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PÓS-GRADUAÇÃO EM NEUROPSICOPEDAGOGIA

DISCPLINA: NEUROPSICOPATOLOGIAS E
NEUROCIÊNCIAS APLICADAS À EDUCAÇÃO
PROFESSORA: IANNA AYANNA MARQUES DE A. S. RÊGO

MATERIAL DE ESTUDOS
(COMPILADO DE ARTIGOS)

TERESINA/PIAUÍ
A NEUROEDUCAÇÃO E SUAS CONTRIBUIÇÕES ÀS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
CONTEMPORÂNEAS

Calline Palma dos Santos 1


Késila Queiroz Sousa 2

GT2 – Educação e Ciências Humanas e Socialmente Aplicáveis

RESUMO

Mediante as transformações na atualidade, o estudo foi realizado como meio de constatar se a


neuroeducação pode direcionar de forma mais eficaz a aprendizagem infantil. Objetivou-se apontar
quais contribuições que a neuroeducação pode oferecer para os processos de ensino-aprendizagem. A
pesquisa foi realizada a partir de uma análise sistemática de livros e periódicos publicados na base de
dados Scielo e Google Acadêmico, com as palavras chaves: neuroeducação, neurociências e psicologia
educacional, sendo de caráter qualitativo. Por fim, constatou-se que a neuroeducação tem se mostrado
bastante promissora no que concerne as variadas contribuições que a mesma pode trazer dentro das
práticas pedagógicas futuras e atuais.

Palavras chaves: neuroeducação, neurociências e psicologia educacional

ABSTRACT

Through the transformations in actuality, the study was used as a means to see if the neuroeducation
can target more effectively the children's learning. The objective was to point out what contributions
the neuroeducation can offer to the teaching-learning processes. The survey was conducted from a
systematic analysis of books and periodicals published in the Scielo database with the keywords:
neuroeducation, neurosciences and educational psychology. Being a qualitative character. Finally, it
was found that the neuroeducation has been very promising regarding the varied contributions that the
same can bring in the future and current pedagogical practices.

Keywords: neuroeducation, neurosciences and educational psychology

INTRODUÇÃO

A tarefa de educar dentro da modernidade tem exigido de seus educadores cada vez
mais esforços para atender a demanda que lhe é proposta, desde uma boa preparação teórica,
ou seja, sua formação, até a incessante busca de atualização profissional e dedicação ao seu
respectivo trabalho.

1
Graduanda em Psicologia pela Universidade Tiradentes. Membro da Linha de pesquisa Neurociência
Cognitiva: Interfaces entre Psicologia e Educação (CNPq/UNIT). E-mail: callinepalma10@hotmail.com.
2
Graduanda em Psicologia pela Universidade Tiradentes. Membro da Linha de pesquisa Neurociência
Cognitiva: Interfaces entre Psicologia e Educação (CNPq/UNIT). E-mail: kellkiss22@hotmail.com.
O processo de aprendizagem é imprescindível em qualquer etapa na vida do ser
humano, bem como, vem se desenvolvendo desde os primórdios de sua vida. A neurociência
tem demonstrado o quão promissora pode ser uma parceria com a educação, trazendo todo o
seu conjunto de saberes sobre o Sistema Nervoso Central, local onde tudo acontece, desde os
comportamentos, pensamentos, emoções e movimentos, e é a partir dos conhecimentos desta
área que a educação pode ter um salto quando se fala em efetividade e eficácia, levando em
consideração que a partir do surgimento e avanço da neurociência foi possível fornecer
melhorias na qualidade de vida da sociedade atual, disponibilizando tratamentos efetivos para
variados distúrbios neurológicos, ou seja, contribuiu e tem contribuído significativamente
para o desenvolvimento de soluções de diversos transtornos e doenças, incluindo os
problemas educacionais.
Diante dos avanços tecnológicos e o aumento das pesquisas em neurociência
cognitiva, os pesquisadores têm feito descobertas promissoras de como são feitas as conexões
neurais que possibilitam o processo de aprendizagem, trazendo também conceitos de
plasticidade cerebral que é inerente a este processo, como afirma Rotta (2007), a
aprendizagem modifica o sistema nervoso central, e isso nos faz pensar em plasticidade
cerebral que é um processo adaptativo dando ao indivíduo possibilidades de aprender, mesmo
frente às novas situações ambientais; o que, além disso, tem trazido contribuições de como a
mesma pode ser estimulada de forma mais efetiva dentro da educação.
Em suma, o princípio básico que rege o neurocientista é a compreensão da maneira
como se desenvolvem, a partir de estímulos externos, os mecanismos cerebrais, provendo o
desenvolvimento de novas potencialidades. Em geral, esse profissional investiga a dinâmica
de integração do sujeito ao ambiente externo, observando e detectando os processos
bioquímicos e moleculares internos resultantes desta relação, e as respostas decorrentes disto.
Mediante a emergência da neuroeducação na atualidade, o estudo foi realizado como
meio de constatar se a mesma pode direcionar de forma eficaz a aprendizagem infantil, tendo
também em vista a necessidade de refletir sobre a urgência de disseminar suas
potencialidades, fundamentando a pesquisa educacional baseada em metodologia científica.
Objetivou-se apontar quais contribuições que a neuroeducação pode oferecer para os
processos de ensino-aprendizagem, não como uma forma mágica de acabar com todos os
problemas relacionados a educação, mas como uma ferramenta útil que traga o embasamento
teórico-científico que possa melhorar o aprendizado, assim como, estimular de forma
adequada e diferenciada as potencialidades da criança que cada dia se transforma dentro da
modernidade a qual esta inserida.
A pesquisa foi realizada a partir de uma análise sistemática de livros e periódicos
publicados na base de dados Scielo com as palavras chaves: neuroeducação, neurociências e
psicologia educacional, sendo de caráter qualitativo, pois acreditamos que através da análise e
compreensão dos estudos realizados em livros e periódicos que tratam deste tema,
proporcionaremos um esclarecimento maior sobre a questão, de modo a oferecer melhorias no
desempenho profissional.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Com as transformações percebidas ao longo dos anos, como a diversidade de alunos


