conforme o trecho abaixo:
Considerando o hic et nunc (aqui e agora) como a unidade de presença da obra de arte
no próprio local onde se encontra, conforme evocado por Walter Benjamin ao falar sobre A
obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Adorno inclui em seu
entendimento de “reprodução musical” o caráter temporal/histórico da realização ao vivo e in
loco “de uma obra musical a partir de seu registro em forma de texto ou de partitura”
(KUEHN, 2010, p. 6). Kuehn esclarece que esta ideia de reprodução não se vincula ao
conceito de “reprodutibilidade técnica” que “denota as diferentes técnicas para reproduzir
cópias de uma obra de arte a partir de um original, molde ou modelo em suportes mecânico-
industriais”. (Idem)
As considerações de Adorno implicam na proposição de Kuehn a respeito da
reprodução musical realocada nas práticas interpretativas enquanto conceito abrangente,
ocorrendo por duas vias: pela interpretação e pela performance, deste modo, formam-se três
categorias centrais do processo artístico que não se confundem entre si. Os conceitos de
reprodução, interpretação e performance representam diferentes princípios “onde cada campo
pode constituir objeto de uma grande variedade de análises”. (KUEHN, 2012, p. 16, grifos
meus). Kuehn propõe que, dependendo do gênero (não se restringindo ao gênero clássico-
romântico) e da linguagem musical em questão, pode se eleger uma ou outra categoria como
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ponto de partida para estudos. Nesta articulação conceitual “tanto a medida proporcional
quanto a qualidade de cada elemento categorial [interpretativo e performativo] vão se refletir
diretamente no resultado final da reprodução”. (Idem)
Desse modo, restaura-se, por assim dizer, no momento da reprodução, uma espécie
de campo agonal em que as forças musicais da composição (rítmicos, harmônicos,
dinâmicos, elementos estruturais etc.) interagem com a materialidade corporal e
gestual da performance, do ambiente social e natural (acústico, por exemplo) do
local da reprodução. (KUEHN, 2012, p. 15)
4
Conforme proposto por COOK (2006) e ALMEIDA (2011). Desta forma inverte-se o caminho de conceituação
de performance: do fazer musical emerge um sentido performativo que não se reduz a “elementos
extramusicais”, por exemplo. Performance é algo próprio da música, o esforço aqui se direciona a identificar
alguns discursos que fazem uso da palavra performance e, assim, rearticular/reposicionar o conceito de
performance musical no TCC.
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Assim, o autor aponta para a filosofia do britânico John Austin nos Performance
Studies que elabora uma “teoria dos atos de fala” aproximando elementos da linguística e da
filosofia da linguagem que revelam o caráter de criação, além daquele de reprodução, contido
na linguagem através das enunciações. Isso resulta na questão central sobre a qual as
investigações de Austin se desdobram: “o que exatamente acontece no momento da fala? No
‘ato performativo’ (speech-act) da fala?”. (KUEHN, 2012, p. 13) De acordo com Austin, o
autor explica: “As palavras enunciadas, portanto, não são necessariamente uma mera
consequência do mundo que nos cerca. Também é possível o mundo social constituir-se de
acordo com os nossos enunciados”. (Idem)
Para Kuehn (2012, p. 13), o “despertar performativo” ocorrido no campo da música
teria sido possibilitado pelas similaridades que o ato performativo de Austin, referido
originalmente ao contexto linguístico e filosófico das circunstâncias de fala, “compartilha
com a prática interpretativa da música”. Tomando como “elementos chave” da performance
artística a atuação e a representação cênica, o autor revela a “amplitude do significado que a
relação (simbiótica) do elemento mimético-gestual engendra na arte da música” em
correspondência com o que é apontado por Theodor Adorno em sua Teoria da Reprodução
Musical (2005) onde o “elemento mimético” é salientado como essencial, ao considerar que
“determinados gestos resultam em som musical”. (Idem)
Ainda ao investigar ‘performance’, o autor cita John Cage e sua contribuição para o
elemento performativo na música de concerto, quando aquele compositor irá questionar o
paradigma tradicional de interpretação e compreenderá que “o ciclo de criação de uma obra
musical se fecha apenas com a performance”. Kuehn ressalta o enfoque na performance como
evento artístico e social, que passa a uma categoria de pesquisa da antropologia social e da
etnomusicologia, tomando o evento sociocultural da performance como “fato social” ou “fato
sonoro”, respectivamente – campo dos Performance Studies. Destaca tendências que
enxergam na performance “uma fonte inesgotável de experiência, isto é, de vida (ou de
vivência) e do corpo (embodiment)” ou que usam “o ato performativo como uma ação que age
criticamente sob o ambiente social ou natural, muitas vezes com o objetivo de se apontar
determinados padrões de comportamento condicionados socialmente, encenando-os para,
destarte, expor seus aspectos paradoxais”. O autor também considera seu potencial como
instrumento de intervenção artística, política e social “na medida em que estavam se
questionando paradigmas estéticos focados na relação de sujeito e objeto” e observa também
nas artes visuais e nas artes cênicas “uma tendência para ações performativas que ocupam o
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espaço público criticamente (happening, environment, action painting ou body art)” – caso da
Performance Art. (KUEHN, 2012, pp. 14-15)
Diante desta ampla exposição que oferece ao leitor de seu artigo um panorama
histórico-conceitual acerca da performance, Kuehn (2012, p. 15) irá salientar que do ponto de
vista da indústria cultural, do entretenimento e da cultura de massa, “não é bem a interpretação
e os seus enunciados o que mais importa, mas a performance – isto é, o show”, considerando
que existem gêneros musicais em que o conteúdo musical figura “em segundo plano” na
predominância da “arte da performance”, onde o intérprete está empenhado em “convencer”
com sua performance “de forma visual, além da forma instrumental”. Identifico que isto pode
se referir a contextos de atuação musical que não são necessariamente os da música de
concerto, das “práticas interpretativas” ou performativas contemporâneas.
Penso que tomar a performance musical como ponto de partida para o estudo da
experiência musical não indica que a música estará ‘figurando em segundo plano’, mas
significa assumir uma posição que atenta para o conteúdo musical em sua forma dada,
materializada no espaço presente e no tempo presente através do corpo presente do
performador, com as ‘microinterações’ possíveis entre os elementos constituintes do ato. Por
fim o autor salienta a performance aproximando este conceito à cena artística circense e
espetacular da cultura, contexto naturalmente diferente deste, a música de concerto ocidental,
onde precisamos melhor “ponderar” sobre a aplicação do termo performance, conforme é
posto por Kuehn (2012, p. 15, grifo meu):
Tudo o que foi dito para definir e delimitar o campo conceitual da performance se
torna ainda mais evidente no caso do circo, onde acrobatas, malabaristas e outros
artistas se empenham (e triunfam) em suas performances, caso em que não se pode
falar em interpretação. Também nos megaeventos da música pop percebemos a
predominância de elementos performativos, em que todo tipo de luzes e imagens, os
“efeitos multimídia”, lembram mais um espetáculo circense do que uma
interpretação propriamente dita. Por tudo isso, o emprego do termo performance
precisa de mais ponderação quando aplicado a aspectos distintos da prática musical.
Se, ao falar sobre reprodução musical, o autor tem o cuidado de esclarecer que em seu
contexto “o termo reprodução não se refere a nenhuma reprodução mecânica” (KUEHN,
2010, p. 1), ao investigar o termo performance por outro lado, em suas diversas aplicações
atuais, por vezes, cai em um uso trivial (ou até pejorativo) deste termo mesmo quando
considera o corpo, a voz, e a presença física “como meio e como modo de interagir” no ato
performativo em música, fazendo maior referência a aspectos biomecânicos do movimento e à
técnicas de uso do corpo e sua gestualidade. Ademais, irá investigar os diversos usos da
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palavra performance sem, no entanto, adentrar no mérito etimológico da palavra, quero dizer,
sem observar sua origem, diferente do que faz em relação à palavra “execução” por exemplo.
Recorrência que nos remeteria à “forma” ou, melhor dizendo,“dar forma” conforme o que é
apresentado no início deste ‘glossário introdutório’, de acordo com a etimologia da palavra
originalmente francesa, performance.
Por fim, em seu trabalho, Kuehn (2012) articula uma série de premissas que dizem
respeito à sua tese que toma a interpretação e a performance como princípios ativos
constituintes da reprodução musical. Dentre suas considerações finais, o autor explica que o
modelo apresentado em seu trabalho fundamenta o conceito de performance como uma “nova
especialização na área de música”, declarando que nos resta “avaliar o que exatamente as
artes cênicas e as performance arts têm a oferecer (ou a ensinar) às práticas interpretativas
(disciplina que paradoxalmente não foi concebida como performance art)”. (KUEHN, 2012,
p. 15)
É tentador dizer que tudo isso é bobagem e que o que é necessário é simplesmente
um senso adequado de equilíbrio e respeito mútuo entre os músicos. Mas isto é
ignorar a influência do que chamo de gramática da performance: um paradigma
conceitual que vê o processo como sendo subordinado ao produto. (COOK, 2006, p.
7)
textual e estruturalista do fato musical” ao considerar seu dinamismo via percepção e criação.
Expondo, em seguida, a postura radical de Glenn Gould enquanto intérprete que adota um
“ideal estrutural” para suas interpretações quando adentrou os estúdios de gravação com o
objetivo de gerar uma performance “ideal” (o que parece resultar, na realidade, em um
produto sem performance). Nesse tipo de situação “cria-se um ambiente acústico ideal,
elimina-se os ruídos, corrige-se os excessos e os erros, edita-se e, com isso, cristaliza-se uma
performance ideal que – como bem observou Cook (2006: 14) – jamais existiu”. (ALMEIDA,
2011, p. 68). Assim, Alexandre considera a abstração engendrada neste processo que se
distancia do movimento temporal da música e sua contraposição investigativa:
O caminho para uma possível abordagem somática em música será ensaiado no final
das considerações finais deste trabalho juntamente com os trabalhos de Jussara Miller e de
Valeria Bittar. No sentido de vivificação que o corpo vem a ser estudado pela educação
somática, entende-se que o conhecimento será gerado através da atenção, escuta e consciência
de si (consciência como awareness) num processo de definitiva investigação do corpo próprio
através da percepção.
É essencial o entendimento diferenciado da noção de consciência do ponto de vista
dos estudos aqui observados. A palavra ‘consciência’ em português traduz tanto o termo
conciousness que se refere a uma consciência que é sabida racionalmente, quanto o termo
awareness. Conforme põe a bailarina e educadora somática Neide Neves (2008, p. 39): “A
conciousness é o saber da awareness”, esta, por sua vez, tem o sentido de “consciência
enquanto prontidão” e se relaciona com a experiência física e o entendimento corpóreo do
corpo através das sensações. Esta experiência viva é considerada por Neves (2008, pp. 38-39)
como “um estágio indispensável ao corpo para lidar com a informação”. Trago também a
definição do ator Jerzy Grotowsky (2001, p. 235 apud BITTAR, 2012, p. 182) contida na tese
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da professora Valeria Bittar: “Awareness quer dizer a consciência que não é ligada à
linguagem (à máquina de pensar), mas à Presença”. Relacionada à percepção e à experiência
sensória, awareness seria uma presentificação e uma vivificação da consciência no saber do
corpo próprio.
Ademais, a presença do corpo percorrerá toda a articulação teórico-metodológica e o
delineamento da presente pesquisa bibliográfica de forma inevitável, desde a percepção inicial
das andanças deste corpo na trajetória acadêmica, passando pela imersão em um espectro
cultural e político, até a tentativa de experienciar caminhos outros que se direcionam a uma
experiência somática e poética da vida em música.
É possível observar, contudo, que o trabalho de Póvoas irá considerar em seu caminho
para a atividade artística, aqueles parâmetros que resultam da aproximação com a ergonomia
e o esporte: “avaliação de eficiência, rendimento do desempenho, economia de movimentos”,
tomando ainda o corpo como “veículo” de informações. Enxergo que este é um traço
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A ação pianística é entendida aqui [na tese da autora] como uma atitude criativa e
interpretativa construída através do processamento das questões envolvidas na
música, selecionando, coordenando e realizando tanto os elementos da construção
musical quanto os movimentos que os realizam. A ação pianística estabelece o
direto inter-relacionamento dos movimentos físico-musculares característicos da
ação com a escrita ou código musical e com os resultados sonoros adequados a uma
determinada obra. Neste contexto, “técnica” é considerada como o conjunto de
processos que operam na ação pianística, incluindo uma eficiente realização física
dos movimentos físico-musculares que objetive tanto a realização da construção
musical quanto à obtenção da sonoridade. (PÓVOAS, 1999, pp. 80-81)
Assim como awareness direciona a uma compreensão de consciência que não aquela
estritamente lógico-racional, mas a esta que opera também numa esfera senso-perceptiva,
compreenderemos a experiência que envolve o fenômeno sonoro em cena partindo da mesma
noção que se aproxima de uma materialização das relações em fluxo corpóreo.
Na tentativa de delinear o conceito de experiência musical, vou de encontro às
reflexões abertas por Valeria Bittar (2012, p. 55), em um primeiro momento, acerca da
performance musical como Ato. A autora entenderá que ela é “uma operação, um fazer” onde
através de “um gesto perceptivo” que parte do corpo do performador a música é “atualizada”,
ou seja, os sons que se encontravam na memória do atuante são realizados no instante
presente da performance em forma de matéria sonora. Também é possível enxergar, pelo viés
da experiência no trabalho do performador musical, um corpo disponibilizado e aberto para
esta experiência concreta, no agoraqui a partir do saber sensório e da percepção em balanço
com o performador como “repositório de informações” corpóreas e analíticas. (BONDÍA,
2002 apud BITTAR, 2012)
32
1ANDANÇAS
[...] é da experiência que emerge a conceituação e não o contrário. [...] Mas para
testar essa hipótese não basta estar vivo. É preciso fazer da vida um exercício
político de produção sígnica e partilhamento do saber (GREINER, 2005, p. 123)
Com este trabalho pretendo expor influxos de algumas inquietações geradas ao longo
de meus estudos no curso de Bacharelado em Música na Universidade do Estado de Santa
Catarina. A pesquisa aqui elaborada resulta da confluência de diversos aspectos da minha
própria formação artística durante a graduação, os quais encaminharam meu fazer musical e
investigativo para a percepção da presença do corpo na performance musical.
Este capítulo consiste em descrever, num ato de rememoração, pontos da minha
trajetória artístico-acadêmica que conduziram meu fazer musical para a necessidade urgente
de um corpo vivo, presente e atuante. Desde o primeiro ano da graduação busquei por práticas
que possibilitassem um contato perceptivo e sensível com meu corpo (enquanto soma, vide
glossário introdutório). Isso se tornou possível através do conjunto de vivências que pude ter
no meio em que estudo, por andanças, no contato com diferentes abordagens sobre o corpo, o
movimento e a cena (p. ex. anátomo-neurofisiologia, técnica pianística, aprendizagem e
controle motores, educação somática, jogo teatral, performance, dramaturgial corporal) que
direcionaram minhas reflexões para a questão corpórea na ação performativa de tocar música.
Desse modo, exponho a seguir um panorama da trajetória na qual este trabalho se inscreve.
De início, inquieto com alguns traços do processo de aprendizagem gerado pela
didática aplicada em música, busquei participar de alguns cursos oferecidos no Departamento
de Artes Cênicas da UDESC, idealizados pelo Programa de Extensão Laboratório de
Performance com coordenação da professora Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs
(DAC/CEART), onde pude começar a perceber e refletir sobre a sensibilidade do corpo que
atua na arte da performance. Num primeiro momento, participei do curso Laboratório
Permanente de Performance (2014, CEART-UDESC) que resultou na ação “Abraço Vocal –
uma performance sonora”. Nesta ação de ambiência sonora tivemos um amplo contato com a
potencialidade sonora do corpo, explorando espaços e pedaços de reverberação corporal da
voz, a relação do movimento com as vocalidades e as sonoridades, através de jogos teatrais e
outros exercícios técnico-físicos. O processo de criação de situações e paisagens sonoras
através da voz e instrumentos exigia do grupo uma integração ritual e, por isso, interações
34
entre os corpos vivos no fazer sonoro, no dar forma (performar) através das vibrações
corpovocais.
