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Licenciatura em Eng.

Fı́sica Tecnológica (LEFT)


Mecânica Analı́tica
2o semestre, 3o perı́odo 2022-23

Prof. João Paulo Silva (Responsável)


Rafael Boto

Série de Problemas 03
O Potencial Central
3 de Novembro de 2022

1 Potencial central: análise preliminar


Considere o Lagrangiano de duas partı́culas sob ação de um potencial dependente apenas da distância
|~r1 − ~r2 | entre elas:
1 1
L0 = m1~r˙12 + m1~r˙22 − V (|~r1 − ~r2 |) . (1)
2 2
Considere as novas variáveis

~ = m1~r1 + m2~r2 ,
R ~r = ~r2 − ~r1 , (2)
m1 + m2
e a massa reduzida 1
m1 m2
m= . (3)
m1 + m2
~ e ~r.
a) Escreva ~r1 e ~r2 em função de R

b) Mostre que L0 se pode escrever como

L0 = LCM + L , (4)

onde
1 ~˙ 2 , 1
LCM = (m1 + m2 )R L = m~r˙ 2 − V (r) . (5)
2 2

~ e do momento conjugado P~ ? O que pode concluir do facto de que R


c) Qual o significado de R ~ é uma
coordenada cı́clica? Determine também a expressão de
∂L
p~ ≡ (6)
∂~r˙
em termos de p~1 e p~2 .

d) Será L invariante para rotações? O que pode concluir daı́ sobre o momento angular
~`θ ≡ ~r × p~ ? (7)

Deduza que o movimento tem de ser planar.


1
Costuma-se usar para esta massa reduzida a letra µ, quando se quer dar ênfase ao facto de que não é nem m1 nem m2 .
Para simplificar a notação posterior, usamos m.
Considere agora o Lagrangiano com duas coordenadas
m 2
L(r, ṙ, θ, θ̇) = (ṙ + r2 θ̇2 ) − V (r) . (8)
2
e) Usando coordenadas cı́clicas e/ou a identidade de Beltrami e/ou o Teorema de Noether, encontre
duas constantes do movimento:

`θ = mr2 θ̇ , (9)
1 2
E = mṙ + Veff (r) , (10)
2

onde
`2θ
Veff = V (r) + . (11)
2mr2

f ) Encontre as eqs. de E-L de (8). Reorganize-as por forma a confirmar os resultados da alı́nea anterior.

g) Quantas constantes de integração (condições iniciais) são necessárias para determinar r(t) e θ(t) a
partir das eqs. (9) e (10)?

h) Combine as eqs. (9) e (10) por forma a encontrar uma equação da órbita, que permita determinar
formalmente (isto é, sem a resolver) r(θ). Quantas constantes de integração serão necessárias?
Como compara com o número de constantes de integração que referiu em g)? Qual o significado
fı́sico da diferença?

2. Equação da órbita.
Considere a massa reduzida m num potencial central V (r). Vimos na aula que a equação da órbita se
pode escrever como
Z
0 du
θ=θ − q , (12)
2m 2
`2 (E − V ) − u
θ

onde

u = 1/r . (13)

Pretende-se encontrar de outra forma uma equação diferencial para a órbita.

a) Mostre que

du 1 dr
= − , (14)
dθ r2 dθ
d d
V (r) = −u2 V (1/u) . (15)
dr du

b) Use a conservação do momento angular para mostrar que

d `θ d
= . (16)
dt mr2 dθ
c) Mostre que a equação radial se pode escrever como

d2 dV `2θ
m r = − + . (17)
dt2 dr mr3
Substitua sucessivamente os resultados anteriores nesta equação para obter a equação da órbita:

d2 u m d
2
+ u = − 2 V (1/u) . (18)
dθ `θ du

d) Tome o potencial de Kepler: V = −k/r. Mostre que

u = u0 1 +  cos (θ − θ0 )
 
(19)

é solução desta equação, identificando u0 em termos de m, k, e `θ .

e) O resultado da alı́nea anterior não depende da expressão de . Arranje forma de determinar  em


termos de E, m, k, e `θ .
[Sugestão: Use θ = θ0 na equação da conservação da energia.]2

