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WELITON DE CARVALHO

PERFORMADOR, PERFORMANCE E CORPO NA EXPERIÊNCIA MUSICAL:


REFLEXÕES SOBRE AÇÃO PIANÍSTICA E EDUCAÇÃO SOMÁTICA EM CENA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


curso de bacharelado em música - opção piano,
no Centro de Artes da Universidade do Estado de
Santa Catarina, como requisito parcial para
obtenção do grau de bacharel em música.

Orientadora: Dra.Valeria Maria Fuser Bittar

Florianópolis, SC
2017
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WELITON DE CARVALHO

PERFORMADOR, PERFORMANCE E CORPO NA EXPERIÊNCIA MUSICAL:


REFLEXÕES SOBRE AÇÃO PIANÍSTICA E EDUCAÇÃO SOMÁTICA EM CENA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de bacharelado em música - opção


piano, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito
parcial para obtenção do grau de bacharel em música.

Banca Examinadora:

Orientadora:

__________________________________________________________________________
Prof. Dra.Valeria Maria Fuser Bittar
Centro de Artes - UDESC

Membros:

__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Zamith Almeida
Centro de Artes - UDESC

__________________________________________________________________________
Prof. Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs
Centro de Artes - UDESC

Florianópolis, 04 de dezembro de 2017


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Dedico este trabalho ao amor e à memória que


tenho de meu avô Ciriaco Francelino da Rosa.
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AGRADECIMENTOS

Agradeço, agradeço, agradeço...

Aos meus pais, Guto e Lu, por estarem ao meu lado apoiando e aconselhando,
concordando e discordando, em silêncio e dialogando, pelas caminhadas à beira mar, pelos
choros, risadas e esforços sem medidas. Não tenho como dizer e agradecer o que são e o
quanto fazem parte deste percurso. Obrigado por serem presentes sempre, muito orgulho e
amor por vocês!

À toda família: minha irmã Helen, pela história compartilhada, e meu cunhado Jimmy,
os quais admiro; minha prima Lais pela amizade e irmandade singulares desde sempre; meus
amados avôs, avós, tios, tias, primos, primas. Vocês são incríveis!
Aos queridos amigos de Imbituba e de Florianópolis pelo contato e afeto
indispensáveis, entre sanidade e loucura, amo cada um e todos!
Ao pessoal da UDESC, em especial os funcionários e acadêmicos do Centro de Artes,
onde faço a maior parte de minhas andanças em vida e em arte durante os anos da graduação.
Pelo vaivém dos olhares e passos, gratidão.

Aos queridos professores do Departamento de Música pelo aprendizado e pelas


experiências proporcionadas durante o curso. Vocês são maravilhosos!

Ao meu orientador artístico, professor Dr. Maurício Zamith pelo cuidado, paciência e
atenção em cada passo do meu processo de aprendizagem pianística durante esses anos de
graduação. Ainda temos um recital de formatura pela frente. Obrigado pelo diálogo e parceria
nesta trajetória!

À professora Dra. Maria Bernardete Póvoas pelo aprendizado inevitável em cada


contato artístico, acadêmico ou cotidiano e pela experiência oportunizada ao longo do curso
nos âmbitos da extensão, onde pude me envolver com ações na área cultural; e da pesquisa,
onde comecei a esboçar e delinear estudos acerca do corpo artista em movimento na prática
pianística.

À professora Dra. Daiane Dordete Jacobs do Departamento de Artes Cênicas pelas


experiências em cursos e oficinas de extensão, onde surge um despertar performativo
corpóreo e vocal em meu fazer. Pelo trabalho artístico-acadêmico que tive oportunidade de
conhecer e por ter aceitado integrar a banca examinadora da defesa deste trabalho.

À minha orientadora, professora Dra. Valeria Bittar pelas vivências proporcionadas,


pé ante pé e vértebra por vértebra, do calcâneo até o crânio. Pelo trabalho inspirador que
transforma minha relação com o fazer artístico e acadêmico em cada passo dado. Por ter me
acompanhado neste caminho de investigações e descobertas que resultam no processo que é
este trabalho. Obrigado por fazer parte profunda e definitiva desta trajetória!

A Deus, pela oportunidade maior.

À poesia do interno e do entorno, de todas as coisas e pessoas, de todas as paisagens e


ruas, de todos(as) os(as) corpos(as) e vocalidades que me afetam ao longo das andanças que
tenho percorrido. Agradeço!
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Descobrir as ancas das tradições


para o ferro em brasa dos anúncios
To expose the hips of the tradition
To the burning iron of ads

Ê, tatuarambá
Ô, calar o corpo do samba
Ê, sujar o corpo de samba
segura o rabo do samba, ta aí, pintou
[...]

Ê, trazer o corpo para os pincéis da eletrônica


Ô, vestir o poema-anúncio
Ê, trazer o corpo para a tatuagem
Para a tatuagem das antenas, das antenas
[...]
Corpo não é pecado
Corpo não é proibido
Corpo não é mentira
[...]

Melar o corpo no meu limão, meu limoeiro


Lamber o corpo no meu pé de jacarandá
Corpo não é mentira
Corpo não é proibido
Corpo não é pecado
[...]

Descobrir as ancas da tradições


para o ferro em brasa dos anúncios
To expose the hips of the tradition
To the burning iron of ads

Fazendo cócegas nas tradições


Itching, scrathing the tradition.

Tatuarambá - Tom Zé (1992)


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RESUMO

Esta pesquisa tem como vontade primeira refletir acerca do trabalho do performador
musical em performance, o que gera um mapeamento inicial em torno de algumas palavras,
suas camadas e seus campos de atuação. Tomando o corpo como elemento articulador da
pesquisa bibliográfica proposta, o trabalho irá observar, num primeiro momento, como a
experiência viva do músico performador com o próprio fazer podem se relacionar com sua
pesquisa acadêmica e artística. Num segundo momento, estudará a sociedade disciplinar
produtora dos corpos dóceis que se põe a investir (FOUCAULT, 2014) o corpo do músico e
seus fazeres em formação e em performação através de um adestramento técnico-mecânico
fundamentado na abstração dos processos artísticos operados em música e, especificamente
aqui, em técnica pianística. A partir disso, num terceiro momento, se aproxima de possíveis
caminhos desviantes à mentalidade disciplinar, indo em direção a uma vivificação do corpo
do músico atuante em Ato através da abordagem somática proposta pela Técnica Klauss
Vianna de escuta do corpo (BITTAR, 2012).

Palavras-chave: Formação e performance musical; Técnica pianística; Educação somática;


Técnica Klauss Vianna; Corpo em arte.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08

DIZER PALAVRAS, MAPEAR TERRENOS – REFLEXÕES EM TORNO DE ALGUNS


TERMOS..................................................................................................................................10

1 A N D A N Ç A S..................................................................................................................33

1.1 PERFORMADOR-PESQUISADOR: QUAL É O CORPO QUE ATUA EM


MÚSICA?.................................................................................................................................49

2 REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS DISCURSIVAS E NÃO DISCURSIVAS NA


FORMAÇÃO MUSICAL E NA TÉCNICA PIANÍSTICA...............................................55

2.1 UM CAMINHO METODOLÓGICO: VIGIAR E PUNIR DE MICHEL FOUCAULT...56

2.1.1 Microfísica do poder e tecnologia política do corpo...................................................59

2.2 SOCIEDADE DAS DISCIPLINAS E DOS CORPOS DÓCEIS.......................................62

2.2.1 Música ocidental: textos e não textos, sons e não sons................................................67

2.2.2 Formação musical: ‘as disciplinas’ e a ‘normatização’ da performance..................71

2.2.3 Recursos para o bom adestramento na técnica pianística..........................................77

2.2.4 Ação pianística – vias e possíveis desvios por uma abordagem somática.................89

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: MÚSICO ATUANTE EM BUSCA DE SI MESMO EM


ARTE........................................................................................................................................97

DIÁLOGO I – CORPOMÍDIA INDISCIPLINAR...................................................................97

DIÁLOGO II – TEATRALIDADES E PERFORMATIVIDADES.......................................100

DIÁLOGO III – MÚSICO E ATO EM CENA.......................................................................103

DIÁLOGO IV – A EDUCAÇÃO SOMÁTICA DANÇA SOBRE O PALCO......................107

RESSONÂNCIAS..................................................................................................................112

REFERÊNCIAS....................................................................................................................115
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INTRODUÇÃO

Muito se tem a pensar sobre performance musical e suas implicações na cena


contemporânea. Estudos ao longo do século XX e início do século XXI vão ao encontro do
corpo daquele que toca música no que diz respeito à relação ergonômica estabelecida com o
instrumento musical, às condições psicológicas que o músico enfrenta na sua lida com a
performance, ao encargo do texto musical enquanto premissa para a produção de movimentos,
às atividades desempenhadas pelo “artista” enquanto “atleta” (ANDRADE e FONSECA,
2000), enfim, sabe-se que a subárea de performance em música, inclusive, se fundamentou
junto ao conhecimento de áreas como a musicologia, a medicina, as engenharias, a
fisioterapia, e assim por diante. A interface científica vem trazendo muitas respostas seguras
ao músico que enfrenta em seu caminho em direção ao palco desafios que dizem respeito a ele
mesmo enquanto ser biológico no mundo. Contudo, percebe-se que muitas inquietações
presentes em performance nem sempre encontram respostas diante do arcabouço racional-
científico que o músico possui. Inquietações essas que, conforme o que é discutido neste
trabalho, dizem respeito à atuação musical enquanto vivificação e presentificação do corpo
próprio e da própria memória do “músico atuante” (BITTAR, 2012) em performance.
Por isso, este trabalho de pesquisa com delineamento exploratório (GIL, 2008)
pretende mapear discursos e se aproximar de trabalhos que operam em outros lugares para a
performance em música, lugares mais à margem deste referencial científico-conceitual que,
por sua vez, se aparta do momento “instantâneo e efêmero” (ALMEIDA, 2011) da
performance em música no qual o “músico encarnado” se faz presente juntamente com a
audiência na “evocação de uma memória” (BITTAR, 2012) – experiência musical. Esta
concretização sonora, que poderia ser menos medida/calculada/analisada do que percebida,
expressa a comunhão de corpos que se esbarram nas fronteiras firmemente postas em torno do
“intérprete musical” pela própria formação e conduta de pesquisa-atuação na área denominada
práticas interpretativas. Por isso, em busca de uma reflexão que se aproxima de saberes da
cultura, da história, da filosofia e da própria arte, a pesquisa aqui traçada se põe a estudar o
trabalho do músico performador em performance.
O primeiro capítulo do trabalho tem como ponto de partida as vivências do autor
durante os anos de sua graduação em música onde relata inquietações e experiências que o
conduziram à abordagem presente na realização deste trabalho de conclusão. A parte final do
capítulo, através de uma aproximação com trabalhos atuais na área de performance musical,
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estuda possíveis posições que o performador de música pode tomar enquanto pesquisador de
seus próprios fazeres. Tendo em vista a relação com a questão do corpo na performance que
as ‘danças’ e os ‘andares’ rememorados na trajetória do primeiro capítulo delineiam, o
próximo passo é dado em direção a uma observação acerca da formação em música e suas
implicações histórico-político-culturais no aprender e no fazer [desempenhar?] do
performador.
O segundo capítulo, tendo em vista que o percurso desta pesquisa bibliográfica é
delineado pela presença do corpo, pretende mapear práticas e discursos inscritos na formação
e na performance musical também de um ponto de vista ‘micropolíticotecnológico’ [unindo
os termos “foucaultianos”]. Para isto, o autor enfrenta um caminho metodológico que se
aprofunda na história da sociedade ao estudar o momento “das disciplinas” e dos “corpos
dóceis” conforme o que é postulado por Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir (2014
1ªed. 1975). Depois, juntamente com a tese da flautista Valeria Bittar, Músico e Ato (2012), o
estudo se direciona para a formação e a performação do músico ocidental que operam sob a
mentalidade observada inicialmente, lançando prerrogativas e condutas padronizadas para o
fazer musical que é gerado num terreno de abstração e de anulação do sujeito músico em
performance. Por fim, a discussão é conduzida ao âmbito da técnica pianística de forma a
mapear alguns discursos e tecer observações acerca da ação didático-política operada sobre o
corpo de quem toca piano.
A terceira parte diz respeito às considerações finais do trabalho e pretende ensaiar
possíveis caminhos desviantes ao percurso de formação para a performance inscrito na
mentalidade observada no capítulo anterior. Isto se dá através do diálogo com as áreas de:
Comunicação e Semiótica, Teatro pós-dramático, Performance musical, Dança
contemporânea e Educação somática que estudam o corpo, a cena e a performance a partir de
uma reformulação das próprias condutas em arte. O que pode, no mínimo, servir de interesse
para o músico. Pois acredito que, na dimensão em que este trabalho arrisca se movimentar, da
mesma forma que xs artistas da cena são artistas do corpo, também xs artistas da performance
musical são artistas do corpo. E trabalham por meio do corpo e de “suas forças”
(FOUCAULT, 2012) ou, se isto for possível em música, através do corpo e de sua presença
em performance.
Através deste percurso o presente trabalho de conclusão pretende tramar a
possibilidade de uma abordagem somática para a performance musical, tanto para com a
didática quanto para com a técnica, que pelo viés dessa abordagem não estão separadas nos
processos de fazer, criar e ensinar do artista.
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Entretanto, antes de adentrar um possível caminho em direção ao corpo em arte na


performance musical, o processo de pesquisa tem uma lida bastante próxima a algumas
palavras que foram utilizadas na escrita do trabalho. Estas palavras serão esclarecidas a
seguir, juntamente com um mapeamento inicial de territórios de atuação ou “desempenho” da
performance musical.

DIZER PALAVRAS, MAPEAR TERRENOS – REFLEXÕES EM TORNO DE ALGUNS


TERMOS

Para delimitar o terreno em que atuo no desenrolar desta pesquisa, cabe aqui esclarecer
alguns dos termos utilizados nos capítulos que seguem, de acordo com sua origem e
localidade teórica na forma de um “glossário introdutório”. Conceitos como performance,
interpretação, performador, corpo, soma (educação somática), ação pianística e experiência
musical serão pensados junto a diversos autores. Ao longo deste estudo inicial, que tem como
ideia estrutural um glossário, proporei discussões em diálogo com trabalhos acadêmicos
acerca das noções e conceituações dos termos em questão, dando início a um mapeamento de
seus respectivos discursos. As ideias geradas por estas palavras serão desenvolvidas e
articuladas no desenrolar do trabalho, juntamente com o referencial teórico adotado. Então,
por que tais palavras? O que cada termo significa e qual sentido carrega, implica diretamente
no rumo que as discussões propostas tomarão.
Sempre que me refiro ao fazer musical como atuação utilizarei a palavra performance.
A intenção de usar esta palavra não se relaciona diretamente com o termo atual dicionarizado
que irá sugerir uma definição, ou avaliação da atividade performativa em música como
desempenho e resultado, conforme posto nos Dicionários Michaelis, Aurélio e Houaiss.
Tendo em vista que neste campo a palavra desempenho estará diretamente conectada com a
maneira que uma tarefa é executada, sofrendo, em seguida à sua execução, a graduação de sua
eficácia a ser analisada e avaliada.
De acordo com o Dicionário Aurélio, o desempenho de algum trabalho ou atividade
exige fatores como competência e eficiência; a maior parte do verbete se refere ao conjunto
“de características ou de possibilidades de atuação de máquina, motor ou veículo, tais como
velocidade, capacidade de carga, agilidade, autonomia de movimentos, rendimento, etc.”
(AURÉLIO, a, p. 641). Assim ficam explícitos os parâmetros que estão em jogo na utilização
desses fatores e palavras, quais sejam, moldam uma mentalidade que permeia o discurso na
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significação do léxico “desempenho”, o qual direcionará o sentido de performance e de


atuação para um fazer medido, condicionado e analisável. Deste modo, vincula-se também ao
léxico “performance” estruturas que fundamentam aquela mentalidade embasada no ponto de
vista da funcionalidade e da utilidade na “execução de uma tarefa”, bem como nas
características mecânicas de “atuação de máquina, motor ou veículo”. Este tipo de abordagem
será mais propriamente discutido no segundo capítulo deste trabalho, onde a formação
musical no Ocidente entrará em discussão.
De forma semelhante, no Dicionário Houaiss (2001) o verbete performance, num
primeiro momento, se aproxima da palavra desempenho se referindo especialmente a
atividades artísticas na área do teatro e do cinema concernentes à interpretação, à
representação e à criação. Aqui o dicionário irá evidenciar ainda uma atitude que “avalia o
desempenho”. Entretanto será na origem francesa da palavra, que remonta antes mesmo do
século XVII, que encontramos uma diferente perspectiva acerca do significado inscrito na
fonte do termo, o que serve de motivação para sua utilização neste trabalho. Assim, o
primeiro significado de performance está conectado com o “dar forma”, o que pode nos
remeter à ideia de uma ação quase contínua de construção ou processo de construção a partir
de uma matéria. No caso da performance em música pode-se entender este processo como a
ação de dar forma ao som, que irá acontecer no momento em que esta própria forma é dada,
materializada, e logo depois, no momento seguinte, trans-formada. Jogo de estruturas sonoras
no espaço e no tempo. Segue a parte do verbete do Dicionário Houaiss (2001, p. 2.187)
destinada à etimologia desta palavra: Performance, Etim. ing (1531), de to perform
‘alcançar’, ‘executar’ e, este, do fr. ant. parfourmer ‘cumprir, acabar, concluir’, de former,
‘formar’, ‘dar forma a’, ‘criar’, do lat. formãre, ‘formar’, ‘dar forma’. É com esta camada
contida na palavra performance que este trabalho deseja se encontrar.

Posto isto, considero importante retornar ao significado de performance visto como


desempenho que, de acordo com o Dicionário Houaiss (2001, p. 2.187), irá direcionar a
atuação para uma avaliação em termos de “eficiência”, de “rendimento”. E no caso de uma
abordagem estratégico-administrativa, a “atuação desejada e observada de um indivíduo ou
grupo na execução de uma tarefa” terá, posteriormente, seus resultados “analisados para
avaliar a necessidade de modificação ou melhoria”. A partir disso, é também possível
visualizar que o uso atual da definição de performance como des-empenho aproxima-se de
uma avaliação da eficácia das ações em jogo (e da competência daquele que estará sendo
julgado por tais) mais do que da fruição do momento, que caberia às duas partes, ou seja,
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daqueles que dão forma, que fazem (performadores) e daqueles que recebem ou interagem
com estas ações de forma presente e participativa, ativa, viva (audiência).
O significado de performance a partir de desempenho, de acordo com Valeria Bittar
(2012, p. 142), se direciona ao “padrão de treinamento instaurado no século XIX, cuja
ferramenta é a repetição desacordada e mecânica”. Neste caso, a performance musical
aproxima-se do conceito da performance esportiva, cuja finalidade é o desempenho, a
demonstração e a avaliação de habilidades.
Sendo assim, estabeleço neste trabalho, em continuidade a linha que está sendo
traçada, o conceito de performance como “constitutiva da forma” (ZUMTHOR, 2007, p. 30),
de acordo com o que é proposto de maneira muito singular pelo medievalista suíço Paul
Zumthor, conforme trecho abaixo transcrito, extraído de seu livro Performance, Recepção e
Leitura:
Entre o sufixo designando uma ação em curso, mas que jamais será dada por
acabada, e o prefixo globalizante, que remete a uma totalidade inacessível, se não
inexistente, performance coloca a “forma”, improvável. Palavra admirável por sua
riqueza e implicação, porque ela refere menos a uma completude do que a um desejo
de realização. Mas este não permanece único. A globalidade, provisória. Cada
performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a
cada performance ela se transmuda. (ZUMTHOR, 2007, p. 33)

Em oposição ao que é posto por Zumthor, os termos intérprete e interpretação


estarão vinculados conceitualmente ao termo “execução”, conforme é possível observar a
partir do trabalho do pesquisador em música Frank Michael Carlos Kuehn em seu artigo
Interpretação – reprodução musical – teoria da performance: reunindo-se os elementos para
uma reformulação conceitual da(s) prática(s) interpretativa(s) (2012) que, de maneira
esclarecedora, trará bases de significação para “interpretação” e “intérprete” partindo do
contexto histórico que envolveu a segunda escola de Viena, liderada por Arnold Schönberg.
Para estudar os conceitos, e provocar um mapeamento/discussão inicial acerca da atividade do
fazedor de música, ainda serão consultados por mim dois outros trabalhos de Kuehn (2010,
2011). Segundo este autor, dentro da tradição clássico-romântica vienense dos séculos XIX e
XX, a terminologia intérprete/interpretação se define como uma atividade fortemente
vinculada ao texto escrito da obra, presumindo que:

“Saber interpretar” [...] implica, no contexto da música de concerto, uma espécie de


“musicologia aplicada”, na qual o acesso à “essência” ou “verdade” não é
espontâneo ou acontece via intuição direta e sim por meio de uma postura refletida e
ponderada, estando sempre acompanhada por conhecimento tanto teórico quanto
empírico. (KUEHN, 2012, p. 10)
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Isto é, a atividade de interpretação pressupõe uma série de ações a serem realizadas


pelo intérprete, ações que são, geralmente, norteadas por disciplinas como a musicologia e a
análise musical. Estas são convencionalmente voltadas para o texto musical e sua estrutura
morfológica ainda em abstração, ausente no tempo e no espaço em forma de som. Deste
modo, o ato de “interpretar” fica ligado a uma série de prerrogativas alheias ao músico
atuante (BITTAR, 2012) e ao momento da operação, tendo como base (núcleo) a
racionalização deliberada.
Kuehn investiga a definição e origem do termo “execução” quando expõe que
Schönberg irá, mesmo assim, evitar os termos “intérprete” e “interpretação” dada sua
insatisfação decorrente dos exageros cometidos pelos músicos intérpretes de seu tempo. Por
sua vez, o compositor vienense recorre ao termo Ausführender traduzido como “executante”
ou “executor”, e a Ausführung como “execução”. Escreveu Schönberg (1989, p.116):

Um executante inteligente [kluger Ausführender], que seja realmente ‘um servidor


da obra’ [Diener am Werk], alguém cuja agilidade mental seja equivalente à de um
pensador da música [Musikdenker] — tal pessoa procederá como Mozart, Schubert
ou outros (SCHOENBERG apud KUEHN, 2010, p. 4, grifos meus).

Ou seja, neste caso a pessoa “responsável” por executar a obra prima do compositor,
sujeita-se como um “servidor inteligente” que age por uma atitude concentradamente
racional-analítica da obra, distanciada do corpo e seu fluxo. Porém, ‘distanciada do corpo’
somente na medida em que isto se torna possível através dos ‘mecanismos de controle e
docilidade investidos pelas disciplinas ao longo da formação em música’ (Ver capítulo 2 deste
trabalho), pois em Zumthor (Performance, recepção e leitura, 2007) é possível perceber que
performar implica necessariamente um “engajamento do corpo”. Portanto, nesta concepção
conceitual de executante/execução, não são levados em consideração aspectos reais presentes
na realização musical, incluindo aqueles relacionados ao performador, que também pensa
(como o Musikdenker), cria, atua. A saber: a percepção, a memória, a corporeidade, a
performatividade e as relações estabelecidas entre fazedor, compositor, instrumento, espaço e
ouvintes. Caberia aqui perguntar “qual é o lugar onde o pensamento pensa?”.
Consultando novamente o Dicionário Aurélio (2004) percebemos como o verbo
executar está relacionado às atividades jurídicas na sociedade e ao campo tecnológico das
informações. Apesar de também definir atividades artísticas como “tocar, cantar, representar,
interpretar, encenar” (para música e teatro), a palavra chega a se relacionar (talvez indo ao
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encontro de um sentido mais lógico e estrito) com o verbo “supliciar” 1. Portanto, com base na
significação proposta pelos dicionários atuais, considero que a mesma mentalidade que
permeia estas palavras, poderá gerar um discurso a ser incorporado em nosso fazer artístico, a
prática de performance musical, no que diz respeito à tarefa de executar algo externo ao
próprio corpo, ao hic et nunc e às relações. Neste discurso proferido e encarnado em nós
mesmos, até que ponto “executamos”, até que ponto somos executados?

Retomando o trabalho desenvolvido por Frank Kuehn sobre a compreensão e


aplicação do termo “reprodução musical”, definido elementarmente como “a realização
sonora de uma obra musical com base em sua partitura” o autor afirma que o vienense e
teórico da música Heinrich Schenker, será provavelmente o pensador moderno que primeiro
teria usado o termo reprodução “para definir algo próximo à execução” (KUEHN, 2010, p. 4).
Ao criticar “o papel que o mundo musical atribuía à reprodução musical, em flagrante
contraste com as verdadeiras origens”, Schenker defende a possibilidade de uma “reprodução
verdadeira” opondo-se às “tendências exibicionistas das performances de seu tempo”.
(KUEHN, 2010, p. 4)
Assim como Schönberg, Henrich Schenker parece não simpatizar com o trabalho
realizado pelos músicos performadores de sua época. Tal fato é contextualizado
historicamente junto à figura do intérprete musical, no caso de Schönberg, por Valeria Bittar
(2012, pp. 65-70). Para Arnold Schönberg “o performer, a despeito de sua intolerável
arrogância, é totalmente desnecessário” (COOK, 2006 apud BITTAR, 2012, p. 65), a não ser
pela sua funcionalidade em tornar a música compreensível para a plateia através de suas
interpretações, plateia infeliz por não conseguir ler a música impressa. Segundo a autora, isso
se dá pelo fato de a conduta artística vigente ao longo do século XX, forjada durante o século
XIX, ainda estar “impregnada do idealismo romântico”. Isto entendido, a autora irá justificar
a crítica de Schönberg ao considerar que o compositor vienense “se referia a um intérprete
também imbuído na aura romântica do gênio” (BITTAR, 2012, p. 66), do virtuose, “herdeiro
das práticas românticas” da performance musical (Nikolaus Harnoncourt), que carregam em sí
a prática do exibicionismo. Segundo Bittar, nesta declaração do compositor vienense,
entretanto, enxerga-se o enfoque sobre a “autonomia da obra” enquanto texto musical escrito,
demonstrando “uma forte hierarquização da criação musical” e “a necessidade do
indivíduo/autor de poder controlar todo o processo artístico, usando a obra como ferramenta

1
Neste sentido, esta prática punitiva será abordada de acordo com o livro Vigiar e Punir (2014) de Michel
Foucault no inicio do segundo capítulo deste TCC.
15

de controle do indivíduo/intérprete”. (BITTAR, 2012, pp. 68-69) Ainda a esse respeito, a


autora esclarece que a ênfase na autoria e na obra direciona a uma cultura da performance
musical como um processo abstrato, onde supostamente não poderia haver a interferência do
performador, conforme o que é posto no seguinte trecho extraído de seu trabalho de
doutoramento:

Ao entender o intérprete como algo desnecessário e ao desejar que a obra musical


seja lida pelo ouvinte, num processo silencioso, Schoenberg constrói seu desejo
numa abstração extremada, algo também característico do Romantismo, afirmando,
mesmo que indiretamente, que a música, o processo artístico é o código escrito pelo
autor, e que este código fixo não pode sofrer a interferência da interpretação.
(BITTAR, 2012, p. 69)

Da mesma forma é possível visualizar as colocações de Schenker em seu The Art of


Performance (mais adequadamente traduzido, como sugere Kuehn, por “A arte da
interpretação musical” ou “A arte da reprodução musical”), enquanto utiliza o termo
reprodução musical e considera o intérprete-reprodutor como um artista “degenerado” 2.
Declarando, naquele contexto histórico, em uma posição bem próxima à de Arnold
Schönberg, que “a composição não precisa da performance para existir”. (SCHENKER apud
KUEHN, 2011, p. 5). Para Schenker, a leitura silenciosa de uma partitura é suficiente para
provar a sua existência; “basta o som surgir de forma apenas imaginada na mente. A
realização mecânica de uma obra de arte musical pode, desse modo, ser considerada
supérflua”. (KUEHN, 2011, p. 5) Conforme sugere uma fala do professor Maurício Zamith,
essas últimas concepções sonegam do intérprete o papel artístico-criador, colocando-o em
uma função equivalente à da "reprodução mecânica".
Quanto à “dimensão performativa da prática musical”, conforme observa Kuehn de
acordo com Schenker, está “nos artifícios, através dos quais o modo de notação é realizado”,
através daquilo que denomina elementos performativos, por exemplo: a respiração, os
movimentos biomecânicos de mãos e braços, o dedilhado, a gestualidade e as técnicas de
pedal, de staccato e de legato (no caso do piano), também “a compostura física e mental ou
‘espiritual’ do músico recebe atenção e de modo algum deve ser subestimada”. (SCHENKER,
2000 apud KUEHN, 2011, p. 8). Kuehn considerará tais elementos listados por Heinrich
2
Vide Henrich Schenker (2000, pp. 83-84). Segundo Kuehn (2011), este é um vocábulo da época de Schenker
que foi empregado geralmente “em sentido difamatório, como em campanhas de propaganda política da ala
ultranacionalista”, declarando que “nesse ponto, Schenker não estava em boa companhia”. A crítica ao
intérprete, neste caso virtuose, intencionada por Schenker também não proporciona para os praticantes desta arte
uma visão encorajadora, pois entende que: “Para cada obra de arte [musical] existe apenas uma única reprodução
verdadeira – própria e peculiar”. Colocando-se para o músico-intérprete uma questão intrigante difícil de
responder “o quê exatamente reproduzir, tendo como base um determinado texto musical, e o porquê da sua
reprodução” (KUEHN, 2011, p. 6).
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Schenker, como sendo “a rigor, todos extramusicais – representam os meios para que a
‘dissimulação’ de ‘efeitos’ possa ter efetivamente lugar” e permitem ao intérprete “sublinhar
certos detalhes estruturais da obra com mais eficiência em termos técnicos e com maior
fidelidade em termos de expressão, dinâmica, estilo e forma”. (KUEHN, 2011, p. 8)
Neste caso, mesmo levando em conta “que a questão performativa da prática musical
não existia na época de Schenker da forma como ela se coloca hoje em dia, estando em Schenker
limitada a tópicos de técnica e de gestualidade da execução ao vivo de uma obra” (Idem), o que
se manifesta é, novamente, uma concepção de performance que atenta para a destreza no
(des)empenho do intérprete. Este, partindo de seu conhecimento e experiência prévia, tem
suas ações reduzidas à compreensão submissa do texto musical, e o texto tem seus elementos
intramusicais sublinhados pelo intérprete para o ouvinte através de elementos ou ferramentas
extramusicais. Nesta abordagem, o performativo é considerado como algo extramusical, fora
da música. É desta maneira que a “‘obra de arte’ – isto é, a partitura de uma determinada
composição musical – constitui para Schenker uma espécie de entidade ontológica inviolável
que, sagrada, nunca deve ser sacrificada em favor da sala, do público, ou dos dedos”.
(SCHENKER, 2000 apud KUEHN, 2011, p. 6, grifo meu)

Expondo-me intuitivamente e enxergando-me num território atualizado das artes


entendo que as considerações expostas acima, originadas na Segunda Escola de Viena, fruto
do pensamento romântico tardio, geraram historicamente reações bastante contrárias, com as
quais posso me identificar, enquanto quinta geração. Em meio a movimentos artísticos
motivados pelo pós-modernismo, é possível sustentar reflexões que perpassam caminhos
multidisciplinares, caminhos que nos fazem enxergar a performance como um todo e, em
especial a performance em música, como um momento de fruição onde a obra de arte que soa
está inteiramente entregue ao espaço, ao tempo e aos corpos presentes no ato performativo,
numa experiência de devir constante. No meu entender, assim como algumas experiências
desenroladas no teatro pós-dramático, resguardando as devidas diferenças das linguagens, a
experiência musical em sí está ritualizada na interação “da sala, do público e dos dedos”
(contrariando a colocação de Schenker), contendo os sons de forma materializada e contando
com a presença do inconsciente, do imprevisível e do incontrolável no mundo entre os corpos
no espaço. Nesta linha, faz também sentido um distanciamento da acepção do intérprete
virtuoso, pois entendo que o performador (em performance) se encontra entregue às situações
da experiência que não estão propriamente no âmbito de controle das habilidades, caprichos e
competências técnicas do músico bem treinado/adestrado.
17

Agora, outro entendimento que o fazer musical contemporâneo instaurou nos papéis e
nas relações entre compositor e performador para a constituição da obra musical surge nos
trabalhos de compositores como Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen, por exemplo.
Após período com experiências musicais de produção eletrônica, a qual prescinde das ações
do intérprete, Stockhausen, reconhecendo a expressividade que é possível apenas na
performance humana, retoma em sua criação técnicas que implicam a materialidade física do
fazedor de música, contando inclusive com suas limitações técnico-físicas para a realização
sonora da obra.3 Neste caso, fica saliente o interesse do compositor pela música instrumental e
a interação em arte que se torna possível na relação com o “intérprete”/performador. De
maneira semelhante, o compositor Pierre Schaeffer em seu Tratado dos Objetos Musicais
(1998) se põe a questionar acerca da supremacia das “notas musicais” enquanto texto fixo e
abstrato. Ao refletir em suas considerações acerca do “próprio curso dos sons” implicando na
realização da obra musical é possível perceber que, em seu discurso, entra em jogo a
performance como materialização, concretização dos sons no espaço. Seguem algumas
interrogações do compositor:

Por acaso acreditamos que no Ocidente somos insensíveis a este jogo de alturas
aproximadas, das que apenas ousamos nos dar conta? Uma boa voz em um lied que
lhe permita brilhar se expressa somente pelas alturas que a partitura indica? Não há
nas interpretações verdadeiramente sutis uma variedade de alturas quase asiática e um
jogo de timbres no próprio curso dos sons? (SCHAEFFER, 1998, p. 289)

Também, ainda mais recentemente na história da música, é possível enxergar uma


postura colaborativa entre compositores e performadores, sendo estes co-criadores de uma
obra musical; assim como manifestações de performances sem obra pré-concebida (sem texto
fixo), como “improvisações livres”, por exemplo. Estes casos, juntamente com o
posicionamento de Stockhausen e Schaeffer, apresentam uma situação inversa daquilo que é
defendido por Schöenberg e Schenker. Poderíamos pensar que, neste sentido, a arte caminha
para uma não hierarquização dos diferentes papéis (criador/fazedor) e para uma diluição dos

3
Se, após um ano e meio trabalhando exaustivamente em composições eletrônicas, eu agora trabalho em peças
para piano ao mesmo tempo, é porque nas composições mais fortemente estruturadas eu sou exposto contra
fenômenos musicais essenciais que não são quantificáveis. Eles não são menos reais, reconhecíveis, concebíveis
ou palpáveis por isso. Estes eu posso melhor clarificar – no momento – com a ajuda de um instrumento ou
intérprete do que dos meios eletrônicos de composição. Sobretudo isso tem a ver com a concepção de um novo
senso de tempo musical, expresso de maneira mais real pelas nuances ‘irracionais’ infinitamente sutis, tensões e
agógicas de um bom intérprete do que por qualquer medida em centímetros. Tal critério ‘estatístico’ irá abrir
uma perspectiva completamente nova e até então desconhecida sobre a relação entre fatores instrumentais e de
performance. (STOCKHAUSEN apud MACONIE, 1990, p. 43).
18

diferentes fazeres em música em nome da obra de arte em si? Daquilo que é evocado no
espaço e no tempo entre os corpos.