Depois, ainda pelo Programa de Extensão Laboratório de Performance, participei do
curso A voz em estado de escuta na ambiência da cena ministrado por Juliana Rangel (UFC)
em 2014 (CEART-UDESC), onde pude perceber a presença do corpo vibrátil5 no fazer cênico
por meio de exercícios que buscavam, por exemplo, a vivificação do olhar através da troca
prolongada de olhar com o outro, a disponibilização física do corpo através do mapeamento
manual dos ossos e de jogos para ativação da atenção corporal e da percepção do eixo
corpóreo, viabilizando estados de presença e de escuta ao espaço. Através da observação e
troca perceptivas com o ambiente e com as outras pessoas foi possível experienciar o corpo
próprio em expansão, estimulando também o tátil e o sensório do corpo na aproximação de
texturas, imagens e palavras. A contaminação corpórea – provocada pela percepção ativa, pela
escuta do ambiente, pela vocalidade e por estados de atenção – coloca em jogo a evocação de
memórias. Deste processo, formas se expressam, se materializam através do corpo (estátuas,
cenas, sons, movimentos), contaminam e põem a voz em cena.
Ainda mais recentemente participei do curso de extensão Oficina de Imprevistos
(2017, CEART-UDESC) promovido pelo Laboratório de Ensaios e Imprevistos que é
coordenado pela professora Bianca Scliar, onde aconteceram experiências com o corpo
perceptivo em diferentes estados de interação com o ambiente e na prática dançante de
contato improvisação. Estas vivências que citei com o corpo performativo nas artes cênicas
me ensinaram sobre entrega e dilatação corporais, escuta do ambiente, evocação de memórias
inscritas no corpo e na voz. Observo a importância destes aprendizados no meu caminho de
percepção e reflexão a respeito dos processos artísticos geradores do ato performativo, que
atravessam o corpo, de acordo com o que é considerado por Valeria Bittar em sua tese de
doutorado. Essas são “vivências que em geral não temos nem em nossa formação e nem em
nosso caminho enquanto performadores de música” (BITTAR, 2012, p. 176). Por isso em
Músico e ato, dentre os assuntos, é proposta uma “interface” com o teatro, “dado que as
vivências no teatro podem trazer para o músico performador a chance de uma performance
imbuída de vida” (Idem). Entendo, então, que meu contato com o lidar-com-o-ato-
performativo em cursos oferecidos pelo Departamento de Artes Cênicas, me possibilitou um
olhar corpóreo e vivo (no sentido somático) também para a música, na possibilidade de uma
5
Conceito de Suely Rolnik (PUC-SP) psicanalista, curadora e crítica de arte e cultura, coautora de Micropolítica
(1986) com Felix Guattari. O trabalho desta pesquisadora foi referenciado durante a palestra ministrada por
Juliana Rangel (UFC) em 2014, CEART/UDESC.
35
performance musical que tenha como núcleo músico e ato, conforme pensado por Valeria
(BITTAR, 2012). Neste sentido, a autora direciona sua tese para uma aproximação com
movimentos do teatro pós-dramático na contemporaneidade (Grotowski; Barba) propondo
algumas reflexões que podem ser lidas no trecho abaixo:
Outra vivência que relato aqui emerge de desdobramentos que ocorreram a partir de
minha participação nas aulas de Técnica Klauss Vianna6 ministradas pela professora Dra.
Valeria Bittar onde começo trilhar caminhos de encontro ao ‘eixo global’ do soma. No
segundo semestre de 2014 cursei a disciplina eletiva de Estudos Avançados em Música II
(DMU/CEART) quando tive o primeiro contato com esta prática corporal que trabalha por
meio do sensório do corpo físico, com ações que encaminham o ser humano para uma escuta
de si, do espaço e dos outros, em três estados de atenção e de relação com o mundo. Sem uma
prática contínua em 2015, retomo no ano de 2016 quando o curso de Técnica Klauss Vianna
se torna um projeto do Programa de Extensão Flauta Doce - Performance e Formação
coordenado pela professora Valeria, que ainda no mesmo ano, promoveu a palestra-oficina A
técnica Klauss Vianna e a escuta do corpo em quatro encontros de intenso trabalho físico,
com ação de Jussara Miller (2016, 2017, CEART-UDESC). Em continuidade, no ano de
2017, vivencio esta prática corporal de forma integrada com o desenvolvimento deste trabalho
de conclusão de curso.
Considero estes momentos como desencadeadores de uma movimentação essencial em
minha formação, porque possibilitaram o contato, sobretudo sensível-perceptivo-somático
com os trabalhos das artistas Valeria Bittar e Jussara Miller e, consequentemente, uma
transformação em minha relação com o corpo em movimento e com o fazer musical. Além
das vivências práticas na Técnica Klauss Vianna, os trabalhos acadêmicos das artistas citadas
6
Prática corporal expressiva criada no Brasil pelo bailarino e pesquisador Klauss Vianna (1928-1992)
desenvolvida no trabalho de diversas(os) artistas e pesquisadoras(es) do corpo, é uma técnica de educação
somática que foi agenciada no palco da dança contemporânea e tem principal enfoque nos processos didáticos e
de criação em arte. Será melhor abordada no quinto diálogo das considerações finais deste TCC.
36
também me orientaram rumo à pesquisa nas áreas das artes presenciais, uma através da dança
contemporânea e outra da performance musical, de forma que pude delinear a temática aqui
proposta no decorrer do projeto de pesquisa para elaboração deste trabalho, juntamente com
outros referenciais teóricos.
Meu contato com o que Bittar (2012) articula em sua tese, já citada anteriormente,
provocou um despertar para o que diz respeito: à formação “daquele que faz a música tornar-
se som” (BITTAR, 2012, p. 29) e à conduta das ações convencionalmente presentes no fazer
musical de nossa cultura. A autora lança um olhar crítico para os discursos proferidos pelas
disciplinas da música que se forjam principalmente na mentalidade dos séculos XIX e XX,
fundamentando a tradição Romântica que estabelece modelos de conduta para a interpretação
musical. Qualidades que se ligam à figura do intérprete pretendem solidificar seus fazeres
musicais moldando-o junto à ideia de virtuosidade, ou de neutralidade, ou de genialidade de
acordo com seu contexto. Submetendo suas ações ao texto e à vontade do compositor. A
autora aponta caminhos desviantes ao contexto desta formação – que, segundo o que percebe,
é “alicerçada sobre o pensamento dualista-mecânico” (Ibidem, p. 21) – e propõe um
“acionamento do referencial corpóreo do músico performador”, gerando a ideia de
“performance musical como operação de ordem perceptiva” (BITTAR, 2012). Para isso, traça
um paralelo com estudos do teatro pós-dramático, da dança contemporânea e da educação
somática. O que foi tecido na tese de Valeria Bittar, desde o início deu pistas e iluminou
caminhos para o processo de elaboração deste trabalho de pesquisa.
Acredito que o pensamento de Bittar, juntamente com trabalhos de outros
pesquisadores da área de performance no século XXI, atualiza as discussões acerca da prática
e da pesquisa contemporâneas em performance musical, gerando novos núcleos de ação e
agindo em direção a uma mudança de paradigmas nesta área. O que é proposto em seu
doutoramento, a meu ver, pode provocar reflexões tanto acerca do que se entendido por
“performance” e seus dobramentos, quanto diante dos processos de formação e de criação em
performance musical e suas implicações.
Através do contato com a “sistematização da Técnica Klauss Vianna” em “A escuta do
corpo” (2007) e com as reflexões presentes no livro “Qual é o corpo que dança? dança e
educação somática para adultos e crianças” (2012), ambos de Jussara Miller, pude perceber o
agenciamento que surge na pesquisa em educação somática relacionada à “escola Vianna” no
Brasil, trazendo um direcionamento artístico para a pesquisa atual em dança contemporânea.
Miller aborda fundamentos do processo didático de Klauss Vianna que impulsionam o corpo
para a vida a partir das relações que estabelece consigo mesmo, com o espaço e com o outro
37
(outros corpos). Nesta abordagem, estados de atenção e prontidão são ativados na medida em
que há uma dilatação e uma disponibilização do corpo, com suas possibilidades, movimentos
internos e movimentos externos. A pesquisadora elabora seus pensamentos em torno da
questão do corpo cênico, em busca de uma prática corporal que instaure a presença deste
“corpo que dança na cena contemporânea” (MILLER, 2012, p. 11). Focalizando, para isso, a
pesquisa de técnica da dança e de educação somática por meio da Técnica Klauss Vianna.
Um pouco mais adiante neste capítulo tornarei a pensar, em diálogo com estas
pesquisadoras, sobre o processo que me trouxe a refletir a performance musical compreendida
através de ações perceptivas do corpo-soma.
Neste caminho, também observo meu contato com a iniciação científica (bolsa
PROBIC/UDESC, 8/2016 a 8/2017) no projeto de pesquisa Ação pianística, análise e
coordenação motora - Aplicações Interdisciplinares na organização da prática e desempenho
musical coordenado pela professora Dra. Maria Bernardete Castelan Póvoas. No decorrer da
pesquisa exploratória desenvolvida sobre bases bibliográficas acerca de estudos do corpo
vindos da aprendizagem motora (Richard Maggil, 2000) e da aprendizagem pianística (José
Alberto Kaplan, 1987), acrescentei investigações originadas na educação somática em dança
traçadas por Jussara Miller (2007) e na dramaturgia corporal por Neide Neves (2008). A partir
do contato com essas diferentes abordagens teóricas e teórico-práticas, pude desenvolver no
âmbito da iniciação científica reflexões sobre ações pianísticas aproximadas do saber e da
presença do corpo que faz música, fazendo uma ponte entre a educação somática em dança e
os estudos de aprendizagem motora e aprendizagem pianística. O que gerou a comunicação
do resumo expandido intitulado A presença do corpo artista na prática pianística:
contribuições de estudos da educação somática no 27º SIC UDESC, que integrou a terceira
Semana Integrada do CEART, 2017.
Isso foi possível, na medida em que a articulação teórica aconteceu partindo do estudo
e observação da função neurológica chamada propriocepção7, ponto de estudo comum às
bibliografias consultadas. Os contextos em que o tema da propriocepção é tratado por cada
autor evidentemente são distintos entre si, assim como as abordagens: fisiológica,
neurológica, técnico-didática ao piano, somática, cênica, de criação. Entretanto todos tratarão
7
Entende-se aqui propriocepção como a sensação (informação sensorial) que emana do corpo em movimento e
nos informa (sensorialmente) as características físicas e as relações espaciais deste movimento. Havendo aí,
neste exato momento, uma interação neuromotora em jogo. Sabe-se que os receptores proprioceptivos (assim
como os receptores relativos à visão, por exemplo) estão envolvidos nas interações neurais que fornecem
informações para o sentido cinestésico.
38
do aspecto sensível do corpo humano, numa perspectiva que nos conduz à ideia de unidade
entre corpo-mente. O estudo do sentido cinestésico8 esclarece o modo como estados de
atenção e de prontidão viabilizam as relações do ser com o mundo no momento presente,
através do funcionamento cerebral em interação com o movimento (NEVES, 2008). Na
transdisciplinaridade investigativa suscitada por este mecanismo corporal
(propriocepção/sentido cinestésico), pretendi tomar minha experiência com a prática da
Técnica Klauss Vianna como ‘modo de operação’ para a prática pianística, a partir do
acionamento do referencial corpóreo do músico em relação com o instrumento (BITTAR,
2012) e com o fazer musical, na possibilidade de existir um soma despertado para a ação
instrumental.
O que me propus fazer no Grupo de pesquisa, num primeiro momento, parte do estudo
sobre a Aprendizagem motora (2000), livro de Richard Maggil que, ao reunir discussões
acerca do controle motor, irá apontar para a importância do papel das informações sensoriais
na formulação de “qualquer teoria do controle motor” e esclarece o fato de que: “Receptores
sensoriais localizados em várias partes do corpo fornecem essa informação. Os dois tipos
mais importantes de fonte de informação sensorial que influem no controle do movimento
coordenado são a propriocepção e a visão.” (MAGGIL, 2000, p. 57). O autor também irá
esclarecer que a propriocepção envolve a “identificação senso-receptora” das características
de movimento do corpo e dos membros e que os trajetos neurais aferentes (recepção de
estímulos nervosos pelo sistema nervoso central) são responsáveis por enviar “ao sistema
nervoso central informação proprioceptiva sobre as características do movimento do corpo e
dos membros, tais como orientação, localização espacial, velocidade e ativação muscular”.
(MAGGIL, 2000, p. 57). Segundo o que o autor se põe a estudar, a consciência cinestésica
(Ibidem, p. 289) otimizaria a função do trabalho mental para planejamento motor em
situações que envolvem o controle do movimento. Diferente da visualização e da imaginação,
cinestesia é a sensação (recebida e emanada do sistema nervoso) que realimenta o “centro de
controle do movimento”, de modo a atualizar constantemente as informações sobre o
posicionamento dos membros, por exemplo. (Ibidem, p. 61)
Conforme estudado por Maggil, esta interação durante a prática “mental” resultará em
produção de atividade elétrica na musculatura envolvida no movimento, ativando trajetos
8
Cinestesia s.f. FISL sentido da percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo, provocado por
estímulos do próprio organismo *ETIM cine- + -estesía. (HOUAISS, 2001). Esses “estímulos” são fornecidos
pelos receptores proprioceptivos do corpo. Ver sobre propriocepção e sentido cinestésico na nota de rodapé
anterior.
39
neuromotores que poderão estar presentes no momento da ação (Ibidem, p. 292). Em Neide
Neves (2008, pp. 70 - 75), é visto que esses trajetos – “arranjos neuronais” – se alteram a cada
vez que uma mesma ação é executada. Ou seja, diferentes grupos de neurônios participam de
cada movimento corporal, mesmo que seja um movimento repetido e padronizado. Apesar de
Maggil não definir uma perspectiva de unidade corpo-mente, enxergo que suas discussões
podem remeter à ideia de uma prática mental que é vinculada à corporeidade, funcionando
integradamente por meio da percepção física. É evidente que o contexto de abordagem de
Maggil se origina na área do desporto e estuda o movimento e a prática motora numa
perspectiva que, posteriormente, direcionará a parâmetros de eficiência e rendimento.
Na bibliografia de aprendizagem pianística, Kaplan (1987) esclarece o que chama de
sistema cinestésico, que nos fornece informações da posição e do movimento muscular, seu
estado e grau de contração, através dos “receptores proprioceptores” do corpo. (KAPLAN,
1987, p. 21). Conforme esclarece o autor, “atuamos [...] de acordo com os estímulos que
percebemos” e a percepção implica na “interpretação” das impressões sensoriais vindas das
diferentes vias (extero e proprioceptoras) fazendo com que nosso comportamento seja
adequado, ou não, às finalidades pretendidas. (Ibidem, p. 27). O autor propõe uma abordagem
da técnica de “execução pianística” que tenha como ponto de partida o estudo do movimento,
na compreensão dos “fatores de ordem física e psicológica” envolvidos em sua realização
(Ibidem, p. 19). Assim, salienta que as realizações motoras (caso da aprendizagem
instrumental) são do tipo perceptivo-motor, como na afirmação que segue: “Por essa razão, as
informações procedentes dos órgãos dos sentidos, assim como as ordens emanadas do cérebro
e do sistema nervoso central são, na realidade, a essência do movimento, desempenhando
funções tão importantes, na sua execução, como o aspecto propriamente motor do mesmo”.
(Ibidem, p. 31).
Posteriormente, partindo dessas afirmações, é possível perceber que Kaplan
demonstrará uma tendência a integrar corpo-mente, também quando trata de maturidade
“psicomotora” e desenvolvimento “intelectivo-motriz”. Diante disto, no capítulo 2.2.4 do
TCC, eu pretendi apontar algumas propostas de Kaplan como um possível ‘desvio’ de
conduta na técnica pianística.
Além disso, Kaplan defende o seguinte: que a “aprendizagem instrumental deveria ser,
no seu início, um estudo de sensações e das possibilidades de domínio e controle corporal do
indivíduo”, voltando sua atenção para o processo de aprendizagem motora e pianística e para
o desenvolvimento do sistema próprio-ceptivo, indicando que “as sensações proprioceptivas
são os únicos e verdadeiros indicadores do estado do músculo” (KAPLAN, 1987, p. 38). O
40
autor também considera que para o aluno aprender a sentir a diferença de sensações
musculares deve ser praticada uma série de experiências fora do teclado que permitam ao
aluno se conscientizar dessas sensações. Ao observar a “integração de aspectos psicológicos
ao controle do movimento”, considera o desenvolvimento da propriocepção como parte do
“complexo processo de aprendizagem” das ações pianísticas.
