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A TRAIÇÃO DA TRADIÇÃO: O CARÁTER IDEOLÓGICO DA VARIANTE CULTA E

SUAS NOCIVIDADES NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

LARA, Pietro Augusto.1


Dr. BRAGA, Margerete Aparecida Nath.2

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo mor a análise, através de apontamentos da sociolinguística, da variante culta como
aparato ideológico de classes dominantes, seu uso como sistema mantenedor do sistema sociopolítico vigente e suas
consequências no ensino no ensino de língua portuguesa nas escolas, bem como a indicação de possíveis estratégias
atualizadas e científicas para este. Por muito confunde-se a língua com a norma prescritiva desta, e portanto é
necessário compreender não só a faceta não-científica da variante culta, mas como ela foi e é utilizada como meio de
negação de acesso à cultura e ao poder pelas classes dominadas da sociedade. É também feita uma reflexão sobre como
tal variante é ensinada por meio da gramática tradicional, suas consequências e como o ensino de língua portuguesa
deveria se configurar para um melhor aproveitamento linguístico por parte dos cidadãos.
PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística, variante culta, gramática tradicional, ideologia, ensino de língua portuguesa.

1. INTRODUÇÃO
Toda sociedade vive sob ideologias, sejam elas sociais, econômicas, estéticas, políticas, ou
outras. A linguagem, sendo uma expressão social e humana, não foge à essa regra. Toda língua é
passível a sofrer variedades por conta das diversidades socioculturais entre seus falantes, assim
como ocorre na língua portuguesa. No entanto, dentre a miríade de manifestações linguísticas
presentes no Brasil, uma em especial tem aclamação e aceitação dentre as classes sociais de elite – a
variante culta. O objetivo deste trabalho é analisar o caráter ideológico da variante culta como modo
de manutenção de um modelo socioeconômico segregacionista. Neste contexto, este trabalho se
torna importante, pois a linguagem – e a ideologia concomitante a esta – é algo que afeta toda a
sociedade de falantes, portanto, torna-se indispensável saber como tal língua é compreendida, quais
os objetivos almejados através do ensino tradicionalista de linguagem, quais os seus efeitos práticos
no cotidiano dos falantes e a quem (ou ao quê) o método estabelecido de entendimento da língua
favorece.
A linguagem deve ser compreendida por seus falantes como resultado de práticas
linguísticas sociais. Quando adicionada a carga ideológica elitizada à linguagem, ela não só serve à
interação como também passa a ser um instrumento de dominação. Busca-se compreender, então, o
papel ideológico da linguagem e a quem ela beneficia. É relevante também aos questionamentos

1
Graduando em Letras pelo Centro Universitário FAG. E-mail: pietroalara@gmail.com
2
Professora do curso de Letras do Centro Universitário FAG. E-mail: margabraga@yahoo.com.br

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levantados o entendimento de quais os problemas causados ao se priorizar a variante culta em uma
sala de aula atual.
Seria inútil uma tentativa de analisar a linguagem sem que se analisasse, com ela, o sujeito e
a ideologia a qual ela pertence. As classes dominantes, desde os primórdios da civilização, utilizam-
se de ideologias para manter seu domínio. Historicamente, percebe-se a variante culta como
ideologia linguística usada por uma classe dominante que é, em seu cerne, conservadora, elitista,
racista, misógina e capitalista. Afinal, enquanto mantêm-se os preconceitos de que as classes menos
favorecidas da sociedade “não sabem falar bem” ou “não aprenderam corretamente a língua
materna”, mantém-se, também, a ilusão de que o conhecimento da língua está guardado por um
grupo de “especialistas” que ridicularizam qualquer manifestação linguística que esteja fora de suas
ideologias, causando assim a inibição dos falantes em usar sua língua materna. Como consequência,
muitas vezes, o ensino da língua segue modelos tradicionalistas, onde o aluno não se reconhece
como sujeito, pois, a sua variante, nessa perspectiva, é um erro. É preciso uma educação
emancipadora que critique as amarras ideológicas aclamadas pela elite, pois, as classes sociais
menos desfavorecidas não encontram sua libertação e, portanto, não reconhecem que são oprimidas.
Busca-se neste trabalho, inicialmente, analisar o que é e como se forma uma ideologia e então
contrastar esses conhecimentos com o que se sabe à respeito da variante culta, explicitando seu
caráter não-científico. Então, após uma análise dos agentes mantenedores desta ideologia e de seus
objetivos, perscrutar como o ensino desta gramática é nocivo aos alunos e quais estratégias
apontariam para uma compreensão mais acurada e científica da língua.