Ainda sobre a maneira que o termo reprodução é utilizado por Frank Kuehn (2012), a
despeito do pensamento de Schenker apresentado anteriormente, observa-se outra articulação
teórico-conceitual. Evocando a recorrência ao termo “reprodução musical” em Theodor
Adorno, e ponderando elaboradamente suas considerações de acordo com traduções e
contextualizações teóricas, Kuehn trabalha sobre os termos reprodução, interpretação e
performance musical na proposição de um trinômio [reprodução: interpretação –
performance] que pretende servir como “uma espécie de arcabouço conceitual da(s) prática(s)
interpretativa(s)”. O autor utiliza este termo a partir do que elabora Adorno e o esclarece
conforme o trecho abaixo:

Diferentemente da denotação mecânica que o termo reprodução adquiriu com o


aperfeiçoamento tecnológico dos meios de comunicação de massa e dos suportes
industriais, o conceito de reprodução adorniano designa a exposição hic et nunc de
uma composição musical. (KUEHN, 2010, p. 6)

Considerando o hic et nunc (aqui e agora) como a unidade de presença da obra de arte
no próprio local onde se encontra, conforme evocado por Walter Benjamin ao falar sobre A
obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Adorno inclui em seu
entendimento de “reprodução musical” o caráter temporal/histórico da realização ao vivo e in
loco “de uma obra musical a partir de seu registro em forma de texto ou de partitura”
(KUEHN, 2010, p. 6). Kuehn esclarece que esta ideia de reprodução não se vincula ao
conceito de “reprodutibilidade técnica” que “denota as diferentes técnicas para reproduzir
cópias de uma obra de arte a partir de um original, molde ou modelo em suportes mecânico-
industriais”. (Idem)
As considerações de Adorno implicam na proposição de Kuehn a respeito da
reprodução musical realocada nas práticas interpretativas enquanto conceito abrangente,
ocorrendo por duas vias: pela interpretação e pela performance, deste modo, formam-se três
categorias centrais do processo artístico que não se confundem entre si. Os conceitos de
reprodução, interpretação e performance representam diferentes princípios “onde cada campo
pode constituir objeto de uma grande variedade de análises”. (KUEHN, 2012, p. 16, grifos
meus). Kuehn propõe que, dependendo do gênero (não se restringindo ao gênero clássico-
romântico) e da linguagem musical em questão, pode se eleger uma ou outra categoria como
19

ponto de partida para estudos. Nesta articulação conceitual “tanto a medida proporcional
quanto a qualidade de cada elemento categorial [interpretativo e performativo] vão se refletir
diretamente no resultado final da reprodução”. (Idem)

Desse modo, restaura-se, por assim dizer, no momento da reprodução, uma espécie
de campo agonal em que as forças musicais da composição (rítmicos, harmônicos,
dinâmicos, elementos estruturais etc.) interagem com a materialidade corporal e
gestual da performance, do ambiente social e natural (acústico, por exemplo) do
local da reprodução. (KUEHN, 2012, p. 15)

Contudo, apesar da interessante perspectiva lançada na citação acima, é possível notar


certa resistência teórica localizada no terreno de onde falam as práticas interpretativas
(abordado em 2.2.2), lugar cultivado enquanto disciplina norteadora do fazer musical. Ao
manifestar o caráter “analítico” em relação aos “elementos performativos” de uma
“reprodução musical”, revela-se menos o processo gerado no momento da performance e as
ações do músico em performance (fruição), do que “aspectos performáticos” desempenhados
pelo músico no momento da reprodução, passíveis de serem “avaliados criticamente” de
acordo com mais uma ferramenta disciplinar “abrangente” padronizadora da conduta do
performador. (KUEHN, 2012, p.15)
Entendendo que o trabalho de Frank Kuehn não é propriamente tratar do ato musical
performativo em si – mas revisar conceitualmente o modelo das práticas interpretativas no
Brasil a partir da terminologia utilizada por teóricos e suas implicações na aplicação dessas
teorias à prática musical – observo, adiante, trabalhos que vão ao encontro da música como
performance4 partindo ainda das observações do autor sobre este conceito.
A definição dos termos “reprodução” e “interpretação” utilizados na formulação
teórica de Kuehn não apresenta maiores dificuldades, ao passo que “a noção de performance
tem resistido a uma definição satisfatória na área da música”, onde começou a se disseminar
na segunda metade do século XX. Segundo Kuehn, da filosofia ao esporte, a conotação do
termo performance ampliou seu campo de abrangência, por isso “o termo requer [...]
esclarecimentos acerca da função e do significado dentro e fora do âmbito estritamente
musical”. (KUEHN, 2012 p. 13)

4
Conforme proposto por COOK (2006) e ALMEIDA (2011). Desta forma inverte-se o caminho de conceituação
de performance: do fazer musical emerge um sentido performativo que não se reduz a “elementos
extramusicais”, por exemplo. Performance é algo próprio da música, o esforço aqui se direciona a identificar
alguns discursos que fazem uso da palavra performance e, assim, rearticular/reposicionar o conceito de
performance musical no TCC.
20

Assim, o autor aponta para a filosofia do britânico John Austin nos Performance
Studies que elabora uma “teoria dos atos de fala” aproximando elementos da linguística e da
filosofia da linguagem que revelam o caráter de criação, além daquele de reprodução, contido
na linguagem através das enunciações. Isso resulta na questão central sobre a qual as
investigações de Austin se desdobram: “o que exatamente acontece no momento da fala? No
‘ato performativo’ (speech-act) da fala?”. (KUEHN, 2012, p. 13) De acordo com Austin, o
autor explica: “As palavras enunciadas, portanto, não são necessariamente uma mera
consequência do mundo que nos cerca. Também é possível o mundo social constituir-se de
acordo com os nossos enunciados”. (Idem)
Para Kuehn (2012, p. 13), o “despertar performativo” ocorrido no campo da música
teria sido possibilitado pelas similaridades que o ato performativo de Austin, referido
originalmente ao contexto linguístico e filosófico das circunstâncias de fala, “compartilha
com a prática interpretativa da música”. Tomando como “elementos chave” da performance
artística a atuação e a representação cênica, o autor revela a “amplitude do significado que a
relação (simbiótica) do elemento mimético-gestual engendra na arte da música” em
correspondência com o que é apontado por Theodor Adorno em sua Teoria da Reprodução
Musical (2005) onde o “elemento mimético” é salientado como essencial, ao considerar que
“determinados gestos resultam em som musical”. (Idem)
Ainda ao investigar ‘performance’, o autor cita John Cage e sua contribuição para o
elemento performativo na música de concerto, quando aquele compositor irá questionar o
paradigma tradicional de interpretação e compreenderá que “o ciclo de criação de uma obra
musical se fecha apenas com a performance”. Kuehn ressalta o enfoque na performance como
evento artístico e social, que passa a uma categoria de pesquisa da antropologia social e da
etnomusicologia, tomando o evento sociocultural da performance como “fato social” ou “fato
sonoro”, respectivamente – campo dos Performance Studies. Destaca tendências que
enxergam na performance “uma fonte inesgotável de experiência, isto é, de vida (ou de
vivência) e do corpo (embodiment)” ou que usam “o ato performativo como uma ação que age
criticamente sob o ambiente social ou natural, muitas vezes com o objetivo de se apontar
determinados padrões de comportamento condicionados socialmente, encenando-os para,
destarte, expor seus aspectos paradoxais”. O autor também considera seu potencial como
instrumento de intervenção artística, política e social “na medida em que estavam se
questionando paradigmas estéticos focados na relação de sujeito e objeto” e observa também
nas artes visuais e nas artes cênicas “uma tendência para ações performativas que ocupam o
21

espaço público criticamente (happening, environment, action painting ou body art)” – caso da
Performance Art. (KUEHN, 2012, pp. 14-15)
Diante desta ampla exposição que oferece ao leitor de seu artigo um panorama
histórico-conceitual acerca da performance, Kuehn (2012, p. 15) irá salientar que do ponto de
vista da indústria cultural, do entretenimento e da cultura de massa, “não é bem a interpretação
e os seus enunciados o que mais importa, mas a performance – isto é, o show”, considerando
que existem gêneros musicais em que o conteúdo musical figura “em segundo plano” na
predominância da “arte da performance”, onde o intérprete está empenhado em “convencer”
com sua performance “de forma visual, além da forma instrumental”. Identifico que isto pode
se referir a contextos de atuação musical que não são necessariamente os da música de
concerto, das “práticas interpretativas” ou performativas contemporâneas.
Penso que tomar a performance musical como ponto de partida para o estudo da
experiência musical não indica que a música estará ‘figurando em segundo plano’, mas
significa assumir uma posição que atenta para o conteúdo musical em sua forma dada,
materializada no espaço presente e no tempo presente através do corpo presente do
performador, com as ‘microinterações’ possíveis entre os elementos constituintes do ato. Por
fim o autor salienta a performance aproximando este conceito à cena artística circense e
espetacular da cultura, contexto naturalmente diferente deste, a música de concerto ocidental,
onde precisamos melhor “ponderar” sobre a aplicação do termo performance, conforme é
posto por Kuehn (2012, p. 15, grifo meu):

Tudo o que foi dito para definir e delimitar o campo conceitual da performance se
torna ainda mais evidente no caso do circo, onde acrobatas, malabaristas e outros
artistas se empenham (e triunfam) em suas performances, caso em que não se pode
falar em interpretação. Também nos megaeventos da música pop percebemos a
predominância de elementos performativos, em que todo tipo de luzes e imagens, os
“efeitos multimídia”, lembram mais um espetáculo circense do que uma
interpretação propriamente dita. Por tudo isso, o emprego do termo performance
precisa de mais ponderação quando aplicado a aspectos distintos da prática musical.

Se, ao falar sobre reprodução musical, o autor tem o cuidado de esclarecer que em seu
contexto “o termo reprodução não se refere a nenhuma reprodução mecânica” (KUEHN,
2010, p. 1), ao investigar o termo performance por outro lado, em suas diversas aplicações
atuais, por vezes, cai em um uso trivial (ou até pejorativo) deste termo mesmo quando
considera o corpo, a voz, e a presença física “como meio e como modo de interagir” no ato
performativo em música, fazendo maior referência a aspectos biomecânicos do movimento e à
técnicas de uso do corpo e sua gestualidade. Ademais, irá investigar os diversos usos da
22

palavra performance sem, no entanto, adentrar no mérito etimológico da palavra, quero dizer,
sem observar sua origem, diferente do que faz em relação à palavra “execução” por exemplo.
Recorrência que nos remeteria à “forma” ou, melhor dizendo,“dar forma” conforme o que é
apresentado no início deste ‘glossário introdutório’, de acordo com a etimologia da palavra
originalmente francesa, performance.
Por fim, em seu trabalho, Kuehn (2012) articula uma série de premissas que dizem
respeito à sua tese que toma a interpretação e a performance como princípios ativos
constituintes da reprodução musical. Dentre suas considerações finais, o autor explica que o
modelo apresentado em seu trabalho fundamenta o conceito de performance como uma “nova
especialização na área de música”, declarando que nos resta “avaliar o que exatamente as
artes cênicas e as performance arts têm a oferecer (ou a ensinar) às práticas interpretativas
(disciplina que paradoxalmente não foi concebida como performance art)”. (KUEHN, 2012,
p. 15)

Observando este “despertar performativo” no campo da música e entendendo as


implicações e desdobramentos que surgem em torno da ideia de performance em música,
proponho-me, nas considerações finais deste trabalho, a articular alguns diálogos (não
necessariamente “avaliar” de forma exata o que as outras áreas “têm a oferecer”) originados
na pesquisa em dança e teatro que incluem paradigmas contemporâneos da cena e se
posicionam além da representação dramática e da ação mimética. Estudos nessa área irão
considerar fatores como a presença e as ações físicas do ator, bem como os “processos
semióticos que se estabelecem nas relações entre os signos da encenação e o público, para
além da mimesis de uma ação”. (JACOBS, 2010, p. 93). Desta forma se estabelece uma
diferenciação do que é considerado por Kuehn (2012, p. 15, grifo meu) sobre “O aspecto
performativo da prática musical [que] se manifesta principalmente na representação cênica,
mímica e gestual no palco”, onde o autor faz uso da palavra performance especialmente em
seu mecanismo mimético-cênico. Estes, por sua vez, são amplamente discutidos,
reformulados e rediscutidos no campo das artes cênicas, principalmente no que diz respeito
aos esforços contidos na formulação do teatro pós-dramático (vide capítulo 3).
Cabe aqui, por enquanto, esclarecer brevemente o campo de atuação próprio da
performance no que diz respeito à discussão acadêmica no campo das artes cênicas, de acordo
com a dissertação da atriz e pesquisadora Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs intitulada
SMOKED LOVE Estudos sobre performance e dramaturgia do ator contemporâneo (2010).
A investigação no trabalho da autora se desenrola em torno da atividade do ator
23

contemporâneo contextualizada no teatro pós-dramático, que é caracterizado por rupturas


estéticas ocorridas no fazer cênico a partir da década de 1970. (JACOBS, 2010, p. 17). Neste
campo de atuação há uma dissolução do modelo representacional dramático, que se apoia
mais firmemente na primazia do texto escrito (narrativa) e na ação que tende a imitar e
remeter a uma realidade externa à cena. No teatro pós-dramático os elementos da cena estão
“para além” do ambiente ficcional e não se rendem a “psicologismos”, direcionando atores e
espectadores ao “processo semiótico” da cena e ao fazer próprio do ator, suas ações físicas.
Isto se evidencia na citação abaixo que faz referência a aspectos concretos e performativos da
encenação:
Podemos dizer, concordando com [Luís Fernando] Ramos (2009), que ocorre na
cena teatral contemporânea a supervalorização do opsis (materialidade do
espetáculo) em detrimento do mythos (estrutura narrativa) [...] Porém não só a
teatralidade do espetáculo posto em cena aos olhos do espectador compõe o opsis,
sua materialidade. A performatividade dos elementos da encenação também
constitui um elemento importante na construção da estética teatral contemporânea.
(JACOBS, 2010, pp. 22-23)

De acordo com a autora, este traço performativo do teatro contemporâneo assume


também a postura crítica da performance art. Segundo o que é pesquisado por Jacobs, a
performance art é uma manifestação artística de estética híbrida onde a “performatização do
eu” no processo de cena entra em jogo com codificação de partituras, ações virtuosísticas,
movimentos de dança e elementos materiais que compõem o espetáculo. Este jogo manifesta
uma “oscilação entre diversos estilos e técnicas de atuação”. (JACOBS, 2010, p. 37).
Conforme pode ser lido no trecho seguinte, o “performer” tem o papel de estabelecer uma
relação de proximidade direta com o público por meio da presença física:

A auto-referencialidade presente na performatização da atuação leva a uma


valorização do instante presente, e obriga o performer a aprender a conviver tanto
com o temo/espaço real quanto ficcional. Do mesmo modo, o performer assume e
abandona as personagens, as quais não possuem aprofundamento psicológico. A
performance tem também a característica de show, tendo uma relação com o público
que se assemelha ao circo, ao cabaret e ao music-hall. (JACOBS, 2010, p. 37)

Portanto, o que fica saliente na arte da performance é sua constituição


material/concreta que, em meio a hibridismos, se manifesta nas ações do ator assumidas
enquanto processo que tem a “presentificação de si mesmo” como substância. O corpo do
performer em relação com impulsos e elementos que formam a estrutura presencial da cena a
ser percebida.
Voltando ao sentido, propriamente, do discurso proferido pelas práticas interpretativas
em música, incluo nesta discussão o pensamento de Nicholas Cook (2006) no artigo Entre
24

processo e produto: música enquanto performance, onde observa através da sugerida


“gramática da performance” como, na medida em que é tomada como resultado de uma
vontade (partitura e compositor) externa ao músico e ao ato, a performance musical é
“reduzida” a um “produto”. O pesquisador Nicholas Cook, irá sugerir em seu artigo que há
uma hierarquia imposta pelo senso comum dentro dos fazeres instituídos no campo das
práticas interpretativas na música, onde o resultado final estará posto em primeiro plano e o
processo para que tal resultado seja construído será deixado num plano inferior, ou mesmo
ignorado. Esta afirmação nos conduz a observar as relações que intervém no fazer musical a
partir do que é enunciado pela “gramática da performance”, conforme trecho abaixo:

É tentador dizer que tudo isso é bobagem e que o que é necessário é simplesmente
um senso adequado de equilíbrio e respeito mútuo entre os músicos. Mas isto é
ignorar a influência do que chamo de gramática da performance: um paradigma
conceitual que vê o processo como sendo subordinado ao produto. (COOK, 2006, p.
7)

Cook faz sua investigação interseccionada com estudos do teatro e da


etnomusicologia, atentando para o aspecto propriamente performativo da música. O autor
propõe uma reflexão crítica sobre a pesquisa na área de performance musical fundamentada
em pressupostos teóricos, analíticos e musicológicos, que tratam essa atividade como
“reprodução de uma composição”, subordinada ao texto, e expõe que a própria linguagem
marginaliza a performance quando a considera interpretação/execução “de” alguma coisa.
“Em outras palavras, a linguagem nos leva a construir o processo de performance como
suplementar ao produto que a ocasiona, ou no qual resulta”, ficando o “processo subordinado
ao produto”. (COOK, 2006, p. 6)
O autor observa também a tendência da musicologia em abordar as músicas enquanto
produtos, representando um tipo de “hegemonia colonizadora” que rege as relações entre a
produção e a recepção da música, dando ao performador a função de executar o texto musical
com fidelidade à sua autoria. Neste contexto “parece que nos esquecemos que a música é uma
arte de performance e, mais do que isto, parece que não poderíamos pensar nela como tal,
mesmo se quiséssemos, haja vista a forma como a conceituamos.” (COOK, 2006, p. 7)
A partir disso, Cook traça uma re-conceituação da música entendendo-a enquanto
processo que acontece nas interações sociais, não enfocando na obra musical codificada
(texto) e sua autoria. A questão formulada anteriormente se reflete também quando a
performance da música europeia ocidental se mostra como diferentes produtos de acordo com
suas diferentes interpretações, ou seja, como resultado da “atividade virtuosística” de cada
25

intérprete, “isto implica em uma multiplicação de produtos; a performance não é valorizada


em si, mas pela interpretação que incorpora”. (COOK, 2006, p. 10) Até aqui, as reflexões
apresentadas por Nicholas Cook tem a concepção de música separada de performance.
Então, para conceber a música enquanto (and/as) performance, o autor aponta para sua
compreensão como um “fenômeno irredutivelmente social” que “resulta da interação de
diferentes indivíduos” que se encontram presentes no momento do ato musical, declarando
que:
O paradigma contemporâneo dos estudos de performance, que se desenvolveu
primeiramente no contexto dos estudos teatrais e da etnomusicologia, enfatiza o grau
em que o sentido é construído por meio do próprio ato da performance, geralmente
por meio de negociações entre os intérpretes, ou entre eles e o público. Em outras
palavras, o sentido da performance subsiste no processo e é portanto, por definição,
irredutível ao produto (COOK, 2006, p. 11, grifos meus).

Cook irá reposicionar a questão da obra musical compreendendo a participação dela


no ato performativo como um script que, dentre outros aspectos, orienta o intérprete
“dialogicamente” para a sua performance. Observa também o modo como se dão as
interpretações mesmo de obras consagradas na música europeia ocidental, onde toda
interpretação, para além do texto, tem como referência outras reproduções e performances já
realizadas. Desta forma, ao se tratar das “diferentes versões de uma mesma obra”, “não há
distinção ontológica entre as diferentes instanciações porque não existe um original”. (COOK,
2006, p. 13, grifo meu). Tendo isso, o pesquisador irá entender o processo interativo de
constituição da performance (independente do quanto esteja ligado à notação escrita) como
resultado dessas relações, afirmando que toda música representa uma tradição oral.
Ainda no intuito de estabelecer direções e ligações para o estudo da música enquanto
performance, Cook apresenta alguns caminhos, dentre os quais, aquele que enfoca “no
funcionamento do corpo que realiza a performance, tanto em relação a ele mesmo quanto em
relação às outras dimensões do evento da performance”. (COOK, 2006, p.15) Esta abordagem
concebida por Nicholas Cook, contribui dando campo para a elaboração deste trabalho de
conclusão de curso. Abordagens da performance musical quando focam a questão do corpo
dão importância ao que constitui este corpo enquanto “texto”, delineando-se a partir de
estudos psicológicos sobre controle motor, por exemplo. Neste sentido, entretanto, Cook irá
considerar que: “O paradigma contemporâneo da performance, em contraste, busca entender o
corpo da mesma forma que compreende o som, como um terreno de resistência ao texto.”
(COOK, 2006, p. 16, grifos meus).
26

Dando prosseguimento à construção de bases reflexivas quanto à performance em


música, apresento alguma reflexões de estudos atuais nesta área propostas pelo pianista
Alexandre Zamith Almeida em artigo publicado na revista Opus com o título Por uma visão
de música como performance (2011). Neste trabalho, o autor salienta a “dimensão
performativa” da música de concerto ocidental diferenciando, substancialmente, performance
musical de interpretação musical, a partir da definição de performance construída por Paul
Zumthor. A primeira irá compreender como “momento global de enunciação que abarca todos
os agentes e elementos participantes”, intérprete (performador) e ouvintes, consistindo no
momento “instantâneo” e “efêmero” de enunciação da obra. E a segunda “alusiva
exclusivamente às atividades do intérprete musical”, envolvendo todo o processo de
construção de certa obra: desde estudo, reflexões, prática e decisões que resultam em uma
“concepção interpretativa” a partir do texto musical. Também percebe a distinção entre as
duas noções quando considera que a interpretação musical requer necessariamente um texto
“ao passo que performance abarca poéticas musicais que não pressupõem um enunciado
previamente estabelecido”. (ALMEIDA, 2011, p. 64)
O autor aponta para uma qualidade essencial da performance que se refere ao que Paul
Zumthor (2005) chama de “reiterabilidade não redundante”, significa que esta reiterabilidade
ao mesmo tempo “que se apega à normatização imposta por um texto, [...] se flexibiliza diante
das imprevisíveis variáveis de performance”. Estas variáveis, segundo Almeida, carregam
marcas da oralidade na música ocidental, o que não pode ser determinado pela partitura.
(ALMEIDA, 2011, p. 64)
Mais adiante, em seu trabalho, Almeida observa a relação entre notação musical e as
práticas de interpretação e performance deixando claro os riscos que se pode correr com a
valorização excessiva da notação: dada a sua precariedade representacional do resultado
sonoro, de onde emergem “as atribuições mais preciosas da interpretação e performance
musical, concernentes ao preenchimento e adensamento daquilo que a notação segmenta” e
dada a confusão entre a noção de partitura e noção de obra, entregando ao texto, de acordo
com o que Almeida enxerga, uma excessiva valorização como “cristalizador” de “todos os
aspectos do que se entende por obra musical” – de forma a se opor, enquanto “objeto
estático”, ao “dinamismo que proporciona pela situação de performance”. (ALMEIDA, 2011,
pp. 65-66, grifo meu)
Ao considerar a música como performance, Almeida mostrará a estreita relação dos
sons com o tempo, de acordo com o etnomusicólogo canadense Jean-Jacques Nattiez em seu
livro “O Mito de Cronos e Orfeu”, tendo o propósito de “exceder a visão rigorosamente
27

textual e estruturalista do fato musical” ao considerar seu dinamismo via percepção e criação.
Expondo, em seguida, a postura radical de Glenn Gould enquanto intérprete que adota um
“ideal estrutural” para suas interpretações quando adentrou os estúdios de gravação com o
objetivo de gerar uma performance “ideal” (o que parece resultar, na realidade, em um
produto sem performance). Nesse tipo de situação “cria-se um ambiente acústico ideal,
elimina-se os ruídos, corrige-se os excessos e os erros, edita-se e, com isso, cristaliza-se uma
performance ideal que – como bem observou Cook (2006: 14) – jamais existiu”. (ALMEIDA,
2011, p. 68). Assim, Alexandre considera a abstração engendrada neste processo que se
distancia do movimento temporal da música e sua contraposição investigativa:

Nota-se que a tradição da partitura potencializa a visão de obra enquanto estrutura


abstrata, congelada em suposto estado de pureza, fora do tempo e de suas
contingências. Em contraposição a esta visão estão as investigações que se
interessam pela manifestação musical considerada em seu dinamismo, distendida no
tempo e sujeita a variâncias em diversos graus de imponderabilidade. (ALMEIDA,
2011, p. 66)

Em oposição a esta abstração do texto, Almeida (2011, p. 68) constata que ao


intérprete “cabe apresentar e distender a obra linearmente no tempo” numa atividade que
agrega concretude sonora a estruturas abstratas, de maneira que este intérprete passa a operar
ativamente na realização da obra juntamente com compositor e audiência, através do que
Alexandre nomina de diluição conforme o que percebe no seguinte trecho:

O entendimento de que a nossa música de concerto pode induzir a esse imaginário


dualismo estrutura/sonoridade (o qual pode também ser expresso nos termos
partitura/performance) é correlato à constatação de que sua tradição do texto impôs
exageros como o de se supor prescindível a própria manifestação sonora da obra
musical e, por conseguinte, de se acatar compositor e intérprete como agentes
antagônicos. Entretanto, a música pode ser bem melhor compreendida enquanto
expressão que, em performance, dilui a suposição do dualismo abstrato/concreto e a
segregação entre compositor, intérprete e ouvinte, que passam a ser compreendidos
como agentes colaboradores e co-criadores. (ALMEIDA, 2011, p. 69, grifo meu)

Neste caminho de encontro com a música como performance é estabelecido um desvio


inicial daquilo que é tomado como padrão, como norma norteadora das condutas dos
fazedores de música. Vejo, através dos trabalhos consultados, que a própria prática musical
contemporânea apresenta desafios e exigências que conduzem à essas transformações.
Entretanto, é possível observar que principalmente as noções de
intérprete/interpretação (como visto no início desta discussão) são as que participam das ações
relacionadas à formação de condutas que presenciamos de forma geral na prática e na
pesquisa em performance musical hoje, dentro daquilo que é denominado “práticas
28

interpretativas”. De outra maneira, performance (pensada aqui enquanto ato presente)


distingue-se da atividade gerada a partir dos conceitos de interpretação, execução e
reprodução musical, justamente por considerar o aspecto sensório e perceptivo como assuntos
referentes à questão corpórea, à subjetividade da pessoa que performa música e às relações
estabelecidas em performance. Arremato esta parte referente ao conceito de performance na
experiência musical com o seguinte pensamento de Valeria Bittar (2012, p. 55) que, nas
considerações finais deste trabalho, será retomado de acordo com as discussões propostas e
geradas nos capítulos que se desenrolam adiante:

[A performance] é uma operação, um fazer, e [...] é neste operar da performance que


se dá a atualização do som (música); música que, há poucos instantes, ainda se
localizava noutros lugares, no lugar da memória do atuante e na memória do texto
que, por sua vez, está no lugar da memória de quem codificou a música. Este som
estava locado em espaços e de lá foi resgatado, ou “invocado” por um gesto
perceptivo que continuamente, numa sequência infinita o atualizou, deu forma ao
som, tornou real o que estava localizado em potência na memória do sujeito
operador.

A flautista e pesquisadora do corpo Valeria Bittar denominará este “operador”, aquele


que realiza formas sonoras, de performador ao longo de sua tese de doutorado. Termo que
também usarei durante este trabalho no intuito de manter os aspectos pensados anteriormente
aqui no ‘glossário’ como o de uma “ação em curso” (a ideia de prefixo/sufixo em Zumthor)
realizada por aquele/aquela que em seu fazer vai “dando forma” ao som, à obra de arte
musical. A palavra “performador” se relaciona proximamente com a noção de “atuante
musical” ou “músico atuante”, criada por Valeria Bittar (2012), e remete à performance, ao
“Ato” em música entendido como processo gerado pela percepção, envolvendo diretamente a
presença do músico e seu corpo em cena. Vale apontar para a recorrência ao termo
“performador” no lugar de “performer” a partir do trabalho dos artistas Fernando Borges
Barcellos e Marcos César de Senna Hill (UFMG) que estudarão O performador atômico e o
processo de criação em cadeia (2012) a partir de pressupostos do “modelo atômico da física
quântica” realocados e investigados no âmbito da arte da performance e seus processos de
criação coletivos em cena. (Ver BARCELLOS; HILL, 2012)

Na trajetória de encontro com o performador em performance, tanto na atuação quanto


na pesquisa, é inevitável esbarrar com o corpo, suas ações e implicações no fazer artístico.
Paul Zumthor (2007, p. 38) afirma que “qualquer que seja a maneira pela qual somos levados
a remanejar [...] a noção de performance, encontraremos sempre um elemento irredutível, a
ideia da presença de um corpo”. A partir do trabalho de Zumthor, percebo que a
29

performatividade manifesta a presença do corpo em sua materialidade física sobre o palco, ou


também pelas ‘andanças’ cotidianas, em sua disponibilização ou desgaste. Enxergarei, ao
final do processo de elaboração da pesquisa deste TCC, o comprometimento que é pensar nas
implicações do corpo no próprio fazer, pois é ele que se vivencia a todo o momento em
relação com o espaço e com o tempo, isto pode ser sentido e não deveria passar despercebido.
Ao trilhar este caminho junto ao corpo, ele será tratado através de diversas
abordagens, o que se mostrará evidente no decorrer da leitura. No entanto, de início será
necessário considerar o estudo deste corpo em movimento, e esclarecer que o objetivo aqui
não é tomar conhecimento anátomo-fisiológico de um corpo morto, cadáver a ser dissecado e
detalhadamente analisado, mas atentar aos mecanismos da experiência de um corpo vivo, em
vida, que se move e aprende a si mesmo através das relações. Sendo assim irei tratar a palavra
corpo pelo viés do conceito de soma desenvolvido pelo pesquisador Thomas Hanna, um dos
pioneiros da Educação Somática, cujo fundamento é a integração corpo-sujeito. Conforme
resumido por Bittar (2012, p. 196), a partir da bailarina e pesquisadora somática, Jussara
Miller:
O soma é vivo; ele está sempre se contraindo e distendendo-se, acomodando-se e
assimilando, recebendo energia e expelindo energia. Soma é a pulsão, fluência,
síntese e relaxamento [...] Os somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse
momento, nesse lugar onde você está. (HANNA, 1972 apud MILLER, 2010, p. 4)

O caminho para uma possível abordagem somática em música será ensaiado no final
das considerações finais deste trabalho juntamente com os trabalhos de Jussara Miller e de
Valeria Bittar. No sentido de vivificação que o corpo vem a ser estudado pela educação
somática, entende-se que o conhecimento será gerado através da atenção, escuta e consciência
de si (consciência como awareness) num processo de definitiva investigação do corpo próprio
através da percepção.
É essencial o entendimento diferenciado da noção de consciência do ponto de vista
dos estudos aqui observados. A palavra ‘consciência’ em português traduz tanto o termo
conciousness que se refere a uma consciência que é sabida racionalmente, quanto o termo
awareness. Conforme põe a bailarina e educadora somática Neide Neves (2008, p. 39): “A
conciousness é o saber da awareness”, esta, por sua vez, tem o sentido de “consciência
enquanto prontidão” e se relaciona com a experiência física e o entendimento corpóreo do
corpo através das sensações. Esta experiência viva é considerada por Neves (2008, pp. 38-39)
como “um estágio indispensável ao corpo para lidar com a informação”. Trago também a
definição do ator Jerzy Grotowsky (2001, p. 235 apud BITTAR, 2012, p. 182) contida na tese
30

da professora Valeria Bittar: “Awareness quer dizer a consciência que não é ligada à
linguagem (à máquina de pensar), mas à Presença”. Relacionada à percepção e à experiência
sensória, awareness seria uma presentificação e uma vivificação da consciência no saber do
corpo próprio.
Ademais, a presença do corpo percorrerá toda a articulação teórico-metodológica e o
delineamento da presente pesquisa bibliográfica de forma inevitável, desde a percepção inicial
das andanças deste corpo na trajetória acadêmica, passando pela imersão em um espectro
cultural e político, até a tentativa de experienciar caminhos outros que se direcionam a uma
experiência somática e poética da vida em música.