Mesmo com a emergência da sensação física no âmbito da técnica pianística em
Kaplan, o discurso evidencia a permanência de uma abordagem de treinamento do corpo e da
mente do aprendiz de piano (esta discussão será articulada nos capítulos 2.2.3 e 2.2.4). A
despeito desta implicação, ainda vejo nas ideias de Kaplan, a possibilidade de uma autonomia
reflexiva e investigativa, frente à prática pianística, no que se refere à percepção do corpo
próprio em ação e relação. Isto me conduz a uma aproximação do pensamento gerado pelos
estudos da educação somática, em especial ao que ocorre na dança contemporânea.
A dançarina, coreógrafa, pesquisadora e educadora Jussara Miller, esclarece que no
processo pedagógico da Técnica Klauss Vianna estimula-se o aluno a “(re)conhecer o próprio
corpo, para que ele possa promover a transformação gradual de ausência corporal para
presença corporal”. O corpo sai de um estado de “dormência” e é disponibilizado para “lidar
com o instante presente”. Essa transformação poderá acontecer através de um “despertar dos
cinco sentidos por meio dos quais nos relacionamos com o mundo e desenvolvemos o sentido
cinestésico, que compreende a percepção do corpo no espaço e no tempo”. (MILLER, 2007,
p. 54) A autora, de acordo com Tavares, entenderá cinestesia “como o desenvolvimento da
propriocepção”, que será também definida por Tavares como sendo “a percepção espacial do
corpo em situações dinâmicas e estáticas”. (TAVARES apud MILLER, 2007, p. 68).
Conforme pude estudar, entendo que os princípios da Técnica Klauss Vianna,
sistematizada por Miller e Neves, podem viabilizar a apropriação, também por parte do
músico, do funcionamento de seu próprio corpo (através do desenvolvimento da
propriocepção) e possibilitar uma transformação na relação com a presença do corpo em
discussões sobre a prática pianística. Diante do “acionamento do referencial corpóreo” do
músico em percepção (BITTAR, 2012), é possível considerar que a lida com o instante
presente e a lida com o espaço e o tempo são bases sobre as quais a performance musical
possa vir a ser constituída.
Ainda neste sentido, Neide Neves em seus estudos para uma dramaturgia corporal
(2008), irá observar como as orientações de Klauss Vianna estimulavam nos alunos a
possibilidade de se “manter uma atitude de observadores de si mesmos” (NEVES, 2008, p.
83), de modo que pudessem tomar conhecimento dos “processos internos” de seus corpos
41
para estender o “estado de atenção” ao que acontecia em seu entorno. Segundo o que se dá a
entender em Neves, no processo didático da técnica, esta atitude conduz o praticante a uma
escuta comparativa entre os estados corporais, ou de determinada parte do corpo, em
diferentes momentos, antes e depois do exercício proposto. Por meio do que se tornaria
possível registrar “[...] conscientemente as sensações e alterações observadas, desenvolvendo
a capacidade de percepção, propriocepção e a memória, juntamente com as habilidades
motoras”. (NEVES, 2008, p. 84, grifo meu). Ao consultar em seus estudos o neurocientista
Gerald Edelman, a autora esclarece o que acontece em nível fisiológico a partir das interações
entre sensório e motor durante a atualização do movimento, em lida com a temporalidade,
conforme o que pode ser lido a seguir:
Quando Maggil (2000) fala sobre propriocepção, percebe como este mecanismo
fisiológico é acionado através da “prática mental”, de modo a otimizar o planejamento e
execução das habilidades motoras a serem desempenhadas, neste caso, tendo como base a
prática esportiva. A despeito de cisões entre “mental” e “motor” (corporal), a partir do
trabalho de Gerald Edelman, a bailarina Neide Neves (2008, p. 60, grifo meu) irá considerar o
seguinte: “A base fundamental para todo o comportamento e para a emergência da mente é a
morfologia do animal e das espécies e como ela funciona”, desta maneira, revela a
importância do corpo e suas relações dinâmicas em movimento (seu funcionamento) para a
constituição anatômica do cérebro no processo de “evolução”. Ali, o que é denominado
“mental” está diretamente implicado com a concretude física por meio de processos
dinâmicos e não se sustenta quando apartado de conhecimento e saber do corpo vivo.
Em Miller (2007) e Neves (2008), percebe-se o deslocamento de uma abordagem que
submete a ação do corpo à ação da consciência racionalizada partindo de um trabalho mental
não vinculado à materialidade física do corpo. Desta maneira, o que se propõe é uma prática
corporal que, de forma integrada, ativa a percepção física e disponibiliza o corpo para o
movimento e para lidar com o instante presente, em ação. O caminho transdisciplinar que me
propus trilhar na pesquisa realizada na iniciação científica pretendeu provocar um
deslocamento no âmbito da prática-técnica-didática pianística semelhante ao relatado
42
Ainda considero aqui, vivências que tive em outros momentos do curso como em
masterclasses ministradas por diferentes professores-pianistas convidados do Departamento
de Música; na disciplina Atividade Artística do curso de bacharelado; nas disciplinas de Bases
Anatomofisiológicas e Neurofisiológicas do Movimento; e na orientação pianística do
professor Dr. Mauricio Zamith, onde entram frequentemente em pauta aspectos da
corporeidade, da expressividade e da comunicabilidade na performance musical.
Nas aulas de piano, a sensibilidade cuidadosa do artista-professor Maurício Zamith
muitas vezes direciona o processo didático para a necessidade de uma flexibilidade no
43
À medida que tecnicamente vou mudando meus espaços, meu eixo, minha
flexibilidade e equilíbrio, trabalho também minha visão de mundo, minha ótica das
coisas e das pessoas. Aprender a questionar objetivamente e a observar a si mesmo
são as melhores formas de aprendizado. (VIANNA, 2008, p. 97)
Diferente desta posição, observo que o discurso didático da técnica pianística irá valer-
se abstratamente de conceitos corpóreos e de conceitos relacionados ao corpo físico e a
estados mentais/anímicos, na tentativa de encontrar uma abordagem de consciência do corpo
dirigida à técnica, onde a “consciência” é estritamente de ordem racional, sem propor uma
experimentação propriamente física-corporal destes conceitos. Penso que este procedimento
ou esta conduta podem sugerir respostas motoras e gestos por aquilo que remetem ao informar
imageticamente acerca da prática, porém não se referem concretamente ao conhecimento do
corpo próprio e sua potência enquanto vetor de forças em movimento, em fluxo contínuo.
Deste modo, a questão corpórea é abordada em abstração, expressando menos uma ação
aprofundada na memória do corpo ativado/desperto para a escuta de si mesmo, do que um
caminho resultante a partir de uma dada informação a respeito do corpo. A utilização da
abstração como ferramenta didática opera de forma semelhante ao que acontece na lida com o
texto musical, que irá separar o corpo do fazedor (performador) do texto musical – como será
abordado ao longo do capítulo 2 deste TCC e, mais propriamente, nos capítulos 2.2.3 e 2.2.4 –
reivindicando uma materialidade imaginada para o texto em si.
Listo alguns conceitos recorrentes no processo didático da técnica pianística de acordo
com sua ordem ou modalidade. Antes, aponto que estas informações, que se tornaram
conceitos técnicos, não denominam o que necessariamente é proferido pela didática pianística,
mas descrevem, outrossim, aquilo que se dá a entender num primeiro momento de difusão do
conhecimento técnico no corpo do aluno9. Momento em que este corpo muitas vezes se
encontra adormecido, numa situação de não atenção, em outras palavras, de apreensão e
ansiedade, e de não disponibilidade para a percepção. Pode-se dizer que, neste momento, há
um bloqueio do fluxo de emergência da ação encarnada10 e, por isso, um distanciamento da
investigação sensória acerca da própria ação física. No meu entender os seguintes termos
pretendem, sobretudo, informar o fazer musical do aprendiz, como se este fazer musical fosse
um repositório de tais informações.
9
Esta pequena lista inclui anotações pessoais em agendas e cadernos utilizados por mim ao longo do curso de
bacharelado em piano.
10
Maurice Merleau-Ponty (1908 - 1961), filósofo francês, autor de Fenomenologia da Percepção (1945).
46
11
Explorando espaços articulares através da rotação, desde o calcanhar, movimentos que reverberam nas
articulações do joelho, coxofemoral, até o apoio dos ísquios no chão. Mapeando o espaço entre metatarsos e
percebendo as oposições ósseas que formam o triângulo do pé. Depois promovendo as torções que partem ao
encontro da “espiral crescente”, “ao ritmo do universo” (p. 98) como pensa Klauss Vianna no segundo capítulo
de seu livro “A dança” (2008).
48
o que é pensado por Eugênio Barba no teatro12, sobre um possível estado corpóreo para o
músico que opera fora do cotidiano, conforme o que articula no seguinte trecho de sua tese:
Por isso, entendo que a percepção de aspectos sensórios nos momentos da minha
formação e fazer musical que aqui foram narrados, apenas é possível pela atitude de escuta
que a educação somática me viabiliza diante da trajetória percorrida. No sentido físico a
prática da técnica Klauss Vianna direciona a uma sensibilização cinestésica dos apoios
corporais em interação com a gravidade, ao encontro do eixo global. Daí surgem
possibilidades de vivenciar a performance musical de forma integrada com o corpo próprio
em relação. O que considero, justamente, como um desafio e acredito que por isso se tornou
para mim uma busca, uma investigação. Essa questão é assunto a ser tratado propriamente nas
considerações finais deste trabalho.
Quero dizer que, se a formação do músico encontra-se fundamentada numa certa
mentalidade a respeito da relação corpo-prática – gerada num modelo de criação e pesquisa
em performance musical herdeiro das práticas românticas ou escamoteado pelo interesse de
disciplinas da musicologia, da medicina, das engenharias – é no exercício de ativação do
saber do corpo em arte (que, segundo o que me pus a estudar a partir de Bittar, Miller e
Neves, poderia ser viabilizado pela Técnica Klauss Vianna de educação somática) que o
músico tomará percepção do funcionamento gerador do ato em música.
Encontrar caminhos para acionar a questão corpórea no fazer musical
perceptivamente, a meu ver, gera uma necessidade de deslocamento ao músico: sair do
discurso do treinamento e experimentar outros discursos. O diálogo com os fazeres
performativos vindos da dança, do teatro, da educação somática, enxergo como uma possível
experiência transdisciplinar que dá abertura ao saber do corpo em movimento, em cena.
Adentrar esses outros terrenos, é pisar no solo de um fazer cênico, performativo, musical (por
que não?) que traz um ‘a priori’ corpóreo.
12
Para melhor entendimento das propostas de Eugênio Barba, ver terceiro diálogo na página 106 das
considerações finais deste TCC.
49
Abro aqui um parêntese em forma de subcapítulo para observar dois trabalhos acerca
da pesquisa em performance musical na atualidade, no intuito de perceber possíveis papeis do
performador na pesquisa contemporânea e discutir o rumo que pretendo tomar na elaboração
deste TCC.
Fausto Borém e Sonia Ray em artigo publicado no SIMPOM (Simpósio Brasileiro de
Pós-Graduandos em Música), realizado na UFRJ em 2012, trazem um panorama da pesquisa
em performance musical no Brasil entre os anos de 2000 e 2012, a partir de levantamento da
produção acadêmica nesta área, no intuito de averiguar seus problemas, tendências e
perspectivas. De forma geral os autores observam “[...] um grande desenvolvimento da
pesquisa em Performance Musical no Brasil no século XXI, não apenas no sentido
quantitativo, mas também no papel que os performers têm desempenhado nesse meio.”
(BORÉM e RAY, 2012, p. 159). Esta mudança em relação ao papel empreendido pelos
músicos diz respeito à sua participação não mais apenas como sujeitos dos objetos das
pesquisas conduzidas por pesquisadores de outras áreas, mas como autores desses trabalhos.
No artigo é perceptível que a produção na área de performance parte, em sua maioria,
de objetos de intersecção com outras subáreas da música, como análise musical e
musicologia, e com outros campos de estudo, como as ciências da saúde. Entretanto, os
autores ressaltarão que essas intersecções trazem certa inconsistência no que diz respeito à
atividade do performador em si mesma, beirando muitas vezes a superficialidade no tocante
aos assuntos de interesse. Enxerga-se, portanto, que as sub-áreas da performance utilizam a
performance para escamotear o interesse em jogo, ou seja, a análise, a musicologia, a
musicologia histórica, e mesmo os estudos do gesto e do movimento na atuação musical.
Segundo Borém e Ray (2012), a “dicotomia brasileira entre uma maioria de alunos da
performance na pós-graduação e uma carência na realização de estudos sobre os processos
criativos e de aprendizagem da performance” (BORÉM e RAY, 2012, p. 144) reflete a
herança da formação nesta área onde as temáticas escolhidas para os trabalhos de pesquisa
50
TCC pretende trazer reflexões e ampliar discussões que surgem nas fronteiras entre
performance, dança, teatro e música. As inquietações relatadas percorrem comigo o caminho
de formação musical, mas é precisamente sobre meus pés, quando desenrolo a coluna
vertebral, vértebra por vértebra, que vou ao encontro do eixo global e me ponho a perguntar
qual é o corpo que toca?
Indagações podem surgir quando qualquer um dos fios que ligam o fazedor de música
a um modelo técnico submisso, habilidoso e treinado de interpretação musical se afrouxam,
quero dizer, nos momentos em que a mentalidade forjadora da prática musical se desestabiliza
e dá abertura para ações transformadoras (MILLER, 2012). Neste caso, é fundamental se
posicionar diante do fazer musical com uma atenção que pode ser viabilizada através do corpo
próprio e seu funcionamento conforme tenho observado em alguns estudos aqui relatados.
Essa pergunta – que Miller lança em torno da pesquisa, da prática e da didática da dança
contemporânea – promove discussões a respeito do corpo cênico, artista, que é instaurado nas
artes presenciais. O ponto em questão neste capítulo seria: porque não na música? Este fluxo
sensório do corpo, instaurado na pesquisa em dança e teatro contemporâneos, nem sempre
está presente na pesquisa em performance musical. Por isso, neste trabalho me proponho
observar onde e como ele se faz presente, ou de que forma ele poderia se fazer presente em
música.
Finalizando esta primeira parte do trabalho de conclusão de curso, dou relevância ao
fato de que nesta trajetória (da qual recorto e conto pontualmente algumas partes) perpassam
também as disciplinas de Métodos e Técnicas de Pesquisa, Pesquisa em Música e Projeto de
Pesquisa, cursadas nos três semestres anteriores à redação deste trabalho. Neste lugar tive
contato com metodologias e técnicas de pesquisa e aos poucos, mesmo com limitações,
esbocei multiplamente o delineamento da pesquisa aqui proposto. Neste campo tive
oportunidade de escutar mestres e doutores de diversas áreas de conhecimento em música
(com intersecções entre áreas) que desencadearam questionamentos diversos e apontaram
certos rumos. Também nos momentos em que assisti defesas de trabalhos de conclusão de
curso e dissertações dos Departamentos de Música e de Artes Cênicas, e conferências de
música com palestras acerca da produção acadêmica em música e do fazer musical
contemporâneo [I e II Seminários de Música Contemporânea da Udesc (2015 e 2016) nos
quais tive a oportunidade de participar na organização e produção como bolsista no Programa
de Extensão Piano em Foco; Semana acadêmica da pós-graduação (PPGMUS, 2017);
Congresso Nacional de Teoria Musical e Análise (TeMA, 2017); Festival de Música
Contemporânea Edino Krieger (2017); e outros].
54
Este trabalho de conclusão de curso tem como vontade primeira trazer à reflexão o
performador em performance na música. Ao investigar a palavra “performance”, como consta
do glossário introdutório, esbarramos comumente num sinônimo, que no mínimo, pode causar
um incômodo. O sinônimo em questão, apresentado atualmente é a palavra “desempenho”.