2. REFEERNCIAL TEÓRICO OU FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para o melhor entendimento do tema proposto e para um esclarecimento dos assuntos que
serão abordados, torna-se necessária uma divisão quanto às abordagens teóricas dos conceitos
estudados. Para tanto, é benéfico entender, inicialmente, o que é ideologia e como ela se materializa
nos discursos sociais.

2.1 A IDEOLOGIA
Consoante a Chauí, a ideologia se resume num encadeamento sistemático de ideias de
âmbito histórico, político e social que tem como função o obscurecimento da realidade em prol de

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uma manutenção de explorações econômicas, desigualdades sociais e dominação política. A autora
afirma ainda que “de fato, um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar
as ideias como independentes da realidade histórica e social” (2008, p. 13).

Durante a história, sempre foi preocupação essencial do homem produzir métodos de


explicação sobre a realidade em que vive. No entanto, numa sociedade de classes, essas explicações
– ideias – são difundidas pela classe dominante, a modo de legitimação e asseguração de seu
domínio político e social. É neste ocultamento que vem à tona a ideologia, que faz com que
quaisquer que sejam as ideias das classes dominantes, estas pareçam justas e reais às classes às
quais elas são difundidas. (CHAUÍ, 2008).

A autora explica que este significado é proveniente de Marx, sendo o ideólogo – produtor de
ideologias – aquele que inverte as relações entre o real e o fictício (CHAUÍ, 2008). Marx e Engels
(1998) sustentam o posicionamento de que a supremacia de uma classe social ante outras ocorre não
só pela monopolização do plano material, como pela detenção dos modos de produção, matérias
primas e poder político, mas também por um senhorio do plano ideológico e espiritual. De um
modo geral, apenas as ideias criadas pela classe dominante de uma sociedade são consideradas
válidas e belas, já que as classes dominadas não se percebem nessa relação de soberania.

2.1.1. A variante culta e seu encargo ideológico


Esclarecidos as definições de ideologia, torna-se necessário um mais amplo entendimento do
que compreende ser a Gramática Tradicional. O conceito de Gramática Normativa e “norma culta”
são idênticos: ambos nasceram de um (pre)conceito à respeito da língua, onde imagina-se que exista
uma única língua certa e que esta está descrita nas gramáticas. As gramáticas, por sua vez,
descrevem a língua baseada na modalidade escrita de um grupo seleto de cidadãos “esclarecidos”,
chamados de “clássicos” (BAGNO, 2009). Ainda de acordo com Bagno (2000), pode-se fazer uma
comparação entre Gramática Tradicional e Gramática Normativa utilizando-se das ideias de Platão:
enquanto a Gramática Tradicional vigora o plano das ideias – mundus intelligibilis – a Gramática
Normativa compreende o mundo físico – mundus sensibilis. Por isso, percebe-se o caráter
doutrinador (ideológico) da Gramática Tradicional, que consiste numa “descrição” da língua por um
grupo de detentores do “conhecimento”, em detrimento da Gramática Normativa, que consiste no
uso de mencionada língua pelos falantes.

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Embora, possa-se perceber, graças aos estudos sociolinguísticos, a ampla gama de
variedades linguísticas existentes no Brasil, as gramáticas tradicionais ainda se apoiam na descrição
de uma variedade considerada como padrão, utilizada por pessoas ditas “cultas”, e qualquer
disparidade a essa é iminentemente taxada de “feia”, “estropiada” ou “corrompida”. Nessa visão, o
caráter ideológico da Gramática Tradicional – modelo descritivo da variante culta - fica ainda mais
evidente. (BAGNO, 2000).
Em breve análise de ditas Gramáticas tradicionalistas, Bagno (2000) aponta diversas facetas
da ideologia elitista mesmo na introdução destas obras.
A Gramática, segundo a conceituamos, não é nem deve ser um fim, senão um meio posto a
nosso alcance para disciplinar a linguagem e atingir a forma ideal da expressão oral e
escrita. Maldizer da Gramática seria tão desarrazoado quanto malsinar os compêndios de
boas maneiras só porque preceituam as normas de polidez que todo civilizado deve acatar.
(CEGALLA, 1990, p. xvii apud BAGNO, 2000, p. 27).