3. Cónicas.
No problema de Kepler (potencial V = −k/r), a equação da órbita pode-se escrever como
1 1
= [1 +  cos θ] , (20)
r r0
onde
r
`2 2Er0
r0 = θ , = 1+ , (21)
mk k
sendo m, `θ e E, respectivamente, a massa, o momento angular e a energia do problema. Este problema
destina-se a escrever esta equação em formas mais habituais da geometria analı́tica.

a) Mostre que o valor mı́nimo de r é finito independentemente do valor de  e determine-o. Para que
valor de θ ocorre? Diz-se que o planeta está no periélio.

b) Determine o valor máximo de r, para cada valor de . Para valores finitos, diz-se que o planeta está
no afélio. Encontre o correspondente valor de θ.

c) Usando x2 + y 2 = r2 e x = r cos θ, mostre que (20) se pode escrever como

x2 + y 2 = r02 − 2r0 x + 2 x2 . (22)

d) Tome  = 0: cı́rculo. Mostre que (20) dá

x2 + y 2 = r02 . (23)
2
Este problema mostra que a equação (18) é, em certo sentido, um retrocesso. Se, devido à identificação da energia como
constante, já tı́nhamos uma equação em primeiras derivadas, voltar a uma equação para segundas derivadas parece pouco
sensato. No entanto, esta equação tem interesse para certos argumentos teóricos, nomeadamente para a demonstração do
Teorema de Bertrand. Ver, por exemplo, A truly elementary proof of Bertrand’s theorem, S.A. Chin, Am. J. Phys. 83, 320
(2015).
e) Tome 0 <  < 1: elipse. Mostre que (20) dá

(x − x0 )2 y 2
+ 2 = 1, (24)
a2 b
onde
r0  r0 r0
x0 = − , a= , b= √ . (25)
1 − 2 1 − 2 1 − 2

f ) Tome  = 1: parábola. Mostre que (20) dá


 r0 
y 2 = −2r0 x − . (26)
2

g) Tome  > 1: (ramo de) hipérbole. Mostre que (20) dá

(x − x0 )2 y 2
− 2 = 1, (27)
a2 b
onde
r0  r0 r0
x0 = , a= , b= √ . (28)
2−1 2 −1 2 − 1

4. Mais sobre a hipérbole “atractiva”.


Voltemos à eq. (27).

a) Mostre que as assimptotas da hipérbole são dadas por

b
y = ± (x − x0 ) , (29)
a
e que estas se cruzam no ponto (x0 , 0), denominado “centro da hipérbole”. Note que o “centro da
hipérbole” não coincide com o “centro da força” (em que ponto está este último?).

Podem-se definir os dois focos da hipérbole do seguinte modo. Tomemos um ponto (x, y) na hipérbole.
Seja d1 (d2 ) a distância a um (ao outro) foco. Então os focos são tais que |d1 − d2 | é uma constante
(para qualquer ponto da hipérbole). Designa-se por “distância focal” a distância de um foco ao centro
da hipérbole. Pode-se mostrar que essa distância é dada por
p
c = a2 + b2 . (30)

b) Mostre que, no caso da eq. (27), c ≡ x0 . Convença-se que isto implica que um foco está na origem.
(Onde estava o centro do potencial?)

c) Mostre que, quando a partı́cula está mais próximo do centro da hipérbole, a distância entre a
partı́cula e o centro da hipérbole é a. Nessa situação, qual é a distância entre a partı́cula e o centro
do potencial, em termos de a, b, c? Qual a relação com rmin ?

5. Terceira Lei de Kepler.


Considere duas partı́culas de massa M que se movem por acção de uma força mútua de gravidade, ao
longo de pontos opostos de uma circunferência de raio a.
a) Aplicando a terceira lei de Newton a uma das partı́culas, mostre que o perı́odo de revolução τ se
relaciona com a através de
16π 2 3
τ2 = a , (31)
GM
onde G é a constante da gravitação.