com diferentes crenças e etnias; as mudanças culturais; os avanços tecnológicos; as mudanças
na estrutura familiar, as quais podem promover ou não para um bom desempenho cognitivo,
poder-se-ia perceber desde então os reflexos dessas transformações dentro do âmbito escolar,
e consequentemente a necessidade de atualização das práticas educacionais, tanto para que a
aprendizagem fosse de fato efetiva dentro das salas de aula, como para preparar estes alunos
para as transformações dentro da contemporaneidade.
A psicologia foi uma das ciências que começou a contribuir para o processo
educacional de aprendizagem, trazendo seu rico arcabouço teórico sobre o comportamento
humano, aspectos motivacionais, emocionais, afetivos, e a importância da formação de
vínculos, entre outros processos envolvidos na aprendizagem.
Quando a psicologia estabeleceu pontes com as neurociências, trazendo abordagens
diferenciadas, tanto a pedagogia, como as outras áreas envolvidas no processo educacional,
percebendo a necessidade de reanalisar os processos educacionais, começaram a pensar no ser
humano a partir de um olhar sistêmico. As áreas que antes agiam independentes uma das
outras, começaram a fazer ricas interlocuções, formando uma interdisciplinariedade que mais
tarde adquiriu o nome de neuroeducação.
A Neuroeducação começa a ganhar corpo, se caracterizando como um campo multi e
interdisciplinar, que oferece novas possibilidades tanto a docência, como a pesquisa
educacional com a finalidade de abordar o conhecimento e a inteligência, integrando três
áreas: a Psicologia, a Educação e as Neurociências, incluindo as áreas que se formaram com a
junção dos campos, como a: Neuropsicopedagogia, Neuropsicologia e Psicopedagogia, como
mostra no quadro abaixo:
QUADRO 1: Diferenças e semelhanças entre a Neuropsicopedagogia, Neuropsicologia e
Psicopedagogia

Fonte: Russo, 2015 apud Hennemann, 2015.

A NEUROEDUCAÇÃO COMO INTERVENÇÃO

A compreensão de como se dá o processo de construção do conhecimento oferece a


possibilidade de ações que promovam o desenvolvimento cognitivo dos estudantes. Entender
todos os mecanismos envolvidos neste processo, significa se implicar em uma tarefa que por
vezes, não é fácil, mas produtiva e gratificante. Para que a aprendizagem seja possível, é
necessário ter bem estabelecidos e estimulados mecanismos de atenção, memória e
esquecimento, linguagem, ter uma boa alimentação e sono de qualidade, entre outros, esse
movimento leva em consideração todos os aspectos do indivíduo, o biológico, social,
psicológico, cognitivo. A psicologia cognitiva desde seus primórdios vem tratando destes
conceitos, avançando em pesquisas que investigam suas variações e como podem ser
estimuladas. A compreensão dos mecanismos do cérebro que estão na base da aprendizagem e
da memória, e dos efeitos da genética, do ambiente, das emoções e da idade em que se
aprende, pode ser transformada em estratégias educacionais (BLAKEMORE; FRITH, 2009,
p. 11).
[...] enquanto milhares de estudos foram devotados para explicar vários
aspectos da neurociência (como animais, incluindo humanos, aprendem),
apenas uns poucos estudos neurocientíficos tentaram explicar como os
humanos deveriam ser ensinados, para maximizar o aprendizado. (...) das
centenas de dissertações devotadas ao ‘ensino baseado no cérebro’, ou
‘métodos neurocientíficos de aprendizado’, nos últimos cinco anos, a
maioria documentou a aplicação destas técnicas, ao invés de justificá-las”
(ESPINOSA, 2008, p. 117).

São postulados por Espinosa (2008) 14 princípios da neuroeducação, nos quais


articulariam diretrizes das respectivas áreas estruturadoras, psicologia, neurociências e
educação:

[...] estudantes aprendem melhor quando são altamente motivados do que


quando não têm motivação; stress impacta aprendizado; ansiedade bloqueia
oportunidades de aprendizado; estados depressivos podem impedir
aprendizado; o tom de voz de outras pessoas é rapidamente julgado no
cérebro como ameaçador ou não-ameaçador; as faces das pessoas são
julgadas quase que instantaneamente (i.e., intenções boas ou más); feedback
é importante para o aprendizado; emoções têm papel-chave no aprendizado;
movimento pode potencializar o aprendizado; humor pode potencializar as
oportunidades de aprendizado; nutrição impacta o aprendizado; sono
impacta consolidação de memória; estilos de aprendizado (preferências
cognitivas) são devidas à estrutura única do cérebro de cada indivíduo;
diferenciação nas práticas de sala de aula são justificadas pelas diferentes
inteligências dos alunos (ESPINOSA, 2008, p. 78).

Para Seixas (2014) uma clarificação sobre os processos, fases, mecanismos de como
realmente acontece o desenvolvimento cerebral e os processos diretamente envolvidos na
aprendizagem, ou seja, as descrições dos principais estágios de desenvolvimento cerebral,
incluindo as fases da formação (neurogênese) e migração neuronal, da proliferação dos
axónios e dendritos, da sinaptogênese (que permite a comunicação entre neurónios), da
mielinização (que permite agilizar a comunicação entre os neurónios), da poda sináptica
(onde, face ao excesso de sinapses inicial, as sinapses inúteis são, posteriormente, “podadas”)
e, por fim, da apoptose (conhecida como morte celular), se fazem imprescindíveis (SEIXAS,
2004). Guerra (2011) centrada nos desafios e possibilidades de articulação entre as
neurociências e a educação, e realçando os avanços na produção de conhecimento ao nível do
funcionamento do sistema nervoso, defende que uma prática pedagógica que respeita a forma
como o cérebro funciona, se evidencia mais eficiente.
A partir dos estudos pôde-se tomar conhecimento do que passou a ser chamados
períodos sensíveis, ou janelas de oportunidades, ou seja, são épocas em que o cérebro está
orientado para aprendizagem, há um favorecimento para o estabelecimento de conexões entre
as distintas áreas cerebrais, imbricadas nos processos cognitivos. O conhecimento destes
períodos e exploração de suas respectivas habilidades podem ter resultados surpreendentes a
curto, médio e longo prazo.
Bartoszeck (2009) ressalta que o termo janelas de oportunidades em muitas mídias
tem aparecido de maneira inadequada, sendo consideradas janelas que poderiam se fechar
caso não fossem tomadas medidas urgentes nestes períodos ou que não haveria mais
possibilidade de ocorrer o aprendizado. Esse período ao qual foi disseminada a ideia errônea
em que o cérebro só poderia ser estimulado naquela fase de vida, era denominado período
crítico do desenvolvimento. Quando a habilidade não é estimulada no período sensível, não
significa dizer que isso não será mais possível, mas sim que será necessário mais empenho
para o desenvolvimento da respectiva capacidade.
O cérebro adulto não tem a mesma capacidade que o cérebro das crianças, no entanto,
o estudo da plasticidade neural demonstrou que mesmo diminuída, a capacidade de
aprendizagem se mantém pela vida inteira (CONSENZA E GUERRA, 2011). Bartoszeck
(2007), pautado nos estudos de Doherty (1997), apresenta as seguintes funções que podem ser
estimuladas em determinadas faixas etárias:
QUADRO 2 : Janelas de oportunidades