Tendo em vista que o modo de operação da técnica pianística em relação ao corpo do


músico é também um dos principais pontos que este trabalho se propõe refletir, sendo de
relação direta com meu próprio percurso acadêmico, ponho em jogo o conceito de ação
pianística elaborado pela pianista Dra. Maria Bernardete Castelán Póvoas em sua tese de
doutorado Controle do movimento com base em um princípio de relação e regulação do
impulso mecânico: possíveis reflexos na otimização da ação pianística (1999). A autora irá
conceitualizar o termo ação pianística entendendo que a realização sonora das informações
codificadas em partitura implica um “ato de reconstrução” efetuado pelo intérprete por meio
de seu corpo. Segundo Póvoas (1999, pp. 81-82), isto é possível pelas “capacidades
perceptivas e de observação” desenvolvidas pelo músico que conduzem a ação pianística “a
um processo de reflexão mais apurado sobre a re1ação da técnica com os fenômenos e fatores
que podem influenciar no percurso de movimentos pianísticos”. Para isso, entendo que há
uma integração entre “fatores” que constituem o ser do performador que, por sua vez, aciona
os elementos da música colocando-os em percurso no espaço-tempo, nas palavras de Póvoas:

Fatores de ordem psico-emocionais, cognitivo-intelectuais e físiconeuromusculares


interagem no processo de construção da ação pianística. [...] A concretização da obra
musical é processada através da ação pianística, cujos movimentos físico-musculares
são realizados, na extensão do teclado, pelos membros superiores através do espaço
e do tempo (duas grandezas físicas), sendo o corpo o veículo dessa ação dinâmica.
(PÓVOAS, 1999, pp. 82-83, grifo meu)

É possível observar, contudo, que o trabalho de Póvoas irá considerar em seu caminho
para a atividade artística, aqueles parâmetros que resultam da aproximação com a ergonomia
e o esporte: “avaliação de eficiência, rendimento do desempenho, economia de movimentos”,
tomando ainda o corpo como “veículo” de informações. Enxergo que este é um traço
31

característico da pesquisa em técnica pianística desenvolvida ao longo do século XX,


momento em que as inquietações técnico-artísticas do fazer pianístico buscam e encontram
suas respostas nas ciências biomecânicas, por exemplo, como poderá ser melhor
compreendido nos capítulos 2.2.3 e 2.2.4 deste TCC. No entanto, o que pode ser salientado no
conceito de ação pianística percebido por Póvoas é, já, outro viés que tem base no trabalho
integrado do corpo em contato com o instrumento e com as informações processadas e
transformadas na prática. Atento então para este aspecto que investigará a atividade do
“intérprete”, do performador musical que toca piano, a partir do seu corpo em movimento
(ações músico-instrumentais) em relação com a matéria sonora (resultado musical). Na
citação abaixo lê-se uma definição da Dra. Maria Bernardete que aponta para o aspecto
integrativo e concreto de seu conceito:

A ação pianística é entendida aqui [na tese da autora] como uma atitude criativa e
interpretativa construída através do processamento das questões envolvidas na
música, selecionando, coordenando e realizando tanto os elementos da construção
musical quanto os movimentos que os realizam. A ação pianística estabelece o
direto inter-relacionamento dos movimentos físico-musculares característicos da
ação com a escrita ou código musical e com os resultados sonoros adequados a uma
determinada obra. Neste contexto, “técnica” é considerada como o conjunto de
processos que operam na ação pianística, incluindo uma eficiente realização física
dos movimentos físico-musculares que objetive tanto a realização da construção
musical quanto à obtenção da sonoridade. (PÓVOAS, 1999, pp. 80-81)

Assim como awareness direciona a uma compreensão de consciência que não aquela
estritamente lógico-racional, mas a esta que opera também numa esfera senso-perceptiva,
compreenderemos a experiência que envolve o fenômeno sonoro em cena partindo da mesma
noção que se aproxima de uma materialização das relações em fluxo corpóreo.
Na tentativa de delinear o conceito de experiência musical, vou de encontro às
reflexões abertas por Valeria Bittar (2012, p. 55), em um primeiro momento, acerca da
performance musical como Ato. A autora entenderá que ela é “uma operação, um fazer” onde
através de “um gesto perceptivo” que parte do corpo do performador a música é “atualizada”,
ou seja, os sons que se encontravam na memória do atuante são realizados no instante
presente da performance em forma de matéria sonora. Também é possível enxergar, pelo viés
da experiência no trabalho do performador musical, um corpo disponibilizado e aberto para
esta experiência concreta, no agoraqui a partir do saber sensório e da percepção em balanço
com o performador como “repositório de informações” corpóreas e analíticas. (BONDÍA,
2002 apud BITTAR, 2012)
32

De acordo com essa perspectiva, a experiência musical poderia ser caracterizada, a


meu ver, pela “fusão” ou “diluição” (ALMEIDA, 2011) das presenças disponibilizadas em
música, a saber: ‘performador, performance e corpo’ confundidos no instante presente do Ato
musical. Possíveis caminhos ao encontro desta experiência pretendem ser mapeados nas
considerações finais deste trabalho.
33

1ANDANÇAS

Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida


em que sou um corpo vivo que se levanta em direção ao mundo (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 114)

[...] é da experiência que emerge a conceituação e não o contrário. [...] Mas para
testar essa hipótese não basta estar vivo. É preciso fazer da vida um exercício
político de produção sígnica e partilhamento do saber (GREINER, 2005, p. 123)

Com este trabalho pretendo expor influxos de algumas inquietações geradas ao longo
de meus estudos no curso de Bacharelado em Música na Universidade do Estado de Santa
Catarina. A pesquisa aqui elaborada resulta da confluência de diversos aspectos da minha
própria formação artística durante a graduação, os quais encaminharam meu fazer musical e
investigativo para a percepção da presença do corpo na performance musical.
Este capítulo consiste em descrever, num ato de rememoração, pontos da minha
trajetória artístico-acadêmica que conduziram meu fazer musical para a necessidade urgente
de um corpo vivo, presente e atuante. Desde o primeiro ano da graduação busquei por práticas
que possibilitassem um contato perceptivo e sensível com meu corpo (enquanto soma, vide
glossário introdutório). Isso se tornou possível através do conjunto de vivências que pude ter
no meio em que estudo, por andanças, no contato com diferentes abordagens sobre o corpo, o
movimento e a cena (p. ex. anátomo-neurofisiologia, técnica pianística, aprendizagem e
controle motores, educação somática, jogo teatral, performance, dramaturgial corporal) que
direcionaram minhas reflexões para a questão corpórea na ação performativa de tocar música.
Desse modo, exponho a seguir um panorama da trajetória na qual este trabalho se inscreve.
De início, inquieto com alguns traços do processo de aprendizagem gerado pela
didática aplicada em música, busquei participar de alguns cursos oferecidos no Departamento
de Artes Cênicas da UDESC, idealizados pelo Programa de Extensão Laboratório de
Performance com coordenação da professora Dra. Daiane Dordete Steckert Jacobs
(DAC/CEART), onde pude começar a perceber e refletir sobre a sensibilidade do corpo que
atua na arte da performance. Num primeiro momento, participei do curso Laboratório
Permanente de Performance (2014, CEART-UDESC) que resultou na ação “Abraço Vocal –
uma performance sonora”. Nesta ação de ambiência sonora tivemos um amplo contato com a
potencialidade sonora do corpo, explorando espaços e pedaços de reverberação corporal da
voz, a relação do movimento com as vocalidades e as sonoridades, através de jogos teatrais e
outros exercícios técnico-físicos. O processo de criação de situações e paisagens sonoras
através da voz e instrumentos exigia do grupo uma integração ritual e, por isso, interações
34

entre os corpos vivos no fazer sonoro, no dar forma (performar) através das vibrações
corpovocais.
Depois, ainda pelo Programa de Extensão Laboratório de Performance, participei do
curso A voz em estado de escuta na ambiência da cena ministrado por Juliana Rangel (UFC)
em 2014 (CEART-UDESC), onde pude perceber a presença do corpo vibrátil5 no fazer cênico
por meio de exercícios que buscavam, por exemplo, a vivificação do olhar através da troca
prolongada de olhar com o outro, a disponibilização física do corpo através do mapeamento
manual dos ossos e de jogos para ativação da atenção corporal e da percepção do eixo
corpóreo, viabilizando estados de presença e de escuta ao espaço. Através da observação e
troca perceptivas com o ambiente e com as outras pessoas foi possível experienciar o corpo
próprio em expansão, estimulando também o tátil e o sensório do corpo na aproximação de
texturas, imagens e palavras. A contaminação corpórea – provocada pela percepção ativa, pela
escuta do ambiente, pela vocalidade e por estados de atenção – coloca em jogo a evocação de
memórias. Deste processo, formas se expressam, se materializam através do corpo (estátuas,
cenas, sons, movimentos), contaminam e põem a voz em cena.
Ainda mais recentemente participei do curso de extensão Oficina de Imprevistos
(2017, CEART-UDESC) promovido pelo Laboratório de Ensaios e Imprevistos que é
coordenado pela professora Bianca Scliar, onde aconteceram experiências com o corpo
perceptivo em diferentes estados de interação com o ambiente e na prática dançante de
contato improvisação. Estas vivências que citei com o corpo performativo nas artes cênicas
me ensinaram sobre entrega e dilatação corporais, escuta do ambiente, evocação de memórias
inscritas no corpo e na voz. Observo a importância destes aprendizados no meu caminho de
percepção e reflexão a respeito dos processos artísticos geradores do ato performativo, que
atravessam o corpo, de acordo com o que é considerado por Valeria Bittar em sua tese de
doutorado. Essas são “vivências que em geral não temos nem em nossa formação e nem em
nosso caminho enquanto performadores de música” (BITTAR, 2012, p. 176). Por isso em
Músico e ato, dentre os assuntos, é proposta uma “interface” com o teatro, “dado que as
vivências no teatro podem trazer para o músico performador a chance de uma performance
imbuída de vida” (Idem). Entendo, então, que meu contato com o lidar-com-o-ato-
performativo em cursos oferecidos pelo Departamento de Artes Cênicas, me possibilitou um
olhar corpóreo e vivo (no sentido somático) também para a música, na possibilidade de uma

5
Conceito de Suely Rolnik (PUC-SP) psicanalista, curadora e crítica de arte e cultura, coautora de Micropolítica
(1986) com Felix Guattari. O trabalho desta pesquisadora foi referenciado durante a palestra ministrada por
Juliana Rangel (UFC) em 2014, CEART/UDESC.
35

performance musical que tenha como núcleo músico e ato, conforme pensado por Valeria
(BITTAR, 2012). Neste sentido, a autora direciona sua tese para uma aproximação com
movimentos do teatro pós-dramático na contemporaneidade (Grotowski; Barba) propondo
algumas reflexões que podem ser lidas no trecho abaixo:

Proponho uma reflexão sobre aquilo que percebo na performance do teatro e da


dança atuais que acredito ser possível de se transpor para a performance musical
atual, [...] essa “interface” (palavra em moda) com o teatro, dado que as vivências no
teatro podem trazer para o músico performador a chance de uma performance
imbuída de vida, e um assumir mais categórico dos desvios exigidos pela vivência e
pelas múltiplas experiências do músico performador da atualidade. A experiência de
determinados movimentos ocorridos na performance do teatro pode servir de
impulso para o performador musical re-encontrar seu lugar na performance e
reencontrar a própria necessidade de performance. (BITTAR, 2012, p. 176 e 177,
grifo meu)

Outra vivência que relato aqui emerge de desdobramentos que ocorreram a partir de
minha participação nas aulas de Técnica Klauss Vianna6 ministradas pela professora Dra.
Valeria Bittar onde começo trilhar caminhos de encontro ao ‘eixo global’ do soma. No
segundo semestre de 2014 cursei a disciplina eletiva de Estudos Avançados em Música II
(DMU/CEART) quando tive o primeiro contato com esta prática corporal que trabalha por
meio do sensório do corpo físico, com ações que encaminham o ser humano para uma escuta
de si, do espaço e dos outros, em três estados de atenção e de relação com o mundo. Sem uma
prática contínua em 2015, retomo no ano de 2016 quando o curso de Técnica Klauss Vianna
se torna um projeto do Programa de Extensão Flauta Doce - Performance e Formação
coordenado pela professora Valeria, que ainda no mesmo ano, promoveu a palestra-oficina A
técnica Klauss Vianna e a escuta do corpo em quatro encontros de intenso trabalho físico,
com ação de Jussara Miller (2016, 2017, CEART-UDESC). Em continuidade, no ano de
2017, vivencio esta prática corporal de forma integrada com o desenvolvimento deste trabalho
de conclusão de curso.
Considero estes momentos como desencadeadores de uma movimentação essencial em
minha formação, porque possibilitaram o contato, sobretudo sensível-perceptivo-somático
com os trabalhos das artistas Valeria Bittar e Jussara Miller e, consequentemente, uma
transformação em minha relação com o corpo em movimento e com o fazer musical. Além
das vivências práticas na Técnica Klauss Vianna, os trabalhos acadêmicos das artistas citadas

6
Prática corporal expressiva criada no Brasil pelo bailarino e pesquisador Klauss Vianna (1928-1992)
desenvolvida no trabalho de diversas(os) artistas e pesquisadoras(es) do corpo, é uma técnica de educação
somática que foi agenciada no palco da dança contemporânea e tem principal enfoque nos processos didáticos e
de criação em arte. Será melhor abordada no quinto diálogo das considerações finais deste TCC.
36

também me orientaram rumo à pesquisa nas áreas das artes presenciais, uma através da dança
contemporânea e outra da performance musical, de forma que pude delinear a temática aqui
proposta no decorrer do projeto de pesquisa para elaboração deste trabalho, juntamente com
outros referenciais teóricos.
Meu contato com o que Bittar (2012) articula em sua tese, já citada anteriormente,
provocou um despertar para o que diz respeito: à formação “daquele que faz a música tornar-
se som” (BITTAR, 2012, p. 29) e à conduta das ações convencionalmente presentes no fazer
musical de nossa cultura. A autora lança um olhar crítico para os discursos proferidos pelas
disciplinas da música que se forjam principalmente na mentalidade dos séculos XIX e XX,
fundamentando a tradição Romântica que estabelece modelos de conduta para a interpretação
musical. Qualidades que se ligam à figura do intérprete pretendem solidificar seus fazeres
musicais moldando-o junto à ideia de virtuosidade, ou de neutralidade, ou de genialidade de
acordo com seu contexto. Submetendo suas ações ao texto e à vontade do compositor. A
autora aponta caminhos desviantes ao contexto desta formação – que, segundo o que percebe,
é “alicerçada sobre o pensamento dualista-mecânico” (Ibidem, p. 21) – e propõe um
“acionamento do referencial corpóreo do músico performador”, gerando a ideia de
“performance musical como operação de ordem perceptiva” (BITTAR, 2012). Para isso, traça
um paralelo com estudos do teatro pós-dramático, da dança contemporânea e da educação
somática. O que foi tecido na tese de Valeria Bittar, desde o início deu pistas e iluminou
caminhos para o processo de elaboração deste trabalho de pesquisa.
Acredito que o pensamento de Bittar, juntamente com trabalhos de outros
pesquisadores da área de performance no século XXI, atualiza as discussões acerca da prática
e da pesquisa contemporâneas em performance musical, gerando novos núcleos de ação e
agindo em direção a uma mudança de paradigmas nesta área. O que é proposto em seu
doutoramento, a meu ver, pode provocar reflexões tanto acerca do que se entendido por
“performance” e seus dobramentos, quanto diante dos processos de formação e de criação em
performance musical e suas implicações.
Através do contato com a “sistematização da Técnica Klauss Vianna” em “A escuta do
corpo” (2007) e com as reflexões presentes no livro “Qual é o corpo que dança? dança e
educação somática para adultos e crianças” (2012), ambos de Jussara Miller, pude perceber o
agenciamento que surge na pesquisa em educação somática relacionada à “escola Vianna” no
Brasil, trazendo um direcionamento artístico para a pesquisa atual em dança contemporânea.
Miller aborda fundamentos do processo didático de Klauss Vianna que impulsionam o corpo
para a vida a partir das relações que estabelece consigo mesmo, com o espaço e com o outro
37

(outros corpos). Nesta abordagem, estados de atenção e prontidão são ativados na medida em
que há uma dilatação e uma disponibilização do corpo, com suas possibilidades, movimentos
internos e movimentos externos. A pesquisadora elabora seus pensamentos em torno da
questão do corpo cênico, em busca de uma prática corporal que instaure a presença deste
“corpo que dança na cena contemporânea” (MILLER, 2012, p. 11). Focalizando, para isso, a
pesquisa de técnica da dança e de educação somática por meio da Técnica Klauss Vianna.
Um pouco mais adiante neste capítulo tornarei a pensar, em diálogo com estas
pesquisadoras, sobre o processo que me trouxe a refletir a performance musical compreendida
através de ações perceptivas do corpo-soma.

Neste caminho, também observo meu contato com a iniciação científica (bolsa
PROBIC/UDESC, 8/2016 a 8/2017) no projeto de pesquisa Ação pianística, análise e
coordenação motora - Aplicações Interdisciplinares na organização da prática e desempenho
musical coordenado pela professora Dra. Maria Bernardete Castelan Póvoas. No decorrer da
pesquisa exploratória desenvolvida sobre bases bibliográficas acerca de estudos do corpo
vindos da aprendizagem motora (Richard Maggil, 2000) e da aprendizagem pianística (José
Alberto Kaplan, 1987), acrescentei investigações originadas na educação somática em dança
traçadas por Jussara Miller (2007) e na dramaturgia corporal por Neide Neves (2008). A partir
do contato com essas diferentes abordagens teóricas e teórico-práticas, pude desenvolver no
âmbito da iniciação científica reflexões sobre ações pianísticas aproximadas do saber e da
presença do corpo que faz música, fazendo uma ponte entre a educação somática em dança e
os estudos de aprendizagem motora e aprendizagem pianística. O que gerou a comunicação
do resumo expandido intitulado A presença do corpo artista na prática pianística:
contribuições de estudos da educação somática no 27º SIC UDESC, que integrou a terceira
Semana Integrada do CEART, 2017.
Isso foi possível, na medida em que a articulação teórica aconteceu partindo do estudo
e observação da função neurológica chamada propriocepção7, ponto de estudo comum às
bibliografias consultadas. Os contextos em que o tema da propriocepção é tratado por cada
autor evidentemente são distintos entre si, assim como as abordagens: fisiológica,
neurológica, técnico-didática ao piano, somática, cênica, de criação. Entretanto todos tratarão

7
Entende-se aqui propriocepção como a sensação (informação sensorial) que emana do corpo em movimento e
nos informa (sensorialmente) as características físicas e as relações espaciais deste movimento. Havendo aí,
neste exato momento, uma interação neuromotora em jogo. Sabe-se que os receptores proprioceptivos (assim
como os receptores relativos à visão, por exemplo) estão envolvidos nas interações neurais que fornecem
informações para o sentido cinestésico.
38

do aspecto sensível do corpo humano, numa perspectiva que nos conduz à ideia de unidade
entre corpo-mente. O estudo do sentido cinestésico8 esclarece o modo como estados de
atenção e de prontidão viabilizam as relações do ser com o mundo no momento presente,
através do funcionamento cerebral em interação com o movimento (NEVES, 2008). Na
transdisciplinaridade investigativa suscitada por este mecanismo corporal
(propriocepção/sentido cinestésico), pretendi tomar minha experiência com a prática da
Técnica Klauss Vianna como ‘modo de operação’ para a prática pianística, a partir do
acionamento do referencial corpóreo do músico em relação com o instrumento (BITTAR,
2012) e com o fazer musical, na possibilidade de existir um soma despertado para a ação
instrumental.

O que me propus fazer no Grupo de pesquisa, num primeiro momento, parte do estudo
sobre a Aprendizagem motora (2000), livro de Richard Maggil que, ao reunir discussões
acerca do controle motor, irá apontar para a importância do papel das informações sensoriais
na formulação de “qualquer teoria do controle motor” e esclarece o fato de que: “Receptores
sensoriais localizados em várias partes do corpo fornecem essa informação. Os dois tipos
mais importantes de fonte de informação sensorial que influem no controle do movimento
coordenado são a propriocepção e a visão.” (MAGGIL, 2000, p. 57). O autor também irá
esclarecer que a propriocepção envolve a “identificação senso-receptora” das características
de movimento do corpo e dos membros e que os trajetos neurais aferentes (recepção de
estímulos nervosos pelo sistema nervoso central) são responsáveis por enviar “ao sistema
nervoso central informação proprioceptiva sobre as características do movimento do corpo e
dos membros, tais como orientação, localização espacial, velocidade e ativação muscular”.
(MAGGIL, 2000, p. 57). Segundo o que o autor se põe a estudar, a consciência cinestésica
(Ibidem, p. 289) otimizaria a função do trabalho mental para planejamento motor em
situações que envolvem o controle do movimento. Diferente da visualização e da imaginação,
cinestesia é a sensação (recebida e emanada do sistema nervoso) que realimenta o “centro de
controle do movimento”, de modo a atualizar constantemente as informações sobre o
posicionamento dos membros, por exemplo. (Ibidem, p. 61)
Conforme estudado por Maggil, esta interação durante a prática “mental” resultará em
produção de atividade elétrica na musculatura envolvida no movimento, ativando trajetos

8
Cinestesia s.f. FISL sentido da percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo, provocado por
estímulos do próprio organismo *ETIM cine- + -estesía. (HOUAISS, 2001). Esses “estímulos” são fornecidos
pelos receptores proprioceptivos do corpo. Ver sobre propriocepção e sentido cinestésico na nota de rodapé
anterior.
39

neuromotores que poderão estar presentes no momento da ação (Ibidem, p. 292). Em Neide
Neves (2008, pp. 70 - 75), é visto que esses trajetos – “arranjos neuronais” – se alteram a cada
vez que uma mesma ação é executada. Ou seja, diferentes grupos de neurônios participam de
cada movimento corporal, mesmo que seja um movimento repetido e padronizado. Apesar de
Maggil não definir uma perspectiva de unidade corpo-mente, enxergo que suas discussões
podem remeter à ideia de uma prática mental que é vinculada à corporeidade, funcionando
integradamente por meio da percepção física. É evidente que o contexto de abordagem de
Maggil se origina na área do desporto e estuda o movimento e a prática motora numa
perspectiva que, posteriormente, direcionará a parâmetros de eficiência e rendimento.
Na bibliografia de aprendizagem pianística, Kaplan (1987) esclarece o que chama de
sistema cinestésico, que nos fornece informações da posição e do movimento muscular, seu
estado e grau de contração, através dos “receptores proprioceptores” do corpo. (KAPLAN,
1987, p. 21). Conforme esclarece o autor, “atuamos [...] de acordo com os estímulos que
percebemos” e a percepção implica na “interpretação” das impressões sensoriais vindas das
diferentes vias (extero e proprioceptoras) fazendo com que nosso comportamento seja
adequado, ou não, às finalidades pretendidas. (Ibidem, p. 27). O autor propõe uma abordagem
da técnica de “execução pianística” que tenha como ponto de partida o estudo do movimento,
na compreensão dos “fatores de ordem física e psicológica” envolvidos em sua realização
(Ibidem, p. 19). Assim, salienta que as realizações motoras (caso da aprendizagem
instrumental) são do tipo perceptivo-motor, como na afirmação que segue: “Por essa razão, as
informações procedentes dos órgãos dos sentidos, assim como as ordens emanadas do cérebro
e do sistema nervoso central são, na realidade, a essência do movimento, desempenhando
funções tão importantes, na sua execução, como o aspecto propriamente motor do mesmo”.
(Ibidem, p. 31).
Posteriormente, partindo dessas afirmações, é possível perceber que Kaplan
demonstrará uma tendência a integrar corpo-mente, também quando trata de maturidade
“psicomotora” e desenvolvimento “intelectivo-motriz”. Diante disto, no capítulo 2.2.4 do
TCC, eu pretendi apontar algumas propostas de Kaplan como um possível ‘desvio’ de
conduta na técnica pianística.
Além disso, Kaplan defende o seguinte: que a “aprendizagem instrumental deveria ser,
no seu início, um estudo de sensações e das possibilidades de domínio e controle corporal do
indivíduo”, voltando sua atenção para o processo de aprendizagem motora e pianística e para
o desenvolvimento do sistema próprio-ceptivo, indicando que “as sensações proprioceptivas
são os únicos e verdadeiros indicadores do estado do músculo” (KAPLAN, 1987, p. 38). O
40

autor também considera que para o aluno aprender a sentir a diferença de sensações
musculares deve ser praticada uma série de experiências fora do teclado que permitam ao
aluno se conscientizar dessas sensações. Ao observar a “integração de aspectos psicológicos
ao controle do movimento”, considera o desenvolvimento da propriocepção como parte do
“complexo processo de aprendizagem” das ações pianísticas.
Mesmo com a emergência da sensação física no âmbito da técnica pianística em
Kaplan, o discurso evidencia a permanência de uma abordagem de treinamento do corpo e da
mente do aprendiz de piano (esta discussão será articulada nos capítulos 2.2.3 e 2.2.4). A
despeito desta implicação, ainda vejo nas ideias de Kaplan, a possibilidade de uma autonomia
reflexiva e investigativa, frente à prática pianística, no que se refere à percepção do corpo
próprio em ação e relação. Isto me conduz a uma aproximação do pensamento gerado pelos
estudos da educação somática, em especial ao que ocorre na dança contemporânea.
A dançarina, coreógrafa, pesquisadora e educadora Jussara Miller, esclarece que no
processo pedagógico da Técnica Klauss Vianna estimula-se o aluno a “(re)conhecer o próprio
corpo, para que ele possa promover a transformação gradual de ausência corporal para
presença corporal”. O corpo sai de um estado de “dormência” e é disponibilizado para “lidar
com o instante presente”. Essa transformação poderá acontecer através de um “despertar dos
cinco sentidos por meio dos quais nos relacionamos com o mundo e desenvolvemos o sentido
cinestésico, que compreende a percepção do corpo no espaço e no tempo”. (MILLER, 2007,
p. 54) A autora, de acordo com Tavares, entenderá cinestesia “como o desenvolvimento da
propriocepção”, que será também definida por Tavares como sendo “a percepção espacial do
corpo em situações dinâmicas e estáticas”. (TAVARES apud MILLER, 2007, p. 68).
Conforme pude estudar, entendo que os princípios da Técnica Klauss Vianna,
sistematizada por Miller e Neves, podem viabilizar a apropriação, também por parte do
músico, do funcionamento de seu próprio corpo (através do desenvolvimento da
propriocepção) e possibilitar uma transformação na relação com a presença do corpo em
discussões sobre a prática pianística. Diante do “acionamento do referencial corpóreo” do
músico em percepção (BITTAR, 2012), é possível considerar que a lida com o instante
presente e a lida com o espaço e o tempo são bases sobre as quais a performance musical
possa vir a ser constituída.
Ainda neste sentido, Neide Neves em seus estudos para uma dramaturgia corporal
(2008), irá observar como as orientações de Klauss Vianna estimulavam nos alunos a
possibilidade de se “manter uma atitude de observadores de si mesmos” (NEVES, 2008, p.
83), de modo que pudessem tomar conhecimento dos “processos internos” de seus corpos
41

para estender o “estado de atenção” ao que acontecia em seu entorno. Segundo o que se dá a
entender em Neves, no processo didático da técnica, esta atitude conduz o praticante a uma
escuta comparativa entre os estados corporais, ou de determinada parte do corpo, em
diferentes momentos, antes e depois do exercício proposto. Por meio do que se tornaria
possível registrar “[...] conscientemente as sensações e alterações observadas, desenvolvendo
a capacidade de percepção, propriocepção e a memória, juntamente com as habilidades
motoras”. (NEVES, 2008, p. 84, grifo meu). Ao consultar em seus estudos o neurocientista
Gerald Edelman, a autora esclarece o que acontece em nível fisiológico a partir das interações
entre sensório e motor durante a atualização do movimento, em lida com a temporalidade,
conforme o que pode ser lido a seguir:

As conexões que se estabelecem entre estímulos externos e internos, nos sistemas


sensorial e motor, vão estabilizando informações. ao mesmo tempo que mantêm
abertos para novos estímulos. Estamos apenas sublinhando o que já é próprio ao
funcionamento corporal e nos apropriando conscientemente dos resultados dos
exercícios. (NEVES, 2008, p. 84)

Quando Maggil (2000) fala sobre propriocepção, percebe como este mecanismo
fisiológico é acionado através da “prática mental”, de modo a otimizar o planejamento e
execução das habilidades motoras a serem desempenhadas, neste caso, tendo como base a
prática esportiva. A despeito de cisões entre “mental” e “motor” (corporal), a partir do
trabalho de Gerald Edelman, a bailarina Neide Neves (2008, p. 60, grifo meu) irá considerar o
seguinte: “A base fundamental para todo o comportamento e para a emergência da mente é a
morfologia do animal e das espécies e como ela funciona”, desta maneira, revela a
importância do corpo e suas relações dinâmicas em movimento (seu funcionamento) para a
constituição anatômica do cérebro no processo de “evolução”. Ali, o que é denominado
“mental” está diretamente implicado com a concretude física por meio de processos
dinâmicos e não se sustenta quando apartado de conhecimento e saber do corpo vivo.
Em Miller (2007) e Neves (2008), percebe-se o deslocamento de uma abordagem que
submete a ação do corpo à ação da consciência racionalizada partindo de um trabalho mental
não vinculado à materialidade física do corpo. Desta maneira, o que se propõe é uma prática
corporal que, de forma integrada, ativa a percepção física e disponibiliza o corpo para o
movimento e para lidar com o instante presente, em ação. O caminho transdisciplinar que me
propus trilhar na pesquisa realizada na iniciação científica pretendeu provocar um
deslocamento no âmbito da prática-técnica-didática pianística semelhante ao relatado
42

anteriormente, se distanciar das dicotomias e tentar ir ao encontro de uma possível


“abordagem somática” para o fazer pianístico.
Através das reflexões geradas no período de iniciação científica considero ter sido
possível compreender (1) de que forma o mecanismo neurofisiológico da propriocepção
envolve-se diretamente com a aprendizagem motora e, consequentemente, com as ações
músico-instrumentais; (2) como o desenvolvimento desse mecanismo pode potencializar a
prática pianística na medida em que possibilita a apropriação pelo instrumentista do
funcionamento integrado de seu próprio corpo; e (3) qual o tipo de prática, dentre muitas,
poria o corpo do músico em estado de presença, de prontidão e de disponibilidade diante das
suas atividades, quer dizer, poria em jogo – nos processos de aprendizagem motora,
interpretação e performance musical – a atenção, a percepção, e a sensação física de quem
toca piano.
Como visto, a prática corporal na qual propus me aprofundar buscando justapor à
prática pianística a fim de agregar a esta seus fundamentos, foi a Técnica Klauss Vianna. Os
princípios desta técnica de educação somática criados por Klauss Vianna, e sistematizados por
Miller (2007) e Neves (2008) podem vir a direcionar o músico instrumentista a uma conduta
autônoma, frente à prática pianística, no que diz respeito ao corpo próprio que é atravessado
nos processos artísticos de criação em performance musical, como também, originalmente,
em dança. A partir dessa experiência foi possível, para mim, compreender como a abordagem
somática pode aliar-se a discussões da prática pianística na medida em que trabalha “tópicos
corporais” que ativam diretamente o sentido cinestésico. Este, tão defendido por Kaplan no
processo de aquisição de habilidades motoras e, consequentemente, da aprendizagem
instrumental. Neste sentido e mais adiante, tratarei sobre o corpo-a-corpo (BITTAR, 2012) do
músico com o instrumento musical, que pode ser viabilizado pela Técnica Klauss Vianna de
educação somática.

Ainda considero aqui, vivências que tive em outros momentos do curso como em
masterclasses ministradas por diferentes professores-pianistas convidados do Departamento
de Música; na disciplina Atividade Artística do curso de bacharelado; nas disciplinas de Bases
Anatomofisiológicas e Neurofisiológicas do Movimento; e na orientação pianística do
professor Dr. Mauricio Zamith, onde entram frequentemente em pauta aspectos da
corporeidade, da expressividade e da comunicabilidade na performance musical.
Nas aulas de piano, a sensibilidade cuidadosa do artista-professor Maurício Zamith
muitas vezes direciona o processo didático para a necessidade de uma flexibilidade no
43

movimento (ações pianísticas), de uma soltura corporal e de um envolvimento artístico diante


do fazer musical. Fatores que se manifestam com o tempo, ganham forma e aderem ao corpo
aos poucos por meio da experiência proporcionada pela relação “mestre-aprendiz”,
estabelecida a cada vez, nas aulas de piano, em outras matérias cursadas e em vivências
extracurriculares. Os desafios técnicos encaminham o processo didático para uma “busca de
desautomatização” (como pode ser lido em Bittar, 2012) das repetições e para a investigação
técnica que emerge das informações textuais, não se submetendo despropositadamente ao
código musical. Percebo que, durante o processo de aprendizagem da técnica-performance
musical, se faz necessária uma compreensão que não basta ser meramente racionalizada e
verbalizada, é preciso que seja vivenciada e sentida. O diálogo entre experiências faz emergir
conhecimentos continuamente no corpo em ação, o que conduz o aprendiz a uma investigação
pessoal também contínua de suas ações em arte.
Mas conduzir meu fazer musical por uma corporeidade expressiva e presente na
interpretação e na performance de forma autônoma, é um constante e definitivo desafio.
Buscar “sentir” a entrega e o envolvimento com a ação instrumental, um possível corpo-a-
corpo (BITTAR, 2012) com o instrumento, é uma inquietação que me acompanha em cada
passo da aprendizagem em música. O corpo-a-corpo travado entre o músico e o instrumento
musical, de acordo com o que elabora Valeria Bittar, é viabilizado pelo despertar do corpo e
pela ampliação da atenção que poderiam ser instigados através da prática somática da Técnica
Klauss Vianna de escuta do corpo. A autora irá revelar que este corpo-a-corpo pode ir de
encontro também à proposição do encenador e pedagogo do teatro Jerzy Grotowsky acerca do
embasamento técnico em arte, neste caso, do teatro, o qual deveria resultar de uma
“investigação própria” que partiria da relação do artista consigo mesmo e com o instrumento
musical (no caso de atores e cantores pode ser a voz). Bittar (2012, p. 181) expõe, de acordo
com as ideias elaboradas, que “[...] técnica não se adquire, técnica é um contínuo processo
investigatório que desemboca na performance”. (Vide capítulo 3.2 em Bittar, 2012, pp. 180-
185)
Deste fazer artístico que exige do performador uma atitude investigativa, a todo tempo
presente, a todo tempo entranhada de coisas e vivências, emergem as perguntas: por quais
vias podemos gerar respostas e descobertas? Onde encontrar apoio? A trajetória que exponho
aqui, nas diversas relações que estabelece com diferentes pessoas, suas criações e pesquisas
em arte, me direciona a encontrar este apoio no próprio chão. E a partir da relação que meu
corpo (sob gravidade, em oposições, na abertura de espaços) estabelece com o chão e interage
com o mundo, através da percepção e escuta, gerando um saber sensível.
44

Neste sentido, pretendo me aproximar do pensamento de Klauss Vianna – dançarino,


coreógrafo, pesquisador do movimento – contido em seu livro “A dança” (2008), quando
observa que o “[...] primeiro apoio, o apoio básico que todos temos, é o solo” (VIANNA,
2008, p. 72). O autor irá revelar que “mesmo em uma sala de aula de dança a relação com
esse apoio é mínima. Às vezes as pessoas estão deitadas no chão e parecem levitar: é muito
difícil o contato, a entrega, a confiança”. (Idem) Percebendo esta relação, Klauss vai
compreender a geração do movimento, a partir dos conflitos gerados pelo espaço existente
entre forças opostas. Segundo o que é pensado pelo dançarino, este fenômeno se inicia no
corpo no momento em que é percebida a importância do solo numa aproximação de entrega,
de descoberta da gravidade e do chão, onde se abre espaço para a profundidade do
movimento. Dessa forma: “surge a oposição, a resistência que vai abrindo espaço entre os
ossos, seguindo sua direção nas articulações. À medida que vou sentindo o solo, empurrando
o chão, abro espaço para minhas projeções internas, individuais”. A partir disso é possível
observar que estas “projeções internas”, por sua vez, podem levar a uma projeção em direção
ao exterior na medida em que são “expandidas” pelas vivências do soma. (VIANNA, 2008, p.
93)
Klauss Vianna constata que, em geral, mantemos o corpo adormecido. “Somos criados
dentro de certos padrões e ficamos acomodados naquilo. Por isso digo que é preciso
desestruturar o corpo; sem essa desestruturação não surge nada de novo” (VIANNA, 2008, p.
77). Para ele, o caminho de desestruturação física é o “[...] que dá espaço para que o corpo
acorde e surja o novo”. Assim, Klauss Vianna conecta a ideia de “abertura de espaços” à de
respiração, este fluxo desbloqueado promove sensibilidade e expressão na relação com o
entorno que parte da relação consigo, de acordo com o seguinte pensamento: “Quando
trabalhamos o corpo é que percebemos melhor esses pequenos espaços internos, que passam a
se manifestar por meio da dilatação. Só então esses espaços respiram” (VIANNA, 2008, p.
70). Consequentemente, a posição do corpo dançante diante do mundo é transformada a cada
vez que se tem a percepção e a consciência, no sentido de awareness (vide glossário
introdutório), da relação das coisas externas com a própria musculatura e a própria respiração
(movimentos internos). Assim, segundo o que Klauss percebe, se torna possível conduzir
“cada movimento para minha memória muscular mais profunda” (VIANNA, 2008, p. 103). O
artista ainda observa como esta ativação corpórea reverbera na atividade intelectual humana,
conforme posto abaixo:
45

À medida que tecnicamente vou mudando meus espaços, meu eixo, minha
flexibilidade e equilíbrio, trabalho também minha visão de mundo, minha ótica das
coisas e das pessoas. Aprender a questionar objetivamente e a observar a si mesmo
são as melhores formas de aprendizado. (VIANNA, 2008, p. 97)

Diferente desta posição, observo que o discurso didático da técnica pianística irá valer-
se abstratamente de conceitos corpóreos e de conceitos relacionados ao corpo físico e a
estados mentais/anímicos, na tentativa de encontrar uma abordagem de consciência do corpo
dirigida à técnica, onde a “consciência” é estritamente de ordem racional, sem propor uma
experimentação propriamente física-corporal destes conceitos. Penso que este procedimento
ou esta conduta podem sugerir respostas motoras e gestos por aquilo que remetem ao informar
imageticamente acerca da prática, porém não se referem concretamente ao conhecimento do
corpo próprio e sua potência enquanto vetor de forças em movimento, em fluxo contínuo.
Deste modo, a questão corpórea é abordada em abstração, expressando menos uma ação
aprofundada na memória do corpo ativado/desperto para a escuta de si mesmo, do que um
caminho resultante a partir de uma dada informação a respeito do corpo. A utilização da
abstração como ferramenta didática opera de forma semelhante ao que acontece na lida com o
texto musical, que irá separar o corpo do fazedor (performador) do texto musical – como será
abordado ao longo do capítulo 2 deste TCC e, mais propriamente, nos capítulos 2.2.3 e 2.2.4 –
reivindicando uma materialidade imaginada para o texto em si.
Listo alguns conceitos recorrentes no processo didático da técnica pianística de acordo
com sua ordem ou modalidade. Antes, aponto que estas informações, que se tornaram
conceitos técnicos, não denominam o que necessariamente é proferido pela didática pianística,
mas descrevem, outrossim, aquilo que se dá a entender num primeiro momento de difusão do
conhecimento técnico no corpo do aluno9. Momento em que este corpo muitas vezes se
encontra adormecido, numa situação de não atenção, em outras palavras, de apreensão e
ansiedade, e de não disponibilidade para a percepção. Pode-se dizer que, neste momento, há
um bloqueio do fluxo de emergência da ação encarnada10 e, por isso, um distanciamento da
investigação sensória acerca da própria ação física. No meu entender os seguintes termos
pretendem, sobretudo, informar o fazer musical do aprendiz, como se este fazer musical fosse
um repositório de tais informações.