As línguas que têm forma escrita, como é o caso do português, necessitam da gramática
normativa para que se garanta a existência de um padrão linguístico uniforme no qual se
registre a produção cultural. Conhecer a norma culta é, portanto, uma forma de ter acesso a
essa produção cultural e à linguagem oficial. (NETO e INFANTE, 1997, p. 16 apud
BAGNO, 2000, p. 27)

Estes excertos mostram claramente os princípios ideológicos e doutrinários da Gramática


Tradicional. Ao buscar uma padronização da língua, de modo a alcançar uma forma “ideal” de uso,
que permita aos falantes “o acesso à cultura”, torna-se óbvio que só são considerados certas as
normas impostas por uma classe que detêm o controle da produção cultural e ideológica da
sociedade. (BAGNO, 2000).
No entanto, seria descabido afirmar que a Gramática Tradicional não tem validade na língua
portuguesa, ou que ela seja de um todo uma simples redução da língua falada, afinal, como explica
Žižek (2010), uma ideologia não é impreterivelmente falsa. Quanto ao seu conteúdo pragmático, ela
pode ser precisa e verdadeira – o que fomenta ainda mais seu efeito. Afinal, não importa realmente
o que essa ideologia prega, mas sim “o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura
subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação”. Portanto, como diz Bagno (2000), a
Gramática Tradicional não está errada em ensinar que o verbo “moro” em “Moro na Bahia há 20
anos” está no presente, pois este demonstra uma ação que acontece neste instante. O que está em
discussão, no entanto, é o modo como essas doutrinas são difundidas. O autor chama de comandos
paragramaticais todo processo midiático que tem como função difundir os dogmas da Gramática
Tradicional, que, vestidos com a ilusão de “democratizar o acesso à língua culta”, acabam por
preservar a segregação dos que já sabem as normas cultas e os que as desconhecem ou ignoram.

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Ou seja, a Gramática Tradicional pode ter parte de seu dogma baseado em fenômenos
linguísticos, no entanto, não os explica por inteiro nem é uma replicação fiel da língua. A ideologia,
conforme Chauí (1998), só é uma explicação válida porque nela existem lacunas, espaços em
branco, que não podem ser preenchidos. Ainda segunda a autora, “[a ideologia] não diz tudo e não
pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se quebraria por dentro.” (CHAUÍ, 1998, p. 114-115). Por isso
há uma resistência entre os gramáticos tradicionalistas em admitir inconsistências na norma ou em
aderir a visões linguísticas científicas sobre a língua, afinal, fazê-lo seria admitir o caráter de
doutrina da Gramática Tradicional, e isso faria com que a ideologia de “implodisse”. (BAGNO,
2000).
Tendo isso em vista, fica claro como as definições de ideologia se encaixam “ipsis litteris”
no funcionamento da Gramática Tradicional, que age como um regulador, prescritivo e normativo,
de uma realidade oculta que é a língua portuguesa em seu uso. (BAGNO, 2000).

2.2 LÍNGUA E PODER


Após esta breve explanação acerca da ideologia da Gramática Tradicional, mostra-se
necessário discutir porque essa classe busca a unificação da língua portuguesa com um método
padronizado. Se a ideologia é promulgada por quem detêm o poder, para Bagno, os detentores de
poder no Brasil, os “falantes da norma culta” (quando são), compreendem, em sua maioria,
“homens brancos, heterossexuais, nascidos/criados na porção Sul-Sudeste do país ou oriundos das
oligarquias feudais do Nordeste.” (2007, p. 70-71). O autor ainda ressalva o fato das palavras patrão
e padrão terem as mesmas origens epistemológicas, vindo da palavra latina patronu, mesma raiz de
paternalismo ou patriarcalismo.
Mas então, qual o objetivo desse domínio linguístico no Brasil? Que realidade ele pretende
ocultar? Bagno afirma que “todo o preconceito que pesa sobre uma variedade linguística é mero
reflexo do preconceito social que pesa sobre seus falantes” (2000, p. 63). Logo, a ideologia da
Gramática Tradicional não se atém apenas ao campo linguístico, mas também no plano econômico,
como máscara de ideologias políticas e sociais.
Um dos mitos trabalhados por Bagno (2000) é o da unidade linguística na língua portuguesa.
Se os estudos da sociolinguística cada vez mais predizem a aceitação das variedades linguísticas no
Brasil, por que ainda encontra-se dentre gramáticos e “usuários da norma culta”, a visão
anticientífica de que a linguagem brasileira é uniforme? O autor explica que este mito é utilizado
como embasamento para um outro, o da unidade nacional. A língua é um dos maiores métodos de