Fonte: Doherty (1997 apud BARTOSZECK 2007).

Peruzzolo e Costa (2015) destacam como algumas estratégias essenciais a serem


alcançadas nos períodos sensíveis são:

A representação de entretenimentos e jogos que promovam a motivação e


interesse da criança a participar de forma ativa; conter elementos de
diferenciação que possam prender a atenção da criança durante o processo;
possibilitar a estimulação das àreas mais comprometidas da criança,
utilizando-se das mais desenvolvidas a fim de tornar a intervenção mais
completa possível; eliminação de fatores inibitórios que possam bloquear a
estimulação progamada (PERUZZOLO; COSTA, 2015, p.7).

Estratégias que promovam em sala de aula atividades que desenvolvam o Sistema


nervoso central, por meio de estímulos externos, a fim de facilitar as sinapses como o uso de
jogos e de músicas em sala de aula, que estimulem várias funções mentais, frisando que
atividades prazerosas, lúdicas e desafiadoras também fortalecem as sinapses.
Existem ainda alguns empasses no que concerne a uma boa interlocução entre os
campos que integram a neuroeducação, ou seja, as neurociências e a educação, e um dos
problemas que impedem a comunicação das distintas áreas é a linguagem utilizada por ambas
Seixas (2014, p. 51) afirma, “enquanto que a teoria e os dados da educação se referem à esfera
comportamental, os dados e a teoria das neurociências assumem diferentes características,
condicionadas pela própria natureza do sistema nervoso (elétrica, química, espacial, temporal,
etc)”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, tem se visto cada vez mais a necessidade de renovação das práticas
pedagógicas, pesquisas e mais pesquisas revelando a dificuldade de aprendizagem dos alunos.
Educadores que frequentemente tem resultados negativos em relação as suas práticas em sala,
o que se constata imprescindível conhecer o funcionamento cerebral normal, para que assim
seja possível entender o que está acontecendo com o cérebro lesado, assim como, aperfeiçoar
as técnicas para com o cérebro saudável, observando as formas e o momento mais pertinente
de estimulação.
Dentro de todo o contexto mencionado ressalta-se a importância do respeito da
singularidade de cada indivíduo, sua respectiva forma de aprender, levando em consideração
suas condições neuroanatômicas, fisiológicas, emocionas e cognitivas, que indicarão o melhor
e mais adequado caminho a ser trilhado, o que permite ver o indivíduo ali presente como
único, e que mesmo com uma dinâmica de funcionamento diferente, seu aprendizado se faz
possível com formas alternativas e mais adequadas de abordagem.
Sendo assim, percebe-se que a neuroeducação pode trazer variadas contribuições para
educação, por exemplo: a formulação e aplicação de programas educacionais como a
implementação de atividades e demais projetos de intervenção mais efetivos, na medida em
que se demonstram mais focais e interventivos naquilo em que se propõem; provisões para
indivíduos com necessidades educacionais especiais de natureza física e/ou sensorial,
oferecendo possibilidades de intervenções precoces que visem o desenvolvimento pleno das
capacidades cognitivas e emocionais; orientações e entendimento do papel da alimentação no
sucesso educacional, orientando como uma nutrição adequada aumenta o potencial de nossa
capacidade cognitiva, e como uma inadequada traz limitações e até prejuízos cognitivos;
esclarecimento quanto aos neuromitos disseminados pela mídia e demais meios de
comunicação, que são equívocos quanto aos conhecimentos das neurociências, informações
errôneas que infelizmente ainda circulam constantemente dentro da sociedade e
frequentemente no próprio âmbito educacional; prescrições para indivíduos com necessidades
educacionais especiais de natureza comportamental e/ou emocional e a investigação inicial
para apontar problemas de aprendizagem; a apreensão de técnicas de reforçamento para
alunos “difíceis de lidar”, cuja aprendizagem se faz comprometida; o entendimento dos
processos motivacionais envolvidos dentro do ensino-aprendizagem, o que está diretamente
ligado a liberação de neurotransmissores, a sistemas específicos como o de recompensa e
límbico e regiões hipocampais.
O surgimento deste campo de conhecimento traz consigo um leque imenso de
possibilidades, principalmente quando se fala em educação inclusiva, e que por vezes não é
tão inclusiva quanto se fala. Não se trata de afirmar que tudo estará “salvo” a partir disso, mas
é o começo de um novo tempo em que caminhos alternativos poderão ser tomados com base
científica de efetividade, crianças que possuem empasses em sua constituição cognitiva
poderão ter as chances de alcançar níveis intelectuais que até então não era possível se chegar,
segundo Cosenza e Guerra (2011, p.139):

As neurociências não propõem uma nova pedagogia e nem prometem


solução para as dificuldades da aprendizagem, mas ajudam a fundamentar a
prática pedagógica que já se realiza com sucesso e orientam ideias para
intervenções, demonstrando que estratégias de ensino que respeitam a forma
como o cérebro funciona tendem a ser mais eficientes.