Com base neste incômodo gerado por esses conceitos, acredito ser necessário investigar,
primeiramente, o terreno onde este sentido de performance como desempenho vai operar. O
caminho para esta investigação, conforme percebo, será apontado por Michel Foucault, num
primeiro plano, em seu livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Este livro dá a pensar que
o sentido de “performance como desempenho” está amarrado e limitado ao discurso das
tecnologias do poder e do saber que têm no corpo seu objeto. Do mesmo modo, pode-se
considerar que o caminho para o desempenho no qual a performance adentrou, esteja
13
Edgardo Castro (2009, pp. 336-337), explica que o domínio de análise de Michel Foucault são as práticas:
epistemes e dispositivos. Epistemes seriam práticas discursivas que condicionam “o exercício da função
enunciativa” de acordo com uma determinada época e uma determinada área de manifestação humana, quando e
onde é definido “um conjunto de regras anônimas, históricas” que conduzem as relações discursivas/enunciativas
na sociedade. Seu campo de estudo é a arqueologia, podendo esta se direcionar aos discursos enunciados que
são capazes de “produzir as subjetividades” e definir a constituição social das pessoas. Dispositivos, por sua vez,
pretendem caracterizar o que é dito e o que é feito (não dito) e o funcionamento do mecanismo “político-
tecnológico” (FOUCAULT, 2014) nas relações de poder e de saber, desta forma configuram também as práticas
não discursivas. Com a ajuda de material audiovisual de aulas ministradas pela professora Dra. Maria do Rosário
Gregolin (2013, 2016), pude compreender que este funcionamento do poder configura uma “rede enunciativa e
não enunciativa” relacionada ao saber que, como será visto com Foucault neste capítulo: têm o corpo como
objeto. Por isso, Foucault estudará diferentes esferas e aspectos da sociedade de acordo com seu funcionamento,
existem, por exemplo: dispositivos da sexualidade, dispositivos disciplinares, “dispositivos midiáticos.”
(GREGOLIN, 2016). Seu campo de estudo é a genealogia: do poder e da ética.
De acordo com o que pode ser entendido por mim, a partir de uma videoaula de Gregolin (2013), o discurso
também é constituído de “materialidade” e configura “formas” e “efeitos” para a “produção de sentido”,
configurando as relações humanas. Questiono: é possível entender a prática musical como uma determinada
“linguagem de enunciação” e de “produção de discursos” que, assim como qualquer outra linguagem e
enunciado, é controlada pelo “funcionamento do poder” nas relações?
Neste sentido, diante de arqueologias e genealogias (epistemes e dispositivos), este capítulo olhará para o que foi
pensado por Michel Foucault a respeito do dispositivo disciplinar, acionado num determinado contexto de
transformação no sistema jurídico-penal que, por sua vez, desenvolveu “tecnologias” estratégicas para, em um
campo “microfísico”, “investir” os corpos entre as “relações de poder” com a finalidade em “docilizar” esses
corpos [termos de Foucault, 2014]. Entender isso, estudar e traçar este ‘caminho metodológico’ junto a Foucault,
foi importante para que eu pudesse melhor refletir o que é proposto pela tese de Valeria Bittar, onde a artista irá
observar aquilo que é dito, aquilo que não é dito e os modos de fazer o que é dito (arqueologias-genealogias?) no
universo musical do Ocidente: historia cultural política, didática, prática, performática. Desta maneira, alguns
discursos e não discursos no campo musical serão brevemente observados/visitados/mapeados conforme o que
será percebido ao longo deste segundo capítulo tendo como embasamento principal os trabalhos desses dois
autores (FOUCAULT, 2014; BITTAR, 2012).
56
O historiador e filósofo Michel Foucault inicia seu trabalho intitulado Vigiar e punir:
nascimento da prisão, publicado pela primeira vez em 1975, expondo dois exemplos
diferentes de sanção criminal: o suplício e a utilização do tempo num sistema de detenção
carcerária. De acordo com o autor, cada um desses exemplos localizado entre os séculos
XVIII e XIX, define um estilo penal que se constitui na sociedade e redistribui toda a
economia do castigo na Europa. Com o gradual desaparecimento dos suplícios, há uma
destituição do caráter de “espetáculo” onde a “cerimônia penal” se igualava ou superava a
crueldade e violência da cena do crime que pretendia punir, caracterizando uma inversão de
papéis entre quem executava a pena e quem seria castigado. Segundo Foucault, este “método
punitivo” caracterizado pela execução pública é eliminado da prática penal até a primeira
metade do século XIX de forma não regular pela Europa. (FOUCAULT, 2014, p. 14)
Desta forma a punição se torna uma parte do processo penal a ser encoberta, o que
provoca uma mudança na recepção da penalidade por parte das pessoas da sociedade, pois
“deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata”. O autor ainda
esclarece que o mecanismo da punição altera as suas “engrenagens” passando a funcionar por
meio do exemplo; o que Foucault denomina de “mecânica exemplar” funciona através de uma
“redistribuição dos papéis” que são exercidos nas ações jurídicas. Neste caso, a própria
condenação pretenderá assinalar o delinquente “com sinal negativo e unívoco”, de modo a
justificar a pena pela essência de “corrigir, reeducar, ‘curar’”, ao invés de punir.
(FOUCAULT, 2014, pp. 14-15)
57
Isto gera, segundo o autor, uma “nova justificação moral ou política do direito de
punir” principalmente no que diz respeito aos esforços do humanismo ao longo dos anos que
acompanharam essa transformação jurídica. A começar pelo “desaparecimento dos suplícios”
que representa, ao mesmo tempo, a eliminação daquele espetáculo que acontecia na execução
penal e a extinção do “domínio sobre o corpo” característico da violência contida no exercício
da punição supliciante. (FOUCAULT, 2014, pp. 13-15)
Conforme constata Foucault, a partir de então, se manifesta um pudor nas práticas
punitivas que se reservaram a “não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir
nele algo que não é o corpo propriamente”. Assim ocorreu a modificação da “relação castigo-
corpo”, a partir da qual o corpo passará a ser tomado como instrumento. Em consequência, se
poderá intervir sobre o corpo por meio do castigo que deixa de representar “uma arte das
sensações insuportáveis”, que é o caso do suplício, e começa a se caracterizar por “uma
economia dos direitos suspensos” colocando as pessoas em um “sistema de coação e
privação”, que é o caso do carcerário. (FOUCAULT, 2014, p. 16). Sobre esta relação entre
sistema judiciário e sociedade Foucault vai demonstrar o seguinte:
Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à
distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais
“elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio
substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os
capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao
lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe
garantem que o corpo e a dor não são objetos últimos de sua ação punitiva.
(FOUCAULT, 2014, p. 16, grifo meu)
14
O conjunto de meios pelos quais se dá cumprimento à pena de morte. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/topicos/297430/execucao-capital/definicoes>. Acesso em: 8 de novembro de
2017.
58
acontecer de forma confidente “entre a justiça e o condenado”. Segundo o autor, até meados
do século XIX, mesmo sem estar centralizado no sofrimento e na violência, o poder exercido
sobre o corpo se manifesta no sistema prisional através de “complementos punitivos” que
tinham relação com corpo, como exemplo aponta: “redução alimentar, privação sexual,
expiação física, masmorra”. Esses complementos conformam o que Foucault denomina de
“fundo supliciante” e estão relacionados a uma “penalidade do incorporal”. (FOUCAULT,
2014, pp. 19-21)
Ao que Foucault denomina de “realidade incorpórea” pode se dizer que é
caracterizado como um aparato da justiça punitiva que, por meio da amenização da pena e da
dor, pretende castigar “a alma” enquanto crime do criminoso, no lugar do corpo. Assim o
objeto da pena é substituído, “O corpo e o sangue são substituídos pela alma”. (FOUCAULT,
2014, pp. 21-23). Esta abordagem do sistema de punição é regida “pela economia interna de
uma pena” que pode se modificar de acordo com as qualificações e o conhecimento de quem
está condenado, um saber sobre o “sujeito jurídico” é posto em jogo, se destinando:
Mais adiante, Foucault pretenderá verificar se esta substituição do corpo pela alma
“não é efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas
relações de poder”. (FOUCAULT, 2012, p. 27, grifo meu)
Em algumas páginas o autor esclarece como a justiça criminal moderna, ao se carregar
de “elementos extrajurídicos” como, por exemplo, a medicina psiquiátrica, põe esses
elementos em funcionamento dentro da ação penal, de modo que esta ação penal possa se
inserir constantemente nos sistemas não jurídicos e alcançar seu efeitos na sociedade.
Foucault observa que, através do deslocamento na finalidade dos castigos, “Um saber,
técnicas, discursos ‘científicos’ se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir”
configurando o que denomina “o atual complexo científico-judiciário” no qual o poder de
59
julgar e punir se apoia e do qual pretende receber “justificações” e “regras”, e entende-se que
isso acontece de forma a ramificar e expandir seu funcionamento por todo o corpo social e por
todas as almas. (FOUCAULT, 2014, pp. 26-27) A partir disso o pensador, ao traçar o objetivo
do livro, coloca em questão o caminho que seria possível percorrer para desenrolar a história
da prática punitiva, em se tratando de “poder” e “saber” sobre o corpo, seja numa lida
corpórea (diretamente) ou “incorpórea” (indiretamente), com o trecho que segue:
Mas a partir de onde se pode fazer essa história da alma moderna em julgamento? Se
nos limitarmos à evolução das regras de direito ou dos processos penais, corremos o
risco de valorizar como fato maciço, exterior, inerte e primeiro, uma mudança na
sensibilidade coletiva, um progresso do humanismo, ou o desenvolvimento das
ciências humanas [...] corremos o risco de colocar como princípio da suavização
punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de
poder entre elas dos novos mecanismos penais. (FOUCAULT, 2014, p. 27, grifo
meu)
Será tomando a punição como uma “função social complexa” que o autor pretenderá
“analisar os métodos punitivos [...] como técnicas que têm sua especificidade no campo mais
geral dos outros processos de poder” na sociedade, olhando para os castigos pelo viés de uma
“tática política”. Também pretende verificar a relação entre a história do direito penal e a
história das ciências humanas, fazendo relações entre o caminhar da “humanização da
penalidade” e do “conhecimento do homem”. O trabalho apresentado por Michel Foucault no
livro Vigiar e Punir direciona-se, de forma geral, ao estudo das transformações que ocorrem
no funcionamento dos métodos punitivos tomando como ponto de partida uma “tecnologia
política do corpo”, o que possibilita a leitura de uma “história comum das relações de poder e
das relações de objeto” (FOUCAULT, 2014, pp. 27-28) conforme citação abaixo:
De maneira que, pela análise da suavidade penal como técnica de poder, poderíamos
compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou
anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal; e de
que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como
objeto de saber para um discurso com status “científico”. (FOUCAULT, 2014 pp.
27-28, grifos meus)
supressão. Destes efeitos positivos aponta que “se os castigos legais são feitos para sancionar
as infrações”, pode-se dizer que a “definição” das infrações são feitas para “manter os
mecanismos punitivos e suas funções”. (FOUCAULT, 2014, p. 28, grifo meu)
Foucault, citando Rusche e Kirchheimer, vai mostrar “a relação entre os vários
regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam”. É assim que a detenção com
fim corretivo, por exemplo – dentre outros, veio a substituir o trabalho obrigatório no século
XIX, quando “o sistema industrial exigia um mercado de mão de obra livre”. Ainda neste
capítulo irá ressaltar que, “em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados
em uma certa ‘economia política’ do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos e
mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se
trata”. (FOUCAULT, 2012, pp. 28-29, grifo meu)
De acordo com Foucault as historiografias do corpo expõem os processos que
consideram a existência a partir de uma “base puramente biológica”. Porém, para além desta
concepção biológica, ”biologizante”15, o autor revela que o corpo também está diretamente
imerso num “campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o
investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais”. (FOUCAULT, 2014, p. 29, grifo meu). Será neste campo de
atuação que o “investimento político” irá se efetuar como força de produção e de trabalho
utilizadoras do corpo por meio de um tratamento “econômico” nas relações de poder e de
dominação. Mas isto se realiza somente se o corpo estiver encerrado em um “sistema de
sujeição”. Quer dizer que “o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo
produtivo e corpo submisso”. (Idem, grifos meus) O pensador mostra como essa sujeição age
sobre o corpo, sem propriamente encostar nele de forma violenta ou não, mas “de acordo com
toda uma série de complexas engrenagens” (FOUCAULT, 2014, p. 30) a partir da seguinte
colocação:
Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode
muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos
materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente
pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem de terror, e no entanto continuar
a ser de ordem física. (FOUCAULT, 2014, p. 30)
15
Helena Katz e Christine Greiner, ao falarem sobre a Teoria da evolução na comunicação em seu artigo Por
uma teoria do corpomídia, percebem que a “biologização” (daí a inflexão do termo utilizada aqui) no estudo do
comportamento humano, quer dizer, a explicação do comportamento humano por “informações biológicas [...]
especialmente as genéticas”, “precisaria ser combatida”, segundo a perspectiva dos estudos sociais feitos por
“Weber, Durkheim e Lévi-Strauss, entre outros” [“a descrição do comportamento humano como resultado do
mundo social”], “por representar uma porta aberta para o horror das eugenias, a ameaça dos controles raciais,
etc.” (GREINER, 2005, p. 128)
61
Adiante, Michel Foucault irá caracterizar um saber do corpo que não diz repeito
exatamente a seus processos funcionais, estudados por um saber científico, e também um
controle das forças deste mesmo corpo que representa mais que a possibilidade de repressão e
exclusão dele, constituindo, ambos, o que o autor denomina tecnologia política do corpo. Por
sua vez, este “aparato” tecnológico do poder não é exatamente localizável, mas utilizado por
instituições ou por aparelhos do Estado, funcionando em seus mecanismos. Quer dizer que a
tecnologia política está atrelada ao funcionamento do poder nas relações entre instituições e
pessoas e entre as próprias pessoas. Situando-se “em um nível completamente diferente”, isto
é:
Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos
aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre
esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e forças.
(FOUCAULT, 2014, p. 30, grifo meu)
Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar
que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno,
na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce
sobre os que são punidos – de uma maneira geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a
existência. (FOUCAULT, 2014, p. 32)
do poder nas relações (como introduzido em 2.1 e 2.1.1). Em continuidade, tomando como
base a terminologia dada por Foucault, “disciplina” e “docilidade”, voltarei meu olhar para a
formação do músico propriamente [2.2.1 e 2.2.2], juntamente com o que é mostrado por
Valeria Bittar em sua tese de doutorado Músico e ato (2012). Por fim, conduzirei a discussão
para o âmbito da técnica pianística [2.2.3 e 2.2.4], onde se percebe manifestar primeiro uma
separação e depois um adestramento do corpo e da mente no processo de aprendizagem, e um
consequente distanciamento entre a técnica e o fazer artístico da música em performance.
Ao caminhar juntamente com Foucault no livro Vigiar e punir adentramos na terceira
parte denominada Disciplina, onde o filósofo irá apontar o corpo como “objeto e alvo de
poder”, uma prática que se tornou comum a partir do século XVII. (FOUCAULT, 2014, p.
134) Esta atenção dedicada ao corpo age, segundo o pensador, através de manipulação,
treinamento, obediência, habilidade, capazes de “multiplicar as forças” deste corpo,
caracterizando o que denomina “esquemas de docilidade”. Foucault expõe olhares para o
corpo, no interior das relações de poder, que mostram de que forma, em qualquer sociedade, o
corpo se torna “objeto de investimentos” extremamente necessários tornando-se, assim,
ferramenta do exercício de poder e controle. O autor irá relatar o surgimento da figura do
soldado no início do século XVII, figura esta resultante de um conjunto de condutas
originadas numa “retórica corporal da honra”, definida por Montgommery (1636), através do
estabelecimento de uma série de posturas anatômico-corporais que sinalizariam aqueles aptos
para o ofício de soldado. Desta forma, Michel Foucault (2014, p. 133) explica que na segunda
metade do século XVIII, o corpo do soldado será algo pensado e fabricado para que aja
automaticamente e que esteja sempre disponível. Em suas palavras:
[...] o soldado se tornou algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo
inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas:
lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, assenhoreia-se dele,
dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no
automatismo dos hábitos.
É a partir deste olhar posto por Foucault sobre a época clássica e a referência a um
corpo automatizado em seus hábitos que surgiram em mim inquietações quanto à pedagogia
dirigida para a performance, no meu caso a performance pianística, que será tratada mais
adiante no final deste capítulo, e àquilo que diz respeito ao sentidos e significados da
performance musical em arte.