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controle social e político, pois quem controla a linguagem controla os meios de comunicação. De
acordo com Gnerre (1985), o controle da língua é o modo mais fácil de controle do poder político.
Para que um documento de qualquer valor jurídico seja redigido, não é necessário ter apenas o
conhecimento da língua e redigir frases inteligíveis, mas precisa-se de todo um aparato linguístico,
complexo e arcaico.
Minha hipótese, se correta, nos obriga a reconhecer o fato de que a função primária da
comunicação escrita é favorecer a escravidão... Ainda que a escrita não haja sido suficiente
para consolidar o conhecimento, ela foi talvez indispensável para fortalecer a dominação...
A luta contra o analfabetismo está então em relação com um crescimento da autoridade dos
governos sobre os cidadãos. Todos têm que ser capazes de ler, de forma que o governo
possa dizer: a ignorância da lei não é desculpa. (LÉVI-STRAUSS apud GNERRE 1985, p.
45).

Se a communis opinio dentre as classes dominadas é de que são iguais às classes dominantes
por viverem sob as mesmas leis, e se acreditarem que usam a mesma língua, este processo de
homogeneização torna a relação de opressão mais viável. Conforme Bourdieu (1996 apud BAGNO,
2000), os revolucionários franceses de 1789 viram na promulgação de leis que perseguissem os
dialetos regionais um método de domínio usando a língua. A linguagem revolucionária era ligada
ao pensamento revolucionário, logo, expurgar a língua dos usos das antigas sociedades era um
modo de criar um novo pensamento social também purificado.

2.3 A NOCIVIDADE DA GRAMÁTICA TRADICIONAL NO ENSINO DA LÍNGUA


PORTUGUESA
No entanto, se a Gramática Tradicional não serve como base científica para análise da
língua, mas sim como doutrina de uma sociedade segregacionista, por que ela ainda é ensinada nas
escolas e qual o efeito dessa pedagogia? A resposta da primeira pergunta, consoante a Giles e
Niedzielski (1998, apud BAGNO, 2000), é que se grupos oprimidos na sociedade começam a se
enxergar no papel de dominados e a questionar a legitimidade dessa dominação, eles mesmos
podem “redefinir a beleza e a importância de sua língua de acordo com isso, e às vezes
ruidosamente”. Stubbs (1990 apud BAGNO, 2000) também afirma que era senso comum entre as
classes dominantes da sociedade de que o ensino da língua aos menos “esclarecidos” poderia levar a
uma escassez na mão-de-obra, da mesma maneira que se opunham a este ensino às mulheres, pois
estas seriam mais difíceis de serem enquadradas numa sociedade patriarcal.
É compreensível, então, o fato de que o ensino de língua portuguesa em muitas escolas, de
acordo com Luft (2001), é deficiente, improdutivo e até mesmo nocivo. Toda criança de até 3 anos
de idade fala com fluência sua língua materna, tem uma gramática internalizada e sabe construir e
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estruturar frases cognoscíveis, enquanto a Gramática Tradicional, muitas vezes a base para todo o
ensino, impõe regras com a intenção de imobilizar a língua, pautada em autoritarismos de
“autoridades da língua”. Um exemplo seria o uso prevalecido da 2ª pessoa sobre a terceira. Nenhum
falante brasileiro diz “tu e eles compreendes bem”, no entanto, qualquer forma que fuja do ensino
gramatiqueiro, preconceituoso e autoritário é taxado como “errado”.
Para que o ensino da língua portuguesa no Brasil seja frutífero, precisa-se, primeiramente ter
um bom entendimento do que é uma língua e do que é uma criança (humano) (POSSENTI, 1996).
O entender o que é a língua se trata, exatamente, de romper as amarras impostas pela variante culta
e entender que a língua, como instituição social, é heterogênea, variante e mutante. Normalmente,
ao ensinar-se a língua nas escolas, o termo “variante” pode até ser utilizado, mas preso a um
reducionismo que permite substituí-lo por “erro”. A língua, então, é vista como homogênea e
imóvel, e, pior ainda, tem-se a visão que deve-se protegê-la contra o mau uso. O que se espera,
então, do ensino da língua, é um que “ofereça estratégias para o ensino da variação linguística que
não se limite a fenômenos de prosódia (“sotaque”) ou de léxico (“aipim”, “mandioca”,
“macaxeira”)” (BAGNO e RANGEL, 2005, p.73). E que, acima de tudo, não dissolva as raízes
culturais e sociais da variação linguística. Além disso, deve-se considerar também que as eventuais
mudanças, às quais todas as línguas são passíveis, não as deixam piores nem melhores, mas apenas
adequadas às necessidades sociais de comunicação – fenômeno bem observado, recentemente, no
aumento do uso da internet. Deve-se também, acima de tudo, levar o aluno à compreensão de que a
Gramática Tradicional é apenas uma das múltiplas facetas da língua, e deixar claro que esta é
baseada numa norma e tradição de senso comum dentre as classes dominantes (BAGNO e
RANGEL, 2005).
Possenti (1996) adverte quanto à importância de aprender a usar uma língua, saber como
uma criança (ou um indivíduo, no geral) realmente aprende a língua. O autor denomina este
fenômeno de “aprendizagem criativa”, ou seja, não-mecânica. Todos os falantes de uma língua
sabem falá-la, mesmo que de formas peculiares ou que se adequem ao seu contexto sociocultural.
“As crianças, por exemplo, não estudam sintaxe de colocação antes de ir à escola, mas sempre que
falam [..] dizem o artigo antes e o nome depois” (1996, p. 23-29). O fato é que a criança já chega na
escola tendo fluência em sua língua materna e com uma capacidade de comunicação ainda não
explicada pela ciência, o que leva ao questionamento: seria a escola o lugar de ensinar o que os
alunos já sabem? O que, propriamente, uma criança precisa aprender quanto à uma língua materna?