Algumas pesquisas afirmam sobre uma grande receptividade por parte dos educadores
quanto a inserção dos conhecimentos neurocientíficos, e a implementação de suas
intervenções, no entanto é necessário uma estruturação mais concreta para que estas práticas
sejam inseridas desde a formação do educador, onde o mesmo será capaz de considerar o
aluno em sua individualidade, percebendo suas dificuldades, a causa delas e como agir sobre
elas. Neste sentido Cosenza (2011, p. 136) aponta que:

Os avanços das neurociências possibilitam uma abordagem mais científica


do processo ensino-aprendizagem, fundamentada na compreensão dos
processos cognitivos envolvidos. Devemos ser cautelosos, ainda que
otimistas em relação às contribuições recíprocas entre neurociências e
educação[...]Descobertas em neurociências não autorizam sua aplicação
direta e imediata no contexto escolar, pois é preciso lembrar que o
conhecimento neurocientífico contribui com apenas parte do contexto em
que ocorre a aprendizagem. Embora ele seja muito importante, é mais um
fator em uma conjuntura cultural bem mais ampla.

Ainda se sabe que o caminho para a perfeição está longe, e talvez nunca chegue, mas o
essencial é a persistência e engajamento para que “voos” maiores sejam alcançados.

A principal finalidade da Educação é o pleno desenvolvimento do ser


humano em sua dimensão social. Define-se como sendo o veículo das
culturas e dos valores, como construção de um espaço de socialização e
consolidador de um projeto comum. A educação tem como missão permitir a
todos, sem exceção, a frutificação dos talentos e da capacidade de criação, o
que implica a responsabilização individual por si mesmo e a realização de
seu próprio projeto pessoal (DELORS, 1996, apud ZABALA & ARNAU,
2010, p.60).
Diante de tudo o que foi mencionado, abraçar as possibilidades de avanço é
fundamental para que a educação na contemporaneidade se torne cada vez mais produtiva e
digna de orgulho na sociedade.

REFERÊNCIAS

BARTOSZECK, A. B.; BARTOSZECK, F. K. Percepção do professor sobre neurociência


aplicada à educação. EDUCERE - Revista da Educação, Umuarama, v. 9, n. 1, p. 7-32,
jan./jun. 2009. Disponível em <http://revistas.unipar.br/educere/article/view/2830>. Acesso
em 08 de março de 2016.

BARTOSZECK, A.B. Neurociência dos seis primeiros anos: implicações educacionais.


EDUCERE. Revista da Educação, 9 (1), p.7-32, 2007.

BLAKEMORE, S. J.; FRITH, U. O cérebro que aprende. Lisboa: Gradiva, 2009.

CONSEZA, R. M.; GUERRA, L. B. Neurociência e Educação: como o cérebro aprende.


Porto Alegre-RS: Artmed, 2011.

ESPINOSA. T. N. The scientifically substantiated art of teaching: a study in the


development of standards in the new academic field of neuroeducation (mind, brain, and
education science). Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Capella
University, Mineápolis, Minesota. 2008

GUERRA, L. O diálogo entre a neurociência e a educação: da euforia aos desafios e


possibilidades. Revista Interlocução. 4(4), p. 3-12, 2011. Disponível em <
http://interlocucao.loyola.g12.br/index.php/revista/article/viewArticle/91>. Acesso em 09 de
março de 16.

HENNEMANN, A. L. Considerações sobre o livro Neuropsicopedagogia Clínica


Introdução, Conceitos, Teoria e Prática. Novo Hamburgo, 03 nov/ 2015. Disponível online
em: <http://neuropsicopedagogianasaladeaula.blogspot.com.br/2015/11/livro-
neuropsicopedagogia-clinica.html>

PERUZZOLO, S. R.; COSTA, G.M. T. Estimulação precoce: contribuição na aprendizagem e


no desenvolvimento de crianças com deficiência intelectual (di). Revista de Educação do
Ideau. v. 10, n. 21, 2015. Disponível em
<http://www.ideau.com.br/getulio/restrito/upload/revistasartigos/246_1.pdf>. Acesso em 11
de março de 2016.

ROTTA, Newra. OHLWEILLER, Lygia. RIESGO, Rudimar. Transtornos de


Aprendizagem: abordagem neurobiológica e multidisciplinar. Porto Alegre: Artmed, 2007.

SEIXAS, S. R. Da Neurobiologia das Relações Precoces à Neuroeducação. Revista


Interacções. v. 10, n. 30, p. 44-71, 2014.. Disponível em
<http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/view/4025>. Acesso em 09 de março de 2016.
ZABALA, A; ARNAU, L. Como aprender e ensinar competências. Porto Alegre: Artmed,
2010.
Psicopatologia e Saúde Mental: Questões sobre os Critérios que Orientam a Percepção Clínica

PSICOPATOLOGIA E SAÚDE MENTAL: QUESTÕES


SOBRE OS CRITÉRIOS QUE ORIENTAMAPERCEPÇÃO
CLÍNICA
Psychopathology and Mental Health: Questions on the
Standards which Guide Clinical Perception Artigo Original
Psicopatología y Salud Mental: Pregunta sobre los Criterios
para la Percepción de Clínica
Psychopathologie et Santé Mentale: Questions sur les Normes
qui Guident la Perception Clinique