Seguindo na terceira parte do livro, Foucault ampliará o território da criação do corpo
do soldado em direção ao corpo-máquina, ou “o homem-máquina” abordado em 1748 por
64
Julien Offray de La Mettrie (1709 - 1751). La Mettrie irá propor em seu livro “L’homme
Machine” (O Homem Máquina) a tomada do corpo como algo útil e inteligível a partir de dois
apontamentos escritos ao mesmo tempo em seu livro (FOUCAULT, 2014, p. 134). Ambos
trarão abordagens diferentes entre si, mas que se entrecruzam, a saber:
16
Articulando aqui as enunciações do filósofo: escala se refere a um trabalho detalhado sobre o corpo onde se
trata de “exercer sobre ele uma coerção sem folga” e “mantê-lo ao mesmo nível da mecânica” no que diz
respeito aos movimentos, gestos, atitude e rapidez: há um “poder infinitesimal sobre o corpo ativo”; objeto está
relacionado a uma “economia e eficácia dos movimentos” em sua organização interna, onde o que importa é a
“cerimônia do exercício” onde se identifica uma “coação sobre as forças”; modalidade se manifesta através da
“coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado”, para
isso opera uma “codificação”, um “esquadrinhamento” do tempo, do espaço e dos movimentos. (FOUCAULT,
2012, p.135).
65
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
“anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está
nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se determina. A disciplina fabrica
assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as
forças (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz
dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e
inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do
trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo
entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada (FOUCAULT, 2014, p.
135 e 136, grifo meu).
Dentre outros aspectos, de acordo com a análise inicial no glossário introdutório deste
trabalho, o território dos corpos dóceis pode remeter ao conceito de performance em
proximidade com o de desempenho. Neste caso, a performance é esquadrinhada e dividida em
disciplinas que investem forças de controle sobre as ações “anátomo-metafísicas” do músico
performador. Agindo a partir do forte estabelecimento de detalhamentos, modelos, padrões,
regras e normas que se articulam dentro do fazer musical e da formação em música através de
um processo de racionalização do corpo e do som, o código musical escrito. Este mecanismo
opera sob a vigilância e a disciplina contidas numa mentalidade onde não se consideram as
ações físicas do corpo partindo da percepção de cada um, da escuta e da investigação
singulares, mas de conceitos. Sendo assim objetiva-se a todo o tempo o modelo, por meio de
treinamentos, correções e condicionamentos automatizados, transformados em hábitos. A
partir das avaliações e exames, a vigilância e um poder sutil se manifestam, tornando-se uma
constante que vibra em meio às ações em performance musical.
As “práticas interpretativas” estão submetidas todo tempo às exigências de um
desempenho musical de excelência, de expertise, onde a performance é tomada como
execução habilidosa daquilo para que o corpo do músico foi treinado a desempenhar. Em caso
contrário, é constatada uma não competência técnica para tal habilidade, fazendo recair a
investida inicial sobre o corpo de quem performa. Em outras palavras: o investimento
econômico-político do poder que desejou moldar o corpo atuante na música é o mesmo que
entrega para o performador a responsabilidade pela incompetência de seus atos condicionados
que não se adequaram ao padrão estabelecido, à norma vigente. A vigilância impõe um
67
A partir disso, observa que até os dois primeiros séculos da música tonal (XVII-XVIII)
a pedagogia e a formação de um músico “têm seu modus operandi calcado na relação mestre-
aprendiz” (BITTAR, 2012, p. 30). Nesta relação de caráter individualizado (e não
individualizador), a aprendizagem surge das experiências particulares e o processo de ensino
se adapta “a cada situação durante a formação do discípulo” (SANTOS, 2011 apud BITTAR,
2012, p. 33). Baseando-se na tese de doutoramento do violinista Luis Otavio Santos (2011) a
autora esclarece que “Na relação mestre-aprendiz havia um sentido de transmissão artesanal
do saber que partia do compartilhamento das experiências musicais do mestre e das
experiências musicais do aluno.” (BITTAR, 2012, p. 31). Esta modalidade de aprendizagem
representa a forma como eram escritos os tratados, baseando-se na música prática, no relato e
na descrição de “uma práxis específica de um instrumento ou da utilização prática da teoria
musical” (SANTOS, 2001 apud BITTAR, 2012, p. 32), expressando “o fazer, a ação e a
experiência de um mestre que acionarão a vontade de experimentação no aprendiz. Um
processo empírico e artesanal de transmissão do conhecimento”. (BITTAR, 2012, p. 32)
Neste processo empírico a aprendizagem da performance musical entrecruzava-se com
o aprendizado da composição musical partindo da “matéria sonora”. Contudo, devido a
Revolução Francesa o lugar da pedagogia da música calcado na instituição pedagógica
69
que transfere) obediente [...] e não mais um co-autor da obra”, pressupondo uma leitura
“controlada” e “informada” da música-texto que se vincula também à “ideia romântica da
autoria e do gênio”, concebida no século XIX em relação à “estrita codificação” da obra
escrita. (BITTAR, 2012, p. 35) Neste sentido que, adiante no capítulo 1.2.1 de sua tese, Bittar
caracteriza esta situação pela neutralidade diante do fazer musical denominando de
intérprete-neutro, este fazedor o qual o oboísta e pesquisador da música antiga, Bruce Haynes
(2007), chama de intérprete transparente. Concepção esta já discutida no glossário
introdutório deste TCC quando são mapeadas as visões de Arnold Schöenberg e Henrich
Schenker. O ideal romântico de interpretação “neutra” ou “transparente” encontra seu oposto
na ideia de intérprete gênio que através de um “domínio técnico, veiculará com habilidade e
virtuosismo a virtuosidade e a genialidade contidas na obra do primeiro gênio” – o
compositor. (BITTAR, 2012, p. 68)
A pesquisadora esclarecerá que esses parâmetros de genialidade, tanto do autor quanto
do intérprete, se assentam “na mentalidade romântica de individualização e, por conseguinte,
de criação (autoria) e de reprodução (interpretação) da obra” gerando, assim, uma forte
“hierarquização da criação musical” que parte da fidelidade ao texto. (BITTAR, 2012, p. 68)
Isto se desdobra na prática musical do Ocidente pondo o intérprete numa situação de
submissão e distanciamento de seus próprios processos artísticos em performance conforme
observa Bittar (2012, p. 71, grifo meu) no texto detalhado abaixo:
Entendo, até aqui, que é neste contexto que o performador se deparará sempre que for
falar da própria experiência musical. Percebo, no trajeto de reflexão sobre a atuação e a
formação em música, que mesmo quando o pesquisador da área de performance musical se
propõe pensar acerca de seu próprio fazer, de seus processos de criação em performance e de
71
sua relação com o corpo em arte, estará, em primeira instância, inserido numa cultura
determinada pela mentalidade cientificista centralizada na racionalidade. Valeria Bittar
atentará, no capítulo 1.2 de sua tese, para a necessidade do músico se situar historicamente
nas artes e no contexto sócio-político onde está inserido. De acordo com isto, através da
possibilidade de reflexão diante do funcionamento e das necessidades presentes nas atividades
artísticas constituídas na sociedade do mundo ocidental, o performador poderia lidar com sua
prática em diálogo com a(s) própria(s) arte(s), sem necessariamente recorrer às ciências da
medicina, da administração, das engenharias como embasamento elementar de seus
conhecimentos técnico-artísticos em música. Por isso, o presente trabalho de conclusão de
curso, quando pretende se encaminhar para uma abordagem somática, não deixa também de
atentar ao incurso metodológico que está contido nos fazeres do corpo na sociedade (relações
histórico-culturais) e em performance (relações técnico-artísticas e tecnológico-políticas). O
trabalho da professora Valeria Bittar (2012, p. 145) potencializa o jogo neste caminho em
direção ao corpo (soma) do performador na experiência musical, também quando percebe
como até mesmo a educação somática será tomada de uma forma restrita na formação em
música (ou em arte) conforme o trecho que segue:
Na performance musical vejo que existe uma nítida linha que separa a performance
que inclui o corpo do executante, do próprio ser executante, o performador.
Enxergo, porém, um caminhar ainda tímido para uma pedagogia que inclua o corpo
que performa, uma didática somática para a música, enquanto estímulo perceptivo
para a estruturação do músico em performance. Entretanto esta inclusão do corpo na
pedagogia da performance musical enquadra-se em mais uma das disciplinas do
treinamento técnico do aprendiz, separando corpo de performance, performador de
corpo: “a educação somática torna-se então um ingrediente de formação
complementar a esta mais tradicional aula técnica cotidiana” (FORTIN, 1999, p. 45
apud BITTAR, 2012, p. 145).
A partir disso saliento que, para se desviar dos discursos e não discursos da formação
musical em performance que submetem o performador a um treinamento técnico-mecânico do
corpo, a flautista propõe a transformação no eixo da atuação musical: da racionalização para
a percepção.
Com o pano de fundo tecido anteriormente tendo como base os trabalhos de Michel
Foucault e de Valeria Bittar, a continuidade deste capítulo trata de observar como as
condições impostas por dispositivos de saber e disciplinares elaboram os discursos da
72
apontam para uma ênfase sobre o texto musical autônomo e não para os processos
de performance do mesmo: “A notação não é mais um mero pré-texto que ‘coloca a
música em obra’, mas sim, ela própria [a notação] é uma obra”. (DAHLHAUS,
1976, apud BITTAR, 2012, p. 40, grifo meu)
Bittar enxerga essa separação entre teoria e prática, que até o período barroco eram
fundidas, ressurgindo “com contornos bastante nítidos” no ensino metodizado estabelecido
pelo conservatório. A partir disso, ao longo de 150 anos, aquelas disciplinas se convertem em
74
“entidades autônomas, sem continuidade ou diálogo entre elas, o que gera um aprendizado
fragmentado e, muitas vezes, desprovido de sentido.” (BITTAR, 2012, pp. 41-42).
Analisando a abordagem de cada campo de conhecimento disciplinar em música, a
pesquisadora conclui, de modo geral, que a operacionalização dessas ferramentas terá como
principal fundamento a Musicologia de onde se originam as outras abordagens teóricas ou
teórico-práticas.
Com enfoque no registro escrito, até mesmo a História da Música se limita ao estudo
evolutivo dos gêneros e formas musicais com base na autoria do texto e na autonomia do
compositor, “com um grande peso na música e na escrita tonal” (BITTAR, 2012, p. 43). A
história, bem como a Estética da Música, de modo geral, não inclui “o estudo da História
da(s) Arte(s)” e do “pensamento filosófico da música anterior ao século XVIII”. Acerca da
Percepção Musical, a autora irá observar a atuação de um “treinamento”18 que tem como
objetivo “o reconhecimento sonoro daquilo que está escrito em partitura” com base na
oposição entre “ouvido(sensor)-intelecção”. (BITTAR, 2012, p. 43) E sobre a Harmonia e a
Análise Musical constatará que apresentam métodos para, respectivamente, a “interpretação
harmônica/tonal do texto musical anotado” e a “compreensão da estrutura total do texto
musical”. Caracterizadas por uma “codificação” e uma “significação do signo”, representando
assim uma “notação que explica a notação” e conduzindo a um “novo texto musical, que, por
sua vez, versa sobre um texto musical que lhe deu origem, subtraindo deste sua força e a
possibilidade da realização em performance por parte do músico atuante”. (BITTAR, 2012, p.
46). Simultaneamente a este arcabouço disciplinar do currículo ocorre o estudo, propriamente,
do fazer musical, da performance no domínio do que é titulado como “práticas
interpretativas”. Na citação abaixo Bittar (2012, p. 45) esclarecerá o mecanismo de atuação
neste campo e os parâmetros estabelecidos como termos de exame:
18
Valeria Bittar exemplifica melhor com a terminologia do inglês “Ear Training” (treinamento do ouvido) e do
alemão “Gehörbildung” (educação da audição)”.
75
por uma banca formada por professores de instrumentos. O aluno também é avaliado
regularmente através dos exames das disciplinas citadas acima.
Conforme o percurso até este ponto, juntamente com o trabalho de Bittar (2012), é
possível visualizar de forma contextualizada, por onde a ideia de performance se aproxima do
ideal de desempenho na medida em que se articula dentro: de uma mentalidade situada e
constituída em determinado período histórico na sociedade por nós “herdada”; e de um
currículo disciplinar que tem como objetivo estrutural o entendimento do texto musical
(segundo Bittar: o “aumento de informação” e o “aprofundamento da compreensão” da
‘obra’), operando num campo de “abstração” (que “separa som-texto-realização”) e não
propriamente de experiência sonora. (BITTAR, 2012, p. 46) No trecho abaixo a autora
apontará para esta herança que permeia nossas práticas:
Bittar (2012, p. 46) ainda abre espaço para uma crítica originada nos estudos literários
que parte de conceitos elaborados e construídos pelo medievalista suíço Paul Zumthor,
enxergando que a redução da obra de arte em sistemas analíticos – e a autora lê
“musicológicos/analíticos” se referindo à musicologia e à análise “quando instrumentos
76
didáticos” – “constituiu um trabalho pedagógico útil e talvez necessário, mas de fato (no nível
em que o discurso é vivido), ele nega a existência da forma. Essa, com efeito só existe na
‘performance’” (ZUMTHOR, 2007 apud BITTAR, 2012, p. 46). Desta maneira, segundo a
autora, aos dispositivos disciplinares atribui-se a função de “reguladores universais” da
performance musical, “sobrepondo-se à ação performática”.
Por essas e outras vias, a tese de doutorado de Valeria Bittar trava uma proximidade
com o pensamento de Michel Foucault. Através da ativação de conceitos desenvolvidos pelo
pensador francês a pesquisadora parte para a concepção de um posicionamento crítico
proposital diante da formação em música que se encontra “dentro de um macro sistema sócio-
cultural” representativo da época moderna e se manifesta por meio de “reflexos de uma
modalidade de poder marcada pela mentalidade do ‘regime disciplinar’, da ‘vigilância
hierárquica’, produtora dos ‘corpos dóceis’”. (BITTAR, 2012, p. 246) Isso é manifesto na
música diferentemente do que acontece na dança e no teatro, como é descrito no trecho
extraído de sua tese de doutoramento:
No capítulo anterior foi possível observar, a partir da tese de Valeria Bittar, como a
formação em música funciona dentro dos mecanismos “disciplinares” nas relações de poder
apontados por Michel Foucault, no caso de práticas ocidentais. O trajeto que pretendo
percorrer junto a esses autores não tem como finalidade, propriamente, validar ou não as
práticas e discursos que foram e serão observados, ou verificar se tal método é “eficaz” ou não
é “eficaz” no processo de formação musical; mas pretende perceber o funcionamento, os
modos de fazer (CASTRO, 2009) que conduzem o músico em seu caminho de formação para,
posteriormente, pensar em outros possíveis caminhos ou desvios de abordagem para a
experiência musical em técnica-performance.
Neste sentido, movimento a reflexão para o âmbito da técnica pianística, a partir de
minha própria inquietação a este respeito (apontada logo no primeiro capítulo), esboçando
algumas observações em torno de ações operacionalizadas pela pesquisa e didática
desenvolvidas nesta área. Mais uma vez, o objetivo não é verificar a ‘eficiência’ ou não das
propostas técnico-didáticas dos diferentes teóricos estudados, mas, a partir da observação dos
‘discursos e não discursos’, perceber como nos é dado seu “funcionamento” de acordo com as
“relações de saber e poder” na sociedade conforme visto desde o início deste capítulo em
Foucault (2014). Para mapear as práticas da técnica pianística tomarei como base,
principalmente, três trabalhos de autores brasileiros (Richerme, Póvoas e Kaplan) que traçam
seus estudos em reflexão e diálogo com teóricos fundamentais para o histórico e atualização
da técnica pianística, representando, de forma geral, as modalidades de atuação nesta área.
78
19
Com exceção dos livros pioneiros sobre a técnica de executar instrumentos de teclado, como os dos cravistas
François Couperin (1716) e Carl Philipp Emanuel Bach (1762) e dos trabalhos teóricos de Clementi (1801), de
Humel (1828) e de Czerny (1839), por exemplo, que abarcavam inúmeros “estudos e exercícios para serem
executados ao piano”.