9
Esta pequena lista inclui anotações pessoais em agendas e cadernos utilizados por mim ao longo do curso de
bacharelado em piano.
10
Maurice Merleau-Ponty (1908 - 1961), filósofo francês, autor de Fenomenologia da Percepção (1945).
46

 Conceitos de ordem física: peso, soltura, aderência, gesto, passagem de polegar,


‘dedos firmes’, ‘braços soltos’, peso sustentado nos dedos, curvatura/arco da mão,
‘tirar tensões’.
 Conceitos relacionados ao corpo físico e a estados mentais/anímicos: flexibilidade,
relaxamento, tensão, motivação, envolvimento, consciência, emoção.
Observo que as formas, imagens, gestos ou modelos de movimento a que estes termos
remetem, operam por meio de uma abstração no que diz respeito à questão corpórea, ou seja,
caminham em oposição à experimentação física do aprendiz em contato com sua ossatura,
suas articulações, seus apoios, sua musculatura. Tais imagens que se tornaram conceitos
técnicos, apesar de remeterem ao corpo e a situações corpóreas, não incitam no aprendiz a
apropriação e a experimentação e a investigação física do corpo em si mesmo. Percebo isto
rememorando meu processo de aprendizagem pianística e, principalmente, a experiência que
tive como professor nas disciplinas de Prática artístico-pedagógica I e II, ensinando piano
para duas alunas do Núcleo de Excelência em Piano (NEP), projeto de extensão coordenado
pelo professor Dr. Luís Claúdio Barros. Neste âmbito, a percepção do modo em que opera a
didática fez com que eu buscasse uma transformação na minha relação com a aprendizagem
das alunas, na tentativa de aproximar o processo didático do corpo vivo e da experimentação
sonora a partir de jogos musicais e da atenção dada aos ossos e às articulações que estão
envolvidos nas ações musico-instrumentais (PÓVOAS, 1999). Entretanto é comum acontecer
uma replicação do modelo de conduta vigente no ensino-aprendizagem.
No meu processo de aprendizagem pianística surgem também indagações derivadas de
uma ausência de investigação corpórea que, conforme percebo cada dia mais, deveria
anteceder todo e qualquer conceito corpóreo como: de onde deve partir o peso que utilizo na
produção sonora através dos meus braços? Qual recurso sensório é possível ativar para ter
maior aderência ao teclado? O que seria aderência ao teclado? A quais ações físicas devo
recorrer para desentranhar de minha corporeidade os sons que dou forma? A que altura devo
regular o banco do piano para garantir a transferência de peso e apoio desde meus pés, tronco,
até a ponta dos dedos? Que parte do corpo senta no banco do piano e como se senta? Qual o
posicionamento dos pés no chão? Este trajeto dos pés até as mãos está ligado a um eixo
físico? Em se tratando de eixo do corpo, este trajeto não se restringe somente ao caminho pés-
mãos, mas também pés-bacia-cintura escapular-crânio? Como a percepção corporal pode
intervir nas minhas ações durante a prática pianística em performance? Poucas vezes
encontrei respostas práticas para essas questões na (ou nas disciplinas da) música, o que
movimenta ainda mais minhas inquietações.
47

Quando busco resposta, por exemplo, à questão do peso de braço, ao invés de


direcionar a uma atitude mecânica de “relaxamento” ou “abandono”, a abordagem somática
de Klauss Vianna leva a perceber a existência física do corpo, do braço. Desde o mapeamento
dos ossos da mão até a percepção do vetor da escápula, sou conduzido a perceber e
compreender sensorialmente como os espaços articulares interagem na movimentação. A
partir do apoio corpóreo sob gravidade é possível gerar oposições ósseas de forma ativa, na
medida em que me dou conta do peso sobre o chão e mobilizo a ossatura através de
movimentação, num processo dinâmico de “empurrar” para um alcance, em mudança de
nível, e de um “flexibilizar” para retomar o peso em apoio ativo. Há um intenso trabalho de
percepção e de atenção que se torna possível somente através da presença do corpo no espaço
em contato e interação com o solo. Desta forma, quando se trabalha em Klauss Vianna
determinada articulação, amplia-se sua mobilidade e respiração, isto, segundo o dançarino:
“[...] repercute sobre todo o corpo, uma vez que essa articulação é parte de um todo. Ao
trabalhar isoladamente uma articulação, ao dissociar as partes do corpo, pouco a pouco
recupero a percepção da totalidade”. (VIANNA, 2008, p. 99)
Aqui evoco a cena dos dedos das mãos entrelaçados com os dedos dos pés, que é
como11 iniciamos cada aula de Técnica Klauss Vianna. A investigação do corpo próprio, que
neste caso começa pelos pés, é um ponto sutil (ao mesmo tempo enorme do ponto de vista de
ativação perceptiva) no processo de investigação do corpo de onde emergem ações
transformadoras. Mas... Por que os pés?
Klauss Vianna (2008, p. 94) diz que é preciso “reconhecer o local do corpo onde surge
a oposição à força de vem do solo”, geralmente ela se manifesta no corpo em pontos de tensão
onde colocamos nosso equilíbrio (localizadas nos ombros, língua, mão, boca, coluna cervical,
diafragma). O autor acredita no reposicionamento, dessa força de oposição ao solo, para os
pés; presumindo que estes, quando bem utilizados, facilitam a distribuição da energia que se
acumula como tensão em diferentes pontos do corpo. O autor observa que quando “[...]
trabalhamos os pés, usando exercícios de sensibilização e toque, começamos realmente a
saber que temos pés. Eles ganham vida e amplitude por meio da percepção dos movimentos”
(VIANNA, 2008, pp. 98 e 99). Em relação ao que pode ser gerado através da prática proposta
pela Técnica Klauss Vianna no trabalho do músico Valeria Bittar irá refletir, juntamente com

11
Explorando espaços articulares através da rotação, desde o calcanhar, movimentos que reverberam nas
articulações do joelho, coxofemoral, até o apoio dos ísquios no chão. Mapeando o espaço entre metatarsos e
percebendo as oposições ósseas que formam o triângulo do pé. Depois promovendo as torções que partem ao
encontro da “espiral crescente”, “ao ritmo do universo” (p. 98) como pensa Klauss Vianna no segundo capítulo
de seu livro “A dança” (2008).
48

o que é pensado por Eugênio Barba no teatro12, sobre um possível estado corpóreo para o
músico que opera fora do cotidiano, conforme o que articula no seguinte trecho de sua tese:

A busca pessoal de desautomatizações, a busca de investigação do próprio corpo, a


relação direta entre o sujeito e o seu corpo, tudo a caminho de técnicas que operam
fora do cotidiano do atuante, revelam um corpo num eixo, apoiado sobre seus pés no
solo, apontando seu crânio para o alto, revelando o corpo como um campo de
tensões de forças de oposições, oposições em todos os sentidos – baixo, alto, lados,
frente, trás. Nessa geração de opostos, o movimento por eles gerado traz a intensa
presença tridimensional das tensões, revelando um corpo em dilatação. (BITTAR,
2012, p.186).

Por isso, entendo que a percepção de aspectos sensórios nos momentos da minha
formação e fazer musical que aqui foram narrados, apenas é possível pela atitude de escuta
que a educação somática me viabiliza diante da trajetória percorrida. No sentido físico a
prática da técnica Klauss Vianna direciona a uma sensibilização cinestésica dos apoios
corporais em interação com a gravidade, ao encontro do eixo global. Daí surgem
possibilidades de vivenciar a performance musical de forma integrada com o corpo próprio
em relação. O que considero, justamente, como um desafio e acredito que por isso se tornou
para mim uma busca, uma investigação. Essa questão é assunto a ser tratado propriamente nas
considerações finais deste trabalho.
Quero dizer que, se a formação do músico encontra-se fundamentada numa certa
mentalidade a respeito da relação corpo-prática – gerada num modelo de criação e pesquisa
em performance musical herdeiro das práticas românticas ou escamoteado pelo interesse de
disciplinas da musicologia, da medicina, das engenharias – é no exercício de ativação do
saber do corpo em arte (que, segundo o que me pus a estudar a partir de Bittar, Miller e
Neves, poderia ser viabilizado pela Técnica Klauss Vianna de educação somática) que o
músico tomará percepção do funcionamento gerador do ato em música.
Encontrar caminhos para acionar a questão corpórea no fazer musical
perceptivamente, a meu ver, gera uma necessidade de deslocamento ao músico: sair do
discurso do treinamento e experimentar outros discursos. O diálogo com os fazeres
performativos vindos da dança, do teatro, da educação somática, enxergo como uma possível
experiência transdisciplinar que dá abertura ao saber do corpo em movimento, em cena.
Adentrar esses outros terrenos, é pisar no solo de um fazer cênico, performativo, musical (por
que não?) que traz um ‘a priori’ corpóreo.

12
Para melhor entendimento das propostas de Eugênio Barba, ver terceiro diálogo na página 106 das
considerações finais deste TCC.
49

Todas essas inquietações me indicaram um desvio do discurso da didática musical que


fala sobre o corpo sem passar pela experimentação corpórea, aprofundadamente. Abordarei
com maiores detalhes algumas vias de atuação e este possível desvio para o qual se pode
direcionar o performador, nas considerações finais deste TCC, e especificamente em
referência à técnica pianística no capítulo 2.2.4.

1.1 PERFORMADOR-PESQUISADOR: QUAL É O CORPO QUE ATUA EM MÚSICA?

Abro aqui um parêntese em forma de subcapítulo para observar dois trabalhos acerca
da pesquisa em performance musical na atualidade, no intuito de perceber possíveis papeis do
performador na pesquisa contemporânea e discutir o rumo que pretendo tomar na elaboração
deste TCC.
Fausto Borém e Sonia Ray em artigo publicado no SIMPOM (Simpósio Brasileiro de
Pós-Graduandos em Música), realizado na UFRJ em 2012, trazem um panorama da pesquisa
em performance musical no Brasil entre os anos de 2000 e 2012, a partir de levantamento da
produção acadêmica nesta área, no intuito de averiguar seus problemas, tendências e
perspectivas. De forma geral os autores observam “[...] um grande desenvolvimento da
pesquisa em Performance Musical no Brasil no século XXI, não apenas no sentido
quantitativo, mas também no papel que os performers têm desempenhado nesse meio.”
(BORÉM e RAY, 2012, p. 159). Esta mudança em relação ao papel empreendido pelos
músicos diz respeito à sua participação não mais apenas como sujeitos dos objetos das
pesquisas conduzidas por pesquisadores de outras áreas, mas como autores desses trabalhos.
No artigo é perceptível que a produção na área de performance parte, em sua maioria,
de objetos de intersecção com outras subáreas da música, como análise musical e
musicologia, e com outros campos de estudo, como as ciências da saúde. Entretanto, os
autores ressaltarão que essas intersecções trazem certa inconsistência no que diz respeito à
atividade do performador em si mesma, beirando muitas vezes a superficialidade no tocante
aos assuntos de interesse. Enxerga-se, portanto, que as sub-áreas da performance utilizam a
performance para escamotear o interesse em jogo, ou seja, a análise, a musicologia, a
musicologia histórica, e mesmo os estudos do gesto e do movimento na atuação musical.
Segundo Borém e Ray (2012), a “dicotomia brasileira entre uma maioria de alunos da
performance na pós-graduação e uma carência na realização de estudos sobre os processos
criativos e de aprendizagem da performance” (BORÉM e RAY, 2012, p. 144) reflete a
herança da formação nesta área onde as temáticas escolhidas para os trabalhos de pesquisa
50

refletiam a “orientação de não-performers”, ou seja, esta herança é marcada pela produção


acadêmica que não traduz essencialmente o exercício performativo em música. Desta forma,
nota-se a necessidade de produzir conhecimentos que se disponibilizem a olhar para o ato
musical da performance de modo próprio – no que diz respeito às inter-relações possíveis com
áreas de estudo que abordem especificamente questões performativas, sob a perspectiva de
quem performa. Este trabalho irá, então, manter o caráter interdisciplinar atávico da
performance que se intersecciona constantemente com outras áreas das artes presenciais
(teatro, dança).
Catarina Domenici (2012) observa o que denomina de “ideologia modernista da
performance musical” que é regulada por uma relação de poder estabelecida entre compositor
e performador, e pela marcada subordinação deste último ao texto musical. De acordo com a
autora, esses são fatores que impossibilitam uma prática musical integralizadora, que
considere aspectos acústicos, subjetivos e de oralidade que participam do fazer artístico-
musical do performador. Assim, a pianista entende que “a pesquisa em performance musical
que contemple a natureza inclusiva e integradora da prática tem o potencial para transformar a
maneira como pensamos a música ocidental de concerto, a performance e o papel do
performer”. (DOMENICI, 2012, p. 169)
Sua abordagem de pesquisa pretende operar em um lugar diferente daquelas que se
mantêm de acordo com a tradição romântica e ficam subordinadas à autoridade do texto e do
contexto da obra musical, ou seja, de pontos que constituem uma parte segmentada do
trabalho do performador enquanto intérprete de obras, e não da sua atividade artística
propriamente. Por isso, define que “a área da performance ainda carece de paradigmas
próprios de investigação que contemplem toda a sua complexidade e, sobretudo, que sejam
focados no performer e na sua prática”. (DOMENICI, 2012, p. 177) Desta forma, destaca o
quanto se faz necessário o músico da performance refletir sobre seus fazeres:

Considerando que a ética modernista da performance foi construída ao longo dos


dois últimos séculos principalmente por filósofos e musicólogos sem a devida
participação de performers, e que a força reguladora desse paradigma ainda se faz
presente não apenas no discurso, mas na prática artística e docente, o engajamento
do artista com a pesquisa sobre a sua prática adquire um caráter urgente.
(DOMENICI, 2012, p. 177, grifo meu)

Quando observei, já no anteprojeto para elaboração deste trabalho, a perspectiva


dos(as) autores(as) acima citados, direcionada para as “tendências” e “urgências” que estão
em jogo nos fazeres dos pesquisadores contemporâneos da área de performance musical, pude
51

compreender que é na percepção do funcionamento ordenador desta prática e pesquisa que se


encontrará as vias e os desvios que conduzem o pesquisador para uma abordagem menos
próxima ou mais próxima do corpo vivo presente em suas ações. A meu ver, através de uma
disponibilização e escuta de si mesmo, o músico poderia estar aberto a discutir questões
inerentes à própria atuação em arte.
O ‘dar-me conta’ particular é relatado aqui com o objetivo também de traçar caminhos
para a formação musical que dá início a uma autonomia artística diante das próprias práticas e
principalmente uma emancipação da mentalidade convencionalmente forjadora da
aprendizagem, da prática e da pesquisa em performance musical. No caminho até aqui
percorrido nesta direção, junto ao corpo, cito abaixo o que é pensado por Valeria Bittar acerca
das relações entre atuação musical e presença do corpo para maiores reflexões:

Ao buscar-se a matriz geradora do ato e ao encontrar-se o fluxo corpóreo dessa


matriz, o músico já passará a introduzir em seu trabalho uma alteração do foco da
mentalidade onde esteve circunscrito inicialmente. O trabalho de percepção primeira
do “corpo cotidiano” e da percepção dos níveis de automatismos desse corpo
cotidiano passam, posteriormente, para uma experimentação de desconstrução desse
corpo e de construção de um corpo “disponível”, “acordado” e “atento” para a ação
musical; quando saímos do cotidiano e dos automatismos desse cotidiano, geramos
novamente a necessidade e a intenção de performance, necessidade pulsante
camuflada nas ilusões da racionalidade, da informação, da desmitificação da vida.
Dessa razão que separou corpo de mente. Da mesma forma que o ator e o dançarino,
o músico pode vir a restabelecer, no momento da atuação musical, um momento e
um processo contínuo de desautomatização do cotidiano, processo que acontece com
o músico e no músico em comunhão com o espectador. (BITTAR, 2012, p. 184)

Partindo dessas observações e vivências, sobretudo de acordo com o que elaborou


Bittar (2012) passo a perceber o corpo do músico presente na performance musical,
pressupondo a experiência musical como ato performativo em si num dado instante presente.
De onde surgem inquietações a respeito da formação do artista musical que tende a enfocar o
desenvolvimento técnico-mecânico, anátomo-fisiológico e teórico-analítico do fazer musical,
em detrimento de ações estético-artísticas, corporais, perceptivas, autoinvestigativas e de
criação no que diz respeito à experiência de performance e à experiência em performance.
Identifico que esse processo de vivificação do corpo operando de forma perceptiva na
experiência musical, em performance, ainda é para mim algo a encontrar, a descobrir, e
acredito que assim como as vivências aqui narradas, a redação do presente trabalho é parte
deste caminho sendo trilhado. Lidar com a teia de relações que se tensionam ao longo do
caminho de formação musical e encontrar aí um despertar para a ação que possa ser ou
significar mais do que uma “habilidade”, uma “competência”, um “desempenho“ ou o
52

“resultado” de um bom “treinamento” é o que possibilita, a meu ver, o envolvimento do fazer


musical performativo que se compromete com as necessidades e paradigmas emergentes em
nosso tempo – no que diz respeito à expressão em arte. Contudo, avisado estou de que
“naturalmente, a ruptura dos automatismos, não é expressão. Porém sem a ruptura dos
automatismos, não há expressão” (BARBA, 2009 apud BITTAR, 2012, p. 186, grifo meu).
Assim, (re)tomando o que é provocado pela intenção de uma performance musical
“expressiva”, observo o que é considerado pelo pesquisador Alexandre Zamith Almeida em
seu artigo Por uma visão de música como performance, publicado na revista Opus em 2011.
O que se constata é, mais uma vez, o aspecto sensório e a comunicação viabilizada (a partir da
presença e da percepção) entre corpo do compositor, corpo do performador e corpo do
ouvinte. Cito:
Essa busca por uma valorização da performance por meio do reconhecimento das
atividades do compositor, do intérprete e do ouvinte passa pela consideração de
todos como agentes expressivos. Entretanto, a expressividade interpretativa tem sido
equivocadamente relacionada a noções vagas de sentimentos e emoções, quando na
verdade é muito mais correlata ao universo sensório. Torna-se, portanto, relevante a
fundamental distinção entre sensação e sentimento, proposta por quem tanto
defendeu a noção de música absoluta: “Sensação é a percepção de uma determinada
qualidade sensível: de um som, de uma cor. Sentimento é tornar-se consciente de
uma incitação ou impedimento do nosso estado anímico, portanto, de um bem-estar
ou desprazer” (HANSLICK, [s.d.]: 15). A expressividade na interpretação musical
está vinculada fundamentalmente a sensações, ao universo sensível, a qualidades
sonoras, a nuances de timbres, modos de ataque, intensidades e tempo. Não implica
obrigatoriamente em remissões extrínsecas (ainda que não impeça que estas possam
permear o complexo processo receptivo). É uma expressividade vinculada à
transmissão de aspectos imensuráveis, impossíveis de serem transmitidos pela
notação, mas concretos e internos à música enquanto manifestação sonora, porque
dizem respeito à produção viva do som e às imprevisíveis ações e reações humanas
envolvidas. Por meio do reconhecimento dessa expressividade, reafirma-se o valor
dos aspectos concretos e da matéria sonora na manifestação musical (ALMEIDA,
2011, p. 9).

Ou seja, a forma dada em performance é percebida através de interações estabelecidas


entre as materialidades presentes no espaço performativo, num estado de sensibilização ao
som resultante das ações que geram o fenômeno musical. Este processo se efetiva partindo de
uma concretude física e não de uma abstração reduzida ao texto, exclusivamente “mental” e
analítica, por exemplo.

Diante das inquietações postas, a discussão que me impulsiona à exploração do ato


performativo nesta pesquisa pode ser incitada pela questão ‘Qual é o corpo que toca?’, ou
seja, qual o corpo que atua, que performa música? Uma paráfrase sobre o título do livro da
artista-pesquisadora Jussara Miller (2012) Qual é o corpo que dança? que possui estudos
relacionados à dança e educação somática para adultos e crianças. Posta essa questão, este
53

TCC pretende trazer reflexões e ampliar discussões que surgem nas fronteiras entre
performance, dança, teatro e música. As inquietações relatadas percorrem comigo o caminho
de formação musical, mas é precisamente sobre meus pés, quando desenrolo a coluna
vertebral, vértebra por vértebra, que vou ao encontro do eixo global e me ponho a perguntar
qual é o corpo que toca?
Indagações podem surgir quando qualquer um dos fios que ligam o fazedor de música
a um modelo técnico submisso, habilidoso e treinado de interpretação musical se afrouxam,
quero dizer, nos momentos em que a mentalidade forjadora da prática musical se desestabiliza
e dá abertura para ações transformadoras (MILLER, 2012). Neste caso, é fundamental se
posicionar diante do fazer musical com uma atenção que pode ser viabilizada através do corpo
próprio e seu funcionamento conforme tenho observado em alguns estudos aqui relatados.
Essa pergunta – que Miller lança em torno da pesquisa, da prática e da didática da dança
contemporânea – promove discussões a respeito do corpo cênico, artista, que é instaurado nas
artes presenciais. O ponto em questão neste capítulo seria: porque não na música? Este fluxo
sensório do corpo, instaurado na pesquisa em dança e teatro contemporâneos, nem sempre
está presente na pesquisa em performance musical. Por isso, neste trabalho me proponho
observar onde e como ele se faz presente, ou de que forma ele poderia se fazer presente em
música.
Finalizando esta primeira parte do trabalho de conclusão de curso, dou relevância ao
fato de que nesta trajetória (da qual recorto e conto pontualmente algumas partes) perpassam
também as disciplinas de Métodos e Técnicas de Pesquisa, Pesquisa em Música e Projeto de
Pesquisa, cursadas nos três semestres anteriores à redação deste trabalho. Neste lugar tive
contato com metodologias e técnicas de pesquisa e aos poucos, mesmo com limitações,
esbocei multiplamente o delineamento da pesquisa aqui proposto. Neste campo tive
oportunidade de escutar mestres e doutores de diversas áreas de conhecimento em música
(com intersecções entre áreas) que desencadearam questionamentos diversos e apontaram
certos rumos. Também nos momentos em que assisti defesas de trabalhos de conclusão de
curso e dissertações dos Departamentos de Música e de Artes Cênicas, e conferências de
música com palestras acerca da produção acadêmica em música e do fazer musical
contemporâneo [I e II Seminários de Música Contemporânea da Udesc (2015 e 2016) nos
quais tive a oportunidade de participar na organização e produção como bolsista no Programa
de Extensão Piano em Foco; Semana acadêmica da pós-graduação (PPGMUS, 2017);
Congresso Nacional de Teoria Musical e Análise (TeMA, 2017); Festival de Música
Contemporânea Edino Krieger (2017); e outros].
54

Também neste ano de 2017 (25 a 27 de outubro), durante o processo de escrita do


presente trabalho de pesquisa, pude participar do Ciclo de conferências, apresentado por
Alexandre Costa por meio do Programa de Extensão COMBO UDESC que é coordenado pela
professora Dra. Cristina Emboaba, intitulado Entre a mímesis e a poíesis: reflexões sobre
técnica, trabalho, arte e educação. As reflexões propostas pelo filósofo ativam também a
vontade de uma perspectiva reflexivo-filosófica na abordagem pretendida por este trabalho
sem adentrar, no entanto, nas propriedades de uma discussão e problematização filosóficas,
propriamente.
Enfim, verifico a importância de cada ambiente e pessoas que tiveram como proposta
a reflexão acadêmica em arte, em música.
Com estas reflexões e inquietações sobre o “fazer música”, geradas no caminho que
trilhei junto à atuação musical, também fui direcionado a perceber os mecanismos geradores
do ato em música e como este ‘fazer’ está comprometido com a formação musical e com a
história de cada pessoa e seu corpo. Esta formação, por sua vez, é construída no escopo de um
terreno regido por uma mentalidade específica, forjada socialmente e culturalmente, que será
também forjadora/norteadora da conduta da prática musical estabelecida como padrão.
Utilizarei para mapear este discurso que forja uma mentalidade entranhada em nossos usos e
costumes, como também na performance em música, a terceira parte do livro Vigiar e Punir:
nascimento da prisão de Michel Foucault (2012) logo adiante, no capítulo 2 deste trabalho.
Observo como a percepção do corpo vivo no mundo (viabilizada pela educação
somática) pode nos levar também a enxergar, a partir dos caminhos abertos por Michel
Foucault, o campo “microfísico” nas relações de poder da sociedade, que predispõe uma
“tecnologia política do corpo”. Assim, lanço mão de um breve estudo introdutório ao livro
Vigiar e Punir, que reverbera do contato que tive com o primeiro capítulo da tese Músico e
Ato de Bittar (2012). No segundo capitulo do TCC, o caminho metodológico trilhado
juntamente ao livro de Michel Foucault servirá como ponto de partida e bases para as
observações de Valeria Bittar acerca do contexto de formação em música ao longo da história
(2.2.1 e 2.2.2) e para um pequeno mapeamento no campo de atuação da técnica pianística
(2.2.3 e 2.2.4).
55

2 REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS DISCURSIVAS E NÃO DISCURSIVAS13 NA


FORMAÇÃO MUSICAL E NA TÉCNICA PIANÍSTICA

Este trabalho de conclusão de curso tem como vontade primeira trazer à reflexão o
performador em performance na música. Ao investigar a palavra “performance”, como consta
do glossário introdutório, esbarramos comumente num sinônimo, que no mínimo, pode causar
um incômodo. O sinônimo em questão, apresentado atualmente é a palavra “desempenho”.
Com base neste incômodo gerado por esses conceitos, acredito ser necessário investigar,
primeiramente, o terreno onde este sentido de performance como desempenho vai operar. O
caminho para esta investigação, conforme percebo, será apontado por Michel Foucault, num
primeiro plano, em seu livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Este livro dá a pensar que
o sentido de “performance como desempenho” está amarrado e limitado ao discurso das
tecnologias do poder e do saber que têm no corpo seu objeto. Do mesmo modo, pode-se
considerar que o caminho para o desempenho no qual a performance adentrou, esteja

13
Edgardo Castro (2009, pp. 336-337), explica que o domínio de análise de Michel Foucault são as práticas:
epistemes e dispositivos. Epistemes seriam práticas discursivas que condicionam “o exercício da função
enunciativa” de acordo com uma determinada época e uma determinada área de manifestação humana, quando e
onde é definido “um conjunto de regras anônimas, históricas” que conduzem as relações discursivas/enunciativas
na sociedade. Seu campo de estudo é a arqueologia, podendo esta se direcionar aos discursos enunciados que
são capazes de “produzir as subjetividades” e definir a constituição social das pessoas. Dispositivos, por sua vez,
pretendem caracterizar o que é dito e o que é feito (não dito) e o funcionamento do mecanismo “político-
tecnológico” (FOUCAULT, 2014) nas relações de poder e de saber, desta forma configuram também as práticas
não discursivas. Com a ajuda de material audiovisual de aulas ministradas pela professora Dra. Maria do Rosário
Gregolin (2013, 2016), pude compreender que este funcionamento do poder configura uma “rede enunciativa e
não enunciativa” relacionada ao saber que, como será visto com Foucault neste capítulo: têm o corpo como
objeto. Por isso, Foucault estudará diferentes esferas e aspectos da sociedade de acordo com seu funcionamento,
existem, por exemplo: dispositivos da sexualidade, dispositivos disciplinares, “dispositivos midiáticos.”
(GREGOLIN, 2016). Seu campo de estudo é a genealogia: do poder e da ética.

De acordo com o que pode ser entendido por mim, a partir de uma videoaula de Gregolin (2013), o discurso
também é constituído de “materialidade” e configura “formas” e “efeitos” para a “produção de sentido”,
configurando as relações humanas. Questiono: é possível entender a prática musical como uma determinada
“linguagem de enunciação” e de “produção de discursos” que, assim como qualquer outra linguagem e
enunciado, é controlada pelo “funcionamento do poder” nas relações?

Neste sentido, diante de arqueologias e genealogias (epistemes e dispositivos), este capítulo olhará para o que foi
pensado por Michel Foucault a respeito do dispositivo disciplinar, acionado num determinado contexto de
transformação no sistema jurídico-penal que, por sua vez, desenvolveu “tecnologias” estratégicas para, em um
campo “microfísico”, “investir” os corpos entre as “relações de poder” com a finalidade em “docilizar” esses
corpos [termos de Foucault, 2014]. Entender isso, estudar e traçar este ‘caminho metodológico’ junto a Foucault,
foi importante para que eu pudesse melhor refletir o que é proposto pela tese de Valeria Bittar, onde a artista irá
observar aquilo que é dito, aquilo que não é dito e os modos de fazer o que é dito (arqueologias-genealogias?) no
universo musical do Ocidente: historia cultural política, didática, prática, performática. Desta maneira, alguns
discursos e não discursos no campo musical serão brevemente observados/visitados/mapeados conforme o que
será percebido ao longo deste segundo capítulo tendo como embasamento principal os trabalhos desses dois
autores (FOUCAULT, 2014; BITTAR, 2012).
56

constituído no território das disciplinas e da docilidade, apontados por Michel Foucault na


terceira parte de seu livro.
Encaro como parte do caminho metodológico que me levará às considerações finais
deste trabalho, reflexões sobre as “disciplinas” e os “corpos dóceis”, conceitos trazidos por
Michel Foucault. Portanto, gostaria neste segundo capítulo de abrir um parêntese para estudar
e esclarecer, com minha leitura-perspectiva, as bases postas por Foucault onde assentam-se os
territórios das tecnologias políticas, que levarão a observar o contexto disciplinar, lugares
onde será encontrada a fonte do termo “performance como desempenho”. Por isso, em
algumas páginas apresento um estudo-resenha do que é posto pelo pensador como base para
as reflexões que seguirão.

2.1 UM CAMINHO METODOLÓGICO: VIGIAR E PUNIR DE MICHEL FOUCAULT

O historiador e filósofo Michel Foucault inicia seu trabalho intitulado Vigiar e punir:
nascimento da prisão, publicado pela primeira vez em 1975, expondo dois exemplos
diferentes de sanção criminal: o suplício e a utilização do tempo num sistema de detenção
carcerária. De acordo com o autor, cada um desses exemplos localizado entre os séculos
XVIII e XIX, define um estilo penal que se constitui na sociedade e redistribui toda a
economia do castigo na Europa. Com o gradual desaparecimento dos suplícios, há uma
destituição do caráter de “espetáculo” onde a “cerimônia penal” se igualava ou superava a
crueldade e violência da cena do crime que pretendia punir, caracterizando uma inversão de
papéis entre quem executava a pena e quem seria castigado. Segundo Foucault, este “método
punitivo” caracterizado pela execução pública é eliminado da prática penal até a primeira
metade do século XIX de forma não regular pela Europa. (FOUCAULT, 2014, p. 14)
Desta forma a punição se torna uma parte do processo penal a ser encoberta, o que
provoca uma mudança na recepção da penalidade por parte das pessoas da sociedade, pois
“deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata”. O autor ainda
esclarece que o mecanismo da punição altera as suas “engrenagens” passando a funcionar por
meio do exemplo; o que Foucault denomina de “mecânica exemplar” funciona através de uma
“redistribuição dos papéis” que são exercidos nas ações jurídicas. Neste caso, a própria
condenação pretenderá assinalar o delinquente “com sinal negativo e unívoco”, de modo a
justificar a pena pela essência de “corrigir, reeducar, ‘curar’”, ao invés de punir.
(FOUCAULT, 2014, pp. 14-15)
57

Isto gera, segundo o autor, uma “nova justificação moral ou política do direito de
punir” principalmente no que diz respeito aos esforços do humanismo ao longo dos anos que
acompanharam essa transformação jurídica. A começar pelo “desaparecimento dos suplícios”
que representa, ao mesmo tempo, a eliminação daquele espetáculo que acontecia na execução
penal e a extinção do “domínio sobre o corpo” característico da violência contida no exercício
da punição supliciante. (FOUCAULT, 2014, pp. 13-15)
Conforme constata Foucault, a partir de então, se manifesta um pudor nas práticas
punitivas que se reservaram a “não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir
nele algo que não é o corpo propriamente”. Assim ocorreu a modificação da “relação castigo-
corpo”, a partir da qual o corpo passará a ser tomado como instrumento. Em consequência, se
poderá intervir sobre o corpo por meio do castigo que deixa de representar “uma arte das
sensações insuportáveis”, que é o caso do suplício, e começa a se caracterizar por “uma
economia dos direitos suspensos” colocando as pessoas em um “sistema de coação e
privação”, que é o caso do carcerário. (FOUCAULT, 2014, p. 16). Sobre esta relação entre
sistema judiciário e sociedade Foucault vai demonstrar o seguinte:

Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à
distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais
“elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio
substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os
capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao
lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe
garantem que o corpo e a dor não são objetos últimos de sua ação punitiva.
(FOUCAULT, 2014, p. 16, grifo meu)

Os rituais modernos de execução, portanto, testemunham um “processo duplo” de:


“supressão do espetáculo” e “anulação da dor”, quando a cena dos suplícios é reduzida à
estrita execução capital14, definindo uma nova moral para o ato de punir. Nesta redução a
morte sob pena se torna um acontecimento visível, porém instantâneo. Sem aquele ritual
amplo e violento contido no suplício, evita tocar o corpo do culpado para diminuir a
intensidade e a duração de seu sofrimento, valorizando a “humanidade” da legislação.
(FOUCAULT, 2014, pp. 17-18)
Foucault mostra que “O último vestígio dos grandes espetáculos de execução é sua
própria anulação”, quando o corpo do condenado passa a ser escondido e a execução passa a

14
O conjunto de meios pelos quais se dá cumprimento à pena de morte. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/topicos/297430/execucao-capital/definicoes>. Acesso em: 8 de novembro de
2017.
58

acontecer de forma confidente “entre a justiça e o condenado”. Segundo o autor, até meados
do século XIX, mesmo sem estar centralizado no sofrimento e na violência, o poder exercido
sobre o corpo se manifesta no sistema prisional através de “complementos punitivos” que
tinham relação com corpo, como exemplo aponta: “redução alimentar, privação sexual,
expiação física, masmorra”. Esses complementos conformam o que Foucault denomina de
“fundo supliciante” e estão relacionados a uma “penalidade do incorporal”. (FOUCAULT,
2014, pp. 19-21)
Ao que Foucault denomina de “realidade incorpórea” pode se dizer que é
caracterizado como um aparato da justiça punitiva que, por meio da amenização da pena e da
dor, pretende castigar “a alma” enquanto crime do criminoso, no lugar do corpo. Assim o
objeto da pena é substituído, “O corpo e o sangue são substituídos pela alma”. (FOUCAULT,
2014, pp. 21-23). Esta abordagem do sistema de punição é regida “pela economia interna de
uma pena” que pode se modificar de acordo com as qualificações e o conhecimento de quem
está condenado, um saber sobre o “sujeito jurídico” é posto em jogo, se destinando:

[...] a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas


disposições criminosas, a cessar somente após a obtenção de tais modificações. A
alma do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime e
introduzi-la como um elemento na atribuição jurídica das responsabilidades; se ela é
invocada com tanta ênfase, com tanto cuidado de compreensão e tão grande
aplicação “científica”, é para julgá-la, ao mesmo tempo que o crime, e fazê-la
participar da punição. [...] O laudo psiquiátrico, mas de maneira geral a antropologia
criminal e o discurso repisante da criminologia, encontram aí uma de suas funções
precisas: introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos suscetíveis de
um conhecimento científico, dar aos mecanismos da punição legal um poder
justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não
mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser.
(FOUCAULT, 2014, p. 23)

Mais adiante, Foucault pretenderá verificar se esta substituição do corpo pela alma
“não é efeito de uma transformação na maneira como o próprio corpo é investido pelas
relações de poder”. (FOUCAULT, 2012, p. 27, grifo meu)
Em algumas páginas o autor esclarece como a justiça criminal moderna, ao se carregar
de “elementos extrajurídicos” como, por exemplo, a medicina psiquiátrica, põe esses
elementos em funcionamento dentro da ação penal, de modo que esta ação penal possa se
inserir constantemente nos sistemas não jurídicos e alcançar seu efeitos na sociedade.
Foucault observa que, através do deslocamento na finalidade dos castigos, “Um saber,
técnicas, discursos ‘científicos’ se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir”
configurando o que denomina “o atual complexo científico-judiciário” no qual o poder de
59

julgar e punir se apoia e do qual pretende receber “justificações” e “regras”, e entende-se que
isso acontece de forma a ramificar e expandir seu funcionamento por todo o corpo social e por
todas as almas. (FOUCAULT, 2014, pp. 26-27) A partir disso o pensador, ao traçar o objetivo
do livro, coloca em questão o caminho que seria possível percorrer para desenrolar a história
da prática punitiva, em se tratando de “poder” e “saber” sobre o corpo, seja numa lida
corpórea (diretamente) ou “incorpórea” (indiretamente), com o trecho que segue:

Mas a partir de onde se pode fazer essa história da alma moderna em julgamento? Se
nos limitarmos à evolução das regras de direito ou dos processos penais, corremos o
risco de valorizar como fato maciço, exterior, inerte e primeiro, uma mudança na
sensibilidade coletiva, um progresso do humanismo, ou o desenvolvimento das
ciências humanas [...] corremos o risco de colocar como princípio da suavização
punitiva processos de individualização que são antes efeitos das novas táticas de
poder entre elas dos novos mecanismos penais. (FOUCAULT, 2014, p. 27, grifo
meu)

Será tomando a punição como uma “função social complexa” que o autor pretenderá
“analisar os métodos punitivos [...] como técnicas que têm sua especificidade no campo mais
geral dos outros processos de poder” na sociedade, olhando para os castigos pelo viés de uma
“tática política”. Também pretende verificar a relação entre a história do direito penal e a
história das ciências humanas, fazendo relações entre o caminhar da “humanização da
penalidade” e do “conhecimento do homem”. O trabalho apresentado por Michel Foucault no
livro Vigiar e Punir direciona-se, de forma geral, ao estudo das transformações que ocorrem
no funcionamento dos métodos punitivos tomando como ponto de partida uma “tecnologia
política do corpo”, o que possibilita a leitura de uma “história comum das relações de poder e
das relações de objeto” (FOUCAULT, 2014, pp. 27-28) conforme citação abaixo:

De maneira que, pela análise da suavidade penal como técnica de poder, poderíamos
compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou
anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal; e de
que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como
objeto de saber para um discurso com status “científico”. (FOUCAULT, 2014 pp.
27-28, grifos meus)

2.1.1 Microfísica do poder e tecnologia política do corpo

Um ponto esclarecedor para compreender o trabalho de Michel Foucault está no


encadeamento de “efeitos positivos e úteis” mantidos pelas “medidas punitivas”; que não
consistem simplesmente em mecanismos “negativos” de repressão, impedimento, exclusão e
60

supressão. Destes efeitos positivos aponta que “se os castigos legais são feitos para sancionar
as infrações”, pode-se dizer que a “definição” das infrações são feitas para “manter os
mecanismos punitivos e suas funções”. (FOUCAULT, 2014, p. 28, grifo meu)
Foucault, citando Rusche e Kirchheimer, vai mostrar “a relação entre os vários
regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam”. É assim que a detenção com
fim corretivo, por exemplo – dentre outros, veio a substituir o trabalho obrigatório no século
XIX, quando “o sistema industrial exigia um mercado de mão de obra livre”. Ainda neste
capítulo irá ressaltar que, “em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados
em uma certa ‘economia política’ do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos e
mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se
trata”. (FOUCAULT, 2012, pp. 28-29, grifo meu)
De acordo com Foucault as historiografias do corpo expõem os processos que
consideram a existência a partir de uma “base puramente biológica”. Porém, para além desta
concepção biológica, ”biologizante”15, o autor revela que o corpo também está diretamente
imerso num “campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o
investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais”. (FOUCAULT, 2014, p. 29, grifo meu). Será neste campo de
atuação que o “investimento político” irá se efetuar como força de produção e de trabalho
utilizadoras do corpo por meio de um tratamento “econômico” nas relações de poder e de
dominação. Mas isto se realiza somente se o corpo estiver encerrado em um “sistema de
sujeição”. Quer dizer que “o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo
produtivo e corpo submisso”. (Idem, grifos meus) O pensador mostra como essa sujeição age
sobre o corpo, sem propriamente encostar nele de forma violenta ou não, mas “de acordo com
toda uma série de complexas engrenagens” (FOUCAULT, 2014, p. 30) a partir da seguinte
colocação:
Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode
muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos
materiais sem no entanto ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente
pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem de terror, e no entanto continuar
a ser de ordem física. (FOUCAULT, 2014, p. 30)

15
Helena Katz e Christine Greiner, ao falarem sobre a Teoria da evolução na comunicação em seu artigo Por
uma teoria do corpomídia, percebem que a “biologização” (daí a inflexão do termo utilizada aqui) no estudo do
comportamento humano, quer dizer, a explicação do comportamento humano por “informações biológicas [...]
especialmente as genéticas”, “precisaria ser combatida”, segundo a perspectiva dos estudos sociais feitos por
“Weber, Durkheim e Lévi-Strauss, entre outros” [“a descrição do comportamento humano como resultado do
mundo social”], “por representar uma porta aberta para o horror das eugenias, a ameaça dos controles raciais,
etc.” (GREINER, 2005, p. 128)
61

Adiante, Michel Foucault irá caracterizar um saber do corpo que não diz repeito
exatamente a seus processos funcionais, estudados por um saber científico, e também um
controle das forças deste mesmo corpo que representa mais que a possibilidade de repressão e
exclusão dele, constituindo, ambos, o que o autor denomina tecnologia política do corpo. Por
sua vez, este “aparato” tecnológico do poder não é exatamente localizável, mas utilizado por
instituições ou por aparelhos do Estado, funcionando em seus mecanismos. Quer dizer que a
tecnologia política está atrelada ao funcionamento do poder nas relações entre instituições e
pessoas e entre as próprias pessoas. Situando-se “em um nível completamente diferente”, isto
é:
Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos
aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre
esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e forças.
(FOUCAULT, 2014, p. 30, grifo meu)

Edgardo Castro, no livro Vocabulário de Foucault (2009) esclarece o termo


“tecnologia política do corpo” dizendo que, nesta tecnologia, as relações de poder e de saber
“têm por objeto o corpo”. O autor esclarece que “as práticas” delineiam o campo de estudo de
Foucault onde os “modos de fazer” constituem objetos de sua reflexão e análise; dito isto
técnica e tecnologia associam ao sentido daquilo que é denominado por “prática” os conceitos
de “estratégia” e “tática”. (CASTRO, 2009, p. 412) Isso resulta em “estudar as práticas” pelas
relações entre seus meios (táticas) e seus fins (estratégias) de atuação. É por este caminho que
Foucault, em Vigiar e Punir, analisará o poder como uma tecnologia: em termos de estratégia
e tática, através dos “mecanismos e procedimentos do poder”, e não em termos jurídicos “de
regra e proibição”. Assim pode se definir que as relações de poder e de saber na sociedade
têm como objetivo um “manejo do corpo” e das suas forças que pretende induzir à utilidade e
à docilidade deste corpo (“[...] obter corpos úteis e dóceis”). Neste campo que, ainda de
acordo com Castro (2009, pp. 412-413), a disciplina será estudada por Foucault “como uma
tecnologia” e “não como uma instituição ou aparato”, como veremos no capítulo 2.2 do
presente TCC.
Assim, o poder que está em jogo nas relações sociais “sempre tensas, sempre em
atividade”, num campo microfísico, é exercido não como uma propriedade, justamente, mas
como uma estratégia. Ou seja, os efeitos de dominação neste posicionamento não são
atribuídos a uma “apropriação”, mas à disposições, manobras, táticas, técnicas e
funcionamentos estratégicos, realizando como modelo antes a “batalha perpétua” do que o
62

“apoderamento de um domínio” (FOUCAULT, 2014, p. 30), como esclarece o filósofo na


citação que segue abaixo:

Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar
que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno,
na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce
sobre os que são punidos – de uma maneira geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a
existência. (FOUCAULT, 2014, p. 32)

Tendo como fio condutor experiências e abordagens que consideram a questão do


corpo, e as diversas relações que se estabelecem em vida a partir dele, as andanças que expus
no primeiro capítulo deste TCC me conduzem a perceber (dentre outras coisas a serem
discutidas ao longo do trabalho) por onde a ideia de performance vinculada à ideia de
desempenho é posta na prática artística do performador musical. Sabendo que “é sempre do
corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua
repartição e de sua submissão” (FOUCAULT, 2014, p. 29), sou conduzido a observar a
mentalidade ou, melhor, as tecnologias de poder-saber direcionadas ao corpo, que
condicionam a formação do músico e que se embasam em prerrogativas vinculadas à
docilidade-utilidade e às disciplinas-treinamentos, como veremos no capítulo que segue.

2.2 SOCIEDADE DAS DISCIPLINAS E DOS CORPOS DÓCEIS

Partindo das reflexões postas anteriormente, desde o primeiro capítulo, e levando em


consideração a percepção do corpo também numa abordagem econômico-histórico-política,
observo que a formação do músico para a performance será operacionalizada em um certo
território, ou melhor, será circunscrita numa mentalidade instituída dentro do corpo social e
do funcionamento próprio das relações de poder. Enxergo isso a partir da compreensão acerca
da “sociedade disciplinar” e os “corpos dóceis”, conceitos construídos por Michel Foucault
(1926-1984) na terceira parte de seu livro Vigiar e punir: nascimento da prisão (2014). A
recorrência ao que é posto por Foucault é importante para percebermos ações inscritas dentro
da mentalidade que envolve a didática e o aprendizado artísticos ocidentais, e assim a
formação do performador de música, que estão relacionadas diretamente ao corpo como
objeto de uma “tecnologia política”, e como ferramenta de controle e de treinamento técnico.
Corpo que se encontra mergulhado num campo “micropolítico” e envolvido numa tecnologia
63

do poder nas relações (como introduzido em 2.1 e 2.1.1). Em continuidade, tomando como
base a terminologia dada por Foucault, “disciplina” e “docilidade”, voltarei meu olhar para a
formação do músico propriamente [2.2.1 e 2.2.2], juntamente com o que é mostrado por
Valeria Bittar em sua tese de doutorado Músico e ato (2012). Por fim, conduzirei a discussão
para o âmbito da técnica pianística [2.2.3 e 2.2.4], onde se percebe manifestar primeiro uma
separação e depois um adestramento do corpo e da mente no processo de aprendizagem, e um
consequente distanciamento entre a técnica e o fazer artístico da música em performance.
Ao caminhar juntamente com Foucault no livro Vigiar e punir adentramos na terceira
parte denominada Disciplina, onde o filósofo irá apontar o corpo como “objeto e alvo de
poder”, uma prática que se tornou comum a partir do século XVII. (FOUCAULT, 2014, p.
134) Esta atenção dedicada ao corpo age, segundo o pensador, através de manipulação,
treinamento, obediência, habilidade, capazes de “multiplicar as forças” deste corpo,
caracterizando o que denomina “esquemas de docilidade”. Foucault expõe olhares para o
corpo, no interior das relações de poder, que mostram de que forma, em qualquer sociedade, o
corpo se torna “objeto de investimentos” extremamente necessários tornando-se, assim,
ferramenta do exercício de poder e controle. O autor irá relatar o surgimento da figura do
soldado no início do século XVII, figura esta resultante de um conjunto de condutas
originadas numa “retórica corporal da honra”, definida por Montgommery (1636), através do
estabelecimento de uma série de posturas anatômico-corporais que sinalizariam aqueles aptos
para o ofício de soldado. Desta forma, Michel Foucault (2014, p. 133) explica que na segunda
metade do século XVIII, o corpo do soldado será algo pensado e fabricado para que aja
automaticamente e que esteja sempre disponível. Em suas palavras:

[...] o soldado se tornou algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo
inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas:
lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, assenhoreia-se dele,
dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no
automatismo dos hábitos.

É a partir deste olhar posto por Foucault sobre a época clássica e a referência a um
corpo automatizado em seus hábitos que surgiram em mim inquietações quanto à pedagogia
dirigida para a performance, no meu caso a performance pianística, que será tratada mais
adiante no final deste capítulo, e àquilo que diz respeito ao sentidos e significados da
performance musical em arte.
Seguindo na terceira parte do livro, Foucault ampliará o território da criação do corpo
do soldado em direção ao corpo-máquina, ou “o homem-máquina” abordado em 1748 por
64

Julien Offray de La Mettrie (1709 - 1751). La Mettrie irá propor em seu livro “L’homme
Machine” (O Homem Máquina) a tomada do corpo como algo útil e inteligível a partir de dois
apontamentos escritos ao mesmo tempo em seu livro (FOUCAULT, 2014, p. 134). Ambos
trarão abordagens diferentes entre si, mas que se entrecruzam, a saber:

1. O primeiro apontamento irá expor o “corpo útil” através de uma abordagem na


ordem da “submissão” e da “utilização”, que tem um ponto de partida “anátomo-
metafísico”. A introdução deste apontamento foi escrita por René Descartes (1596 -
1650) e teve sua continuação escrita por filósofos e médicos.
2. O segundo apontamento irá tratar do “corpo inteligível” através de uma
abordagem de ordem “técnico-política”, formada de regulamentos, tanto hospitalares
quanto escolares e militares, como também de procedimentos aleatórios ou
experimentações para aquilo que deve ser corrigido nos corpos, ou mesmo controlado
tratando de “funcionamento” e “explicação”.

Foucault nos faz enxergar em La Mettrie o “homem-máquina” como sendo ao mesmo


tempo “uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento”, de onde
emerge “a noção de ‘docilidade’ que une o corpo analisável ao corpo manipulável. É dócil um
corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado”. (FOUCAULT, 2014, p. 134)
Para Foucault, entretanto, o que há de novo nessas técnicas bem instaladas no corpo
social a partir do século XVIII, é aquilo que diz respeito à escala, ao objeto e à modalidade do
controle por elas exercido16. Os métodos lançados neste contexto histórico-político “permitem
o controle minucioso das operações do corpo” que efetuam uma subordinação contínua de
suas forças e firmam uma “relação de docilidade-utilidade”. Isso o autor denomina de “as
disciplinas” que se convertem, ao longo dos séculos XVII e XVIII, em “fórmulas gerais de
dominação” que têm como propósito primeiro “um aumento do domínio de cada um sobre seu
próprio corpo”. (FOUCAULT, 2014, p. 135)

16
Articulando aqui as enunciações do filósofo: escala se refere a um trabalho detalhado sobre o corpo onde se
trata de “exercer sobre ele uma coerção sem folga” e “mantê-lo ao mesmo nível da mecânica” no que diz
respeito aos movimentos, gestos, atitude e rapidez: há um “poder infinitesimal sobre o corpo ativo”; objeto está
relacionado a uma “economia e eficácia dos movimentos” em sua organização interna, onde o que importa é a
“cerimônia do exercício” onde se identifica uma “coação sobre as forças”; modalidade se manifesta através da
“coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado”, para
isso opera uma “codificação”, um “esquadrinhamento” do tempo, do espaço e dos movimentos. (FOUCAULT,
2012, p.135).
65

Foucault contextualiza e descreve, conforme citação abaixo, como esta modalidade de


poder opera sobre o corpo, sua crescente habilidade e sobre o aprofundamento de sua
sujeição, numa proporção direta e ao mesmo tempo inversa, no que diz respeito à sua
obediência e à sua utilidade:

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma
“anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está
nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se determina. A disciplina fabrica
assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as
forças (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz
dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e
inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do
trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo
entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada (FOUCAULT, 2014, p.
135 e 136, grifo meu).

O filósofo propõe localizar algumas das técnicas essenciais e minuciosas que


determinam o modo detalhado de investimento político do corpo através de uma nova
“microfísica do poder”. Foucault salienta que essas técnicas “não cessaram, desde o século
XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social
inteiro”. Assim, o surgimento do que o autor qualifica como “anatomia política” se origina de
uma variedade de processos mínimos que se encontram e delineiam “aos poucos a fachada de
um método geral”. (FOUCAULT, 2014, p. 136). De acordo com o que se pode perceber, a
partir da leitura deste capítulo de Michel Foucault, o que caracteriza a disciplina é o
detalhamento, ela opera por meio de “arranjos sutis”, distribuídos em um dispositivo de poder
que é conduzido por “economias”, exerce “coerções” e se sustenta por meio de uma
“coerência tática” gerando formas de treinamento. Para o autor, “haveria uma longa história a
ser escrita” acerca “da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no
controle político”. (FOUCAULT, 2014, pp. 136-137)

Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político


dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da Era
Clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos
66

e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida,


nasceu o homem do humanismo moderno. (FOUCAULT, 2014, p. 138 e 139)

Uma série de saberes constituem as disciplinas, eles intervêm sobre os indivíduos


sempre que estes se desviam do modelo estabelecido como norma. Os procedimentos da
disciplina são detalhadamente expostos por Foucault ao longo do terceiro capítulo de seu
livro, onde o pensador discorre, de forma elaborada, as técnicas que caracterizam a disciplina
e os instrumentos utilizados por ela para gerar a individualidade. Estes esclarecimentos acerca
do funcionamento da disciplina, Valeria Bittar relaciona com a formação e as condutas em
performance musical do Ocidente, como veremos no decorrer deste capítulo. A partir disso
tentarei, brevemente, interpolar as elucidações que veremos com alguns modos de fazer e
teorizar que me propus observar no âmbito da técnica pianística.

Dentre outros aspectos, de acordo com a análise inicial no glossário introdutório deste
trabalho, o território dos corpos dóceis pode remeter ao conceito de performance em
proximidade com o de desempenho. Neste caso, a performance é esquadrinhada e dividida em
disciplinas que investem forças de controle sobre as ações “anátomo-metafísicas” do músico
performador. Agindo a partir do forte estabelecimento de detalhamentos, modelos, padrões,
regras e normas que se articulam dentro do fazer musical e da formação em música através de
um processo de racionalização do corpo e do som, o código musical escrito. Este mecanismo
opera sob a vigilância e a disciplina contidas numa mentalidade onde não se consideram as
ações físicas do corpo partindo da percepção de cada um, da escuta e da investigação
singulares, mas de conceitos. Sendo assim objetiva-se a todo o tempo o modelo, por meio de
treinamentos, correções e condicionamentos automatizados, transformados em hábitos. A
partir das avaliações e exames, a vigilância e um poder sutil se manifestam, tornando-se uma
constante que vibra em meio às ações em performance musical.
As “práticas interpretativas” estão submetidas todo tempo às exigências de um
desempenho musical de excelência, de expertise, onde a performance é tomada como
execução habilidosa daquilo para que o corpo do músico foi treinado a desempenhar. Em caso
contrário, é constatada uma não competência técnica para tal habilidade, fazendo recair a
investida inicial sobre o corpo de quem performa. Em outras palavras: o investimento
econômico-político do poder que desejou moldar o corpo atuante na música é o mesmo que
entrega para o performador a responsabilidade pela incompetência de seus atos condicionados
que não se adequaram ao padrão estabelecido, à norma vigente. A vigilância impõe um
67

controle regulador da atuação musical apagando a possibilidade de experimentação e de


investigação corporal e técnica, ao mesmo tempo, próprias de cada músico. Enxergo isto de
acordo com o trajeto percorrido a seguir junto à tese de doutorado da flautista Valeria Bittar.

2.2.1 Música ocidental: textos e não textos, sons e não sons

Com base no pensamento de Michel Foucault, em seu doutoramento, a professora


Valeria Bittar identifica o campo de ação da didática musical no Ocidente e se posiciona
criticamente diante da formação musical, considerando o método difundo pelo conservatório
no final do século XVIII, como “reflexo da modalidade de poder marcada pela mentalidade
produtora dos corpos dóceis”, o regime disciplinar e a vigilância hierárquica.
A pesquisadora inicia sua tese operando num terreno de tensões entre opostos
profundamente atados aos modos de fazer música no Ocidente. O primeiro par de opostos
inscrito na formação do músico atuante é manifestado entre “a música que soa e o texto
musical”, representando uma “tensão entre o som e sua representação escrita”
(audição/visão). Assim a “complexa manobra da decifração do signo escrito musical” sobre a
qual nos apoiamos em nossos fazeres se direciona a outro par de opostos: “o caminho
silencioso visual e o caminho sonoro”. De acordo com Bittar, esses tensionamentos
caracterizam as procedências da formação do intérprete musical que será concebida por meio
de um “treinamento extenso e rigoroso” através de uma “operação linear da ordem do
raciocínio” com enfoque na informação, sendo conduzida pelos campos da teoria musical, da
musicologia e de outras abordagens. (BITTAR, 2012, p. 29)
Para a autora “a principal atividade do aprendiz de música resume-se na decifração do
texto estabelecida num processo analítico” que, em sequência, será associado com o
“treinamento técnico direcionado ao desenvolvimento específico para fazer soar neste ou
naquele instrumento, este ou aquele texto decifrado” (BITTAR, 2012, p. 30). Este trajeto
enfocado no texto musical escrito, na sua decifração e no treinamento técnico-instrumental é
denominado de interpretação musical, execução, reprodução ou performance, como discutido
de início na introdução-glossário deste TCC. Considerando que o texto musical possui “alto
grau de variantes e [...] abstração”, Bittar (2012, p. 30) constata que esta formação “refuta as
ambiguidades e conflitos inerentes ao fenômeno musical, optando percorrer os caminhos
sólidos da racionalidade e mostrando-se, com isso, suficiente e eficaz para a formação
profissional do músico”.
68

Em prosseguimento, Valeria Bittar esclarece, no trecho abaixo citado, de que modo


este modelo de formação é estabelecido na transmissão do conhecimento musical a partir da
segunda metade do século XVIII, que irá sofrer modificações principalmente a partir do
período entre as duas grandes Guerras. A autora inicia sua reflexão indo de encontro à
pedagogia da música no Ocidente que se debruçará sobre um sistema mais próximo
historicamente da memória musical atual, tornando-se um modelo que se enraizou nos nossos
hábitos musicais:
De maneira geral, é natural que o campo de ação desta didática musical no Ocidente
seja inscrito na música que se tem mais próxima de nossos ouvidos, de nossa
memória sonora cotidiana. Essa música é gerada e formulada no campo da
tonalidade, fenômeno derivado de outros campos, ou espaços sonoros,
principalmente do campo modal. O sistema tonal passou por um fértil período de
cruzamento e transitoriedade com o sistema modal entre os séculos XVI e XVII
vindo a fixar-se, propriamente, na música do Ocidente a partir do século XVIII,
tornando-se no final desse século o emblema da expressão musical ocidental,
gerando formas por sua vez também emblemáticas dessa cultura. (BITTAR, 2012, p.
30)

A partir disso, observa que até os dois primeiros séculos da música tonal (XVII-XVIII)
a pedagogia e a formação de um músico “têm seu modus operandi calcado na relação mestre-
aprendiz” (BITTAR, 2012, p. 30). Nesta relação de caráter individualizado (e não
individualizador), a aprendizagem surge das experiências particulares e o processo de ensino
se adapta “a cada situação durante a formação do discípulo” (SANTOS, 2011 apud BITTAR,
2012, p. 33). Baseando-se na tese de doutoramento do violinista Luis Otavio Santos (2011) a
autora esclarece que “Na relação mestre-aprendiz havia um sentido de transmissão artesanal
do saber que partia do compartilhamento das experiências musicais do mestre e das
experiências musicais do aluno.” (BITTAR, 2012, p. 31). Esta modalidade de aprendizagem
representa a forma como eram escritos os tratados, baseando-se na música prática, no relato e
na descrição de “uma práxis específica de um instrumento ou da utilização prática da teoria
musical” (SANTOS, 2001 apud BITTAR, 2012, p. 32), expressando “o fazer, a ação e a
experiência de um mestre que acionarão a vontade de experimentação no aprendiz. Um
processo empírico e artesanal de transmissão do conhecimento”. (BITTAR, 2012, p. 32)
Neste processo empírico a aprendizagem da performance musical entrecruzava-se com
o aprendizado da composição musical partindo da “matéria sonora”. Contudo, devido a
Revolução Francesa o lugar da pedagogia da música calcado na instituição pedagógica
69

“mestre-aprendiz” é tomado, lentamente, por uma didática institucionalizada e regulada pelo


“método conservatorial17” (BITTAR, 2012, p. 30), conforme descrito abaixo:

O fundamento do fazer musical que acontecia sobre a relação músico-instrumento e


a formação musical que acontecia sobre a relação mestre-aprendiz, trazia seu eixo no
músico, no fazedor, como também no artesanato, na “ação musical” (SANTOS,
2011), na linguagem subjetiva dos tratados e, sobretudo, na troca de experiências e
na relação; esta mentalidade entrará em declínio no século XIX passando a dar
prioridade ao eixo compositor/obra, ou seja, a considerar a música como texto fixo a
ser fielmente executado por um intérprete bem treinado. Ao desumanizar-se e ao
substituir o papel do saber oculto do Mestre pela racionalidade e clareza do método,
o ensino de música foi tomado pela reflexão analítica e abstrata, e pelo crescente
volume de informação. Estas são ferramentas fundamentais do método científico-
musical protagonizado pela instituição do Conservatoire com intensidade crescente
a partir do século XIX. (BITTAR, 2012, pp. 33 e 34)

O modelo protagonizado pelo método, sistematizado por aquela instituição, será


qualificado por Nikolaus Harnoncourt (1990, apud BITTAR, 2012, p. 34) como uma
“educação político-musical”, se destinando a produzir obras didáticas que caracterizam neste
sistema uma rigidez, diferente dos tratados, o que dissolve a importância dada anteriormente
às vivências dinâmicas contidas na relação mestre-aprendiz. A partir do que Bittar (2012, p.
34) esclarece é possível visualizar, como comprovação desta rigidez metodológica, a forma
como esses princípios teóricos de ensino-aprendizagem são fixados a partir da ruptura
ocasionada pelos ideais do “Iluminismo” e da “Revolução Francesa” e efetivados no
“cientificismo positivista ao longo do século XIX”, sendo utilizados na educação musical
atual onde, naturalmente, se apresentam novos desafios e transformações diante do fazer
musical. Neste sentido, a autora citando Harnoncourt, apontará que a quebra com a pedagogia
“mestre-aprendiz” também influenciou a expressão musical em todos os sentidos, conforme
posto no trecho destacado abaixo:

Harnoncourt [quando aborda a formação do músico atual] mostra que a ruptura


mestre-aprendiz teve importantes reflexos na estética musical, sendo um turning
point com respeito às práticas interpretativas, que não mais fariam parte de uma
linguagem oralmente transmitida através do relacionamento mestre-aprendiz, mas
deveriam ser determinadas por um código musical universal, tendo como
fundamento o texto como obra e uma ideia abstrata da “intenção do compositor”.
(BITTAR, 2012, p. 35, grifo meu)

De acordo com Valeria, esta metodologia se tornará a “ferramenta de controle” que


direcionará o músico/intérprete em sua formação ao “papel de reprodutor e tradutor (aquele
17
Segundo Valeria Bittar (2012, p. 31) o Conservatoire de Paris foi fundado no ano de 1795 “sob as premissas
dos novos ideais revolucionários de acesso universal ao ensino e padronização didática por meio do méthode”.
70

que transfere) obediente [...] e não mais um co-autor da obra”, pressupondo uma leitura
“controlada” e “informada” da música-texto que se vincula também à “ideia romântica da
autoria e do gênio”, concebida no século XIX em relação à “estrita codificação” da obra
escrita. (BITTAR, 2012, p. 35) Neste sentido que, adiante no capítulo 1.2.1 de sua tese, Bittar
caracteriza esta situação pela neutralidade diante do fazer musical denominando de
intérprete-neutro, este fazedor o qual o oboísta e pesquisador da música antiga, Bruce Haynes
(2007), chama de intérprete transparente. Concepção esta já discutida no glossário
introdutório deste TCC quando são mapeadas as visões de Arnold Schöenberg e Henrich
Schenker. O ideal romântico de interpretação “neutra” ou “transparente” encontra seu oposto
na ideia de intérprete gênio que através de um “domínio técnico, veiculará com habilidade e
virtuosismo a virtuosidade e a genialidade contidas na obra do primeiro gênio” – o
compositor. (BITTAR, 2012, p. 68)
A pesquisadora esclarecerá que esses parâmetros de genialidade, tanto do autor quanto
do intérprete, se assentam “na mentalidade romântica de individualização e, por conseguinte,
de criação (autoria) e de reprodução (interpretação) da obra” gerando, assim, uma forte
“hierarquização da criação musical” que parte da fidelidade ao texto. (BITTAR, 2012, p. 68)
Isto se desdobra na prática musical do Ocidente pondo o intérprete numa situação de
submissão e distanciamento de seus próprios processos artísticos em performance conforme
observa Bittar (2012, p. 71, grifo meu) no texto detalhado abaixo:

A tensão autor-intérprete e a seguinte texto-performance seguem século XX


adentro, e quando a musicologia, ou o próprio âmbito da “teoria da performance”,
pretende pôr em discussão o intérprete, será sempre dentro da mentalidade
romântica, de uma maneira apartada do processo artístico, tal a condição de
anulação a que foi submetido o intérprete o qual, por sua vez, permitiu-se sofrer tal
processo de submissão. Vemos hoje ainda fortemente presente o eixo autor-texto,
quando se discutem questões ligadas à performance. Nos congressos, artigos e
demais publicações científicas de musicologia, nos quais a performance é o foco da
discussão, o que se trata principalmente é o eixo autor-texto, tal a anulação destinada
ao intérprete. Isso demonstra a conotação ainda racional e analítica que se dá à
performance musical, em lugar de um olhar que considere a performance como
operação também de ordem perceptiva. E é neste ponto de conflito entre razão e
percepção que se sequestrará o intérprete da performance. [o que a autora discutirá,
propriamente e criticamente, no capítulo 1.2.1 se referindo ao intérprete neutro como
um sequestro do músico atuante].

Entendo, até aqui, que é neste contexto que o performador se deparará sempre que for
falar da própria experiência musical. Percebo, no trajeto de reflexão sobre a atuação e a
formação em música, que mesmo quando o pesquisador da área de performance musical se
propõe pensar acerca de seu próprio fazer, de seus processos de criação em performance e de
71

sua relação com o corpo em arte, estará, em primeira instância, inserido numa cultura
determinada pela mentalidade cientificista centralizada na racionalidade. Valeria Bittar
atentará, no capítulo 1.2 de sua tese, para a necessidade do músico se situar historicamente
nas artes e no contexto sócio-político onde está inserido. De acordo com isto, através da
possibilidade de reflexão diante do funcionamento e das necessidades presentes nas atividades
artísticas constituídas na sociedade do mundo ocidental, o performador poderia lidar com sua
prática em diálogo com a(s) própria(s) arte(s), sem necessariamente recorrer às ciências da
medicina, da administração, das engenharias como embasamento elementar de seus
conhecimentos técnico-artísticos em música. Por isso, o presente trabalho de conclusão de
curso, quando pretende se encaminhar para uma abordagem somática, não deixa também de
atentar ao incurso metodológico que está contido nos fazeres do corpo na sociedade (relações
histórico-culturais) e em performance (relações técnico-artísticas e tecnológico-políticas). O
trabalho da professora Valeria Bittar (2012, p. 145) potencializa o jogo neste caminho em
direção ao corpo (soma) do performador na experiência musical, também quando percebe
como até mesmo a educação somática será tomada de uma forma restrita na formação em
música (ou em arte) conforme o trecho que segue:

Na performance musical vejo que existe uma nítida linha que separa a performance
que inclui o corpo do executante, do próprio ser executante, o performador.
Enxergo, porém, um caminhar ainda tímido para uma pedagogia que inclua o corpo
que performa, uma didática somática para a música, enquanto estímulo perceptivo
para a estruturação do músico em performance. Entretanto esta inclusão do corpo na
pedagogia da performance musical enquadra-se em mais uma das disciplinas do
treinamento técnico do aprendiz, separando corpo de performance, performador de
corpo: “a educação somática torna-se então um ingrediente de formação
complementar a esta mais tradicional aula técnica cotidiana” (FORTIN, 1999, p. 45
apud BITTAR, 2012, p. 145).

A partir disso saliento que, para se desviar dos discursos e não discursos da formação
musical em performance que submetem o performador a um treinamento técnico-mecânico do
corpo, a flautista propõe a transformação no eixo da atuação musical: da racionalização para
a percepção.