RESUMO

Esse estudo supõe que a formação do campo da saúde mental implicou mutações nos critérios Clara Virginia de Queiroz
de apreensão dos problemas mentais em relação à psicopatologia. Pode-se dizer que se trata Pinheiro(1
de um deslocamento fundamental, qual seja, a loucura como patologia mental deixa de ser )
Kelly Moreira
a questão central das disciplinas psiquiátricas e psicológicas, uma vez que se instaura um
domínio científico que aborda o sofrimento psíquico como uma problemática relacionada à
de Albuquerque(2)
satisfação e à realização pessoal dos indivíduos. Desse modo, se propõe aqui um estudo sobre
os fundamentos epistemológicos dos saberes e das práticas em psicopatologia, conforme a
perspectiva de Canguilhem, que consiste na tese de que a especificidade da racionalidade
médica é o caráter normativo da apreensão dos fenômenos vitais. Dessa forma, questionam-
se os parâmetros normativos que caracterizam a psicopatologia, mais especificamente,
psiquiatria e psicanálise, orientando formas de intervenções terapêuticas dos padecimentos
mentais. Ressalta-se, então, que a percepção do psicopatológico é regido pelos critérios de
diferenciação entre o normal e o patológico que pressupõe a irredutibilidade patológica de
certos fenômenos psíquicos. Daí procura-se indicar que os desdobramentos epistemológicos
constitutivos do campo da saúde mental implicam modificações do estatuto médico 1) Professora titular do Programa
dos padecimentos mentais, uma vez que perde sua especificidade em relação às doenças de Pós-Graduação em Psicologia da
orgânicas; reformas das estratégias de intervenção, tecnologias e políticas sociais, as quais Universidade de Fortaleza; Doutorado em
são dissociadas dos diagnósticos e, finalmente, mudanças dos critérios de definição do objeto Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ; membro
clínico, qual seja, a referência à polaridade normal-patológico. do GT-ANPEPP - Dispositivos clínicos em
Saúde Mental.
Palavras-chave: saúde mental, psicopatologia, clínica, normalidade, loucura.
2) Doutoranda em Psicologia da
UNIFOR, Bolsista do Programa de Suporte
ABSTRACT à Pós-Graduação de Instituições de Ensino
Particulares (Prosup/Capes), Docente do
This paper relies on the assumption that the formation of the mental health field led to Curso de Psicologia Fanor-Devry Brasil.
mutations in the criteria for apprehension of mental problems in relation to psychopathology.
There is a fundamental shift, that is, madness as a mental pathology is no longer the central
object of psychiatric and psychological disciplines, since a new scientific domain that
approaches psychic suffering as an issue related to satisfaction and personal achievement
is established. Therefore it is proposed on this paper a study on the epistemic foundations
of knowledge and practice in psychopathology according to Canguilhem (1946/1995) thesis
that the specificity of medical rationale is the normative basis through which vital phenomena
are apprehended. Accordingly the normative parameters of psychopathology field, more
specifically, psychiatry and psychoanalysis, as they determine the methods of therapeutic
interventions in mental illness, are reassessed. It is noteworthy that the perception of what is
psychopathological is governed by the criteria for the differentiation between what is normal
and what is pathological, which implies the pathological irreducibility of certain psychic
phenomena. Hence the endeavors to point out that the epistemic implications constitutive Recebido em: 25/02/2012
of mental health field demand modifications on the medical statute of mental illness, as it Revisado em: 05/09/2013
Aceito em: 28/05/2014

Revista Subjetividades, Fortaleza, 14(1): 9-16, abril., 2014 9


Clara Virginia de Queiroz Pinheiro e Kelly Moreira de Albuquerque

loses its specificity regarding organic sickness. They also require la direction des formes d’interventions thérapeutiques des
changes in the strategies of intervention, technologies and social souffrances mentales. Il peut être détaché, alors, que la perception
policies as well as in the criteria for defining the clinical object, du psychopathologique est régie par les critères de différenciation
namely the normal-pathological polarity. entre le normal et le pathologique, lequel estime l’irréductibilité
pathologique de certains phénomènes psychiques. À partir de
Keywords: mental health, psychopathology, clinical, normal,
là, il se cherche à indiquer que les dédoublages epistemológicos
madness. constitutifs du champ de la santé mentale impliquent des
modifications du statut médical des souffrances mentales, vu que
RESUMEN perd sa spécificité en rapport les maladies organiques; réformes
Este documento se basa en el supuesto de que la formación del des stratégies d’intervention, technologies et politiques sociales,
campo de la salud mental dirigido a mutaciones en los criterios qui sont dissociées des diagnostics; et, finalement, modifications
para la aprehensión de los problemas mentales en relación con de critères de définition de l’objet clinique, ce qui est, à réfèrence
la psicopatología. No es un cambio fundamental, es decir, la à la polarité normal-patologique.
locura como una patología mental ya no es el objeto central de Mots-clés: santé mentale, psychopathologie, clinique, normal,
las disciplinas psicológicas y psiquiátricas, ya que un dominio folie.
de los nuevos conocimientos científicos que se acerca al
sufrimiento psíquico una cuestión relacionada con la satisfacción
y la realización personal se ha establecido. Por lo tanto, es este
trabajo en el estudio propuesto sobre la base del conocimiento
y la práctica epistémica en la psicopatología Según Canguilhem Introdução
(1946/1995) la tesis de que la especificidad de la justificación
médica es la base normativa a través de cual los fenómenos vitales Este trabalho tem origem na idéia de que a atividade
son aprehendidos. En consecuencia, los parámetros normativos de em saúde mental contemporânea voltada para o sofrimento
la psicopatología de campo, más específicamente, la psiquiatría
psíquico implica modificações da psicopatologia no que diz
y el psicoanálisis, ya que determinan los métodos de las
intervenciones terapéuticas en la enfermedad mental, se revisan. respeito à definição do seu objeto e de suas funções. Isto
Es de destacar que la percepción de lo que es psicopatológico porque se pressupõe que a referência à saúde mental como
se rige por los criterios para la diferenciación entre lo que es paradigma da atividade clínica envolve deslocamentos em
normal y lo patológico, lo que implica la irreductibilidad de relação ao sistema normativo, com base no qual se define o
ciertos fenómenos psíquicos patológicos. Por lo tanto el punto psicopatológico. Ora, os cuidados em saúde mental não são
en octubre a los esfuerzos que las consecuencias constitutivos impulsionados, prioritariamente, pelos questionamentos
del campo epistémico de la salud mental modificaciones de la
sobre a especificidade do patológico e suas relações com
demanda sobre el estatuto médico de enfermedad mental, ya que
pierde especificidad excelente relativas a la enfermedad orgánica. o normal? Trata-se, de acordo com a tese de Castel (1987),
Ta mbién se requieren cambios en las estrategias de intervención, da recomposição de um campo de conhecimento e prática
las tecnologías y las políticas sociales, así como en los criterios que envolve mudanças, primeiramente, no estatuto médico
de objeto que define el clínico, Es decir, la polaridad normal y lo dos problemas mentais, perdendo sua especificidade em
patológico. relação às doenças orgânicas; segundo, nas estratégias de
Palabras-clave: salud mental, psicopatología, clínica, normal, intervenção, tecnologias e políticas sociais, as quais são
locura. dissociadas dos diagnósticos e, finalmente, nos critérios
de definição do objeto clínico, qual seja, a referência à
RÉSUMÉ polaridade normal-patológico.
Cette étude il suppose que la formation du champ de la santé Desse modo, se propõe aqui um estudo de caráter
mentale a impliqué des mutations dans les critères d’appréhension epistemológico, uma vez que se questiona o sistema
des problèmes mentaux concernant à la psychopathologie. On normativo que caracteriza as intervenções em saúde mental,
peut dit que sur un décalage fondamental, c’est à dire, la folie
comme pathologie mentale cesse d’être la question centrale des
considerando o pressuposto de que houve deslocamentos em
disciplines psychiatriques et psychologiques, vu que on instaure relação aos critérios clínicos da psicopatologia, implicando,
un domaine scientifique que s’approche de la suffrance psichique assim, mudanças no estatuto clínico do sofrimento
à la condition de problematique en rapport à la satisfation et a psíquico. É possível supor que é esse deslocamento dos
réalisation personnel des individus. De cette façon, la proposition critérios que orientam a percepção clínica que permite
ici c’est de faire une étude sur les fondements epistemológicos abordar comportamentos, anteriormente apreendidos como
des savoirs et des pratiques dans psychopathologie, comme la problemáticos somente sob a óptica das leis e dos ideais
perspective de Canguilhem (1946/1995), qu’il consiste à la thèse
dont la spécificité de la rationalité médicale est le caractère
sociais (a delinquência, por exemplo), à luz de um sistema
normatif de l’appréhension. En conséquence, on s’interroge sur que rege a diferenciação entre saúde e doença, o qual
les paramètres normatifs qui caractérisent la psychopathologie, demarca a especificidade da abordagem clínica.
plus spécifiquement, la psychiatrie et la psychanalyse, en donnant Assim, indagamos sobre os critérios que orientam um