79
Assim como Amy Fay (aluna de Deppe) que escreve a respeito da maneira como alguns
professores ensinavam piano entre 1869 e 1875. (RICHERME, 1996, p. 20) O autor relata
que, ao compreender que suas dificuldades técnicas se tratavam de problemas mecânicos, Fay
elabora algumas explicações como: “não elevar alto os dedos para melhorar a qualidade do
toque e o desempenho muscular, evitar a rigidez do pulso, não forçar os dedos, tocar ‘com
peso’ [...] e outras”. Após publicações do livro de Amy Fay, no final do século XIX, surgem
novos trabalhos com delineamento analítico, o que conforma uma fase da técnica pianística
com viés mais científico, que enfatizava aspectos como “relaxamento, o uso do peso e de
movimentos do braço, a posição arcada, arredondada da mão” (RICHERME, 1996, p. 21)
Segundo o autor, no final do século XIX e início do século XX surgem as escolas
pianísticas de abordagem “anatômico-fisiológica”, na linha de Marie Jaell, Oscar Raif e
Tobias Matthay, que lançam “ideias valiosas” acerca do toque, sonoridade e sensibilidade
desenvolvidas, no entanto, Richerme irá qualificá-las como “teorias imprecisas e
extremamente confusas”. O pianista dá continuidade à explanação histórica, afirmando que, a
partir de 1905, o aparecimento de estudos e teorias acerca do relaxamento e do envolvimento
do peso natural do braço na técnica pianística direcionaram ao que o autor considerou
“exageros”. Tais exageros foram bastante criticados, do mesmo modo que as técnicas
propostas anteriormente. Neste terreno difuso, teorias apontam falhas e imprecisões
fisiológicas embora continuassem sendo ampliadas e renovadas ao longo da década de 1920
“quando a investigação científica atinge um dos seus pontos culminantes.” (RICHERME,
1996, p. 22).
Desta forma, surgem questões acerca dos aspectos indispensáveis de diversas escolas
como as seguintes postas por Richerme (1996, p. 23):
1) Como se pode tocar com um braço relaxado se os movimentos são, em sua maioria,
causados por contrações dos músculos?
2) Como pode o peso do braço substituir as contrações musculares, se contrações dos
músculos dos dedos são necessárias para sustentar esse peso?
3) Como se pode tocar uma sequencia de notas sem contrações e movimentos ativos
dos dedos?
4) Seria possível para um pianista controlar a qualidade tímbrica do som do piano?
Diferentemente do que aconteceu nesta reação, hoje os meios musicais têm se apoiado
continuamente sobre pressupostos científicos, conforme observa Valeria Bittar no capítulo 3.1
de sua tese.
Cláudio Richerme destaca, entre os trabalhos pesquisados por ele em seu livro, a
“profundidade e tratamento analítico dados pelos teóricos Tetzel, Ortmann e Schultz”, assim
como a importância dos trabalhos de Kaemper e Gerig enquanto propostas histórico-críticas.
Pesquisas que, segundo observa, são como fundamento para os trabalhos posteriores de
cientistas e teóricos que “apenas repetem, sintetizam ou simplificam teorias anteriores.”
(RICHERME, 1996, p. 25). O autor irá considerar que alguns pesquisadores, atuando
paralelamente em outro terreno metodológico, enfocam seus trabalhos em “aspectos
puramente psicológicos” e em “aspectos do funcionamento do sistema nervoso central”, de
acordo com o que Kaemper (1965 apud RICHERME, 1996, p. 25) irá observar, conforme
mostrado no trecho que segue abaixo:
histórico das teorias da técnica pianística parecem caminhar em duas vias distintas de
práticas e discursos neste âmbito, a saber: uma de ordem física, racional-analítica (fisiologia,
mecânica, anatomia) e outra de ordem mental, mas também racional-analítica (psicologia,
neurologia).
Enxergo que Cláudio Richerme caminha em seu livro, e especialmente no capítulo
terceiro, seguindo os passos dos trabalhos científicos que analisa, dentro de uma abordagem
técnica delineada por informações anátomo-fisiológicas, biomecânicas e neurológicas.
Pretendendo, desse modo, responder de maneira científica, às questões acima mencionadas.
Este conhecimento, apesar de ser de enorme utilidade para o entendimento do mecanismo
corpóreo na prática instrumental, opera com enfoque na “compreensão sistemática e racional
do corpo” (BITTAR, 2012). Isto se evidencia mesmo quando, ao longo do livro, o autor
relaciona amplamente o conhecimento científico com a prática pianística do estudante
(capítulos didáticos), gerando mais uma série de prerrogativas biomecânicas para o
movimento do que a vontade de “experimentação” técnica do pianista (BITTAR, 2012).
Desse modo, é possível visualizar uma lida com a técnica instrumental em relação ao
corpo do instrumentista que toca piano, muito semelhante à lida com o texto musical na
atividade de interpretação/execução, justamente no que diz respeito ao distanciamento da
experiência musical em performance e ao enfoque no aumento de compreensão de
informações (BITTAR, 2012) que, no caso específico da técnica, será sobre o corpo. Enxergo
que é a este tipo de distanciamento que Cook (2006) se refere ao entender o paradigma do
corpo na performance contemporânea como “um terreno de resistência ao texto” (vide
glossário introdutório), ou seja, de resistência à quantidade de compreensão e de informação
(BITTAR, 2012) que opera de forma abstrata e “normatizadora” (FOUCAULT, 2014) no
fazer musical, seja em relação ao som codificado ou ao corpo codificado.
Observarei adiante do item 2 do capítulo 2.2.4 que, em um segundo momento, esta
compreensão se dirigirá diretamente ao texto (código musical), podendo configurar uma
anulação do corpo do músico-pianista.
Retomo aqui algumas reflexões postas por mim no início deste trabalho de conclusão
de curso, mais especificamente no primeiro capítulo, acerca dos conceitos listados juntamente
com algumas perguntas, dando prosseguimento às seguintes observações: não é somente
operando num terreno de abstração ao emitir conceitos referentes ao corpo físico, que a
didática pianística se distancia do aprendizado sentido do corpo próprio; mas é também
através da mecanização deste corpo. Claudio Richerme, conforme cito abaixo, colocará em
questão alguns termos utilizados neste âmbito como: flexibilidade, relaxamento muscular e
82
tensão muscular. Contudo, para tecer ou criticar tais conceitos físicos, o autor oferecerá, ao
longo de seu trabalho, uma “análise mecânica”, dando continuidade à construção de uma fala
sobre o corpo que se distancia da experimentação pessoal primeira do corpo de cada um:
Fonte: RICHERME, Claudio. A técnica pianística: uma abordagem científica. São João da Boa Vista, SP. AIR
Musical Editora, 1996, pp. 84-85
84
Quando propõe esclarecer tais questões por meio desses estudos de ordem puramente
mecânica, isolando as partes do corpo, em interface com a fisiologia humana, se refere ao
corpo através de uma operação abstrata e externa à vivência corpórea – materializada
estritamente em um nível mecânico, sem passar pelo fluxo corpóreo daquele que toca piano.
Essas maneiras de abordagem podem ser verificadas e destrinchadas na esfera do discurso,
mesmo entendendo que este caminho apontado pelo pianista, posteriormente, levará para uma
aplicação prática20 na técnica pianística através de exercícios-treinamentos propostos por
Richerme, e mesmo quanto ele define que o modelo de braço mecânico utilizado “está
obviamente longe de reproduzir o funcionamento do braço humano” (RICHERME, 1996, p.
83, grifo meu) – sobre isto, claro que não haveria dúvidas e, no meu entender, já inviabilizaria
a investigação em si mesma.
Ao estudar a concepção de corpo elaborada por Michel Foucault com base no livro “O
Homem Máquina” de La Mettrie, de onde surgiu a noção de “corpos dóceis” (como foi
observado anteriormente), a flautista Valeria Bittar, irá relacionar esta noção diretamente
com a didática da formação em música, a qual considera “anacrônica” e “paradoxal” no que
diz respeito ao corpo próprio do músico, por estabelecer um modelo técnico externo que
deverá ser apenas emulado, através de um treinamento automatizado e esvaziado de sentido,
levado à exaustão. A autora irá esclarecer em detalhe tais considerações no trecho que segue
abaixo:
Esse treino técnico do corpo na didática da performance musical trabalhará também
em uma esfera automatizada, na aquisição de mais uma técnica, que ao mesmo
tempo é apartada do sujeito performador. Isso me faz concluir que mesmo
enxergando o corpo como participante da performance, ainda carregamos esta visão
do corpo totalmente imersa na mentalidade das disciplinas, dentro dessa ênfase
política da coerção, moldadora de nossa experiência enquanto seres únicos, como
continuadores mecânicos do processo disciplinar [...] (BITTAR, 2012, p. 145, grifos
meus)
No que diz respeito a essa “esfera automatizada” na qual também irá operar a técnica
pianística, observo que Richerme, em vários momentos de seu livro, defenderá a
“automatização” dos movimentos aprendidos e bem treinados como parte imprescindível do
processo de desenvolvimento técnico (fisiológico) ao piano. Sendo assim, pode-se considerar
que as propostas de Richerme estão circunscritas numa esfera extremamente “cientificista” e
mecânica, mesmo quando propõe uma “tomada de consciência” dos fenômenos musculares e
nervosos. Neste sentido, o pianista, seguindo os passos de Kaemper, irá afirmar ser
20
Assim essas questões também poderiam ser verificadas na esfera de um ‘não discurso’?
85
Conforme relatado no primeiro capítulo deste trabalho, durante os meses em que fui
bolsista de iniciação científica no grupo de pesquisa da professora Maria Bernardete Póvoas,
pude conhecer mais sobre o sentido cinestésico/propriocepção que está profundamente
envolvido nas ações do corpo em movimento, juntamente com trabalhos nas áreas de controle
motor, aprendizagem pianística, dramaturgia corporal e educação somática. Naquela breve
pesquisa pude perceber, além do que foi relatado de início no TCC, como os estudos do corpo
em movimento, incluindo as ciências neurológicas e cognitivas, tomam novos rumos ao longo
do século XX, no sentido de investigar um ‘saber do corpo’ que não parte exclusivamente do
entendimento racional do corpo sobre si mesmo, mas de sua experiência em vida. Como
exemplo disso, podemos trazer o trabalho do neurologista Gerald Edelman, dentre outros
cientistas21, citado por Neide Neves (2008) em seus Estudos para uma dramaturgia corporal
com base na Técnica Klauss Vianna.
Percebo, entretanto, que mesmo aqueles teóricos citados por Richerme que defendem
a consciência e as “sensações táteis” e “musculares”, também tendem a uma racionalização
desta ação que seria primeiramente de ordem corpórea. As teorias desenvolvidas com a
finalidade de esclarecer princípios técnicos, como apoio didático, partem, em meu entender,
de um conceito mecânico do corpo. Poderia ser identificado que estes posicionamentos se
devem às limitações teóricas quanto ao conhecimento do funcionamento do sentido
21
Os trabalhos do neurocientista Antônio Damásio e do biólogo e filósofo Francisco Varela.
86
Neste âmbito, recorro mais uma vez ao pensamento da flautista Valeria Bittar que no
capitulo 2.2 de sua tese analisa a metodologia proposta por Kees Boeke e Walter van Hauwe
para o estudo técnico da flauta doce. Percebo que, mesmo em se tratando de instrumentos
situados em contextos histórico-culturais bastante diferentes entre si, a “mentalidade do
método canonicista” (BITTAR, 2012, p.128) que está conectada à ”interpretação musical
neutra” e, no caso do piano, foi ativada e potencializada no período romântico da música, terá
seu “modus operandi” nos procedimentos presentes nas seguintes afirmações de Bittar (2012,
p. 129):
A técnica, proposta pelo método, existe para solucionar pontualmente
questões surgidas na decodificação do texto musical;
A técnica é intensamente detalhada, visando a alta capacitação do
performador, como também o melhor e o correto desempenho;
A didática e a técnica propostas têm em mente não a performance, mas o
não erro. Ou: a performance resume-se na mais perfeita emulação do
modelo externo;
88
Sobre a “emoção pessoal abstrata” (VAN HAUWE, 1984) não se fala, não
se coloca em discussão, pois num método não há diálogo, diferentemente
dos tratados mais antigos, construídos à maneira clássica greco-latina, em
formato de diálogo entre a experiência do mestre e a do aprendiz;
No método musical, a técnica é tecida separadamente de todo o processo
criativo; sendo assim, a aquisição da técnica é objetivo e finalidade;
A técnica é entendida como uma compreensão que o corpo tem daquilo
que será necessário ser realizado no cumprimento dos padrões externos
apresentados pelo texto musical e pelo criador (quase que anônimo) do
método;
Os caminhos que cada performador trilha para acionar seu corpo no intuito
de cumprir esses objetivos são desconhecidos e considerados
desinteressantes, por não estarem diretamente conectados com o material
textual da música;
O treino é mecanizado e torna-se o centro, o objetivo final do treinador e do
treinado;
A performance restringe-se à habilidade em adequação ao treino proposto
pelo método, visando desempenho = execução. Busca-se o acerto,
evitando-se, a todo custo, o erro e o improviso (motivos para a
desqualificação).
Considero que as reflexões propostas por Valeria Bittar podem esclarecer por onde a
“mentalidade das disciplinas” e dos “corpos dóceis” será investida, de forma geral, nos modos
de fazer e aprender música dos séculos XVIII, XIX e XX reverberando nas condutas musicais
atuais, a despeito das mudanças de paradigmas que já ocorreram em diversas áreas
relacionadas ao estudo técnico-artístico.
2.2.4 Ação pianística – vias e possíveis desvios por uma abordagem somática
Neste capítulo, propondo um breve mapeamento, a partir das primeiras partes da tese
de doutorado da pianista Maria Bernardete Castelan Póvoas, intitulada Controle do movimento
com base em um princípio de relação e regulação do impulso mecânico: possíveis reflexos na
otimização da ação pianística (1999), irei perceber: duas vias [1) e 2)] de atuação da técnica
pianística que representam as concepções de alguns teóricos, e depois como a “evolução”, ou
melhor dizendo o caminhar da técnica pianística, vai ao encontro, no decorrer do século XX,
de uma proximidade com as sensações físicas de quem toca piano (cinestesia), relacionando
percepção do movimento e resultado sonoro (já introduzido no “glossário” com o conceito de
ação pianística em Póvoas). Neste sentido, juntamente com o pianista José Alberto Kaplan
(1935-2009) em seu livro Teoria da aprendizagem pianística: uma abordagem psicológica
(1987) encontro, a despeito de alguns paradoxos22, um possível desvio [3)] à abordagem
convencional da técnica pianística, onde o autor considerará uma unidade “psicomotora” – a
meu ver, em consonância com as ciências psicológicas e cognitivas que se encaminham a uma
transformação “epistemológica”, em diálogo com a filosofia e o teatro, passando a entender
22
Apesar de alguns pressupostos de Kaplan irem em direção aos aspectos desviantes que me proponho observar
adiante, seu terreno teórico opera na mentalidade do “automatismo”, do “treinamento”, da “interpretação de uma
obra musical escrita”, dentre outros. Consultar Kaplan (2008, 1987 1ªed.).
90
corpomente como unidade nas ações físicas (Vide NUNES, 2009) – e quando Kaplan defende
um aprendizado técnico-pianístico que se aproxima das sensações do corpo de quem toca
piano por meio da propriocepção, como foi observado já de início no primeiro capitulo do
TCC quando relato meu estudo junto à iniciação cientifica.
Começo a traçar aqui algumas observações – ainda que superficiais devido a limitações de
tempo e de prática na profundidade metodológica com a qual me deparo neste capítulo segundo –
acerca de discursos e não discursos presentes na ação didática (e consequentemente técnico-
performativa) da prática pianística, tomando como base as retrospectivas históricas lançadas no
primeiro capítulo da tese de doutorado de Bernardete Póvoas (1999). Nesta retrospectiva
histórica pude encontrar e listar ao menos três posicionamentos os quais consigo relacionar,
de forma mais ou menos consonante, com a noção de “sociedade disciplinar” e que vejo
permear o discurso da didática da performance especificamente voltada ao piano. São eles:
Assim, é aconselhada tanto uma fase de investigação prévia à ação, quanto uma
segunda fase de acompanhamento [diferente de uma investigação na ação, ou em
ação, ou uma “cognição na ação” como pronuncia Nunes, 2008], ou seja, a
necessidade de uma constante e minuciosa análise dos aspectos técnico e musical
como um procedimento a ser praticado durante todo o processo de treinamento.
(MATTHAY, 1912 apud PÓVOAS, 1999, p. 28)
23
Acerca da concepção de corpo adotada no presente trabalho já foram propostas reflexões (1) na introdução
quando exponho o conceito de soma e (2) no primeiro capítulo, quando relato fruto da pesquisa realizada na
iniciação científica sobre o sentido cinestésico e o funcionamento integrado de cérebro e corpo em movimento,
onde a ideia de trabalho mental apartada do dinamismo do corpo físico é insustentável.