2.2.2 Formação musical: ‘as disciplinas’ e a ‘normatização’ da performance

Com o pano de fundo tecido anteriormente tendo como base os trabalhos de Michel
Foucault e de Valeria Bittar, a continuidade deste capítulo trata de observar como as
condições impostas por dispositivos de saber e disciplinares elaboram os discursos da
72

formação musical em meio às relações de poder estabelecidas na sociedade através dos


corpos, estabelecendo normas e modelos de treinamento para os modos de fazer na
performance e na técnica em música. Neste sentido, indo em direção ao trabalho de Michel
Foucault, Valeria Bittar propõe em sua tese “uma aproximação entre a mentalidade
constituída na metodologia musical e os conceitos da mentalidade disciplinar”. Assim,
contextualiza a visão histórica da sociedade tecida pelo pensador francês, considerando que
este contexto se conforma como “uma herança longínqua, contudo pulsante em nossas
condutas atuais”. (BITTAR, 2012, p. 36) É deste empenho singular que espelho os esforços
quando caminho junto aos conceitos construídos por Foucault desde o início deste segundo
capítulo.
A pesquisadora compara o estabelecimento do Conservatoire e seu método, abordados
anteriormente, em derivação da época clássica partindo das considerações contidas no livro
Vigiar e Punir através da afirmação de que nesse período houve uma “descoberta do corpo
como objeto e alvo de poder” (FOUCAULT, 2007 apud BITTAR, 2012, p. 38). Por esta via,
Bittar analisa a metodologia criada para aplicação no conservatório e “as suas atualizações em
favor de uma proposta político-anímica e de uma tecnologia política do corpo“ (BITTAR,
2012, p. 39), atuando no campo da música de forma semelhante a Foucault que analisa o
corpo como alvo dos mecanismos de poder “mergulhado num campo político” e põe os
mecanismos disciplinares em seu próprio funcionamento. A autora irá apontar para as “táticas
metodológicas” estabelecidas sobre lugares cotidianos da técnica e das disciplinas que
direcionam o ensino de música a um posicionamento fixado em objetivos, finalidades e
explicações racionais “sobre o qual nos formalizamos enquanto intérpretes músicos”.
Percebendo, através da observação dessas “táticas”, como a “homogeneização” citada por
Foucault (2007) na “sociedade disciplinar” se manifesta na pedagogia musical. (BITTAR,
2012, pp. 39-40)
Bittar (2012, p. 40) irá esclarecer, de acordo com as afirmações elaboradas pelo
musicólogo Carl Dahlhaus (1976), que esta situação que formata e condiciona os músicos até
os dias atuais “tem seu núcleo situado historicamente no texto musical e na sua codificação,
como ferramenta normativa da música”. O musicólogo observa como a prática musical no
Ocidente é solidificada a ponto de conceber como obra o texto musical e não a experiência
musical em concretização sonora:

Dahlhaus traça o trajeto, dentro da história da música erudita do Ocidente, do


pensamento estético que molda o fazer musical dos séculos XIX, XX e,
conseqüentemente do século XXI, esclarecendo que as bases da música Ocidental
73

apontam para uma ênfase sobre o texto musical autônomo e não para os processos
de performance do mesmo: “A notação não é mais um mero pré-texto que ‘coloca a
música em obra’, mas sim, ela própria [a notação] é uma obra”. (DAHLHAUS,
1976, apud BITTAR, 2012, p. 40, grifo meu)

Desta maneira, Valeria Bittar caminha percebendo e mostrando de que forma a


conduta normatizada e o padrão metodológico estabelecidos serão seguidos até hoje nas
faculdades de música e nos conservatórios, onde o método irá desenvolver ferramentas, como
as disciplinas de seu currículo que têm por prioridade o estudo analítico do texto musical.
Esse currículo disciplinar será cumprido pelo músico durante sua formação, contando com o
exercício “racional” e “intelectual” para acesso a uma grande quantidade de “informação”. O
enfoque deste método está na “compreensão” e no “entendimento” do código da obra em
forma de texto e tem como pretensão atender o propósito artístico do “autor-criador” da
música, tramando uma operação didática baseada em um processo de “abstração”. (BITTAR,
2012, pp. 40-41)
Por isso, no capítulo 1.1.1 de sua tese, intitulado As Disciplinas, Valeria Bittar irá
traçar uma análise detalhada acerca do funcionamento dessas “verdadeiras ferramentas
disciplinares” (BITTAR, 2012, p. 41) presentes no ensino musical que abrange áreas de
competências e campos de saber divididos em: Teoria da Música, História da Música, Estética
da Música, Percepção Musical, Análise Musical e Harmonia da Música. De acordo com
Valeria, essas disciplinas se encaminham lado a lado “com as aulas individuais do
instrumento e sua técnica, assim como a prática camerística e/ou de orquestra”. A autora
percebe de início a “dicotomia presente no estudo da música” em tratados do período
Renascentista, quando ocorre uma restituição da “influência aristotélica” e um direcionamento
para a divisão entre teoria e prática musical. (BITTAR, 2012, p. 41) Ademais será observado
o seguinte:
No programa oitocentista da metodologia da música, foram especificadas e
desenvolvidas separadamente do estudo do fazer musical, do instrumento musical,
disciplinas que encaminhavam, e atualmente ainda encaminham o estudante e sua
formação para o estudo da obra registrada. [...] a “concepção teorizada da música
herdada da tradição platônica [...] desconsiderava o aspecto prático da música”
(SANTOS, 2011, p. 12) [e], desde Boécio (c. 180-525) “inseriu a música no
quadrivium, juntamente com a Aritmética, a Geometria e a Astronomia”. (BITTAR,
2012, p. 41)

Bittar enxerga essa separação entre teoria e prática, que até o período barroco eram
fundidas, ressurgindo “com contornos bastante nítidos” no ensino metodizado estabelecido
pelo conservatório. A partir disso, ao longo de 150 anos, aquelas disciplinas se convertem em
74

“entidades autônomas, sem continuidade ou diálogo entre elas, o que gera um aprendizado
fragmentado e, muitas vezes, desprovido de sentido.” (BITTAR, 2012, pp. 41-42).
Analisando a abordagem de cada campo de conhecimento disciplinar em música, a
pesquisadora conclui, de modo geral, que a operacionalização dessas ferramentas terá como
principal fundamento a Musicologia de onde se originam as outras abordagens teóricas ou
teórico-práticas.
Com enfoque no registro escrito, até mesmo a História da Música se limita ao estudo
evolutivo dos gêneros e formas musicais com base na autoria do texto e na autonomia do
compositor, “com um grande peso na música e na escrita tonal” (BITTAR, 2012, p. 43). A
história, bem como a Estética da Música, de modo geral, não inclui “o estudo da História
da(s) Arte(s)” e do “pensamento filosófico da música anterior ao século XVIII”. Acerca da
Percepção Musical, a autora irá observar a atuação de um “treinamento”18 que tem como
objetivo “o reconhecimento sonoro daquilo que está escrito em partitura” com base na
oposição entre “ouvido(sensor)-intelecção”. (BITTAR, 2012, p. 43) E sobre a Harmonia e a
Análise Musical constatará que apresentam métodos para, respectivamente, a “interpretação
harmônica/tonal do texto musical anotado” e a “compreensão da estrutura total do texto
musical”. Caracterizadas por uma “codificação” e uma “significação do signo”, representando
assim uma “notação que explica a notação” e conduzindo a um “novo texto musical, que, por
sua vez, versa sobre um texto musical que lhe deu origem, subtraindo deste sua força e a
possibilidade da realização em performance por parte do músico atuante”. (BITTAR, 2012, p.
46). Simultaneamente a este arcabouço disciplinar do currículo ocorre o estudo, propriamente,
do fazer musical, da performance no domínio do que é titulado como “práticas
interpretativas”. Na citação abaixo Bittar (2012, p. 45) esclarecerá o mecanismo de atuação
neste campo e os parâmetros estabelecidos como termos de exame:

Nas Práticas Interpretativas [...] são situadas em um primeiro plano as aulas de


técnica do instrumento, que seguem, muitas vezes, um ou mais “métodos” de ensino
[...] que, em sua maioria, seguem princípios da música tonal [...] Ainda hoje as aulas
de instrumentos na universidade e nos conservatórios são dadas seguindo o formato
da antiga tradição mestre-aprendiz [...] nas aulas privadas de prática musical de
maneira geral o professor aplica uma metodologia. O estudo do método é alternado
com o estudo do repertório específico de cada instrumento [...] e [...] o estudante
cumpre também a prática de repertório de música de câmara e a prática de musica de
orquestra [...] O resultado atingido pelo estudante nos estudos de performance em
música, ou práticas interpretativas, é medido por avaliações e exames regulares e
também por audições bimestrais a semestrais [...] ouvidas pelo público acadêmico e

18
Valeria Bittar exemplifica melhor com a terminologia do inglês “Ear Training” (treinamento do ouvido) e do
alemão “Gehörbildung” (educação da audição)”.
75

por uma banca formada por professores de instrumentos. O aluno também é avaliado
regularmente através dos exames das disciplinas citadas acima.

Conforme o percurso até este ponto, juntamente com o trabalho de Bittar (2012), é
possível visualizar de forma contextualizada, por onde a ideia de performance se aproxima do
ideal de desempenho na medida em que se articula dentro: de uma mentalidade situada e
constituída em determinado período histórico na sociedade por nós “herdada”; e de um
currículo disciplinar que tem como objetivo estrutural o entendimento do texto musical
(segundo Bittar: o “aumento de informação” e o “aprofundamento da compreensão” da
‘obra’), operando num campo de “abstração” (que “separa som-texto-realização”) e não
propriamente de experiência sonora. (BITTAR, 2012, p. 46) No trecho abaixo a autora
apontará para esta herança que permeia nossas práticas:

A tática de submissão ao texto e da autonomia deste texto compõe um dos itens


fundamentais do pensamento da música romântica. Esta mentalidade, que se
restringe a esse período específico do belo musical, penetrou em todo o fazer
musical do ocidente e, de maneira geral, conduz ainda a atuação em música.
(BITTAR, 2012, p. 46)

Bittar considera que este processo metodológico se efetiva através da musicologia em


suas várias áreas, as quais atuam como “ferramenta a serviço de um exercício do poder
gestado na sociedade disciplinar”. Em sua institucionalização, a musicologia se encarrega de
“uma função normativa, ‘reguladora’ da prática interpretativa, da performance” por meio de
um “processo engendrado na subordinação e na submissão do atuante e da atuação à
normatização dada por esta ferramenta.” (BITTAR, 2012, p. 46). Neste sentido, a autora parte
do contexto histórico-político que embasa seu pensamento e aciona o funcionamento desta
disciplina contextualizando-a em sua própria história. O que é detalhado no trecho que segue:

Embora a musicologia oficial tenha sua origem na História da Música e na Teoria da


Música, quando tece e emite seus conceitos, exime-se de fazê-lo contextualizando a
si mesma e aos seus conceitos na própria história da mentalidade de onde provém.
Considero esse posicionamento, muito comum nas grandes instituições de ensino,
como um gesto de manutenção de poder. (BITTAR, 2012, p. 61)

Bittar (2012, p. 46) ainda abre espaço para uma crítica originada nos estudos literários
que parte de conceitos elaborados e construídos pelo medievalista suíço Paul Zumthor,
enxergando que a redução da obra de arte em sistemas analíticos – e a autora lê
“musicológicos/analíticos” se referindo à musicologia e à análise “quando instrumentos
76

didáticos” – “constituiu um trabalho pedagógico útil e talvez necessário, mas de fato (no nível
em que o discurso é vivido), ele nega a existência da forma. Essa, com efeito só existe na
‘performance’” (ZUMTHOR, 2007 apud BITTAR, 2012, p. 46). Desta maneira, segundo a
autora, aos dispositivos disciplinares atribui-se a função de “reguladores universais” da
performance musical, “sobrepondo-se à ação performática”.
Por essas e outras vias, a tese de doutorado de Valeria Bittar trava uma proximidade
com o pensamento de Michel Foucault. Através da ativação de conceitos desenvolvidos pelo
pensador francês a pesquisadora parte para a concepção de um posicionamento crítico
proposital diante da formação em música que se encontra “dentro de um macro sistema sócio-
cultural” representativo da época moderna e se manifesta por meio de “reflexos de uma
modalidade de poder marcada pela mentalidade do ‘regime disciplinar’, da ‘vigilância
hierárquica’, produtora dos ‘corpos dóceis’”. (BITTAR, 2012, p. 246) Isso é manifesto na
música diferentemente do que acontece na dança e no teatro, como é descrito no trecho
extraído de sua tese de doutoramento:

Ao contrário do ocorrido em outras áreas das artes performáticas, como o teatro e a


dança, a formação do músico, tanto o popular quanto o erudito, é ainda fortemente
dominada por tais conceitos, que permeiam de tal forma sua mentalidade a ponto de
sua própria existência como músico ser colocada em questão, quando a incontestável
eficiência da formação tradicional é colocada em cheque. (BITTAR, 2012, p. 246)

Para a autora, sem este posicionamento crítico-reflexivo em relação às condutas da


performance musical, não seria concebível indicar possíveis mudanças nesta mentalidade que
considera ter anulado o núcleo da própria performance. Esse núcleo, ao qual a autora se
refere, é composto por “músico e ato” que, mediante uma transformação na mentalidade ora
observada, poderia ser reativado na experiência musical.

Se não for operacionalizada neste estrato da cultura ocidental constituído ao longo da


história sócio-política, como foi aqui demonstrado, e que foi herdado numa ação colonizadora
(docilizadora, sancionadora, vigilante, examinadora) de nossas práticas e de nossos corpos; se
há a possibilidade de existir um fazer musical que se concretiza fora do padrão metodológico
fortemente estabelecido em torno da centralidade europeia e norte-americana da formação e
produção acadêmicas em música; se o conhecimento científico, delineado principalmente pela
via da racionalidade, como regulador dos modos de fazer música que estabelecem uma
“relação analítica com o corpo” (CASTRO, 2009, p. 111-112) não forem sustentados como
substância nuclear da performance; quais caminhos poderiam direcionar o músico a um outro
77

posicionamento dentro da experiência musical? Como seria possível deslocar a abordagem


sistemática vigente e ativar o núcleo do Ato em música (BITTAR) constituindo-o de
elementos outros que não a centralidade racional de compreensão e autonomia da notação?
Mais à frente nas considerações finais deste trabalho, não pretenderei trazer
exatamente respostas a essas questões, mas observar alguns caminhos que colocam em
reflexão os próprios conceitos de performance, de teatro, de dança, de cena, de corpo, de
vocalidade e de comunicação para gerar discussões e perceber a possibilidade de existências
reais de outras vias para a formação em música que se direcionam à mudanças de paradigmas
dispostos hoje dentro da performance musical (prática, didática e pesquisa) e em performance
(Ato-música, concretização da forma sonora, experiência musical).

2.2.3 Recursos para o bom adestramento na técnica pianística

No capítulo anterior foi possível observar, a partir da tese de Valeria Bittar, como a
formação em música funciona dentro dos mecanismos “disciplinares” nas relações de poder
apontados por Michel Foucault, no caso de práticas ocidentais. O trajeto que pretendo
percorrer junto a esses autores não tem como finalidade, propriamente, validar ou não as
práticas e discursos que foram e serão observados, ou verificar se tal método é “eficaz” ou não
é “eficaz” no processo de formação musical; mas pretende perceber o funcionamento, os
modos de fazer (CASTRO, 2009) que conduzem o músico em seu caminho de formação para,
posteriormente, pensar em outros possíveis caminhos ou desvios de abordagem para a
experiência musical em técnica-performance.
Neste sentido, movimento a reflexão para o âmbito da técnica pianística, a partir de
minha própria inquietação a este respeito (apontada logo no primeiro capítulo), esboçando
algumas observações em torno de ações operacionalizadas pela pesquisa e didática
desenvolvidas nesta área. Mais uma vez, o objetivo não é verificar a ‘eficiência’ ou não das
propostas técnico-didáticas dos diferentes teóricos estudados, mas, a partir da observação dos
‘discursos e não discursos’, perceber como nos é dado seu “funcionamento” de acordo com as
“relações de saber e poder” na sociedade conforme visto desde o início deste capítulo em
Foucault (2014). Para mapear as práticas da técnica pianística tomarei como base,
principalmente, três trabalhos de autores brasileiros (Richerme, Póvoas e Kaplan) que traçam
seus estudos em reflexão e diálogo com teóricos fundamentais para o histórico e atualização
da técnica pianística, representando, de forma geral, as modalidades de atuação nesta área.
78

De início me aproximo das ideias de Claudio Richerme contidas em seu livro A


técnica pianística: uma abordagem científica (1996), para mapear a operacionalização de um
discurso que se fundamenta em pressupostos analítico-científicos. Ao propor “uma
abordagem científica” para a técnica pianística, o autor traz bases esclarecedoras do ponto de
vista das “ciências físicas e naturais, em especial a Fisiologia, a Mecânica e a Acústica”
defendendo o estudo analítico da técnica. Em diálogo com as teorias na área do piano
desenvolvidas ao longo dos séculos XIX e XX avalia aspectos mecânicos da “execução”
(termo utilizado pelo autor) e observa também erros contidos nas afirmações de alguns
teóricos. (RICHERME, 1996, p. 12)
No primeiro capítulo do livro o autor irá escrever um Breve histórico das teorias da
técnica pianística e observar o surgimento de vários trabalhos teóricos nesta área desde a
metade do século XVIII, com o “aparecimento do pianoforte de martelos”. (RICHERME,
1996, p. 17) Baseando-se em Gerd Kaemper (1965) observa como esses trabalhos se
desenvolveram geralmente de forma independente, juntamente com aqueles escritos nos
séculos XIX e XX, o que resultou em muitos desacordos teóricos. Salientará que nos
trabalhos do considerado “período pré-científico” da técnica pianística, até meados dos anos
1880, a técnica era discutida num âmbito prático por meio de grandes pianistas como Liszt,
Chopin e Thalberg, juntamente com seus alunos19. Richerme constata então que os desafios
técnicos desses grandes pianistas eram superados “inconscientemente” por um inatismo
“experimentalista”, quando cita Liszt, por exemplo, o que dificultava a transmissão teórica
dos conhecimentos técnicos da prática pianística. (RICHERME, 1996, pp. 18-21)
O autor relata que ainda meio século após este período, as maneiras mais conhecidas
de ensinar piano permaneciam “sem melhores alterações”, proferindo aos estudantes alguns
pressupostos que tinham como “solução para todos os problemas técnicos [...] a repetição
obstinada: muitas horas diárias de escalas em todas as tonalidades e nas mais variadas
formas”. (RICHERME, 1996, p. 19) O que resultará em uma técnica de braço rigorosa, que
visava “o desenvolvimento da igualdade dos dedos” e sua fortificação, gerando “tensão e
rigidez nos pulsos e braços”. (GERIG, 1985 apud RICHERME, 1996, pp. 19-20).
Neste percurso histórico, Richerme relata a importância dos pioneiros das escolas
técnicas modernas como Ludwig Deppe e Theodor Leschetizky que são consideradas, de
maneira ampla e geral, as principais influências para a técnica desenvolvida no século XX.

19
Com exceção dos livros pioneiros sobre a técnica de executar instrumentos de teclado, como os dos cravistas
François Couperin (1716) e Carl Philipp Emanuel Bach (1762) e dos trabalhos teóricos de Clementi (1801), de
Humel (1828) e de Czerny (1839), por exemplo, que abarcavam inúmeros “estudos e exercícios para serem
executados ao piano”.
79

Assim como Amy Fay (aluna de Deppe) que escreve a respeito da maneira como alguns
professores ensinavam piano entre 1869 e 1875. (RICHERME, 1996, p. 20) O autor relata
que, ao compreender que suas dificuldades técnicas se tratavam de problemas mecânicos, Fay
elabora algumas explicações como: “não elevar alto os dedos para melhorar a qualidade do
toque e o desempenho muscular, evitar a rigidez do pulso, não forçar os dedos, tocar ‘com
peso’ [...] e outras”. Após publicações do livro de Amy Fay, no final do século XIX, surgem
novos trabalhos com delineamento analítico, o que conforma uma fase da técnica pianística
com viés mais científico, que enfatizava aspectos como “relaxamento, o uso do peso e de
movimentos do braço, a posição arcada, arredondada da mão” (RICHERME, 1996, p. 21)
Segundo o autor, no final do século XIX e início do século XX surgem as escolas
pianísticas de abordagem “anatômico-fisiológica”, na linha de Marie Jaell, Oscar Raif e
Tobias Matthay, que lançam “ideias valiosas” acerca do toque, sonoridade e sensibilidade
desenvolvidas, no entanto, Richerme irá qualificá-las como “teorias imprecisas e
extremamente confusas”. O pianista dá continuidade à explanação histórica, afirmando que, a
partir de 1905, o aparecimento de estudos e teorias acerca do relaxamento e do envolvimento
do peso natural do braço na técnica pianística direcionaram ao que o autor considerou
“exageros”. Tais exageros foram bastante criticados, do mesmo modo que as técnicas
propostas anteriormente. Neste terreno difuso, teorias apontam falhas e imprecisões
fisiológicas embora continuassem sendo ampliadas e renovadas ao longo da década de 1920
“quando a investigação científica atinge um dos seus pontos culminantes.” (RICHERME,
1996, p. 22).
Desta forma, surgem questões acerca dos aspectos indispensáveis de diversas escolas
como as seguintes postas por Richerme (1996, p. 23):

1) Como se pode tocar com um braço relaxado se os movimentos são, em sua maioria,
causados por contrações dos músculos?
2) Como pode o peso do braço substituir as contrações musculares, se contrações dos
músculos dos dedos são necessárias para sustentar esse peso?
3) Como se pode tocar uma sequencia de notas sem contrações e movimentos ativos
dos dedos?
4) Seria possível para um pianista controlar a qualidade tímbrica do som do piano?

No intuito de resolver essas questões alguns estudiosos da técnica, como Otto


Ortmann, realizam estudos e experimentos diversos. Em 1925, Ortmann “com o auxílio de
engenheiros monta um laboratório com muitos aparatos mecânicos e elétricos” no
“departamento de pesquisa do Peabody Conservatory de Baltimore, Estados Unidos”, onde
80

embasa suas análises em princípios já existentes da técnica pianística a partir de


conhecimentos nas áreas de “Anatomia, Fisiologia, Mecânica e Acústica”.
As investigações dirigidas à Mecânica e à Fisiologia ainda são apontadas nos trabalhos
do “cientista alemão Eugen Tetzel” (1927) e do “norte-americano Arnold Schultz” (1936). No
trecho abaixo, Cláudio Richerme irá comentar como, neste início do século XX, essas
primeiras pesquisas de cunho científico, como aquelas propostas por Ortmann, foram
duramente criticadas:
Suas conclusões, bem como as de outros cientistas da época, chocaram os meios
musicais, resultando em numerosas polêmicas. Muitos pianistas não aceitaram as
teorias de Ortmann, passando inclusive a admitir a invalidade da aplicação de
estudos científicos na técnica pianística. E em muitos pontos os pianistas tinham
razão em não aceitar tais teorias. Embora Ortamnn tenha o indiscutível mérito da
seriedade científica e tenha chegado a descobertas válidas, suas conclusões
apresentam uma sequência de erros científicos de maior ou menor gravidade, em
pontos de essencial importância para a técnica pianística. (RICHERME, 1996, pp.
23-24)

Diferentemente do que aconteceu nesta reação, hoje os meios musicais têm se apoiado
continuamente sobre pressupostos científicos, conforme observa Valeria Bittar no capítulo 3.1
de sua tese.
Cláudio Richerme destaca, entre os trabalhos pesquisados por ele em seu livro, a
“profundidade e tratamento analítico dados pelos teóricos Tetzel, Ortmann e Schultz”, assim
como a importância dos trabalhos de Kaemper e Gerig enquanto propostas histórico-críticas.
Pesquisas que, segundo observa, são como fundamento para os trabalhos posteriores de
cientistas e teóricos que “apenas repetem, sintetizam ou simplificam teorias anteriores.”
(RICHERME, 1996, p. 25). O autor irá considerar que alguns pesquisadores, atuando
paralelamente em outro terreno metodológico, enfocam seus trabalhos em “aspectos
puramente psicológicos” e em “aspectos do funcionamento do sistema nervoso central”, de
acordo com o que Kaemper (1965 apud RICHERME, 1996, p. 25) irá observar, conforme
mostrado no trecho que segue abaixo:

Meio século após os débuts em 1885, os teóricos começam a repisar, a se repetir, ou


então a tratar a técnica de um lado completamente diferente, enfatizando a
representação interior – como Gieseking e Martienssen – ou o aspecto psicológico –
como Kurt Schubert.

A partir do trabalho da pianista e professora Maria Bernardete Póvoas, observarei


adiante, no capítulo 2.2.4 deste TCC, que tais abordagens postas por Richerme em seu Breve
81

histórico das teorias da técnica pianística parecem caminhar em duas vias distintas de
práticas e discursos neste âmbito, a saber: uma de ordem física, racional-analítica (fisiologia,
mecânica, anatomia) e outra de ordem mental, mas também racional-analítica (psicologia,
neurologia).
Enxergo que Cláudio Richerme caminha em seu livro, e especialmente no capítulo
terceiro, seguindo os passos dos trabalhos científicos que analisa, dentro de uma abordagem
técnica delineada por informações anátomo-fisiológicas, biomecânicas e neurológicas.
Pretendendo, desse modo, responder de maneira científica, às questões acima mencionadas.
Este conhecimento, apesar de ser de enorme utilidade para o entendimento do mecanismo
corpóreo na prática instrumental, opera com enfoque na “compreensão sistemática e racional
do corpo” (BITTAR, 2012). Isto se evidencia mesmo quando, ao longo do livro, o autor
relaciona amplamente o conhecimento científico com a prática pianística do estudante
(capítulos didáticos), gerando mais uma série de prerrogativas biomecânicas para o
movimento do que a vontade de “experimentação” técnica do pianista (BITTAR, 2012).
Desse modo, é possível visualizar uma lida com a técnica instrumental em relação ao
corpo do instrumentista que toca piano, muito semelhante à lida com o texto musical na
atividade de interpretação/execução, justamente no que diz respeito ao distanciamento da
experiência musical em performance e ao enfoque no aumento de compreensão de
informações (BITTAR, 2012) que, no caso específico da técnica, será sobre o corpo. Enxergo
que é a este tipo de distanciamento que Cook (2006) se refere ao entender o paradigma do
corpo na performance contemporânea como “um terreno de resistência ao texto” (vide
glossário introdutório), ou seja, de resistência à quantidade de compreensão e de informação
(BITTAR, 2012) que opera de forma abstrata e “normatizadora” (FOUCAULT, 2014) no
fazer musical, seja em relação ao som codificado ou ao corpo codificado.
Observarei adiante do item 2 do capítulo 2.2.4 que, em um segundo momento, esta
compreensão se dirigirá diretamente ao texto (código musical), podendo configurar uma
anulação do corpo do músico-pianista.
Retomo aqui algumas reflexões postas por mim no início deste trabalho de conclusão
de curso, mais especificamente no primeiro capítulo, acerca dos conceitos listados juntamente
com algumas perguntas, dando prosseguimento às seguintes observações: não é somente
operando num terreno de abstração ao emitir conceitos referentes ao corpo físico, que a
didática pianística se distancia do aprendizado sentido do corpo próprio; mas é também
através da mecanização deste corpo. Claudio Richerme, conforme cito abaixo, colocará em
questão alguns termos utilizados neste âmbito como: flexibilidade, relaxamento muscular e
82

tensão muscular. Contudo, para tecer ou criticar tais conceitos físicos, o autor oferecerá, ao
longo de seu trabalho, uma “análise mecânica”, dando continuidade à construção de uma fala
sobre o corpo que se distancia da experimentação pessoal primeira do corpo de cada um:

Na imensa literatura teórica sobre técnica pianística encontra-se não apenas o


emprego impreciso dos termos citados, mas também muitos outros que não fazem
sentido claro no contexto em que são usados, como por exemplo flexibilidade no
pulso, ou leveza na mão. Obviamente, a mão de um determinado pianista possui um
peso especifico imutável. Quanto ao pulso, todas as articulações normais são
flexíveis, e se flexibilidade for com o sentido de amplitude possível do movimento
de uma articulação, não há técnica pianística que exija amplitude de flexão-extensão
do pulso além da que ele normalmente oferece. Tais termos, quando empregados na
técnica, na realidade se referem indiretamente ao tipo de movimento e ao tipo de
coordenação muscular empregados por um pianista, e é necessário que estes
aspectos sejam cuidadosamente observados para que se possa compreender melhor o
que de fato ocorre na execução. (RICHERME, 1996, p.77, grifo meu)

Mesmo que as importantes considerações sobre a técnica pianística postas por


Richerme partam da observação do corpo, como por exemplo, ao definir a questão
fundamental de toda técnica que é o que denomina “alternância contração-relaxamento”, o
pianista toma uma posição ausente de um referencial sensório próprio do artista, ou, melhor
dizendo, de cada artista.
Enxergo, no quarto capitulo do livro de Richerme, que o pianista aproxima-se da
metáfora do corpo-máquina/homem-máquina, elaborada por La Mettrie (vide capítulo 2.2 e
conforme observo logo adiante com base no trabalho de Valeria Bittar) quando toma como
referência os experimentos de Ortmann realizados com um braço mecânico para investigar as
questões relativas a “peso do braço” e “relaxamento”, como pode ser visualizado nas Figuras
a seguir.

Figuras – Braço mecânico utilizado em experimentos de Ortmann, juntamente com balança


utilizada para medir as relações entre força e peso de acordo com o tensionamento ou não das
cordas dispostas longo do mecanismo do “braço”.
83

Fonte: RICHERME, Claudio. A técnica pianística: uma abordagem científica. São João da Boa Vista, SP. AIR
Musical Editora, 1996, pp. 84-85
84

Quando propõe esclarecer tais questões por meio desses estudos de ordem puramente
mecânica, isolando as partes do corpo, em interface com a fisiologia humana, se refere ao
corpo através de uma operação abstrata e externa à vivência corpórea – materializada
estritamente em um nível mecânico, sem passar pelo fluxo corpóreo daquele que toca piano.
Essas maneiras de abordagem podem ser verificadas e destrinchadas na esfera do discurso,
mesmo entendendo que este caminho apontado pelo pianista, posteriormente, levará para uma
aplicação prática20 na técnica pianística através de exercícios-treinamentos propostos por
Richerme, e mesmo quanto ele define que o modelo de braço mecânico utilizado “está
obviamente longe de reproduzir o funcionamento do braço humano” (RICHERME, 1996, p.
83, grifo meu) – sobre isto, claro que não haveria dúvidas e, no meu entender, já inviabilizaria
a investigação em si mesma.

Ao estudar a concepção de corpo elaborada por Michel Foucault com base no livro “O
Homem Máquina” de La Mettrie, de onde surgiu a noção de “corpos dóceis” (como foi
observado anteriormente), a flautista Valeria Bittar, irá relacionar esta noção diretamente
com a didática da formação em música, a qual considera “anacrônica” e “paradoxal” no que
diz respeito ao corpo próprio do músico, por estabelecer um modelo técnico externo que
deverá ser apenas emulado, através de um treinamento automatizado e esvaziado de sentido,
levado à exaustão. A autora irá esclarecer em detalhe tais considerações no trecho que segue
abaixo:
Esse treino técnico do corpo na didática da performance musical trabalhará também
em uma esfera automatizada, na aquisição de mais uma técnica, que ao mesmo
tempo é apartada do sujeito performador. Isso me faz concluir que mesmo
enxergando o corpo como participante da performance, ainda carregamos esta visão
do corpo totalmente imersa na mentalidade das disciplinas, dentro dessa ênfase
política da coerção, moldadora de nossa experiência enquanto seres únicos, como
continuadores mecânicos do processo disciplinar [...] (BITTAR, 2012, p. 145, grifos
meus)

No que diz respeito a essa “esfera automatizada” na qual também irá operar a técnica
pianística, observo que Richerme, em vários momentos de seu livro, defenderá a
“automatização” dos movimentos aprendidos e bem treinados como parte imprescindível do
processo de desenvolvimento técnico (fisiológico) ao piano. Sendo assim, pode-se considerar
que as propostas de Richerme estão circunscritas numa esfera extremamente “cientificista” e
mecânica, mesmo quando propõe uma “tomada de consciência” dos fenômenos musculares e
nervosos. Neste sentido, o pianista, seguindo os passos de Kaemper, irá afirmar ser
20
Assim essas questões também poderiam ser verificadas na esfera de um ‘não discurso’?
85

“impossível a tomada de consciência de todos os movimentos e sensações”. Acredito poder


abrir aqui um parêntese sobre aquilo que diz respeito à palavra “consciência”, que, em parte
pode seguir o caminho de uma racionalização pura, ou pode seguir o caminho de uma
racionalização e conceituação de algo que foi profundamente percebido e sentido.
Salta à vista o caminho avesso à sensação física que o pianista mostra seguir ao longo
de seu livro, ficando evidente uma certa obsessão analítica pelo detalhamento científico do
mecanismo corpóreo por meio da racionalização e do desejo de que as informações corpóreas
venham da mente e possam ser testadas e treinadas.

É utópico querer desenvolver a sensação cinestésica consciente da contração de cada


músculo isoladamente, e mais ainda querer sentir o estímulo elétrico que corre
através dos nervos. Todavia, é perfeitamente possível, até certo ponto e mediante
algum treino, perceber se uma articulação está relaxada, se há contrações dos
músculos dessa articulação e se essas contrações são ou não fixação muscular. Há
também maneiras práticas de se testarem tais estados musculares, em situações
diversas. (RICHERME, 1996, pp. 90-91, grifos meus)

Conforme relatado no primeiro capítulo deste trabalho, durante os meses em que fui
bolsista de iniciação científica no grupo de pesquisa da professora Maria Bernardete Póvoas,
pude conhecer mais sobre o sentido cinestésico/propriocepção que está profundamente
envolvido nas ações do corpo em movimento, juntamente com trabalhos nas áreas de controle
motor, aprendizagem pianística, dramaturgia corporal e educação somática. Naquela breve
pesquisa pude perceber, além do que foi relatado de início no TCC, como os estudos do corpo
em movimento, incluindo as ciências neurológicas e cognitivas, tomam novos rumos ao longo
do século XX, no sentido de investigar um ‘saber do corpo’ que não parte exclusivamente do
entendimento racional do corpo sobre si mesmo, mas de sua experiência em vida. Como
exemplo disso, podemos trazer o trabalho do neurologista Gerald Edelman, dentre outros
cientistas21, citado por Neide Neves (2008) em seus Estudos para uma dramaturgia corporal
com base na Técnica Klauss Vianna.
Percebo, entretanto, que mesmo aqueles teóricos citados por Richerme que defendem
a consciência e as “sensações táteis” e “musculares”, também tendem a uma racionalização
desta ação que seria primeiramente de ordem corpórea. As teorias desenvolvidas com a
finalidade de esclarecer princípios técnicos, como apoio didático, partem, em meu entender,
de um conceito mecânico do corpo. Poderia ser identificado que estes posicionamentos se
devem às limitações teóricas quanto ao conhecimento do funcionamento do sentido

21
Os trabalhos do neurocientista Antônio Damásio e do biólogo e filósofo Francisco Varela.
86

cinestésico e das interações dinâmicas entre funcionamento do cérebro e movimento corporal


como ferramentas de ativação daquilo que se nomeia consciência.
A questão da consciência, que é abordada no capítulo 4 do livro de Richerme quando
considerará o relaxamento e outros conceitos, me remete de maneira contrária ao princípio da
Técnica Klauss Vianna (TKV) que não separa corpo e mente, indo ao encontro do conceito de
“soma”. Em oficina ministrada dia 14 de novembro de 2017, Jussara Miller, ao surgir um
questionamento sobre a eventualidade de o trabalho de presença corporal acontecer “com a
mente em outro lugar”, esclarece que na TKV a concepção de corpo desvinculado da mente é
insustentável, e que o trabalho daquilo que é denominado por Klauss Vianna de “escuta do
corpo”, só é possível quando temos presente “corpomente como unidade”. Ela exemplifica o
caso de um momento que tentarei transcrever aqui: no momento em que escrevo/dígito estas
palavras, não é meu pensamento localizado em um lugar externo a mim que elabora o texto
que escrevo/digito, mas sou eu “incorporado”, aqui e agora, que processo as informações com
as quais me contaminei nas leituras e vivências, estabeleço relações entre as coisas com as
quais entro em contato e conecto o trabalho escrito com minhas experiências e sensações,
tudo em fluxo corpóreo (Jussara Miller, 2017, interpretação de informações verbais).
É muito comum encontrarmos nos trabalhos que tentam conceituar o corpo,
referências à consciência. Muitas vezes esta palavra surgirá num âmbito mais próximo da
racionalização, ou melhor, da mentalização, de uma organização mental, um planejamento
externo, ou interno, ou mesmo anterior às ações do corpo. Desse modo, ponho em observação
que a própria concepção de consciência como algo distanciado do fluxo corpóreo já
caracterizaria uma ausência corporal. Diferente do que acontece no caso da consciência como
awareness (vide glossário introdutório). Neste sentido, caminharei nas considerações finais do
TCC, juntamente com princípios da TKV na tentativa de provocar um deslocamento de
abordagem para condutas frequentes no âmbito da técnica pianística que contam com a
presença do corpo (útil, habilidoso, submisso?).
Devido a limitações de tempo não aprofundei mais as relações destas observações
frente a todo o trabalho de Richerme, o que acredito que poderia gerar uma abertura a outras
perspectivas e possibilidades de abordagem junto ao trabalho técnico sugerido pelos
exercícios do autor. Porém a observação inicial do tipo de abordagem proposta é suficiente
para revelar alguns aspectos discursivos e alguns dispositivos estratégicos da metodologia
proposta para o “desempenho” pianístico.
87

O trabalho proposto por Claudio Richerme traz importantes esclarecimentos


científicos que podem ser utilizados como base e conhecimento prévio para a investigação-
experimentação técnica do pianista, porém, conforme pudemos visualizar, a abordagem
proposta por ele se distancia de uma experimentação própria – operando (como em outras
propostas semelhantes) na esquematização de um “treinamento” anterior ou desvinculado
daquilo que é considerado “aptidões puramente musicais” (RICHERME, 1996, p. 207), a
atividade performativa propriamente – caracterizando, deste modo, meios, ou seja, “táticas”
(FOUCAULT, 2014) que terão como objetivo, posteriormente, o resultado sonoro/musical
(resultado, fins), salientando uma determinada abordagem de técnica e da técnica pianística
enquanto “produto” (COOK, 2006) e “estratégia” (FOUCAULT, 2014), na medida em que
estas não podem ser desvinculadas da performance/interpretação. Ademais, o delineamento da
pesquisa em A técnica pianística: uma abordagem científica apresenta um viés ergonômico e
médico (preventivo-terapêutico) bastante evidente. Contudo, vale apontar que o autor deixa
claro a todo o tempo as limitações que enfrenta no esforço de registrar sua metodologia
prática em texto, e considera também possíveis particularidades e diferenciações na prática
dos exercícios de acordo com as necessidades de cada aluno.