Consideremos que uma das partı́culas é o Sol e que a outra é um planeta com a massa do Sol. Claramente,
(31) não estaria de acordo com a terceira Lei de Kepler

4π 2 3
τ2 = a , (32)
GM
se nesta última se interpretasse a como semi-eixo maior da órbita do planeta e M = M .

b) Diga por palavras qual é a fonte do problema.

c) Encontre uma expressão semelhante a (32) que descreva bem a relação entre o perı́odo do movimento
de um planeta de massa mP , com semi-eixo maior da órbita (aP ), em torno de um “Sol” de massa
M . [Sugestão: Poderá querer usar o resultado da alı́nea 1a).]

d) Verifique que o resultado da alı́nea anterior é consistente com (31).

6. Potencial repulsivo de Coulomb.


Considere duas cargas q1 e q2 com o mesmo sinal (q1 q2 > 0).

a) Mostre que o potencial se pode escrever como V = −k/r, mas que, agora, k < 0.

Neste caso, a equação (19) ainda é válida. Podemos reescrevê-la como


r̄0
= −1 −  cos (θ − θ0 ) (33)
r
onde
s
`2θ 2E`2θ
r̄0 = > 0, = 1+ . (34)
−mk mk 2

b) Explique porque é que a excentricidade é  > 1.

c) Mostre que em (19) a escolha θ0 = 0 significa que o ângulo θ está a ser medido a partir do periélio
(da posição na qual a distância ao centro é menor). Isto é, que θ = 0 corresponde a rmin .

d) Mostre que, para que em (33) o ângulo θ esteja a ser medido a partir do periélio, é necessário agora
escolher θ0 = π, escrevendo-se
r̄0
=  cos (θ) − 1 . (35)
r

e) Note que neste caso, θ não pode tomar um valor qualquer. Determine o ângulo máximo ψ que θ
pode ter.

f ) Execute no Mathematica as instruções da fig. 1. Desenhe na figura os (dois) ângulos ψ e o ângulo


θf entre a direcção incidente e a direcção de afastamento. Modifique os valores dos parâmetros r̄0
e  para obter intuição sobre os seus efeitos.
Figura 1: Instruções de Mathematica para desenhar a hipérbole repulsiva.

7. Mais sobre a hipérbole “repulsiva”.


Voltemos à eq. (35).

a) Mostre que, tal como na alı́nea g) do problema 3, a equação da hipérbole se pode escrever como

(x − x0 )2 y 2
− 2 = 1, (36)
a2 b
identificando x0 , a, e b em termos de r̄0 e .

As assimptotas da hipérbole são novamente dadas por


b
y = ± (x − x0 ) , (37)
a
cruzando-se no ponto (x0 , 0), sendo x0 = c a distância focal.

b) Onde está o “centro da força”? Qual a distância mı́nima da partı́cula ao centro da força, em termos
de a, b, c?

c) Mostre que a recta passando pelo centro da força e definida pelo ângulo limite ψ tem a mesma
inclinação da recta (que passa pelo centro da hipérbole) que dá a assimptota da hipérbole. Isto é,
mostre que tan ψ = b/a. Determine a distância entre as duas rectas.

d) Retome a alı́nea f) do problema anterior. Desenhe na figura as quatro rectas

b
y = ± tan ψ x, y = ± (x − x0 ). (38)
a
Indique em quatro sı́tios diferentes da figura o ângulo ψ.

e) De quanto teria que rodar a figura que desenhou na alı́nea anterior, para que ela se parecesse mais
com a figura 3.20 do livro? Como relacionaria o novo ângulo θnew com o antigo?

f ) Execute no Mathematica as instruções da fig. 2. Compare com a figura 3.20 do livro.

8.∗∗ [Terças] Teorema do Virial.