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Psicopatologia e Saúde Mental: Questões sobre os Critérios que Orientam a Percepção Clínica

profissional em saúde mental que toma aos seus cuidados entes queridos, fracassos escolares, etc.
não só indivíduos com problemas psicopatológicos – Com efeito, o redimensionamento do campo
psicoses e neuroses - mas sujeitos cujo modo de vida psicopatológico, envolvendo saberes, práticas e políticas
acarreta riscos à saúde física, ao desenvolvimento pessoal e públicas em saúde mental produzem efeitos que extrapolam
ao desempenho social. Para explorar esse questionamento, o perímetro de atividade clínica, transformando as
podemos tomar como exemplo a obesidade, que não é em relações sociais e a forma de cuidados consigo mesmo.
si mesma uma doença, na medida em que não se trata de Como exemplo, podemos citar a importância atribuída à
uma impossibilidade orgânica, tampouco desorganização autonomia na sociedade individualista atual, como ideal
psíquica, mas é tomada aos cuidados do profissional de social. Também é possível levar em conta as reformas das
saúde (médico, nutricionista, psicólogo, psiquiatra) pelo fato políticas públicas de assistência ao portador de transtornos
de ser fator de risco de várias doenças orgânicas e, também, mentais, as quais implicam alterações legais, jurídicas e
sociais, tais como a discriminação e exclusão social. institucionais.
Além disso, a obesidade é causa de doenças (cardíacas, Contudo, dentro dos limites do presente trabalho,
por exemplo) e de fracasso social, consequentemente, de nosso objetivo é examinar os desdobramentos das diretrizes
insatisfação pessoal, portanto, de sofrimento psíquico. teóricas e práticas da psicopatologia a partir das quais é
Dessa maneira, a obesidade se torna um problema médico possível pensar o redimensionamento dos parâmetros de
pelos possíveis danos físicos, pessoais e sociais que possa apreensão dos problemas psíquicos. Em outros termos,
ocasionar e não por seu caráter patológico. Na verdade, queremos explicitar os critérios epistemológicos que
talvez não seja incorreto dizer, em conformidade aos sustentam a clínica psicopatológica, tendo em vista salientar
estudos de Castel (1987), que qualquer aspecto da vida do os desdobramentos da percepção clínica implicados na
indivíduo constitui objeto da intervenção em saúde mental, instauração do campo de assistência em saúde mental.
desde que ameace o bem-estar dos indivíduos e dos grupos.
Daí, a indagação de Ehrenberg (2004, p. 13): “Pode-se ainda
distinguir entre infelicidades e frustrações da vida ordinária Questões Metodológicas
e sofrimento patológico?” Devemos explicitar, em primeiro lugar, que nesse
Com efeito, é possível assinalar, seguindo essa linha estudo abordamos os saberes psicopatológicos à luz da
de raciocínio, que a instituição do risco como parâmetro perspectiva epistemológica de Canguilhem (1943/1995)
de problematização das condutas dos indivíduos implica sobre a especificidade da racionalidade médica, que
abalos consideráveis nos fundamentos teóricos e técnicos consiste em considerar, conforme a análise de Serpa Junior
da abordagem psicopatológica dos problemas médico- (2006), o campo de conhecimento biológico autônomo
psicológicos. Assim, podemos ressaltar que esses em relação à racionalidade mecanicista de apreensão dos
desdobramentos implicam um deslocamento importante, fenômenos físicos. O traço fundamental, conforme a tese
qual seja, a loucura como patologia mental deixa de ser a de Canguilhem, é que um domínio de conhecimento sobre
questão central das disciplinas psiquiátricas e psicológicas. a vida implica considerar seu caráter normativo, pois a
Trata-se, então, de um domínio científico referente à vida é uma realidade que só pode ser apreendida como
saúde mental, que, conforme o documento constitucional movimento em oposição à morte, assim como a saúde
da Organização Mundial de Saúde – OMS, 1946, diz deve ser entendida em oposição à doença, uma vez que
respeito ao estado de bem-estar e, não somente, ausência a normatividade do organismo se opõe aos mecanismos
de patologia. patológicos. Portanto, nosso fio condutor no exame
Por conseguinte, podemos dizer que o sofrimento das disciplinas psicopatológicas, mais precisamente
psíquico se constitui em objeto da intervenção em saúde a psiquiatria e psicanálise, é a posição normativa que
mental na medida em que o bem-estar se torna o fim assumem em relação aos fenômenos psíquicos, uma vez
por excelência das ações médicas, sobrepondo, então, a que consideramos a pertinência dessas disciplinas a um
preocupação com a doença e sua terapêutica. Com efeito, campo de saberes e práticas, cuja referência essencial é o
todo sofrimento passa a ser digno de cuidados médicos, caráter de polaridade dos fenômenos vitais.
digam respeito aos quadros psicopatológicos específicos Dessa maneira, situado nesse campo de visão, partimos
ou às experiências humanas cotidianas geradoras de do princípio que definir a especificidade do psicopatológico
infelicidade. Desde os tipos clínicos clássicos, como em relação à totalidade da experiência humana é,
histeria, esquizofrenia, neurose obsessiva, melancolia, certamente, o ponto de partida de uma disciplina médica na
dentre outras, até os estados indefinidos de mal-estar ou área de clínica psicológica. Trata-se, por um lado, de definir
situações existenciais complexas, como envelhecimento, o psicopatológico em relação ao normal, ou seja, precisar
separações conjugais, dificuldades no trabalho, perda de em termos racionais, médico-científicos, em que consiste