Com as limitações que um trabalho escrito pode apresentar, as sugestões didáticas


desta tese visam traçar diretrizes básicas para o ensino da técnica pianística, bem
como alertar para erros que possam ser encontrados com maior ou menor frequência.
Pouco será visto com relação a possíveis reações individuais, ou a uma abordagem
mais profunda de aspectos puramente psicológicos do aprendizado (RICHERME,
1996, p. 91)

Neste âmbito, recorro mais uma vez ao pensamento da flautista Valeria Bittar que no
capitulo 2.2 de sua tese analisa a metodologia proposta por Kees Boeke e Walter van Hauwe
para o estudo técnico da flauta doce. Percebo que, mesmo em se tratando de instrumentos
situados em contextos histórico-culturais bastante diferentes entre si, a “mentalidade do
método canonicista” (BITTAR, 2012, p.128) que está conectada à ”interpretação musical
neutra” e, no caso do piano, foi ativada e potencializada no período romântico da música, terá
seu “modus operandi” nos procedimentos presentes nas seguintes afirmações de Bittar (2012,
p. 129):
 A técnica, proposta pelo método, existe para solucionar pontualmente
questões surgidas na decodificação do texto musical;
 A técnica é intensamente detalhada, visando a alta capacitação do
performador, como também o melhor e o correto desempenho;
 A didática e a técnica propostas têm em mente não a performance, mas o
não erro. Ou: a performance resume-se na mais perfeita emulação do
modelo externo;
88

 Sobre a “emoção pessoal abstrata” (VAN HAUWE, 1984) não se fala, não
se coloca em discussão, pois num método não há diálogo, diferentemente
dos tratados mais antigos, construídos à maneira clássica greco-latina, em
formato de diálogo entre a experiência do mestre e a do aprendiz;
 No método musical, a técnica é tecida separadamente de todo o processo
criativo; sendo assim, a aquisição da técnica é objetivo e finalidade;
 A técnica é entendida como uma compreensão que o corpo tem daquilo
que será necessário ser realizado no cumprimento dos padrões externos
apresentados pelo texto musical e pelo criador (quase que anônimo) do
método;
 Os caminhos que cada performador trilha para acionar seu corpo no intuito
de cumprir esses objetivos são desconhecidos e considerados
desinteressantes, por não estarem diretamente conectados com o material
textual da música;
 O treino é mecanizado e torna-se o centro, o objetivo final do treinador e do
treinado;
 A performance restringe-se à habilidade em adequação ao treino proposto
pelo método, visando desempenho = execução. Busca-se o acerto,
evitando-se, a todo custo, o erro e o improviso (motivos para a
desqualificação).

Dando continuidade a essas observações, e retomando o diálogo com o pensamento de


Michel Foucault, no capitulo 2.3 de sua tese, Bittar (2012, p. 141), também irá perceber como
os métodos administrados aos instrumentistas musicais e ao cantores desde o século XVIII se
aproximam das características que foram listadas anteriormente. Assim, faz referência ao
conceito da “sociedade dos corpos dóceis” de Michel Foucault, no contexto que foi visto nos
capítulos 2.2 e 2.2.1 deste TCC, mentalidade que se entende ainda atualmente “no fazer e no
pensar musicais.” (BITTAR, 2012, p. 141). Valeria sintetiza a maneira pela qual a pedagogia
que norteia a performance musical será transmitida através do desenvolvimento de
habilidades corporais, com inserção e atuação “ao longo de quatro séculos” permeando
também os ideais da técnica e da didática, conforme os apontamentos seguintes:

 A técnica é uma só e pode ser aplicada a todos;


 A relação entre o método e o executante do método é uma relação entre um
coletivo anônimo executante e uma representação repetida de um modelo
abstrato de perfeição (cânone) de execução musical, apresentado pelo criador do
método (geralmente alguém com alto status);
 O individual é reconhecido através das provas, exames e concursos, onde a
partir da homogeneização geral irá aparecer o individual, revelado por seu
maior ou menor (geralmente menor) desempenho das habilidades prescritas
(FOUCAULT, 2007);
 Essa técnica impõe-se a partir de idealizações de modelos alheios à experiência
única de cada ser executante;
 Mesmo que os enunciados técnicos partam de questões corporais, esse aporte
corpóreo é direcionado para o domínio perfeito de padrões externos ao próprio
corpo executante;
 A técnica apresentada não tem a intenção de gerar no executante a vontade da
investigação própria, tanto do instrumento musical quanto do corpo que fará
soar o instrumento musical;
89

 Os exercícios corporais propostos são estritamente ligados à execução do texto


e contam com um padrão de “treinamento” (VIGARELLO, 2008) gerado na
“sociedade da disciplina” (FOUCAULT, 2007) que prevê o desenvolvimento e
o aumento das habilidades, das capacidades, das aptidões corporais
direcionadas. A partir do padrão do treinamento instaurado no século XIX, cuja
ferramenta é a repetição desacordada e mecânica, a performance musical
aproxima-se do conceito da performance do desporto, cuja finalidade é o
desempenho e a demonstração (exibição) das habilidades;
 Como dito acima, a repetição de movimentos corporais necessários à execução
deve ser mecânica, automatizada e o corpo individual que fará esses
movimentos deve adequar-se ao exigido e à ergonomia do instrumento. As
ações corporais e, consequentemente, o gesto, não partem do conhecimento e da
percepção de cada corpo de cada ser; pelo contrário partem do controle de
partes separadas do corpo, ideia baseada nas diferenças de funções de cada uma
destas partes: mãos, dedos, braços, ombros, cotovelos, boca, lábios, língua,
pescoço, cintura escapular, musculatura respiratória dentre outras.

Considero que as reflexões propostas por Valeria Bittar podem esclarecer por onde a
“mentalidade das disciplinas” e dos “corpos dóceis” será investida, de forma geral, nos modos
de fazer e aprender música dos séculos XVIII, XIX e XX reverberando nas condutas musicais
atuais, a despeito das mudanças de paradigmas que já ocorreram em diversas áreas
relacionadas ao estudo técnico-artístico.

2.2.4 Ação pianística – vias e possíveis desvios por uma abordagem somática

Neste capítulo, propondo um breve mapeamento, a partir das primeiras partes da tese
de doutorado da pianista Maria Bernardete Castelan Póvoas, intitulada Controle do movimento
com base em um princípio de relação e regulação do impulso mecânico: possíveis reflexos na
otimização da ação pianística (1999), irei perceber: duas vias [1) e 2)] de atuação da técnica
pianística que representam as concepções de alguns teóricos, e depois como a “evolução”, ou
melhor dizendo o caminhar da técnica pianística, vai ao encontro, no decorrer do século XX,
de uma proximidade com as sensações físicas de quem toca piano (cinestesia), relacionando
percepção do movimento e resultado sonoro (já introduzido no “glossário” com o conceito de
ação pianística em Póvoas). Neste sentido, juntamente com o pianista José Alberto Kaplan
(1935-2009) em seu livro Teoria da aprendizagem pianística: uma abordagem psicológica
(1987) encontro, a despeito de alguns paradoxos22, um possível desvio [3)] à abordagem
convencional da técnica pianística, onde o autor considerará uma unidade “psicomotora” – a
meu ver, em consonância com as ciências psicológicas e cognitivas que se encaminham a uma
transformação “epistemológica”, em diálogo com a filosofia e o teatro, passando a entender
22
Apesar de alguns pressupostos de Kaplan irem em direção aos aspectos desviantes que me proponho observar
adiante, seu terreno teórico opera na mentalidade do “automatismo”, do “treinamento”, da “interpretação de uma
obra musical escrita”, dentre outros. Consultar Kaplan (2008, 1987 1ªed.).
90

corpomente como unidade nas ações físicas (Vide NUNES, 2009) – e quando Kaplan defende
um aprendizado técnico-pianístico que se aproxima das sensações do corpo de quem toca
piano por meio da propriocepção, como foi observado já de início no primeiro capitulo do
TCC quando relato meu estudo junto à iniciação cientifica.
Começo a traçar aqui algumas observações – ainda que superficiais devido a limitações de
tempo e de prática na profundidade metodológica com a qual me deparo neste capítulo segundo –
acerca de discursos e não discursos presentes na ação didática (e consequentemente técnico-
performativa) da prática pianística, tomando como base as retrospectivas históricas lançadas no
primeiro capítulo da tese de doutorado de Bernardete Póvoas (1999). Nesta retrospectiva
histórica pude encontrar e listar ao menos três posicionamentos os quais consigo relacionar,
de forma mais ou menos consonante, com a noção de “sociedade disciplinar” e que vejo
permear o discurso da didática da performance especificamente voltada ao piano. São eles:

1) O corpo físico por um viés mecânico-analítico


Este primeiro apontamento caracteriza o que considero como uma primeira via de
formação para o fazer pianístico, que se aproxima da mentalidade da “sociedade disciplinar”
no que diz respeito aos “recursos para o bom adestramento” do corpo do pianista
(FOUCAULT, 2014). Neste caso a questão corpórea é lidada num campo substancialmente
físico e se direciona para um treinamento exaustivo caracterizado pela repetição mecânica
automatizada das ações motoras, esvaziada de “atenção” e de sentido. Tendo em vista o
“investimento político” do corpo também em nível “microfísico” por meio de medidas
“tecnológicas” de treinamento do corpo, onde se manifesta uma padronização ou
“homogeneização” das multiplicidades no processo de ensino-aprendizagem. (FOUCAULT,
2014). São abordagens delineadas por campos da mecânica, da anátomo-fisiologia, das
engenharias e de outras disciplinas que tendem a aumentar a “utilidade” do corpo do pianista
em desempenho técnico (de acordo com Foucault [2.1 e 2.2] na medida em que as habilidades
do corpo aumentam, aumenta também o poder e o controle sobre ele através da sujeição).
Seguem alguns exemplos relatados pela artista Maria Bernardete Póvoas no primeiro capítulo
de sua tese que, conforme observo, delineariam a abordagem ora apresentada:

Embora questões ergonômicas como as da postura diante do teclado e da posição


ideal das mãos sobre o teclado já fossem discutidas por professores como C.P.E.
Bach e J.L. Dussek (1760-1812), nos seus primeiros cem anos de existência a
pedagogia do piano foi construída basicamente sobre poucos princípios, entre eles:
“(1) Somente dedos devem ser usados; conseqüentemente, o braço e o antebraço
devem estar fixados. (2) Treinamento técnico é um procedimento puramente
91

mecânico, exigindo muitas horas de prática diária”. (KOCHEVITSKY, 1967, p.3).


(PÓVOAS, 1999, p. 12)

Assim, é aconselhada tanto uma fase de investigação prévia à ação, quanto uma
segunda fase de acompanhamento [diferente de uma investigação na ação, ou em
ação, ou uma “cognição na ação” como pronuncia Nunes, 2008], ou seja, a
necessidade de uma constante e minuciosa análise dos aspectos técnico e musical
como um procedimento a ser praticado durante todo o processo de treinamento.
(MATTHAY, 1912 apud PÓVOAS, 1999, p. 28)

2) A ação da mente em detrimento do corpo anulado


Enquanto o fazer pianístico, numa primeira via de atuação, perpassa o corpo por uma
abordagem científico-mecanicista estritamente direcionada ao desenvolvimento de
habilidades motoras, surge uma segunda via estratégica para a prática pianística que se opõe
ao físico. Partindo do bom desempenho no trabalho mental amplamente controlado onde a
possibilidade de erro é abolida, esta via se aproxima da mentalidade analisada de acordo com
Bittar (2012) na primeira parte deste capítulo, que é operacionalizada pela racionalidade do
músico diante do texto musical, numa abordagem teórico-analítica: este fazer tem como
núcleo a “informação”, a “compreensão” e, consequentemente, a “neutralidade” do intérprete-
pianista em suas ações.
Tal enfoque aparece de forma bastante elaborada e já praticamente solidificada como
didática em especial nas propostas de Karl Leimer e Walter Gieseking de acordo com os
trechos da retrospectiva histórica da técnica pianística elaborada por Póvoas (1999) abaixo
citados:
Sua abordagem preconiza que [anteriormente ao início do trabalho prático a ser
realizado no instrumento] “a técnica é um produto do trabalho mental” (LEIMER,
1931, p.10) e que o estudo detalhado permite conduzir o trabalho no sentido de uma
maior segurança devido ao processo mais rápido de memorização. (GORDON in
USZLER, 1991, p.344). Em Leimer, a condição indispensável para o treinamento, o
qual ele denomina igualmente “adestramento”, é o conhecimento prévio e exato da
“imagem escrita da obra a estudar”. (LEIMER, 1931, p.14). Para a realização do
treinamento da memória ele aconselha a ampla reflexão, primeiro ponto capital de
seu sistema (p.45) e recurso que torna possível “aprender a concentrar-se e a manter
a concentração de forma ativa”. (LEIMER, 1931, p.10). O aperfeiçoamento deste
procedimento oferece condições de a execução técnica ser também preparada por
meio da reflexão. (LEIMER, 1931 apud PÓVOAS, 1999, p. 24, grifos meus)

Na Alemanha, Karl Leimer implementa um método de total racionalização na


utilização de movimentos, apresentando como principal diferença entre os pianistas
formados por ele e por outros professores “a abstenção de todo movimento que não
seja absolutamente necessário”. Como base inicial de seu sistema, indica o trabalho
do “ouvido” como o controlador da percepção do ritmo, da dinâmica e da
sonoridade. (LEIMER, 1931, p.44 apud PÓVOAS, p.23, grifos meus)
92

Como pode ser lido a condição de “adestramento” no processo de aprendizagem é


declaradamente proferida e almejada, partindo, também, para uma homogeinização na
aplicação do método nos fazeres dos intérpretes-aprendizes, conforme trecho seguinte:

A postura pedagógica de Leimer é a de que o seu sistema é um método possível de


ser aplicado “a todos os discípulos com pequenas modificações”. (LEIMER, 1931,
p.13). Embora não detalhe a parte físico-muscular do aparato envolvido na ação
pianística, o sistema aqui apresentado serve, no entender da autora, como um
referencial na evolução da técnica em termos da racionalização de movimentos
vinculada à reflexão analítica do texto musical. (PÓVOAS, 1999, pp. 25-26, grifos
meus)

3) Um possível desvio: pela unidade corpomente


Conforme foi observado, ora se tem uma lida com o corpo físico caracterizada por um
uso técnico-mecanicista em um viés anátomo-político de investimento corpóreo, ora se
manifesta a afirmação do trabalho mental deliberado em detrimento do físico, caracterizando
uma operação abstrata que toma distância do fenômeno sonoro materializado pelo corpo. Este
trabalho observa e pretende propor caminhos desviantes a estas concepções técnicas quando
se dá conta do insustentável dualismo corpo/mente, enxergando uma unidade que é
impossível de ser desvinculada diante do processo de aprendizagem e prática da performance
musical (e, no caso deste capítulo, pianística).
O esforço de elaborar a discussão proposta neste TCC tendo como fio condutor o
corpo pretende provocar um deslocamento: de uma abordagem conceitual-mecanicista para
uma abordagem somática. Neste caso não há um posicionamento exclusivo a favor nem
contra a ação do corpo ou da mente na prática pianística em performance, mas um
posicionamento unificador que vai enxergar no corpo vivo23 o acionador para os processos de
criação em performance musical. Nesta abordagem, o soma – ao invés de ser apartado e
distanciado do fazer musical e das relações em performance por uma situação de submissão,
ora ao padrão técnico-mecânico (adestramento do corpo), ora ao texto musical (adestramento
da mente) – seria direcionado a uma “escuta de si”, desencadeadora da “percepção” e da
“atenção” que podem conduzir o músico a uma atitude de “investigação” e “experimentação”
próprias diante do fazer técnico-musical. (MILLER, 2007; BITTAR, 2012).

23
Acerca da concepção de corpo adotada no presente trabalho já foram propostas reflexões (1) na introdução
quando exponho o conceito de soma e (2) no primeiro capítulo, quando relato fruto da pesquisa realizada na
iniciação científica sobre o sentido cinestésico e o funcionamento integrado de cérebro e corpo em movimento,
onde a ideia de trabalho mental apartada do dinamismo do corpo físico é insustentável.
93

Enxergo isso, de acordo com o caminho metodológico que tento trilhar no início deste
capítulo, juntamente com Foucault, e em conformidade com o que Bittar irá apontar em
relação à formação do músico na lida com o corpo atuante em performance:

O foco dirigido ao texto musical e ao mesmo tempo à repetição de modelos técnicos


não experienciados pelo aluno aponta para uma formação que opera no âmbito da
separação e da abstração, partilhando informação e percepção, mente e corpo. O
excesso de informação e o peso excessivo da compreensão, da intelecção, em
detrimento de uma formação que parta da percepção e da integração entre intelecção
e sujeito na formação do músico, demonstra que, da mesma maneira que o
positivismo divorciou a Estética da Música dos estudos de História da Música
(DAHLHAUS, 1976, pp. 105-110), seguindo as pegadas cientificistas, a
musicologia tenta até hoje separar a performance da própria música, gerando a ideia
de que a arte é “apagada” [...] da própria arte, considerando-se “a possibilidade
extrema de uma História da Arte sem a arte” DAHLHAUS, 1976, p. 105 [...] e de
uma música sem som. (BITTAR, 2012, p. 47, grifo meu)

Neste terreno em que também opera a didática da técnica pianística, desejo vislumbrar
a possibilidade de um deslocamento frente às primeiras abordagens. Considero que a
percepção de um possível desvio se deu, num primeiro momento, na oportunidade que tive de
atuar como bolsista de iniciação científica no grupo de pesquisa Ação pianística e
coorderação motora coordenado pela professora Dra. Maria Bernardete Castelan Póvoas
(experiência relatada no primeiro capítulo e em momentos deste segundo). O livro do qual
extraio o embasamento para essas observações é escrito por José Alberto Kaplan, intitulado
Teoria da aprendizagem pianística: uma abordagem psicológica (2008). Visualizo essa
possibilidade de desvio na medida em que este autor elabora suas proposições em defesa de
uma unidade “psicomotora” e de um “estudo de sensações” no processo de aprendizagem
pianística (KAPLAN, 2008). Para isso, contudo, me deparo com o paradoxo de lidar com uma
mentalidade ainda assentada no automatismo e na centralidade do texto musical durante o
processo técnico-artístico da aprendizagem pianística.

De acordo com Póvoas (1999), na metade do século XX novos pesquisadores


começam a atentar para outros aspectos da aprendizagem motora que envolvem funções
neurológicas do corpo humano. A meu ver, as bases neurológicas adicionadas ao estudo
técnico do piano, parecem ser uma reação ao olhar puramente físico-mecanicista que
direcionava os estudos da área até então. A partir das afirmações do pianista e pedagogo do
piano George Kochevitsky (1967) nota-se a emergência de uma nova perspectiva sobre o
mecanismo de funcionamento das ações motoras, que inclui em estudos as funções
neurológicas do organismo. Ortmann, que enfoca o esqueleto humano em suas investigações,
94

também se posiciona nesse sentido quando afirma que “a aquisição de movimentos técnicos é
principalmente um processo psicológico”.24 (ORTMANN, 1929, p.376 apud PÓVOAS, 1999,
p.32).
Se aproximando de pressupostos anteriores à fase substancialmente científica do
estudo da técnica que tratavam de “consciência” e “sensações físicas”, “táteis” do corpo,
porém agora por um viés ‘psiconeurológico’, este “estado” de pesquisa que “remete ao
conceito de cinestesia” (vide citação seguinte) é o que me faz enxergar a possibilidade de
desvio [na medida em que o estudo do sentido cinestésico vai ao encontro da possibilidade de
unificação entre corpomente (NUNES, 2008) e de uma “escuta do corpo” (VIANNA, 2008)
através das sensações físicas] mesmo que, num primeiro momento, conduza ainda a uma
consciência “racionalizada” e não à percepção de soma propriamente. Como é apontado e
esclarecido por Póvoas (1999, pp. 20-21):

Algumas das formulações aqui apresentadas [na revisão histórica do


desenvolvimento da técnica pianística proposta em sua tese de doutorado] se
adaptam em muito ao estado atual de investigação na evolução da técnica pianística.
A idéia de pensar os movimentos e os sons relacionados com o refinamento das
sensações nos remete ao conceito de cinestesia, “percepção da posição e movimento
das partes do corpo no espaço”.

Neste sentido, a autora esclarecerá que – segundo o pianista, pesquisador e


professor Seymour Fink (1995) – a essência do fazer musical é encontrada na conexão entre a
audição e o trabalho corporal e no profundo domínio dos valores musicais e seu
relacionamento com a performance. (PÓVOAS, 1999, p. 40) A despeito de
dualismos/binarismos persistentes, exemplifico com o que esclarece Póvoas:

Segundo ele [FINK], corpo e mente devem trabalhar juntos, como uma forma de
“desenvolver um agudo sentido de autoconsciência que possa ler e responder a
sinais cinestésicos internos”. (FINK, 1995, p.13). Ele preconiza que os movimentos
corporais acompanhados de “suas sensações cinestésicas internas criam as condições
de consciência, flexibilidade e de refinamento que permite ao pianista refletir
fisicamente e reproduzir as nuanças sutis do [...] pensamento musical”. (FINK 1997,
p.14). Assim, na concepção pedagógica de Fink encontra-se uma estreita relação
entre a mente como o agente formador da concepção musical e o corpo como o
agente que, através dos movimentos intencionalmente planejados, concretiza aquela

24
Cabe aqui evidenciar que a abordagem proposta por essa outra perspectiva não corresponde totalmente àquela
de Leimar, por exemplo, que entende que “a técnica é um produto do trabalho mental” (LEIMER, 1931, p.10
apud PÓVOAS, 1999, p.24), pois este “trabalho mental” ao qual se refere, diz respeito à análise prévia da
partitura a ser executada e a consequente observância dos elementos musicais a serem executados para que então
possam ser planejados os movimentos, ou seja, volta-se para as informações contidas no texto escrito da música
(em uma abordagem teórico-analítica) e não para as interações artístico-interpretativas e sonoras estabelecidas
através de corpomente do instrumentista.
95

concepção primeira; da mesma forma, a técnica e sensação física encontram-se


relacionadas. (PÓVOAS, 1999, p. 45, grifo meu)

Diante da minha vontade primeira de observar/mapear a abordagem de Kaplan, enfrento a


limitação de tempo de escrita e pesquisa citando o que Póvoas (1999, pp. 44-45) irá esclarecer
acerca da proposta de trabalho técnico deste autor, conforme o que segue:

O ponto de vista de Kaplan aponta para uma aprendizagem instrumental que deve
contemplar, desde o início, um estudo de sensações aliado às possibilidades de
domínio e controle do corpo (controle cinestésico), relacionadas às sensações físicas
experimentadas durante a ação pianística. Ele chama a atenção para a importância
tanto da consciência quanto do domínio das sensações de contração e de
relaxamento, aos quais ele denomina de “dissociação muscular”. Segundo ele
esclarece, além de um controle sobre as sensações, a dissociação possibilita
desenvolver a capacidade de auto-observação e, igualmente, a controlar e a
coordenar conscientemente o próprio corpo em função do objetivo musical a ser
atingido. (KAPLAN, 1987, p.38-40). Esta é, basicamente, a sua visão sobre a função
da técnica no processo da aprendizagem e domínio técnico-pianístico.

Ademais, observo que Kaplan ainda se oporá ao “modelo” de formação pianística


estabelecido e praticado nos conservatórios em seu contexto de atuação, onde predomina uma
padronização no processo de aprendizagem dos alunos. Por exemplo, na fixação em cumprir um
programa de curso com repertório obrigatório estipulado indiferenciadamente para todos os
alunos-intérpretes ou na padronização de dedilhados nos exercícios técnicos desvinculados da
prática e do repertório, que de fato nem sempre se enquadram às situações musicais propriamente.

É possível perceber que o desenvolvimento do saber pianístico, no contexto da última


década do século XX, irá buscar respostas nas ciências como necessidade de ruptura com uma
cultura da imitação25 calcada num posicionamento passivo do aprendiz diante do saber do mestre
(uma espécie de “poder-saber”? para falar em termos “foucaultianos”). Assim, poderia se verificar
que a operação racional-analítica da técnica pianística serviu como linha desviante à mentalidade
de determinado período “evolutivo” da técnica, de acordo com a observação citada no rodapé
desta página. Cabe ao performador, neste caso pianista, avaliar em seu próprio trabalho se este
tipo de operação ainda serve como referencial definitivo e indiscutível para as ações em técnica-
performance na atualidade.
Com a intenção de finalizar este capítulo, observo de forma geral que os livros sobre
técnica pianística que são tomados como base para interpretação/performance musical,

25
USZLER (1993, p.584) se posiciona de maneira equivalente a Camp quando diz que com a persistente
manutenção de metodologias baseadas na imitação e não em uma orientação mais voltada à conexão entre as
questões e elementos que constituem a execução pianística o aluno é considerado como "o aprendiz [...] que
assiste, imita, e busca aprovação". (PÓVOAS, 2012, p. 38)
96

mesmo quando se deparam com a possibilidade de um desvio de abordagem sobre o corpo,


são formatados dentro do campo discursivo dos “corpos dóceis” e das “disciplinas” à medida
que, em suas propostas técnicas, partem de conceitos sobre o corpo e sobre posições do corpo,
num terreno de abstração ou de mecanização. De modo a produzir formatos e estabelecer
modelos a serem copiados e automatizados com a intenção de cumprir um objetivo analítico-
interpretativo da obra musical (como texto e não como performance), fora dos campos da
investigação corpórea primeira e do fluxo de percepção como fatores essenciais da
performance em arte.
A possibilidade de desvio e ruptura à mentalidade considerada ao longo deste segundo
capítulo, identifico conforme o pensamento singular de Valeria Bittar em Músico e Ato que, a
partir de sua própria vida em arte, percebe como a performance musical se articula no interno
e no entorno de novos paradigmas e desafios que surgem na atualidade e principalmente para
a necessidade de um corpo presente em música, podendo construir pontes com outras artes
performativas e com a educação somática. No sentido de esclarecer com maior detalhamento
a proposta transdisciplinar entre as artes, como formadora em música, exponho trecho da tese
da flautista:

[...] percebi que meu processo didático e meu processo particular enquanto
performador musical estavam inteiramente voltados para a percepção do corpo e que
todos os princípios técnicos do instrumento estavam subordinados à atenção do
corpo e à percepção e sensibilização deste, nesta ordem. E, nesta ordem, cheguei a
buscar conceitos, técnicas e princípios para a performance musical não encontrados
na musicologia e na técnica do instrumento, mas sim parâmetros possíveis de serem
encontrados na dança e no teatro, modernos e contemporâneos, que têm como cerne
da formação do ator e do dançarino, o performador e seu corpo. O corpo como
fundamento do músico na performance, um corpo presente, vivente, um corpo que
intervém e dá forma. (BITTAR, 2012, p. 136, grifos meus)

Por estes caminhos apontados pela pesquisadora, na próxima parte do trabalho ensaio
alguns passos em direção ao corpo e à cena que não se sustentam diante da mentalidade
“disciplinar” de “docilidade” e treinamento aqui observada.
97

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: MÚSICO ATUANTE EM BUSCA DE SI MESMO EM


ARTE

Pensando na formação para a performance musical que acontece em lugares de não


investigação e de não pesquisa do corpo, procuro encontrar pistas para estudos com a
possibilidade de traçar outros caminhos para a performance musical que não o de treinamento
e submissão, como foi amplamente abordado até aqui. Conforme esbocei em alguns
momentos no desenrolar deste trabalho, entro em contato durante meu caminho de formação
com algumas vertentes teóricas e práticas através de diferentes pessoas, suas vidas, pesquisas
e trabalhos em arte. Após trilhar o intrincado caminho do segundo capítulo, de algumas
observações acerca dos discursos e modos de fazer no campo musical me ponho a refletir
sobre trabalhos que considero como possibilidades potentes de desvio à mentalidade que vejo
permear tanto a pedagogia da música voltada à performance quanto o próprio exercício da
performance.
As linhas de pensamento com as quais me identifico como buscador em música, têm
sua origem nas seguintes áreas de conhecimento: Performance (performatividade,
performance art, performance studies), através do trabalho da atriz Dra. Daiane Dordete
Steckert Jacobs; Dança Contemporânea e Educação Somática por meio da Técnica Klauss
Vianna com Jussara Miller, e junto à Dramaturgia Corporal com Neide Neves; Teatro
Contemporâneo mediante os trabalhos de Daiane Jacobs, Sandra Meyer Nunes e Valeria
Bittar; Comunicação e Semiótica relacionadas aos estudos do corpo e da dança através dos
trabalhos de Christine Greiner e Helena Katz; Performance Musical (enviesada pela Técnica
Klauss Vianna de educação somática) por meio do trabalho e atuação de minha orientadora
Valeria Bittar. Tais trabalhos, considero como possíveis terrenos de conhecimento e atuação
para o músico performador que deseja ir ao encontro de uma vivificação do ato performativo
e da experiência musical em arte ampliando o contato com o corpo próprio em meio aos seus
processos de criação. Abaixo teço alguns breves diálogos com os trabalhos acima
enumerados:

DIÁLOGO I – CORPOMÍDIA INDISCIPLINAR

Ao perceberem a tarefa das novas epistemologias acerca do corpo em seu artigo Por
uma teoria do corpomídia, Christine Greiner e Helena Katz irão estabelecer, a partir do que
Michel Foucault preconiza a respeito da “ordem do discurso”, um meio pelo qual as diversas
98

áreas de conhecimento que tratam de estudar o corpo [ciências cognitivas, filosofia, teorias da
comunicação e arte] poderiam tomar uma posição diante do próprio discurso para além da
“colagem” de conhecimentos vindos de diferentes disciplinas, que é o caso da
interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. (GREINER, 2005, pp. 126-127) Como
“estratégia política” em oposição à “moldura da disciplina”, as autoras traçam sua proposta a
cargo de uma “indisciplina” que caracterizaria o corpo e os estudos a seu respeito “[...]
apostando na negação da hegemonia epistemológica e dos dualismos corpo/mente e
natureza/cultura.” (GREINER, 2005, p. 12). Sandra Meyer Nunes (2009, p. 22) irá expor que
a proposta dessas autoras relativas à noção de indisciplina, se relaciona com as ideias de
Muniz Sodré em Antropológica do espelho (2002) na provocação de “um campo de
desestabilização e subversão dos objetos de pesquisa”, que neste caso é o corpo.
Neste campo de pesquisas indisciplinares, a teoria corpomídia sustentada pelas autoras
tem como alguns pressupostos as relações entre corpo, movimento e cognição, bem como a
relação estabelecida por ele com o ambiente nos processos de comunicação e na constituição
das metáforas, na medida em que as informações detidas pelo “processo perceptivo” do corpo
“são transformadas em corpo”. Desta forma, as pesquisadoras tomam o corpo não como
“recipiente” das informações dadas pelo mundo, mas como um “meio” onde essas
informações transitam, configurando a metáfora de “mídia” conforme o esclarecimento citado
a seguir. (GREINER, 2005, pp. 129-131)

É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a ideia de
mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere
diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o
corpo. A informação se transmite em processo de contaminação. (GREINER, 2005,
p. 131, grifo meu)

O artigo citado acima está publicado no livro O corpo: pistas para estudos
indisciplinares (2005) de Greiner, através do qual a autora pretende “auxiliar aqueles que
iniciam os seus estudos sobre o corpo” delineando sua abordagem bibliográfica com
discussões acerca do corpo que considera serem mais instigantes de acordo com o trabalho de
pesquisa desenvolvido por ela, que atua também na área de dança. Como visto, propõe uma
abordagem indisciplinar traçando “um convite àqueles que têm vontade de dar os primeiros
passos para desestabilizar pressupostos bem estabelecidos pela longa história das teorias do
corpo e da cultura”. (GREINER, 2005, p. 11) Considerando o caminho metodológico que
trilhei no segundo capítulo deste trabalho, juntamente com Michel Foucault e Valeria Bittar,
seria imprescindível atentar para a teoria proposta por Greiner e Katz a partir desse campo de
99

abordagem que se opõe a arcabouços disciplinares e discursivos dentro do próprio campo de


estudo do corpo, provocando um “deslocamento conceitual” inevitável para investigações
contemporâneas que incluem a presença do corpo artista.
Em conexão com esses pensamentos, o compositor, pianista e doutor em comunicação
e semiótica Nélio Tanios Porto disserta em seu texto O corpo como mídia na música
contemporânea (2004) sobre o que denomina “documentos de processo” do músico, que
“refere-se a parcelas da criação registrada na forma de códigos e signos sonoros” e que
representam esboços e não esboços de informações que conformam o processo composicional
de uma obra na medida em que “O que não foi registrado segue como informação que ‘age’
em outros corpos/mentes, transformando-se novamente em novos padrões, e assim por diante,
ad infinitum.” (PORTO, 2004, p. 99).
As ações que estão relacionadas com os “documentos de processo” em música, são
possíveis de visualizar também presentes no fazer musical do performador que toma como
base para a performance registros escritos e imagens que emergem do cérebro em processo
dinâmico com o corpo no processo de criação. O movimento dinâmico em criação “no corpo
se adapta, se especializa e se transforma em processos composicionais, em performances,
partituras em rascunhos, rasuras, planos, esboços e esquemas.” (PORTO, 2004, p. 101) Porto
ainda afirma que “As trocas de informação e seus processos entre o artista e seu meio agem na
função de adquirir sintaxes sonoras, estabelecendo redes de conexões” (PORTO, 2004, p.
101), estes movimentos no corpo resultam na experiência sonora comunicada, conforme
percebe o autor, no caso de uma performance instrumental, com as seguintes palavras:

Tocar um instrumento é corpóreo – conceito de signo que carrega a informação com


relação ao objeto, pois tem de carregar uma relação com o objeto [...]. A informação
é “encarnada” no signo. O jeito de “falar” – compor – é o jeito daquilo que está no
mundo. O corpo “performa” e encena a comunicação, sua própria história. Uma
performance musical permite, conseqüentemente, uma comunicação real, pois
inelutavelmente, não existe comunicação que não seja performativa. (PORTO, 2004,
p. 104)

Enxergo a presença do corpomídia (GREINER e KATZ), teoria em desenvolvimento


na área de comunicação e semiótica, como uma pista que desencontra com o corpo anulado e
ausente nas atividades inerentes à performance da informação e da compreensão (BITTAR,
2012). Neste caso, a lida com as informações musicais para a performance (que pode estar
mais próxima ou menos próxima da codificação em texto) se dinamiza em uma esfera
diferente do enfoque dado à racionalização e acumulação de informação, gerando um
100

processo de diálogo, transformação, criação e não submissão na relação com a escrita, o


instrumento e o ambiente. As informações orais assim como as anotações e rascunhos do
performador em seu processo de criação percorreriam seu corpo que, enquanto mídia de si
mesmo, passa a ser a própria materialidade sonora experienciada e compartilhada em
performance.
Para se pensar a criação musical ou qualquer criação artística, deve-se empreender
esforços para a compreensão de ações orgânicas como processos de comunicação,
pois esse pensar implica em conceitos de representação e informação, bem como na
interpretação – performance, modos de tocar um instrumento, ou improvisação –,
criação de novos sons, artificiais/nãoartificiais/, acústicos/eletrônicos (composição e
performance). Devemos repensar – nós, músicos – “o corpo como sendo um
contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental” (GREINER, KATZ,
2001,p.89). Repensar estes pontos ocasionará, conseqüentemente, uma revalorização
de nossa função como criadores. (PORTO, 2004, p. 113)

Neste sentido, das relações entre corpo e código (informação) em oposição às ideias de
interpretação e execução calcadas na “neutralidade” e abstração, Valeria Bittar (2012, p. 243,
grifo meu) ao final de sua tese irá ampliar os princípios contidos em suas proposições acerca
do músico atuante e do Ato para uma ideia de “leitura que o corpo faz do texto musical”. Isto
será tratado logo adiante neste capítulo.