93
Enxergo isso, de acordo com o caminho metodológico que tento trilhar no início deste
capítulo, juntamente com Foucault, e em conformidade com o que Bittar irá apontar em
relação à formação do músico na lida com o corpo atuante em performance:
Neste terreno em que também opera a didática da técnica pianística, desejo vislumbrar
a possibilidade de um deslocamento frente às primeiras abordagens. Considero que a
percepção de um possível desvio se deu, num primeiro momento, na oportunidade que tive de
atuar como bolsista de iniciação científica no grupo de pesquisa Ação pianística e
coorderação motora coordenado pela professora Dra. Maria Bernardete Castelan Póvoas
(experiência relatada no primeiro capítulo e em momentos deste segundo). O livro do qual
extraio o embasamento para essas observações é escrito por José Alberto Kaplan, intitulado
Teoria da aprendizagem pianística: uma abordagem psicológica (2008). Visualizo essa
possibilidade de desvio na medida em que este autor elabora suas proposições em defesa de
uma unidade “psicomotora” e de um “estudo de sensações” no processo de aprendizagem
pianística (KAPLAN, 2008). Para isso, contudo, me deparo com o paradoxo de lidar com uma
mentalidade ainda assentada no automatismo e na centralidade do texto musical durante o
processo técnico-artístico da aprendizagem pianística.
também se posiciona nesse sentido quando afirma que “a aquisição de movimentos técnicos é
principalmente um processo psicológico”.24 (ORTMANN, 1929, p.376 apud PÓVOAS, 1999,
p.32).
Se aproximando de pressupostos anteriores à fase substancialmente científica do
estudo da técnica que tratavam de “consciência” e “sensações físicas”, “táteis” do corpo,
porém agora por um viés ‘psiconeurológico’, este “estado” de pesquisa que “remete ao
conceito de cinestesia” (vide citação seguinte) é o que me faz enxergar a possibilidade de
desvio [na medida em que o estudo do sentido cinestésico vai ao encontro da possibilidade de
unificação entre corpomente (NUNES, 2008) e de uma “escuta do corpo” (VIANNA, 2008)
através das sensações físicas] mesmo que, num primeiro momento, conduza ainda a uma
consciência “racionalizada” e não à percepção de soma propriamente. Como é apontado e
esclarecido por Póvoas (1999, pp. 20-21):
Segundo ele [FINK], corpo e mente devem trabalhar juntos, como uma forma de
“desenvolver um agudo sentido de autoconsciência que possa ler e responder a
sinais cinestésicos internos”. (FINK, 1995, p.13). Ele preconiza que os movimentos
corporais acompanhados de “suas sensações cinestésicas internas criam as condições
de consciência, flexibilidade e de refinamento que permite ao pianista refletir
fisicamente e reproduzir as nuanças sutis do [...] pensamento musical”. (FINK 1997,
p.14). Assim, na concepção pedagógica de Fink encontra-se uma estreita relação
entre a mente como o agente formador da concepção musical e o corpo como o
agente que, através dos movimentos intencionalmente planejados, concretiza aquela
24
Cabe aqui evidenciar que a abordagem proposta por essa outra perspectiva não corresponde totalmente àquela
de Leimar, por exemplo, que entende que “a técnica é um produto do trabalho mental” (LEIMER, 1931, p.10
apud PÓVOAS, 1999, p.24), pois este “trabalho mental” ao qual se refere, diz respeito à análise prévia da
partitura a ser executada e a consequente observância dos elementos musicais a serem executados para que então
possam ser planejados os movimentos, ou seja, volta-se para as informações contidas no texto escrito da música
(em uma abordagem teórico-analítica) e não para as interações artístico-interpretativas e sonoras estabelecidas
através de corpomente do instrumentista.
95
O ponto de vista de Kaplan aponta para uma aprendizagem instrumental que deve
contemplar, desde o início, um estudo de sensações aliado às possibilidades de
domínio e controle do corpo (controle cinestésico), relacionadas às sensações físicas
experimentadas durante a ação pianística. Ele chama a atenção para a importância
tanto da consciência quanto do domínio das sensações de contração e de
relaxamento, aos quais ele denomina de “dissociação muscular”. Segundo ele
esclarece, além de um controle sobre as sensações, a dissociação possibilita
desenvolver a capacidade de auto-observação e, igualmente, a controlar e a
coordenar conscientemente o próprio corpo em função do objetivo musical a ser
atingido. (KAPLAN, 1987, p.38-40). Esta é, basicamente, a sua visão sobre a função
da técnica no processo da aprendizagem e domínio técnico-pianístico.
25
USZLER (1993, p.584) se posiciona de maneira equivalente a Camp quando diz que com a persistente
manutenção de metodologias baseadas na imitação e não em uma orientação mais voltada à conexão entre as
questões e elementos que constituem a execução pianística o aluno é considerado como "o aprendiz [...] que
assiste, imita, e busca aprovação". (PÓVOAS, 2012, p. 38)
96
[...] percebi que meu processo didático e meu processo particular enquanto
performador musical estavam inteiramente voltados para a percepção do corpo e que
todos os princípios técnicos do instrumento estavam subordinados à atenção do
corpo e à percepção e sensibilização deste, nesta ordem. E, nesta ordem, cheguei a
buscar conceitos, técnicas e princípios para a performance musical não encontrados
na musicologia e na técnica do instrumento, mas sim parâmetros possíveis de serem
encontrados na dança e no teatro, modernos e contemporâneos, que têm como cerne
da formação do ator e do dançarino, o performador e seu corpo. O corpo como
fundamento do músico na performance, um corpo presente, vivente, um corpo que
intervém e dá forma. (BITTAR, 2012, p. 136, grifos meus)
Por estes caminhos apontados pela pesquisadora, na próxima parte do trabalho ensaio
alguns passos em direção ao corpo e à cena que não se sustentam diante da mentalidade
“disciplinar” de “docilidade” e treinamento aqui observada.
97
Ao perceberem a tarefa das novas epistemologias acerca do corpo em seu artigo Por
uma teoria do corpomídia, Christine Greiner e Helena Katz irão estabelecer, a partir do que
Michel Foucault preconiza a respeito da “ordem do discurso”, um meio pelo qual as diversas
98
áreas de conhecimento que tratam de estudar o corpo [ciências cognitivas, filosofia, teorias da
comunicação e arte] poderiam tomar uma posição diante do próprio discurso para além da
“colagem” de conhecimentos vindos de diferentes disciplinas, que é o caso da
interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. (GREINER, 2005, pp. 126-127) Como
“estratégia política” em oposição à “moldura da disciplina”, as autoras traçam sua proposta a
cargo de uma “indisciplina” que caracterizaria o corpo e os estudos a seu respeito “[...]
apostando na negação da hegemonia epistemológica e dos dualismos corpo/mente e
natureza/cultura.” (GREINER, 2005, p. 12). Sandra Meyer Nunes (2009, p. 22) irá expor que
a proposta dessas autoras relativas à noção de indisciplina, se relaciona com as ideias de
Muniz Sodré em Antropológica do espelho (2002) na provocação de “um campo de
desestabilização e subversão dos objetos de pesquisa”, que neste caso é o corpo.
Neste campo de pesquisas indisciplinares, a teoria corpomídia sustentada pelas autoras
tem como alguns pressupostos as relações entre corpo, movimento e cognição, bem como a
relação estabelecida por ele com o ambiente nos processos de comunicação e na constituição
das metáforas, na medida em que as informações detidas pelo “processo perceptivo” do corpo
“são transformadas em corpo”. Desta forma, as pesquisadoras tomam o corpo não como
“recipiente” das informações dadas pelo mundo, mas como um “meio” onde essas
informações transitam, configurando a metáfora de “mídia” conforme o esclarecimento citado
a seguir. (GREINER, 2005, pp. 129-131)
É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a ideia de
mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere
diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o
corpo. A informação se transmite em processo de contaminação. (GREINER, 2005,
p. 131, grifo meu)
O artigo citado acima está publicado no livro O corpo: pistas para estudos
indisciplinares (2005) de Greiner, através do qual a autora pretende “auxiliar aqueles que
iniciam os seus estudos sobre o corpo” delineando sua abordagem bibliográfica com
discussões acerca do corpo que considera serem mais instigantes de acordo com o trabalho de
pesquisa desenvolvido por ela, que atua também na área de dança. Como visto, propõe uma
abordagem indisciplinar traçando “um convite àqueles que têm vontade de dar os primeiros
passos para desestabilizar pressupostos bem estabelecidos pela longa história das teorias do
corpo e da cultura”. (GREINER, 2005, p. 11) Considerando o caminho metodológico que
trilhei no segundo capítulo deste trabalho, juntamente com Michel Foucault e Valeria Bittar,
seria imprescindível atentar para a teoria proposta por Greiner e Katz a partir desse campo de
99
Neste sentido, das relações entre corpo e código (informação) em oposição às ideias de
interpretação e execução calcadas na “neutralidade” e abstração, Valeria Bittar (2012, p. 243,
grifo meu) ao final de sua tese irá ampliar os princípios contidos em suas proposições acerca
do músico atuante e do Ato para uma ideia de “leitura que o corpo faz do texto musical”. Isto
será tratado logo adiante neste capítulo.
Atento agora para o fato de que, hoje, no teatro e na dança muitas pesquisas versam
sobre o Teatro pós-dramático, lugar contemporâneo das artes cênicas onde o eixo texto-autor
é deslocado para o eixo corpo-performador/ator-expectador e a concepção representacional
excede os limites determinados pelo drama que o texto dita para a cena. São diversas e
numerosas as expressões no âmbito do teatro pós-dramático; observarei esta manifestação
através dos trabalhos seguintes.
Sandra Meyer Nunes – atriz, bailarina e doutora em comunicação e semiótica –
também se relaciona com a teoria corpomídia de Greiner e Katz e com a noção de
“indisciplina” que é ativada através de redes transdisciplinares como “estratégia de pesquisa”
para abordar o corpo. (NUNES, 2009, p. 22) Em seu caso, baseia-se em teorias filosóficas e
científicas como as abordagens das ciências cognitivas no século XVII que ressoam em
trabalhos acerca da arte interpretativa do ator. A autora percebe que, incluindo um viés
filosófico, as teorias da cognição passam a discutir o dualismo entre corpo e mente na ação
humana; em aproximação a este campo epistemológico desenvolvem-se metodologias para o
trabalho do ator que tem como ponto de partida uma “unidade psicofísica” e a própria ação do
101
corpo. Neste terreno a autora irá traçar reflexões sobre As metáforas do corpo em cena (2009),
direcionando seu estudo para as ações físicas do ator, diferenciadas de gesto e movimento, a
partir do trabalho de Constantin Stanislavski e Jerzy Grotowsky, esclarecendo que “a
abordagem da ação física, proposta por ambos, realiza uma revisão do dualismo corpo-mente
no trabalho do ator, apontando para questões presentes hoje, nas teorias das ciências
cognitivas”. (NUNES, 2009, p. 13)
De acordo com Nunes (2009, p. 234) os esforços de Stanislavski, pesquisador que
atuou ainda no Teatro Moderno caracterizado pelo drama26, se direcionavam a encontrar um
“elo” entre os aspectos materiais e imateriais no fazer cênico a despeito das dicotomias
presentes até então na compreensão cognitiva. “A estratégia de busca da unidade psicofísica
ganhou consistência por meio do método das ações físicas, com o corpo inserido mais
diretamente na experiência” como será posto pela pesquisadora Sandra Meyer. É salientada
também a interação entre o próprio organismo e os processos dinâmicos do cérebro que
convergem, a cada momento, em uma atualização do “eu” no mundo, através de estados de
presença do corpo em ação. Neste sentido “O ato pensante e o ato consciente passam a ser
entendidos como implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de
uma razão descolada ou anterior à experiência”. (NUNES, 2009, pp. 234-236)
Recorrendo ao livro O Teatro Pós-dramático de Hans-Thies Lehmann a pesquisadora
irá expor o dinamismo e a hibridez abarcados pelos artistas pós-dramáticos por meio de suas
“experimentações” no que diz respeito a estados corporais que desembocam em
“presentificação” e “produção de sentido” na experiência. (NUNES, 2009, p. 238) Isto
caracteriza um campo de ação também contido nas formulações de Stanislavsky – durante o
Teatro Moderno (dramático) – no que se refere ao entendimento da própria ação do ator,
como é esclarecido abaixo, em trecho extraído do livro:
26
Importante esclarecer, de acordo com uma fala da professora Daiane Jacobs (2017, informação verbal), que a
atuação de Stanislavsky se localiza ainda num teatro “da fábula realista, linear, das personagens, da história com
início meio e fim, da construção de uma personagem que se coloca em seu conflito para a plateia. Ele está neste
lugar, o Teatro pós-dramático não”. Por isso, a contribuição que está sendo observada em Nunes (2009) diz
respeito ao método das ações físicas, à ação do ator sobre si mesmo, ou seja, a questão não é de estética, mas do
trabalho de atuação.
102
Neste rumo que as artes tomarão na cena contemporânea são substanciais os trabalhos
em diversas áreas que versam sobre Performance e Performatividade. Irei dialogar com estes
campos a partir do trabalho da atriz e pesquisadora da voz Dra. Daiane Dordete Steckert
Jacobs. Em sua tese de doutorado Possível cartografia para um corpo vocal queer em
performance (2015), Jacobs (2015, p. 7) problematiza relações entre vocalidade e gênero na
atuação cênica no intuíto de provocar uma desestabilização no “binarismo logocêntrico” em
cena, tendo como referência também a “integridade psicofísica entre corpo e voz”. Observo
na proposta deste trabalho as potencialidades que o corpo em performance possibilitam para
a/o atuante. A autora apontará, nos campos da Performance Art e dos Performance Studies,
para a investigação das ações e das atuações humanas a partir dos termos “performativo e
performatividade” que tornam-se conceitos primordiais no teatro performativo, que pode
operar em um campo próximo ao teatro pós-dramático. (JACOBS, 2015, p. 129)
Segundo Jacobs (2015, p. 133) quando Érika Fischer-Lichte (2008) indica uma
“estética do performativo” que passa pelas artes no século XX, evidencia os processos
artísticos, “o como fazer”, enquanto eixo das pesquisas nessa área. Desta forma aquilo que se
denomina “performativo”, na década de 1960, direciona o fazer artístico a “um espaço de
processo e compartilhamento entre artistas e audiência, e não de obra acabada e observação
passiva”. Será nesta linha que Josette Féral (2008) proporá o termo Teatro Performativo, onde
a presença do ator é indispensável no assumido processo de criação da forma em cena, por
meio de uma “lógica interna” (FÉRRAL, 2008 apud JACOBS, 2015, p. 133) e da presença do
próprio corpo em performance. O teatro performativo é também tecido fora da concepção de
drama representacional, “avesso a narrativas lineares e personagens factíveis”, referindo-se
mais “ao modo de fazer os desdobramentos de seu eu em cena, relacionando-se diretamente às
103
cotidiana” pode possibilitar para a experiência musical “um re-encontro com o ato musical
enquanto ritual”. (BITTAR, 2012. pp. 157-158)
Ao longo de sua tese de doutorado, Valeria percebe duas iniciativas de desvio ao
percurso “logocêntrico” fundado na formação musical provenientes dos movimentos de
música antiga e de música contemporânea, como “momentos de fuga do pensamento
cartesiano mecanicista”, os quais oferecem ao performador textos musicais que exigem não
uma relação de submissão, mas de interatividade com a escrita/notação daquilo que
indispensavelmente é “fenômeno sonoro”, assim como o estreitamento da relação entre
músico e instrumento musical, o “corpo-a-corpo”. (BITTAR, 2012, pp. 159-160) Neste
sentido de ruptura a uma dada mentalidade, a autora pretende conduzir seu trabalho a um
reencontro com a “necessidade de performance” no próprio performador “encarnado”.
(Ibidem, p. 167). Em relação a essa necessidade de performance que está ligada ao corpo,
penso que há “agenciamentos” de um desejo de técnica que seria o desejo da própria
performance.
Diante do “contrassenso” que resulta da aproximação com diferentes expressões
humanas como a literatura, o teatro e a dança, deste “beber em outras fontes” que opera fora
da lógica e da razão estabelecida no meio musical, Valeria Bittar (2012, p. 173) se esforçará
em definir que é a “necessidade de performance” o que aquelas áreas têm em comum. Assim
como a presença do corpo do performador e do espectador no momento do ato performativo.
Neste caminho de aproximação com a linguagem teatral recorrerá ao conceito de
teatralidade de Josette Férral (1988) assim como o de performatividade, pensamentos que
provocaram transformações na concepção de teatro e de cena ao longo do século XX e que
afirmam o caminho que leva Bittar (2012, pp. 174-175) a compreender performance
“enquanto operação perceptiva”.