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a doença no domínio dos transtornos psíquicos. E, de outra estabelecer comparações acerca da pertinência e/ou eficácia
parte, explicar as fronteiras e as relações entre a doença e a clínica, ética e política das teorias e práticas aqui examinadas.
saúde mental, uma vez que está submetida ao modelo médico, Trata-se, precisamente, de um recorte sobre a teoria
pois, como ressalta Canguilhem (1943/1995, p. 21) sobre a psiquiátrica e psicanalítica tendo em vista suas referências à
atividade clínica, “dominar a doença é conhecer suas relações polaridade entre o normal e o patológico e/ou à saúde mental
com o estado normal que o homem vivo deseja restaurar, já como parâmetros da percepção clínica. Com efeito, com essas
que ama a vida”. discussões referentes às especificidades epistemológicas da
Em segundo lugar, esclarecemos que nosso estudo se psicopatologia em relação à saúde mental, não pretendemos
sustenta na tese arqueológica de Foucault (1963/1994) sobre o exaltar as virtudes políticas de uma clínica em saúde mental,
surgimento da medicina moderna condicionado ao paradigma que rompe com certos aspectos virulentos do modelo
da anatomopatologia. Trata-se de um campo teórico e prático psicopatológico, tais como a separação dos indivíduos em
no qual a problematização da vida, da doença e da morte termos de normal e patológico, justificando práticas de
são submetidas ao olhar inquisidor do clínico acerca das exclusão dos doentes mentais. Tampouco intentamos lamentar
regularidades/irregularidades do organismo. o declínio da hegemonia de uma concepção médica restrita a
Portanto, nos propomos aqui a examinar as formulações certo domínio da experiência humana não extensiva a todos
da psiquiatria e da psicanálise, considerando sua inscrição os problemas humanos. A pretensão aqui é de explicitar,
em um domínio epistemológico cuja forma de apreensão com base na perspectiva epistemológica de Canguilhem
dos fenômenos mentais é regida pela polaridade do normal (1943/1995), o sistema normativo que fundamenta a clínica
e o patológico. Ou seja, abordamos essas duas disciplinas psicopatológica, acentuando suas especificidades e possíveis
como perspectivas racionais visando explicitar suas posições desdobramentos em face ao domínio da saúde mental,
normativas em relação ao sofrimento mental. Ao mesmo chamando atenção para o fato de que não se trata da mera
tempo, procuramos assinalar os possíveis pontos de mutação justaposição dos dispositivos em jogo, mas de subordinações
dos seus respectivos sistemas de normas quando se põem em e redimensionamentos dos critérios clínicos da psicopatologia
discussão a problemática da saúde mental. Desse modo, as situada no campo da saúde mental.
questões sobre as relações entre o normal e o patológico e a
referência fundamental ao corpo como realidade da doença O paradigma anatomopatológico
dirigem nossa abordagem das disciplinas a partir das quais
acompanhamos a proposição de Castel (1987, p.67) de que a A Psicopatologia constitui um domínio teórico-clínico
formação do campo em saúde mental implica “decomposição composto por uma miscelânea de abordagens da enfermidade
e recomposição inéditas da psicopatologia”. mental. Com efeito, conforme indicações de Fedida e
Widlöcher (1990), as formulações acerca do sofrimento
Com efeito, neste ensaio, consideramos, inicialmente, a
psíquico provêm de vários projetos clínicos, que posicionam
inserção da clínica mental na seara médica mais ampla, que
de forma divergentes as concepções acerca da saúde e da
se caracteriza pela investigação e a terapêutica das doenças
doença psíquica.
como fenômenos orgânicos, apreendidas pela diferença entre
o normal e o patológico para em seguida, nos posicionamos Há de se reconhecer, todavia, por trás dessa diversidade
no interior do terreno da psicopatologia, procurando epistemológica, um pano de fundo com apoio no qual se
explicitar os critérios normativos subjacentes às formulações delineiam as diferenças entre as várias perspectivas clínicas,
acerca do fenômeno psicopatológico. Procuramos demarcar qual seja, a anatomia patológica. Trata-se aí do fundamento
a especificidade dos projetos psicopatológicos, precisamente, da percepção médica à luz da qual a doença é tomada
psiquiatria e psicanálise, no que concerne ao paradigma como realidade corporal, instituindo o indivíduo doente
anatomopatológico. Ora, mesmo reconhecendo o caráter como objeto médico, conforme o espectro arqueológico
heterogêneo da psicopatologia, que é um domínio formado de Foucault (1963/1994) sobre o surgimento da medicina
por vários discursos sobre os transtornos psíquicos, moderna. Essa identidade entre doença e decomposição
divergentes em suas concepções respeitantes à dimensão da corporal foi estabelecida pelo jovem médico francês
realidade em jogo na loucura, pressupomos um denominador Françoise Xavier Bichat (1771-1802) no início do século XIX
comum às diversas disciplinas, cuja referência as enraíza mediante a dissecação de cadáveres. Conforme os estudos
no campo da psicopatologia, qual seja, o patológico como de Foucault (1963/1994), nos séculos XVII e XVIII o saber
alvo de investigação e de cuidados clínicos. Por último, médico definia-se como uma taxonomia que consistia na
conjeturamos possíveis desdobramentos da psiquiatria e da classificação das grandes entidades clínicas com origem nos
psicanálise no campo de saúde mental. seus sintomas. A configuração sintomática, pois, era tomada
como realidade originária e alvo da intervenção médica. Daí
É importante ressaltar que não pretendemos aqui
por que devemos considerar a relação entre doença e corpo