Uma propriedade importante dos potenciais centrais pode ser deduzida como um caso particular de um
teorema mais geral em fı́sica estatı́stica; o teorema do virial de Clausius. Este difere, em carácter, dos
teoremas discutidos até aqui, tendo uma natureza estatı́stica; isto é, envolve médias temporais de várias
quantidades mecânicas.
Considere um sistema genérico composto por N partı́culas de massa m, com posições ~ri e sujeitas a
forças F~i (não necessariamente conservativas).
Figura 2: Instruções de Mathematica para desenhar a hipérbole repulsiva com outra definição de ângulo.

a) Definindo
X
G= ~ri · p~i , (39)
i

considere a média temporal de dG/dt. Mostre que a energia cinética média, hT i, pode ser dada por
1 X~
hT i = − h Fi · ~ri i , (40)
2
i

onde h i representa a média temporal tomada num intervalo de tempo τ , que escolhemos ser muito
maior do que qualquer tempo caracterı́stico do sistema.

b) Parta do teorema da equipartição da energia:


3
hT i = N kB Θ , (41)
2
onde kB é a constante de Boltzmann, sendo N e Θ, respectivamente o número de partı́culas e a
temperatura de um gás em equilı́brio. Use o teorema do Virial para obter a equação dos gases
ideais:

P V = N kB Θ , (42)

onde P e V são, respectivamente, a pressão e volume do gás.

c) Assuma, agora, que o sistema evolui apenas sob o efeito de forças centrais. Mostre que, para
potenciais do tipo

V = α rn−1 , (43)

o teorema do virial pode ser escrito na forma


n+1
hT i = hV i . (44)
2
Concretize para o caso da força electrostática (ou da força da gravidade). Concretize também para
o caso do oscilador harmónico.

9.∗ Teorema do Virial, Zwicky e matéria escura.


Em 1937, Zwicky apresentou de forma clara um argumento para a existência de matéria escura,3 em que
usou o teorema do Virial, e aproximações audazes. Pretende-se revisitar o argumento. Mais informação
pode ser encontrada num texto de Sugarbaker.4
3
F. Zwicky, On the Masses of Nebulae and of Clusters of Nebulae, Astrophys. J. 86 (1937) 217-246.
4
http://large.stanford.edu/courses/2007/ph210/sugarbaker2/ .
Considere o “Coma Cluster”, com N ∼ 1000 galáxias, cada uma com massa mi , posição ~ri e sujeita a
uma força
X X G mi mj
F~i = F~ji = − 3 ~rji , (45)
rij
j6=i j6=i

onde G é a constante gravitacional universal. Nesta notação, F~ji é a força que a massa j exerce sobre a
massa i; sendo ~rji = ~ri − ~rj .

a) Use o Teorema do Virial para mostrar que


X X X G mi mj
h mi vi2 i = h i. (46)
rij
i i j<i

Zwicky faz agora aproximações audazes, assumidas como válidas em ordem de magnitude. Usa a inferência
das velocidades de galáxias vindas de “redshift” para estimar o lado esquerdo da equação como M v 2 ,
onde

v 2 = 5 × 1011 (m2 s−2 ) , (47)

sendo M a massa do cluster, que se pretende determinar. E estima o lado direito da equação como
GM 2 /R, onde R é o raio do cluster. Usa ainda as medições

R ∼ 2 × 106 (anos-luz) ,
L ∼ 8.5 × 107 L ,
G ∼ 6.67 × 10−11 (m3 kg −1 s−2 ) ,
M ∼ 1.99 × 1030 (kg) , (48)

onde L é a luminosidade galáctica média e L é a luminosidade solar, tomada como uma luminosidade
caracterı́stica de estrelas (tomadas, por sua vez, como sendo a fonte de luminosidade das galáxias).

b) Use os dados mencionados para mostrar que a massa de cada galáxia será, em média, dada aproxi-
madamente por 7 × 1010 M .

c) Mostre que a razão entre a massa e a luminosidade é da ordem de

M
800 , (49)
L

quando, argumenta Zwicky, o esperado seria algo da ordem de 1.

d) Para além da ingeniosidade do argumento de Zwicky, pondere as seguintes perguntas. Se tivesse


tido a fortuna de fazer estas contas, teria pensado que a solução seria a ideia radical de que apenas
uma parte da matéria do Universo é visı́vel; sendo a esmagadora maioria “Dark Matter”? Na
afirmativa, teria a coragem de o defender em público?

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