Houve vários momentos nas artes performáticas no século XX, e incluo a música
nesses momentos também [...], de desvios daquilo que foi detalhado e
exaustivamente programado pela mentalidade mecanicista dos séculos anteriores, e
esses desvios muitas vezes geraram novas tomadas de posição nas artes.
(e ao compositor) e junto a uma “investigação” própria do músico e sua técnica em arte. Esta
investigação que embasaria a técnica de cada artista, conforme o que Bittar (2012, p. 181)
deduz das propostas de Grotowsky, “nasce primeiramente no corpo-a-corpo travado entre o
músico performador consigo mesmo e entre o músico performador e o instrumento musical”.
O enfoque no fazer do atuante, será manifestado também no trabalho de Eugenio
Barba (2009), segundo o que perceberá Bittar. Dentre suas proposições está a
“desautomatização” daquilo o que o ator-pesquisador chama de “cotidiano” através do corpo,
para isso propõe a efetuação de técnicas “extracotidianas” que têm sua finalidade na
informação potencializada através de uma “dilatação” e de uma “energização” da ação do
corpo, conformando um “esbajamento de energia” na ação técnica (BARBA, 2009, p. 34 apud
BITTAR, 2012, p. 184). A meu ver, isto vai em direção contrária ao viés ‘econômico’ sobre o
corpo que costuma pairar em torno das ações de pesquisa no fazer pianístico. Entretanto, essas
técnicas que operam fora do cotidiano do corpo se diferenciam também daquelas que têm
como finalidade o “virtuosismo” e o aumento de “habilidades” no “desempenho da
performance”. (BITTAR, 2012, pp. 183-185) Em consonância com os pensamentos de Barba,
a autora versará sobre a afirmação do sujeito atuante na performance conforme o trecho que
segue:
O trabalho de percepção primeira do “corpo cotidiano” e da percepção dos níveis de
automatismos desse corpo cotidiano passam, posteriormente, para uma
experimentação de desconstrução desse corpo e de construção de um corpo
“disponível”, “acordado” e “atento” para a ação musical; quando saímos do
cotidiano e dos automatismos desse cotidiano, geramos novamente a necessidade e a
intenção de performance, necessidade pulsante camuflada nas ilusões da
racionalidade, da informação, da desmitificação da vida. Dessa razão que separou
corpo de mente. Da mesma forma que o ator e o dançarino, o músico pode vir a
restabelecer, no momento da atuação musical, um momento e um processo contínuo
de desautomatização do cotidiano, processo que acontece com o músico e no músico
em comunhão com o espectador. (BITTAR, 2012, p. 184)
TKV dispõe de particularidades que estão relacionadas com os processos de criação em arte,
sobre o palco, e serão percebidas a seguir, no próximo diálogo.
Ao final do capítulo 3 e nas considerações finais de sua tese, Valeria Bittar (2012, pp.
240-241) tecerá nessa “trajetória de reflexão sobre o músico em Ato” algumas propostas para
a prática musical do “músico encarnado” que partam para uma vivificação do momento de
realização sonora através de uma “ação perceptiva”. Para isso diferencia o papel didático das
disciplinas teóricas em oposição ao papel perceptivo da performance e defende o estudo
vivenciado da teoria e história da música, assim como da história e da antropologia das artes
performativas. Neste processo, a presença física do músico em disponibilização e ativação
juntamente com os outros corpos que participam do Ato, confluem para uma “invocação da
memória” que “instaura percepções de outras dimensões do percebido, tanto no espectador,
quanto no atuante”. Por fim, compreenderá o sentido de ação e Ato se aproximando do
pensamento filosófico de Aristóteles em contraposição ao sentido de performance gerado pela
mentalidade das disciplinas e dos corpos dóceis (FOUCAULT, 2014) que também foi
observada no segundo capítulo do presente trabalho. Músico vai de encontro ao ato, ação que
gera o “núcleo” da performance musical conforme propõe Bittar, nesta direção é possível ver
que ainda temos o que trilhar:
Conforme relatei no primeiro capítulo deste trabalho, meu contato com a Técnica
Klauss Vianna resulta de uma convergência, durante a minha trajetória, com o trabalho
artístico-didático-somático da professora Valeria Bittar, logo no primeiro ano da graduação.
Fui de encontro a esta prática somática por um despertar pessoal em relação ao meu próprio
corpo em movimento, na busca de relações que pudessem me conduzir à expressão. Apesar de
108
identificar hoje este percurso em direção a uma vida em performance, sinto que meus
primeiros contatos com essa técnica acontecia num âmbito às vezes ‘despropositado’ que
pensava a prática como ‘desenvolvimento de consciência corporal’ ou em termos de
‘alongamento, relaxamento, concentração’, automatismo do pensamento que se dilui na
própria prática.
Aos poucos entendo, com as oportunidades que tenho de vivenciar e pesquisar nesta
esfera, que o processo didático da TKV parte muito mais para uma vivificação e um despertar
da atenção ativos do que para um trabalho ‘ginástico’ ou de tratamento sobre o corpo passivo.
Acredito que uma vez em contato com a escuta do corpo proposta por Klauss Vianna é
inevitável não tomar posição para a desautomatização das próprias condutas e mentalidades
formatadas/preconcebidas em vida. O trabalho de disponibilização do corpo que atua pode
desaguar também, durante o processo de formação do músico, na lida com a técnica do
instrumento (ou da voz) em didática e em performance (que não estão desvinculadas) fora do
seu cotidiano. Valeria Bittar percebe em seu percurso particular como isso se daria em música
por meio da desautomatização do corpo e suas condutas, através da “dilatação” (BARBA,
2009) e da atenção:
Neste sentido, é possível compreender o caminho somático para o qual nos direciona a
Técnica Klauss Vianna, no sentido de transformação de posturas, modelos e condutas. A meu
ver, isso se faz urgente diante do que é engendrado pela formação em música fixada no(s)
método(s) e em modelos técnicos distanciados do corpo (soma) e do performador, situação
consequentemente distanciadora entre músico e performance. A partir dos pressupostos da
TKV seria possível ensaiar caminhos em direção a uma abordagem somática em música? de
encontro entre músico e ato? Como aponta Bittar.
109
Cada vez mais, a dança hoje busca o enfoque somático para a criação e a expressão
do movimento: “A educação somática surgiu a partir de preocupações terapêuticas
de indivíduos, mas constatamos que membros da comunidade de dança deixaram o
caráter terapêutico para dar corpo à sua pesquisa dentro de uma orientação educativa
e artística” (FORTIN, 1999, p. 51). Essa afirmação combate o preconceito dos
próprios bailarinos de que é dança apenas o virtuosismo de pernas cada vez mais
altas, giros mais rápidos e toda a vasta gama de mais movimentos almejada no
treinamento mecanicista do mundo da dança [e é possível ler: no mundo da música].
direcionados a qualquer pessoa, que exerça qualquer ofício e que se sinta incitada pelos
movimentos do corpo e da vida. Pioneiro da educação somática no Brasil, Klauss Vianna não
enxergava a dança como privilégio de dançarinos por isso estimulava a expressividade de
todos através do movimento. (MILLER, 2007, p. 21) Vindo do balé clássico, esse artista
enquanto pesquisador e professor promoveu um processo de desconstrução do corpo do
bailarino em nome de uma revelação da “dança que se encontra em cada aluno” por meio de
uma abordagem didática inovadora do corpo e do movimento. (MILLER, 2007, p. 36) Em sua
trajetória trabalhou também com músicos e atores, atuando como preparador corporal em
expressão, de modo a semear seu pensamento transformador no campo das artes cênicas em
geral, e na própria vida. (MILLER, 2007, p. 40)
[...] a partir do momento em que entra em contato com a Técnica Klauss Vianna, o
aluno torna-se um pesquisador do corpo, não um reprodutor de movimentos, mas um
criador, um estudioso, um dançarino, um ser humano em autoconhecimento, e tudo
isso se reúne em um único núcleo: o corpo-a-corpo com o próprio corpo. (MILLER,
2007, p. 16)
Jussara Miller (2007, pp. 51-52) desenvolve o trabalho de sistematização dessa técnica
através dos fortes laços estabelecidos em sua trajetória com o trabalho da “família Vianna” e
deixa saliente em seu processo que a substancialidade da Técnica Klauss Vianna encontra-se
na consciência e na disponibilidade do corpo para o movimento expressivo da dança. O
embasamento dessa técnica se localiza em diversos tópicos corporais trabalhados em três
estágios, a saber:
1) processo lúdico
2) processo dos vetores
3) processo criativo e/ou processo didático
A pesquisadora esclarece resumidamente como esses estágios se encadeiam na prática:
“No processo lúdico, o corpo é despertado, desbloqueado, causando a transformação dos
padrões de movimento para, na segunda etapa, ser levado ao aprofundamento do processo dos
vetores, quando são trabalhadas as direções ósseas, resultando em um processo criativo [ou
didático].” (MILLER, 2007, p. 52)
O primeiro estágio parte do “acordar do corpo” que inicialmente se encontra em
abandono, para isso dá largada a um processo de ativação da presença do corpo que se inicia
a partir do chão e da atenção dada às relações que se estabelecem através do corpo. A partir
deste primeiro momento os outros tópicos vão se integrando ao trabalho somático em
111
transformação e expansão até chegar de encontro ao eixo global, que é o sétimo tópico do
processo lúdico, na seguinte ordem: (MILLER, 2007, p. 53)
presença
articulações
peso
apoios
resistência
oposições
eixo global
O segundo estágio da prática corporal é o processo dos vetores, que parte para a
sensibilização das direções ósseas a partir do mapeamento “sensoperceptivo” dos oito vetores
do corpo. Este estudo se inicia pelos pés indo até o crânio, de modo que o movimento
estimulado pela própria estrutura anatômica direciona o corpo para a percepção de sua
estrutura óssea, que é base deste trabalho. Miller esclarece que, para isso, “nenhuma imagem
metafórica” é utilizada como instrução para o movimento, sendo a materialidade e a
sensorialidade do corpo suficientes para seu conhecimento. (MILLER, 2007, pp. 75-77) Os
vetores ósseos são os seguintes:
metatarso
calcâneo
púbis
sacro
escápulas
cotovelos
metacarpo
sétima vértebra cervical
A vivificação proporcionada nesses dois primeiros estágios resulta em
desdobramentos diversos de acordo com as necessidades e vontades de cada corpo, seja ele
artista ou não. Em processo didático ou em processo de criação, a flexibilização e
movimentação interna e externa do corpo vivo se fazem presentes para a concretização de
suas ações em arte.
Concluo esta parte visualizando no trabalho somático proposto pela Técnica Klauss
Vianna um caminho para ações transformadoras dentro da didática e da prática em música. O
performador provido de seu corpo tem em si mesmo o estimulo para seus processos de criação
112
para e em performance, sobre isso Valeria Bittar (2012, p. 207) traça as seguintes reflexões,
por uma abordagem somática:
RESSONÂNCIAS
Penso que o corpo é uma coisa que não dá de deixar pra depois, ele só é corpo no
presente, e só se sabe-sente de sua concretude no agoraqui, à medida que se dão passos.
Percebo que este processo de pesquisa foi um caminho trilhado junto ao “corpo como mídia
de si mesmo” em meio à lida com o conhecimento (informações) que o transpassa-transforma
através do contato com o referencial teórico e com o referencial em vida, de forma a se
materializar, caos e ‘ordem-caos’ na terra. Através das relações que estabeleço no mundo,
leio, processo e concretizo as informações que me perpassam, me torno corpo (corpomente
que aprende a si mesmo) e vibro. Isto penso que é ressoar.
No início da escrita deste Trabalho de Conclusão de Curso, partindo de termos,
autores e conceitos que estavam esboçados no anteprojeto, me deparei com o desafio de lidar
com as palavras conforme suas camadas e terrenos onde atuam – investigação que gera um
glossário introdutório. A professora-orientadora Valeria Bittar direcionou/incitou esta reflexão
e pesquisa inicial, assim como um olhar para meu próprio percurso durante a graduação no
curso de música (bacharelado em piano) da UDESC, o que estruturou o primeiro capítulo.
Nesta primeira parte me pus a rememorar experiências e inquietações, partes da minha
trajetória em que estabeleci diálogos com diversas áreas de estudo teóricas e práticas sobre o
corpo num campo racional-perceptivo. Vivências e reflexões sobre o corpo em formação, em
performance, em trabalho, em pesquisa, em aprendizagem e em arte diante da lida com a
atividade musical ao piano e acadêmica. Ando. Danço.
No segundo capítulo, de acordo com: (1) o terreno que foi mapeado na introdução
através das palavras e (2) a trajetória percorrida no primeiro capítulo juntamente com
trabalhos acadêmicos de diversas áreas, que se entrelaçam às vivências, o trabalho partiu para
‘algumas observações’ acerca dos modos de fazer na prática pianística [partes 2.2.3 e 2.2.4]
tendo como base os pensamentos de: (a) Michel Foucault – quando este filósofo estuda o
113
mecanismo do poder nas relações da sociedade disciplinar condutora dos corpos dóceis [2.2],
atuando em um campo micropolítico de investimento tecnológico político do corpo [2.1.1] e
(b) Valeria Bittar – de acordo com a operação observada nos pressupostos de Foucault que
esta autora articula com a história (cultural e política) do Ocidente, inscrita no processo de
formação e de performação do músico [2.2.1 e 2.2.2]. Operação aquela que induz a uma
homogeneização das condutas e da mentalidade que atua neste campo e que investe os corpos
nos modos de fazer música. Trabalho árduo para o corpo do executante/intérprete. Trabalho
árduo para o corpo do pesquisador.
A discussão agenciada no âmbito da ação pianística é desdobramento de percepções
pessoais que se entrelaçam com os estudos dos autores consultados ao longo do capítulo.
Observo que as três diferentes vias de atuação técnico-didática que pretendi mapear na prática
pianística podem se encontrar diluídas no fazer de cada músico e não propriamente
caracterizam abordagens restritas. É possível considerar que os momentos e operações de
desvio, linhas de fuga, estão presentes em meio às condutas convencionais herdadas da
própria formação em música conforme foi observado neste segundo capítulo.
Na terceira parte, que são as considerações finais, pretendi propor diálogos com
possíveis caminhos para o músico atuante ir ao encontro com a arte em performance, qual
seja, com a própria necessidade de performance e, portanto, consigo mesmo enquanto
performador. Músico e ato – através de uma aproximação com pensamentos da comunicação
e semiótica, do teatro pós-dramático, da performance, da dança contemporânea e da educação
somática – rumo ao ‘núcleo’ da performance como operação perceptiva (BITTAR, 2012). Os
diálogos em cena neste capítulo poderão ser diluídos e/ou recompostos para gerar discussões
acerca da atividade do(a) performador(a) musical na contemporaneidade.
Tendo em vista: (1) a mentalidade que predomina no interno e no entorno dos
‘discursos e não discursos’ compreendidos no fazer musical e nos modos de fazer música
através do corpo (BITTAR, 2012) e (2) o corpo do performador que é investido por forças de
poder e de saber operantes num campo micropolítico das relações em sociedade
(FOUCAULT, 2014); as considerações finais deste trabalho (a) ativam uma proposta
indisciplinar (SODRÉ, 2012) através do corpomídia (GREINER E KATZ, 2005) em vida e
em arte, e (b) estudam a presentificação do corpo cênico no fazer teatral, performativo,
dançante e musical; direcionando-se, por fim, para a esfera de uma possível abordagem
somática em música, através da Técnica Klauss Vianna de educação somática (MILLER,
2007) como proposição de pesquisa-investigação-experimentação-criação perceptiva do
corpo que, assim, eixificaria (de eixo) a aproximação do músico atuante com o Ato (BITTAR,
114
2012). Esfera que envolve a possibilidade de se sentir o soma ‘sob gravidade, sobre o chão’,
disponibilizado e em prontidão, ‘subindo ao palco’ (BITTAR, 2012).
No primeiro capítulo deste trabalho tracei uma questão em paralelo com o título de
Jussara Miller: Qual é o corpo que dança? (2012). Estive buscando, nas fontes bibliográficas
e nas fontes em vida, caminhos que pudessem conduzir o corpo (soma) em música para um
lugar mais próximo ao lugar do corpo em qualquer outra arte presencial na
contemporaneidade. Presença. Percepção. Ato. Corpo cênico em música? Neste arremate do
trabalho de conclusão de curso percebo, no entanto, que o processo de elaboração desta
pesquisa apontou mais para uma tentativa de formulação do que de resposta a esta pergunta,
uma inquietação que gera também uma provocação: Qual é o corpo que toca?
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REFERÊNCIAS
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