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Possenti afirma, categoricamente, que “o que já é sabido não precisa ser ensinado” (1996, p.
49). O autor então, cita o acompanhamento das produções escritas e do nível de leitura dos alunos
como um parâmetro mais confiável do desenvolvimento linguístico do que receitas prontas
gramatiqueiras. Afinal, se os alunos já sabem falar frases complexas e inteligíveis, não há motivos
de estudar gênero, número e concordância, salvo os casos em que os alunos efetivamente fogem de
maneira brusca à regra e somente estes casos devem ser avaliados. Logo, se existem problemas,
estes devem ser trabalhados, mas, se estes não existem, não precisam ser trabalhados. O autor
exemplifica sua visão ao mostrar que, se um aluno diz “os livro”, uma lição em concordância de
número seria requerida, mas se ele diz “a vaca”, qual o sentido de ensinar o gênero da palavra vaca?
(POSSENTI, 1996). Isso, é claro, só seria possível se para o professor estiver claro a diferença entre
Gramática Tradicional e estudo da língua. Mas seria esta a realidade apresentada pelos professores
de língua portuguesa?
Existe na sociedade brasileira uma demanda social por educação linguística, mas esta é
muitas vezes impossibilitada nos próprios cursos de licenciatura em Letras. As discussões sobre o
ensino da língua dificilmente ultrapassam o âmbito acadêmico e, portanto, não chegam às escolas
de ensino fundamental e médio, onde seriam mais fortuitas. E, mesmo em universidades, o ensino
das matérias de língua portuguesa continuam atreladas aos moldes da Gramática Tradicional,
debilitando o acesso de jovens graduandos a alternativas eficientes de ensino. Desse modo, é
provável que estes acabem recorrendo às arcaicas noções do ensino mecanizado, como se sua
profissão se baseasse na doutrinação de uma língua que de nada se assemelha com a que ele e os
alunos utilizam. O próprio ensino de linguística muitas vezes estanca num estudo histórico das
noções de linguagem e seus conceitos. Logo, abre-se uma lacuna entre o ensino premeditado pelas
Diretrizes Nacionais de Educação e a realidade aprendida por esses futuros professores, e esta
lacuna é normalmente preenchida por “consultórios gramaticais” (BAGNO e RANGEL, 2005).
Como essa realidade pode ser mudada? É possível que, na realidade brasileira, haja um
ensino de língua que seja suficiente para a formação de cidadãos aptos a usarem livremente sua
língua materna? Há a necessidade de uma “formulação de uma política linguística ou, mais
precisamente, uma política de educação linguística, ao mesmo tempo adequada ao momento
político nacional e cientificamente consistente” (BAGNO e RANGEL, 2005). A forma mais
adequada de se constituir um ensino linguístico eficiente, seria a de refletir a Gramática Tradicional,
seus dogmas e suas consequências, ao invés de apenas repetir seus dogmas (BAGNO, 2000). Afinal
de contas, como afirma Possenti (1996), o objetivo da escola é sim ensinar a gramática e oferecer

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subsídios para a compreensão da norma padrão, mas, como afima Bagno (2000), este deveria ser o
ponto de chegada de uma educação de língua, e não o ponto de partida.