DIÁLOGO II – TEATRALIDADES E PERFORMATIVIDADES

Atento agora para o fato de que, hoje, no teatro e na dança muitas pesquisas versam
sobre o Teatro pós-dramático, lugar contemporâneo das artes cênicas onde o eixo texto-autor
é deslocado para o eixo corpo-performador/ator-expectador e a concepção representacional
excede os limites determinados pelo drama que o texto dita para a cena. São diversas e
numerosas as expressões no âmbito do teatro pós-dramático; observarei esta manifestação
através dos trabalhos seguintes.
Sandra Meyer Nunes – atriz, bailarina e doutora em comunicação e semiótica –
também se relaciona com a teoria corpomídia de Greiner e Katz e com a noção de
“indisciplina” que é ativada através de redes transdisciplinares como “estratégia de pesquisa”
para abordar o corpo. (NUNES, 2009, p. 22) Em seu caso, baseia-se em teorias filosóficas e
científicas como as abordagens das ciências cognitivas no século XVII que ressoam em
trabalhos acerca da arte interpretativa do ator. A autora percebe que, incluindo um viés
filosófico, as teorias da cognição passam a discutir o dualismo entre corpo e mente na ação
humana; em aproximação a este campo epistemológico desenvolvem-se metodologias para o
trabalho do ator que tem como ponto de partida uma “unidade psicofísica” e a própria ação do
101

corpo. Neste terreno a autora irá traçar reflexões sobre As metáforas do corpo em cena (2009),
direcionando seu estudo para as ações físicas do ator, diferenciadas de gesto e movimento, a
partir do trabalho de Constantin Stanislavski e Jerzy Grotowsky, esclarecendo que “a
abordagem da ação física, proposta por ambos, realiza uma revisão do dualismo corpo-mente
no trabalho do ator, apontando para questões presentes hoje, nas teorias das ciências
cognitivas”. (NUNES, 2009, p. 13)
De acordo com Nunes (2009, p. 234) os esforços de Stanislavski, pesquisador que
atuou ainda no Teatro Moderno caracterizado pelo drama26, se direcionavam a encontrar um
“elo” entre os aspectos materiais e imateriais no fazer cênico a despeito das dicotomias
presentes até então na compreensão cognitiva. “A estratégia de busca da unidade psicofísica
ganhou consistência por meio do método das ações físicas, com o corpo inserido mais
diretamente na experiência” como será posto pela pesquisadora Sandra Meyer. É salientada
também a interação entre o próprio organismo e os processos dinâmicos do cérebro que
convergem, a cada momento, em uma atualização do “eu” no mundo, através de estados de
presença do corpo em ação. Neste sentido “O ato pensante e o ato consciente passam a ser
entendidos como implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de
uma razão descolada ou anterior à experiência”. (NUNES, 2009, pp. 234-236)
Recorrendo ao livro O Teatro Pós-dramático de Hans-Thies Lehmann a pesquisadora
irá expor o dinamismo e a hibridez abarcados pelos artistas pós-dramáticos por meio de suas
“experimentações” no que diz respeito a estados corporais que desembocam em
“presentificação” e “produção de sentido” na experiência. (NUNES, 2009, p. 238) Isto
caracteriza um campo de ação também contido nas formulações de Stanislavsky – durante o
Teatro Moderno (dramático) – no que se refere ao entendimento da própria ação do ator,
como é esclarecido abaixo, em trecho extraído do livro:

Ao requisitar o comprometimento do corpo na experiência, por meio das ações


físicas, Stanislavski não excluiu a necessidade do pensar ou do analisar, mas
instaurou uma espécie de deslocamento da atividade cognitiva. [...] Ao invés de uma
análise anterior por operações eminentemente mentais, [...] ele propôs ao ator pensar
através de suas ações. Neste sentido, a estratégia de conhecimento foi alterada, pois
é a partir das ações do corpo que o ator articularia os demais elementos da
representação e se aproximaria do que Stanislavski denominou de a natureza
criadora. (NUNES, 2009, p. 233)

26
Importante esclarecer, de acordo com uma fala da professora Daiane Jacobs (2017, informação verbal), que a
atuação de Stanislavsky se localiza ainda num teatro “da fábula realista, linear, das personagens, da história com
início meio e fim, da construção de uma personagem que se coloca em seu conflito para a plateia. Ele está neste
lugar, o Teatro pós-dramático não”. Por isso, a contribuição que está sendo observada em Nunes (2009) diz
respeito ao método das ações físicas, à ação do ator sobre si mesmo, ou seja, a questão não é de estética, mas do
trabalho de atuação.
102

Estas questões são pertinentes também ao trabalho do performador de música, uma


vez que, de forma predominante, o corpo do músico é abordado por uma perspectiva
“mecanicista” e instrumentalista que tende a ser racionalizada em operações mentais (vide
capítulo 2), o que pode acontecer na atividade do ator, segundo Nunes. Porém, na abordagem
dessa autora, o campo epistemológico acionado pelo Teatro pós-dramático por meio das ações
físicas em consonância com as discussões atuais das ciências cognitivas, possibilita a lida com
o corpo físico por um viés processual e dinâmico em relação ao mundo que parte do
corpomente e suas percepções-sensações através de um processo integrado. Por esta via de
abordagem “A mente [...] é encarnada, corporificada, e não responde exclusivamente a uma
condição a priori.” (NUNES, 2009, p. 236)

Neste rumo que as artes tomarão na cena contemporânea são substanciais os trabalhos
em diversas áreas que versam sobre Performance e Performatividade. Irei dialogar com estes
campos a partir do trabalho da atriz e pesquisadora da voz Dra. Daiane Dordete Steckert
Jacobs. Em sua tese de doutorado Possível cartografia para um corpo vocal queer em
performance (2015), Jacobs (2015, p. 7) problematiza relações entre vocalidade e gênero na
atuação cênica no intuíto de provocar uma desestabilização no “binarismo logocêntrico” em
cena, tendo como referência também a “integridade psicofísica entre corpo e voz”. Observo
na proposta deste trabalho as potencialidades que o corpo em performance possibilitam para
a/o atuante. A autora apontará, nos campos da Performance Art e dos Performance Studies,
para a investigação das ações e das atuações humanas a partir dos termos “performativo e
performatividade” que tornam-se conceitos primordiais no teatro performativo, que pode
operar em um campo próximo ao teatro pós-dramático. (JACOBS, 2015, p. 129)
Segundo Jacobs (2015, p. 133) quando Érika Fischer-Lichte (2008) indica uma
“estética do performativo” que passa pelas artes no século XX, evidencia os processos
artísticos, “o como fazer”, enquanto eixo das pesquisas nessa área. Desta forma aquilo que se
denomina “performativo”, na década de 1960, direciona o fazer artístico a “um espaço de
processo e compartilhamento entre artistas e audiência, e não de obra acabada e observação
passiva”. Será nesta linha que Josette Féral (2008) proporá o termo Teatro Performativo, onde
a presença do ator é indispensável no assumido processo de criação da forma em cena, por
meio de uma “lógica interna” (FÉRRAL, 2008 apud JACOBS, 2015, p. 133) e da presença do
próprio corpo em performance. O teatro performativo é também tecido fora da concepção de
drama representacional, “avesso a narrativas lineares e personagens factíveis”, referindo-se
mais “ao modo de fazer os desdobramentos de seu eu em cena, relacionando-se diretamente às
103

habilidades criativas dx atuante, e no caso da encenação, ao jogo da cena que se constrói na


inter-relação de todos os elementos do espetáculo”. (JACOBS, 2015, p. 134)
Assim como o que foi percebido juntamente com Paul Zumthor no intuito de moldar o
conceito da palavra performance no glossário introdutório deste trabalho, o que se afirma na
área de performance é a ‘presentificação’ do artista em ato, entregue às instabilidades e
“efemeridades” (como diz o pianista Alexandre Zamith Almeida, 2011) da situação
performativa, seja em teatro, seja em música.
Jacobs (2015, p. 130) também esclarece a afirmação de Storolli (2009) acerca do
conceito de performatividade que, por viabilizar o fluxo de conhecimentos entre diferentes
áreas e expressões em arte, seria bastante apropriado para aqueles estudos do fazer artístico
contemporâneo que se dirigem para a “percepção da ação humana”. Dentre estas e outras
discussões, a professora Daiane Jacobs expõe a maneira como seu contato com a performance
art revela ao fazer artístico próprio “um espaço potente de desconstruções de discursos e
práticas hegemônicas e normatizadoras. Percebo nesta linguagem um campo potente para
ações políticas, que questionam ideologias dominantes.” (JACOBS, 2015, p. 125, grifo meu)
Por isso, identifico também neste território da performance teatral um possível lugar de
resistência aos discursos e não discursos observados no campo de atuação da área de música
no segundo capítulo deste TCC.

DIÁLOGO III – MÚSICO E ATO EM CENA

A interface com o teatro pós-dramático visualizada neste capítulo, já apontada no


capítulo primeiro, resulta do que é postulado na tese de doutorado da professora Valeria Bittar
acerca dos trabalhos dos atores-pesquisadores Jerzy Grotowsky e Eugenio Barba, dentre
outros entrelaçamentos, quando tecerá seu terceiro capítulo que tem como título O corpo sob
a gravidade, sobre o chão, sobe ao palco – o músico atuante. Neste lugar, a autora irá refletir
sobre o trabalho do performador musical em performance juntamente com pensamentos dos
campos da literatura, do teatro e da dança na atualidade propondo “O re-encontro e a
vivificação do performador através do re-encontro do corpo do performador enquanto lugar
nodal da performance”. Perceberá através de trabalhos do teatro pós-dramático e da literatura,
com Paul Zumthor, como a lida com o texto em poesia, em arte e em cena revela um
“instabilidade” que nominará de “inconstância” e “labilidade” de acordo com o que pretende
investigar. A flautista observa que um distanciamento temporal em relação à “nossa música
104

cotidiana” pode possibilitar para a experiência musical “um re-encontro com o ato musical
enquanto ritual”. (BITTAR, 2012. pp. 157-158)
Ao longo de sua tese de doutorado, Valeria percebe duas iniciativas de desvio ao
percurso “logocêntrico” fundado na formação musical provenientes dos movimentos de
música antiga e de música contemporânea, como “momentos de fuga do pensamento
cartesiano mecanicista”, os quais oferecem ao performador textos musicais que exigem não
uma relação de submissão, mas de interatividade com a escrita/notação daquilo que
indispensavelmente é “fenômeno sonoro”, assim como o estreitamento da relação entre
músico e instrumento musical, o “corpo-a-corpo”. (BITTAR, 2012, pp. 159-160) Neste
sentido de ruptura a uma dada mentalidade, a autora pretende conduzir seu trabalho a um
reencontro com a “necessidade de performance” no próprio performador “encarnado”.
(Ibidem, p. 167). Em relação a essa necessidade de performance que está ligada ao corpo,
penso que há “agenciamentos” de um desejo de técnica que seria o desejo da própria
performance.
Diante do “contrassenso” que resulta da aproximação com diferentes expressões
humanas como a literatura, o teatro e a dança, deste “beber em outras fontes” que opera fora
da lógica e da razão estabelecida no meio musical, Valeria Bittar (2012, p. 173) se esforçará
em definir que é a “necessidade de performance” o que aquelas áreas têm em comum. Assim
como a presença do corpo do performador e do espectador no momento do ato performativo.
Neste caminho de aproximação com a linguagem teatral recorrerá ao conceito de
teatralidade de Josette Férral (1988) assim como o de performatividade, pensamentos que
provocaram transformações na concepção de teatro e de cena ao longo do século XX e que
afirmam o caminho que leva Bittar (2012, pp. 174-175) a compreender performance
“enquanto operação perceptiva”.

Houve vários momentos nas artes performáticas no século XX, e incluo a música
nesses momentos também [...], de desvios daquilo que foi detalhado e
exaustivamente programado pela mentalidade mecanicista dos séculos anteriores, e
esses desvios muitas vezes geraram novas tomadas de posição nas artes.

É a partir disso que pretende refletir acerca de mudanças ocorridas no teatro


transpondo para a formação do músico de performance que, segundo observa, manifesta “uma
relação ainda fortemente vinculada à estrutura da escrita do texto e à sua decodificação
racional e à sua veiculação técnica mecânica”. Conduta herdada da formação mecanicista que,
diferente das rupturas e “posicionamentos renovados” presentes no teatro, permanece sob
105

controle da racionalidade. Percebe dentre outras transformações percorridas, a mudança na


relação com o texto escrito no processo de dissociação entre drama e teatro, e no que diz
respeito à aproximação com a música expõe o que cito abaixo. (BITTAR, 2012, p. 176-178)

São plurais as manifestações e os representantes do teatro pós-dramático que, em


relação ao teatro dramático e seus novos desdobramentos, passam sobretudo,
segundo Hans-Thies Lehmann, por “uma referência não tanto às mudanças do texto
teatral quanto à transformação dos modos de expressão” (LEHMANN, 2007, p. 75,
grifo meu). É neste ponto que podemos, enquanto músicos, fazer-nos valer da
experiência do teatro pós-dramático, transpondo-a para o fazer musical, porque a
transformação dos modos de expressão permite-nos buscar um re-encontro com a
possibilidade de performance, a necessidade de performance e, acima de tudo, um
re-encontro com o eixo da performance que é o músico performador. (BITTAR,
2012, p. 178)

No terreno em que opera, a autora tecerá os conceitos de músico atuante e Ato no


âmbito da formação e da performance em música partindo dos trabalhos de Jerzy Grotowsky
e Eugênio Barba. Algumas das ideias que Bittar delineia juntamente a esses autores considerei
logo no primeiro capítulo deste TCC como parte do meu percurso de chegada até a questão da
presença de performador, performance e corpo na experiência musical. E agora, nestas
considerações finais, reposiciono esses pensamentos de acordo com o que observei ao longo
do segundo capítulo acerca da formação, da performance e da técnica em música.
De acordo com o que a flautista irá expor, elementos essenciais para o teatro de
Grotowsky (2001) emergem de sua a autonomia em relação ao texto; a mudança de relação
com a “matriz literária” da cena já posicionaria “o ator e seu corpo como eixos fundamentais
do teatro”. Este acionamento, por sua vez, conduz também ao “contato com o expectador”.
Operações defendidas por Grotowsky que se opunha a concepção de um ‘método’, propondo
“condutas” que, conforme é visto na tese de Valeria, possibilitariam ao músico “caminhar em
direção a uma mudança de posição, uma transformação de mentalidade”. Outras concepções
as quais Jerzy Grotowsky se opunha eram: a “representação mimética” dos escritos
desprovida da ação do ator e o “treinamento” técnico do ator que visasse “a aquisição de
habilidades”. (BITTAR, 2012, pp. 179-181)
Conforme o que percebe Valeria Bittar, estes pontos são diretamente transponíveis
para a situação de formação e de técnica-performance do músico. Observo também no terreno
da técnica pianística (de acordo com os desdobramentos contidos nos capítulos 2.2.3 e 2.2.4
deste TCC) que a afirmação de um treinamento técnico-analítico automatizado de habilidades
no corpo, condiciona o instrumentista-performador a uma submissão à partitura e a conceitos
acerca de seu corpo, e não aos processos que se desenrolam no fazer musical junto à notação
106

(e ao compositor) e junto a uma “investigação” própria do músico e sua técnica em arte. Esta
investigação que embasaria a técnica de cada artista, conforme o que Bittar (2012, p. 181)
deduz das propostas de Grotowsky, “nasce primeiramente no corpo-a-corpo travado entre o
músico performador consigo mesmo e entre o músico performador e o instrumento musical”.
O enfoque no fazer do atuante, será manifestado também no trabalho de Eugenio
Barba (2009), segundo o que perceberá Bittar. Dentre suas proposições está a
“desautomatização” daquilo o que o ator-pesquisador chama de “cotidiano” através do corpo,
para isso propõe a efetuação de técnicas “extracotidianas” que têm sua finalidade na
informação potencializada através de uma “dilatação” e de uma “energização” da ação do
corpo, conformando um “esbajamento de energia” na ação técnica (BARBA, 2009, p. 34 apud
BITTAR, 2012, p. 184). A meu ver, isto vai em direção contrária ao viés ‘econômico’ sobre o
corpo que costuma pairar em torno das ações de pesquisa no fazer pianístico. Entretanto, essas
técnicas que operam fora do cotidiano do corpo se diferenciam também daquelas que têm
como finalidade o “virtuosismo” e o aumento de “habilidades” no “desempenho da
performance”. (BITTAR, 2012, pp. 183-185) Em consonância com os pensamentos de Barba,
a autora versará sobre a afirmação do sujeito atuante na performance conforme o trecho que
segue:
O trabalho de percepção primeira do “corpo cotidiano” e da percepção dos níveis de
automatismos desse corpo cotidiano passam, posteriormente, para uma
experimentação de desconstrução desse corpo e de construção de um corpo
“disponível”, “acordado” e “atento” para a ação musical; quando saímos do
cotidiano e dos automatismos desse cotidiano, geramos novamente a necessidade e a
intenção de performance, necessidade pulsante camuflada nas ilusões da
racionalidade, da informação, da desmitificação da vida. Dessa razão que separou
corpo de mente. Da mesma forma que o ator e o dançarino, o músico pode vir a
restabelecer, no momento da atuação musical, um momento e um processo contínuo
de desautomatização do cotidiano, processo que acontece com o músico e no músico
em comunhão com o espectador. (BITTAR, 2012, p. 184)

Neste caminho, seremos direcionados à escuta do corpo conduzida pelos princípios


artísticos de Klauss Vianna, onde Bittar irá perceber uma profunda relação com os caminhos
sinalizados por Eugenio Barba no fazer do atuante. Cabe salientar que a abordagem de
técnica, em relação com o corpo, desses pesquisadores do movimento partem para uma
experimentação e uma investigação próprias do atuante, como é percebido através do trabalho
de Bittar e como já foi incitado em alguns momentos do segundo capítulo deste trabalho, para
falar de técnica fora de uma mentalidade de automatização e submissão a padrões. A Técnica
Klauss Vianna é considerada uma técnica de Educação Somática, atualmente esta área tem se
aproximado cada vez mais das artes que lidam com a presença do corpo em cena. Contudo, a
107

TKV dispõe de particularidades que estão relacionadas com os processos de criação em arte,
sobre o palco, e serão percebidas a seguir, no próximo diálogo.
Ao final do capítulo 3 e nas considerações finais de sua tese, Valeria Bittar (2012, pp.
240-241) tecerá nessa “trajetória de reflexão sobre o músico em Ato” algumas propostas para
a prática musical do “músico encarnado” que partam para uma vivificação do momento de
realização sonora através de uma “ação perceptiva”. Para isso diferencia o papel didático das
disciplinas teóricas em oposição ao papel perceptivo da performance e defende o estudo
vivenciado da teoria e história da música, assim como da história e da antropologia das artes
performativas. Neste processo, a presença física do músico em disponibilização e ativação
juntamente com os outros corpos que participam do Ato, confluem para uma “invocação da
memória” que “instaura percepções de outras dimensões do percebido, tanto no espectador,
quanto no atuante”. Por fim, compreenderá o sentido de ação e Ato se aproximando do
pensamento filosófico de Aristóteles em contraposição ao sentido de performance gerado pela
mentalidade das disciplinas e dos corpos dóceis (FOUCAULT, 2014) que também foi
observada no segundo capítulo do presente trabalho. Músico vai de encontro ao ato, ação que
gera o “núcleo” da performance musical conforme propõe Bittar, nesta direção é possível ver
que ainda temos o que trilhar:

Ao abordar o ato, cheguei a um sentido antigo da performance, que não se conecta à


aplicação moderna, desgastada pela ideia do desempenho, da execução de modelos,
mas sim ao instante em que o Ato toma forma, torna-se realidade. Isso me levou a
ver na performance os significados do Ato, que se resumem a dois: o primeiro deles
é o significado de ação, “como operação que emana do homem ou de um poder
específico dele.” (ABBAGNANO, 1998, p. 90). Já o segundo significado aproxima-
nos mais do Ato e de conceitos que nos acompanham na compreensão de nosso
ofício na condição de atuantes. São conceitos tecidos pela filosofia aristotélica,
locados em nossa memória, que brotam como gêiseres e são invocados por nós num
gesto perceptivo, e nos ajudam a entrever outros sentidos no Ato, rompendo a crosta
endurecida pelo pensamento cientificista amadurecido ao longo dos séculos de
dominação do método da Ciência em detrimento da Arte. (BITTAR, 2012, pp. 249-
250)

DIÁLOGO IV – A EDUCAÇÃO SOMÁTICA DANÇA SOBRE O PALCO

Conforme relatei no primeiro capítulo deste trabalho, meu contato com a Técnica
Klauss Vianna resulta de uma convergência, durante a minha trajetória, com o trabalho
artístico-didático-somático da professora Valeria Bittar, logo no primeiro ano da graduação.
Fui de encontro a esta prática somática por um despertar pessoal em relação ao meu próprio
corpo em movimento, na busca de relações que pudessem me conduzir à expressão. Apesar de
108

identificar hoje este percurso em direção a uma vida em performance, sinto que meus
primeiros contatos com essa técnica acontecia num âmbito às vezes ‘despropositado’ que
pensava a prática como ‘desenvolvimento de consciência corporal’ ou em termos de
‘alongamento, relaxamento, concentração’, automatismo do pensamento que se dilui na
própria prática.
Aos poucos entendo, com as oportunidades que tenho de vivenciar e pesquisar nesta
esfera, que o processo didático da TKV parte muito mais para uma vivificação e um despertar
da atenção ativos do que para um trabalho ‘ginástico’ ou de tratamento sobre o corpo passivo.
Acredito que uma vez em contato com a escuta do corpo proposta por Klauss Vianna é
inevitável não tomar posição para a desautomatização das próprias condutas e mentalidades
formatadas/preconcebidas em vida. O trabalho de disponibilização do corpo que atua pode
desaguar também, durante o processo de formação do músico, na lida com a técnica do
instrumento (ou da voz) em didática e em performance (que não estão desvinculadas) fora do
seu cotidiano. Valeria Bittar percebe em seu percurso particular como isso se daria em música
por meio da desautomatização do corpo e suas condutas, através da “dilatação” (BARBA,
2009) e da atenção:

Nesse caminho para re-contextualizar a técnica na performance em música partindo


de um corpo acordado e da ampliação da atenção através desse corpo, encontrei nas
aulas da Técnica Klauss Vianna fundamentação para meu processo de investigação
de um corpo cênico do músico em música e os elementos para uma didática
somática da música (BITTAR, 2012, p. 194, grifos meus)

[...] a atenção, enquanto núcleo da técnica e da performance em música, assim como


a necessidade da técnica e a necessidade da performance, nascem no corpo
acordado, num corpo disponível constantemente para mergulhar num processo de
reconhecimento do corpo cotidiano e em busca de um corpo não entregue ao
cotidiano; para que se acorde esse corpo é preciso que estejamos disponíveis para
iniciarmos um processo de desestruturação e de descondicionamento do corpo,
também a partir de uma desestruturação de uma mentalidade alicerçada sobre
preconceitos, sobre imagens preconcebidas, de formas e modelos idealizados de
propostas técnico-musicais, que já entraram em nosso cotidiano com a música e
mesmo de modelos corporais adquiridos e herdados. (BITTAR, 2012, p. 198)

Neste sentido, é possível compreender o caminho somático para o qual nos direciona a
Técnica Klauss Vianna, no sentido de transformação de posturas, modelos e condutas. A meu
ver, isso se faz urgente diante do que é engendrado pela formação em música fixada no(s)
método(s) e em modelos técnicos distanciados do corpo (soma) e do performador, situação
consequentemente distanciadora entre músico e performance. A partir dos pressupostos da
TKV seria possível ensaiar caminhos em direção a uma abordagem somática em música? de
encontro entre músico e ato? Como aponta Bittar.
109

Jussara Miller, dançarina e pesquisadora do movimento, considera a Técnica Klauss


Vianna “além de uma técnica de dança, uma técnica de educação somática” (MILLER, 2007,
p. 26), de acordo os princípios sistematizados em seu livro A escuta do corpo: sistematização
da Técnica Klauss Vianna (2007). O termo educação somática foi cunhado em 1983 pelo
norte-americano Thomas Hanna e define práticas como as “de Alexander, de Feldenkrais, os
Fundamentals de Bartenieff, a Ideokinesis [...], a Eutonia de Gerda Alexander, o Body-Mind-
Centering de Bainbrigde-Cohen; e, no Brasil [...] o trabalho de José Antonio Lima.”
(STRAZZACAPPA e MORANDI, 2006 apud MILLER, 2007, p. 26).
Esses trabalhos tem sua origem reverberada da corrente de psicologia proposta por
Wilhelm Reich (1897-1957) e englobam em seus fundamentos as áreas da saúde, da arte e da
educação para processos terapêuticos partindo da integridade do ser humano através do corpo.
Miller (2007, p. 27) esclarecerá que o trabalho de artistas do movimento em proximidade com
o somático direcionaram suas abordagens também para uma mudança de condutas presentes
no fazer técnico-artístico da dança, conforme a observação seguinte:

Cada vez mais, a dança hoje busca o enfoque somático para a criação e a expressão
do movimento: “A educação somática surgiu a partir de preocupações terapêuticas
de indivíduos, mas constatamos que membros da comunidade de dança deixaram o
caráter terapêutico para dar corpo à sua pesquisa dentro de uma orientação educativa
e artística” (FORTIN, 1999, p. 51). Essa afirmação combate o preconceito dos
próprios bailarinos de que é dança apenas o virtuosismo de pernas cada vez mais
altas, giros mais rápidos e toda a vasta gama de mais movimentos almejada no
treinamento mecanicista do mundo da dança [e é possível ler: no mundo da música].

Em oposição à busca técnica pelo virtuosismo, a autora observa a prática de educação


somática no âmbito da dança como uma oportunidade para o trabalho sutil contido na
pesquisa corporal própria, que desvia o enfoque de um “corpo adestrado” para o acúmulo de
habilidades. Neste sentido, diferente do viés terapêutico, presente de forma geral na origem
das práticas somáticas, a Técnica Klauss Vianna terá seu enfoque no fazer artístico seja na
sala de aula, seja em cena, pois ela é criada no palco da dança e do teatro através dos estudos
de um professor/coreógrafo. Assim, irá penetrar o processo de criação na “pesquisa
didática/estética” para depois chegar até a “pesquisa anatômica/estrutural”, de modo a traçar
um “caminho inverso” ao das outras técnicas somáticas que têm seu início na pesquisa
terapêutica se estendendo, em sequência, para a pesquisa estética. (MILLER, 2007, p. 28)
Os procedimentos criados pelo artista da dança Klauss Vianna em colaboração com
Angel Vianna, posteriormente desenvolvidos por seu filho Rainer Vianna, e sistematizados
pelas dançarinas Neide Neves e Jussara Miller nascem em território nacional e são
110

direcionados a qualquer pessoa, que exerça qualquer ofício e que se sinta incitada pelos
movimentos do corpo e da vida. Pioneiro da educação somática no Brasil, Klauss Vianna não
enxergava a dança como privilégio de dançarinos por isso estimulava a expressividade de
todos através do movimento. (MILLER, 2007, p. 21) Vindo do balé clássico, esse artista
enquanto pesquisador e professor promoveu um processo de desconstrução do corpo do
bailarino em nome de uma revelação da “dança que se encontra em cada aluno” por meio de
uma abordagem didática inovadora do corpo e do movimento. (MILLER, 2007, p. 36) Em sua
trajetória trabalhou também com músicos e atores, atuando como preparador corporal em
expressão, de modo a semear seu pensamento transformador no campo das artes cênicas em
geral, e na própria vida. (MILLER, 2007, p. 40)

[...] a partir do momento em que entra em contato com a Técnica Klauss Vianna, o
aluno torna-se um pesquisador do corpo, não um reprodutor de movimentos, mas um
criador, um estudioso, um dançarino, um ser humano em autoconhecimento, e tudo
isso se reúne em um único núcleo: o corpo-a-corpo com o próprio corpo. (MILLER,
2007, p. 16)

Jussara Miller (2007, pp. 51-52) desenvolve o trabalho de sistematização dessa técnica
através dos fortes laços estabelecidos em sua trajetória com o trabalho da “família Vianna” e
deixa saliente em seu processo que a substancialidade da Técnica Klauss Vianna encontra-se
na consciência e na disponibilidade do corpo para o movimento expressivo da dança. O
embasamento dessa técnica se localiza em diversos tópicos corporais trabalhados em três
estágios, a saber:
1) processo lúdico
2) processo dos vetores
3) processo criativo e/ou processo didático
A pesquisadora esclarece resumidamente como esses estágios se encadeiam na prática:
“No processo lúdico, o corpo é despertado, desbloqueado, causando a transformação dos
padrões de movimento para, na segunda etapa, ser levado ao aprofundamento do processo dos
vetores, quando são trabalhadas as direções ósseas, resultando em um processo criativo [ou
didático].” (MILLER, 2007, p. 52)
O primeiro estágio parte do “acordar do corpo” que inicialmente se encontra em
abandono, para isso dá largada a um processo de ativação da presença do corpo que se inicia
a partir do chão e da atenção dada às relações que se estabelecem através do corpo. A partir
deste primeiro momento os outros tópicos vão se integrando ao trabalho somático em
111

transformação e expansão até chegar de encontro ao eixo global, que é o sétimo tópico do
processo lúdico, na seguinte ordem: (MILLER, 2007, p. 53)
 presença
 articulações
 peso
 apoios
 resistência
 oposições
 eixo global
O segundo estágio da prática corporal é o processo dos vetores, que parte para a
sensibilização das direções ósseas a partir do mapeamento “sensoperceptivo” dos oito vetores
do corpo. Este estudo se inicia pelos pés indo até o crânio, de modo que o movimento
estimulado pela própria estrutura anatômica direciona o corpo para a percepção de sua
estrutura óssea, que é base deste trabalho. Miller esclarece que, para isso, “nenhuma imagem
metafórica” é utilizada como instrução para o movimento, sendo a materialidade e a
sensorialidade do corpo suficientes para seu conhecimento. (MILLER, 2007, pp. 75-77) Os
vetores ósseos são os seguintes:
 metatarso
 calcâneo
 púbis
 sacro
 escápulas
 cotovelos
 metacarpo
 sétima vértebra cervical
A vivificação proporcionada nesses dois primeiros estágios resulta em
desdobramentos diversos de acordo com as necessidades e vontades de cada corpo, seja ele
artista ou não. Em processo didático ou em processo de criação, a flexibilização e
movimentação interna e externa do corpo vivo se fazem presentes para a concretização de
suas ações em arte.
Concluo esta parte visualizando no trabalho somático proposto pela Técnica Klauss
Vianna um caminho para ações transformadoras dentro da didática e da prática em música. O
performador provido de seu corpo tem em si mesmo o estimulo para seus processos de criação
112

para e em performance, sobre isso Valeria Bittar (2012, p. 207) traça as seguintes reflexões,
por uma abordagem somática:

O trabalho de desautomatização através do corpo acordado, que gera presença e


dilatação para o músico, pode situar-se na linha tênue entre texto, trabalho técnico e
ato. Numa constante troca entre performance e corpo, uma performance antes da
performance, ou uma performance já em performance [...] Ao trabalhar sobre a
técnica Klauss Vianna enquanto busca do ato musical e do sujeito no ato musical,
vejo nessa integração somática um processo de subjetivação, um processo contínuo
que começa no soma retornando para ele.

RESSONÂNCIAS

Penso que o corpo é uma coisa que não dá de deixar pra depois, ele só é corpo no
presente, e só se sabe-sente de sua concretude no agoraqui, à medida que se dão passos.
Percebo que este processo de pesquisa foi um caminho trilhado junto ao “corpo como mídia
de si mesmo” em meio à lida com o conhecimento (informações) que o transpassa-transforma
através do contato com o referencial teórico e com o referencial em vida, de forma a se
materializar, caos e ‘ordem-caos’ na terra. Através das relações que estabeleço no mundo,
leio, processo e concretizo as informações que me perpassam, me torno corpo (corpomente
que aprende a si mesmo) e vibro. Isto penso que é ressoar.
No início da escrita deste Trabalho de Conclusão de Curso, partindo de termos,
autores e conceitos que estavam esboçados no anteprojeto, me deparei com o desafio de lidar
com as palavras conforme suas camadas e terrenos onde atuam – investigação que gera um
glossário introdutório. A professora-orientadora Valeria Bittar direcionou/incitou esta reflexão
e pesquisa inicial, assim como um olhar para meu próprio percurso durante a graduação no
curso de música (bacharelado em piano) da UDESC, o que estruturou o primeiro capítulo.
Nesta primeira parte me pus a rememorar experiências e inquietações, partes da minha
trajetória em que estabeleci diálogos com diversas áreas de estudo teóricas e práticas sobre o
corpo num campo racional-perceptivo. Vivências e reflexões sobre o corpo em formação, em
performance, em trabalho, em pesquisa, em aprendizagem e em arte diante da lida com a
atividade musical ao piano e acadêmica. Ando. Danço.
No segundo capítulo, de acordo com: (1) o terreno que foi mapeado na introdução
através das palavras e (2) a trajetória percorrida no primeiro capítulo juntamente com
trabalhos acadêmicos de diversas áreas, que se entrelaçam às vivências, o trabalho partiu para
‘algumas observações’ acerca dos modos de fazer na prática pianística [partes 2.2.3 e 2.2.4]
tendo como base os pensamentos de: (a) Michel Foucault – quando este filósofo estuda o
113

mecanismo do poder nas relações da sociedade disciplinar condutora dos corpos dóceis [2.2],
atuando em um campo micropolítico de investimento tecnológico político do corpo [2.1.1] e
(b) Valeria Bittar – de acordo com a operação observada nos pressupostos de Foucault que
esta autora articula com a história (cultural e política) do Ocidente, inscrita no processo de
formação e de performação do músico [2.2.1 e 2.2.2]. Operação aquela que induz a uma
homogeneização das condutas e da mentalidade que atua neste campo e que investe os corpos
nos modos de fazer música. Trabalho árduo para o corpo do executante/intérprete. Trabalho
árduo para o corpo do pesquisador.
A discussão agenciada no âmbito da ação pianística é desdobramento de percepções
pessoais que se entrelaçam com os estudos dos autores consultados ao longo do capítulo.
Observo que as três diferentes vias de atuação técnico-didática que pretendi mapear na prática
pianística podem se encontrar diluídas no fazer de cada músico e não propriamente
caracterizam abordagens restritas. É possível considerar que os momentos e operações de
desvio, linhas de fuga, estão presentes em meio às condutas convencionais herdadas da
própria formação em música conforme foi observado neste segundo capítulo.
Na terceira parte, que são as considerações finais, pretendi propor diálogos com
possíveis caminhos para o músico atuante ir ao encontro com a arte em performance, qual
seja, com a própria necessidade de performance e, portanto, consigo mesmo enquanto
performador. Músico e ato – através de uma aproximação com pensamentos da comunicação
e semiótica, do teatro pós-dramático, da performance, da dança contemporânea e da educação
somática – rumo ao ‘núcleo’ da performance como operação perceptiva (BITTAR, 2012). Os
diálogos em cena neste capítulo poderão ser diluídos e/ou recompostos para gerar discussões
acerca da atividade do(a) performador(a) musical na contemporaneidade.
Tendo em vista: (1) a mentalidade que predomina no interno e no entorno dos
‘discursos e não discursos’ compreendidos no fazer musical e nos modos de fazer música
através do corpo (BITTAR, 2012) e (2) o corpo do performador que é investido por forças de
poder e de saber operantes num campo micropolítico das relações em sociedade
(FOUCAULT, 2014); as considerações finais deste trabalho (a) ativam uma proposta
indisciplinar (SODRÉ, 2012) através do corpomídia (GREINER E KATZ, 2005) em vida e
em arte, e (b) estudam a presentificação do corpo cênico no fazer teatral, performativo,
dançante e musical; direcionando-se, por fim, para a esfera de uma possível abordagem
somática em música, através da Técnica Klauss Vianna de educação somática (MILLER,
2007) como proposição de pesquisa-investigação-experimentação-criação perceptiva do
corpo que, assim, eixificaria (de eixo) a aproximação do músico atuante com o Ato (BITTAR,
114

2012). Esfera que envolve a possibilidade de se sentir o soma ‘sob gravidade, sobre o chão’,
disponibilizado e em prontidão, ‘subindo ao palco’ (BITTAR, 2012).
No primeiro capítulo deste trabalho tracei uma questão em paralelo com o título de
Jussara Miller: Qual é o corpo que dança? (2012). Estive buscando, nas fontes bibliográficas
e nas fontes em vida, caminhos que pudessem conduzir o corpo (soma) em música para um
lugar mais próximo ao lugar do corpo em qualquer outra arte presencial na
contemporaneidade. Presença. Percepção. Ato. Corpo cênico em música? Neste arremate do
trabalho de conclusão de curso percebo, no entanto, que o processo de elaboração desta
pesquisa apontou mais para uma tentativa de formulação do que de resposta a esta pergunta,
uma inquietação que gera também uma provocação: Qual é o corpo que toca?
115

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Música da UFPel Pelotas, nº4, 2011. p. 194-217

ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. 2 ed. Campinas,
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