3. METODOLOGIA

A presente pesquisa utiliza-se do método qualitativo de cunho bibliográfico e apresenta


como suporte teórico não somente as interpretações acerca de ideologia como expostas nas obras de
Marilena Chauí (2008), Karl Marx e Friderich Engels (1998) e Slavoj Žižek (2010), mas também os
apontamentos feitos por linguistas renomados, como Marcos Bagno (2000, 2005 e 2007), Celso
Pedro Luft (2001), Sírio Possenti (1996), Maurizzio Gnerre (1991) e Luiz Percival Pedro Britto
(1997).

4. ANÁLISES E DISCUSSÕES

A pesquisa nos leva à constatação de que o ensino da língua materna precisa ser repensado em
prol de conteúdos e discussões que permitam ao aluno desenvolver sua competência linguística.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por efeito do posicionamento abordado, é perceptível a relevância das discussões acerca da


língua como ideologia de classes dominantes. No Brasil, um país de formação pluricultural e
pluriétnica, é inconcebível que a língua continue sendo configurada como uma só, menos ainda que
exista uma classe social privilegiada por fazer o uso correto desta. Além de tudo, essa visão é
anticientífica e vai em contramão a todos os estudos linguísticos, especialmente sociolinguísticos,
que vem se dando após a virada pragmática no modo de observar a linguagem. A língua deve ser
entendida como uma instituição construída por toda a sociedade, e deve-se entender que,
exatamente por esse motivo, toda a sociedade tem habilidade, ciência e destreza em utilizá-la,
independendo de possíveis variedades socioculturais, históricas, de região ou de natureza
econômica.
Notável também reafirmar o poder ideológico concomitante à variante culta, que, por
subsídio de classes dominantes, faz com que os falantes da língua portuguesa tenham aversão à

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própria língua materna, à própria cultura. Classes dominantes estas que, aliás, são as mesmas que há
não muito tempo explicitavam o uso da língua como ferramenta de dominação ao negarem o acesso
da modalidade escrita a mulheres, pessoas desfavorecidas, dentre outras classes que têm seus
direitos naturalmente vilipendiadas pela sociedade. A diferença, no contexto histórico atual, é que
este domínio se dá de forma mais implícita o que, de certa forma, reafirma o poder doutrinário da
ideologia. Hoje, a dominação e a segregação se configuram nos aparatos midiáticos, na educação
insuficiente e incoerente com a realidade da língua, na linguagem desnecessariamente técnica de
textos acadêmicos ou demasiadamente arcaica dos textos jurídicos.
Por todas estas razões, uma reforma no modelo de educação linguística nas escolas de
ensino fundamental é imprescindível. As velhas noções prescritivas inerentes à Gramática
Tradicional só fazem fomentar essa segregação social decorrente da negação do acesso popular à
língua que os mesmo produzem. É de caráter de urgência que as abordagens quanto ao ensino de
língua portuguesa sejam condizentes com as indicações impostas pelo Parâmetro Curricular
Nacional e que a discussão quanto à ideologia linguística saia de dentro das universidades e passe a
ser espalhada ao grande público. Todo cidadão, se é cidadão, tem direitos fundamentais, e o do
respeito à sua linguagem torna-se, cada vez mais visivelmente, o melhor modo para que este se
encontre vivendo em um estado realmente democrático.

REFERÊNCIAS
BAGNO, M. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia e exclusão social. 1.ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2000.
______. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 49.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

______; RANGEL, E. O. Tarefas da educação linguística no Brasil. Revista Brasileira de


Linguística Aplicada. Minas Gerais, v. 5, n. 1, p. 63-81, 2005.
BRITTO, L. P. L. A sombra do caos: ensino da língua x tradição gramatical. 1.ed. Campinas:
Mercado de Letras, 1997.
CHAUÍ, M. O que é ideologia? 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.

ENGELS. F; MARX, K. A ideologia alemã. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

LUFT, C. P. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna. 1.ed. São Paulo:
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POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. 1.ed. São Paulo: Mercado de Letras,
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