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Psicopatologia e Saúde Mental: Questões sobre os Critérios que Orientam a Percepção Clínica

como o traço constitutivo e distintivo dos saberes e das a psicopatologia, como um terreno circunscrito do saber
práticas médicas modernas. médico sobre os transtornos psíquicos, caracteriza-se por
Ora, pode-se dizer, tomando as formulações de uma diversidade de teorias que abordam a problemática
Canguilhem (1943/1995), que as relações entre o normal e o da especificidade do psicopatológico e de suas relações
patológico, norteadoras da percepção clínica, se constituem com o normal. Com efeito, com base na perspectiva
como princípio de qualificação da doença e da saúde, na epistemológica de Canguilhem (1943/1995) a propósito
medida em que a anatomopatologia consiste de um corpus da racionalidade clínica da patologia mental, podemos
teórico/prático sobre o funcionamento (as regularidades) do considerar diferentes níveis de discriminação do normal e
organismo. Dessa maneira, o normal e o patológico designam do patológico. Apesar das disparidades acerca do objeto
o grau de funcionalidade orgânica. Impõe-se esclarecer que o clínico, há um denominador comum a essas abordagens,
critério de diferenciação das regularidades e irregularidades qual seja, a irredutibilidade do patológico, quer dizer, a
do funcionamento corporal é a polaridade entre vida e morte, patologia é o critério de intervenção clínica dos problemas
pois é com base na oposição entre vida e morte que se mentais.
classifica a doença. Daí o caráter de bipolaridade entre saúde É necessário aqui assinalar mais uma vez que o caráter
e doença, ou seja, todo funcionamento normal implica o de nossa proposta é situar alguns aspectos da racionalidade
patológico, que implica a morte, pois, como ressalta Foucault da psiquiatria e da psicanálise em face das referências da
(1963/1994, p.40) na esteira de Canguilhem (1943/1995), o anatomopatologia e seu caráter de polaridade do normal/
“prestígio das ciências da vida, no século XIX se devem ao patológico bem como os possíveis pontos de mudanças
caráter de bipolaridade médica do normal e do patológico”. epistemológicas. Portanto, tendo em vista a demarcação
Assim, considera-se que a racionalidade dos limites do presente texto, devemos esclarecer que não
anatomopatológica baliza os aspectos em torno dos quais se pretendemos abordar as várias concepções teóricas sobre
encontram as várias abordagens de psicopatologia. É com o padecimento mental, visando um estudo exaustivo do
relação à questão sobre identidade entre doença e corpo, à campo da psicopatologia e da saúde mental.
diferença irredutível entre normal e patológico e à dimensão Então, no campo da psicopatologia, tem-se, por
individual da doença, que os vários projetos clínicos conseguinte, a visão nosológica e organicista da psiquiatria.
adquirem especificidades epistemológicas. O domínio da Trata-se, de um lado, da descrição e taxonomia das várias
anatomia patológica se organiza em torno da idéia de corpo formas de enfermidade mental, herança da medicina
doente, que é avaliado segundo sua norma de funcionamento classificatória dos séculos XVII e XVIII, mediante a qual
que impossibilita uma vida saudável. Assim, entre saúde e se definem e diferenciam as grandes entidades clínicas,
doença há uma relação de oposição, quer dizer, o indivíduo cada uma com seu conjunto de sintomas, sua evolução,
doente é definido pelo modo patológico de funcionamento prognóstico; de outra parte, da indagação sobre a etiologia
dos mecanismos físicos e mentais ao contrário de um modo das doenças, da oposição irredutível entre normal e
de funcionamento normal. Supomos que esse sistema de patológico, que marcou a atividade clínica no final do
definição do objeto clínico está perdendo a força na medida século XIX.
em que a função médica de prevenção e promoção de saúde Essa duplicidade arqueológica entre uma medicina
assume posição privilegiada acarretando a subestimação da classificatória e uma anatomia patológica, pode estar
terapêutica da doença. Desse modo, a atividade médica deixa ligada, conforme indicações de Simanke (2002), ao fato
de ser restrita aos cuidados com o patológico, mas estende de que o organicismo situa a psiquiatria ante o problema
a atenção à qualidade de vida dos indivíduos. É com base da dualidade mente-corpo, em virtude da especificidade
nessas questões que formulamos a hipótese de que esse de seu objeto - a doença mental. Trata-se da posição
paradigma anatomopatológico está subjugado ao paradigma desconfortável da psiquiatria entre uma medicina e uma
da saúde mental. psicologia, da qual não pode abrir mão sob o risco de
desaparecer como especialidade médica. Com efeito,
Dispositivos clínicos: psicopatologia e saúde podemos dizer, seguindo o raciocínio de Simanke (2002),
mental que a psiquiatria se caracteriza por um duplo dilema: de
um lado, não pode aderir estritamente ao organicismo dos
O espaço da psicopatologia é composto por várias transtornos mentais, sob o risco de fundir-se a neurologia,
perspectivas teórico e práticas acerca do psicopatológico. por outro, não pode abrir mão do caráter ontológico de
É lícito expressar que a referência ao corpo como seu objeto, qual seja, o estado patológico dos fenômenos
realidade da doença, cujo diagnóstico é pautado pelo grau mentais, isto é, a bipolaridade dos fenômenos mentais, pois
de oposição ao normal, constitui o tema crucial sob cujo se arrisca a tornar-se uma psicologia.
domínio se posiciona os vários projetos clínicos. Assim,

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A propósito dessa posição fronteiriça desse campo de Situe-se, por consequência, a questão de saber
conhecimento médico entre o orgânico e o psíquico, Lacan sobre a especificidade do patológico tal como Freud
(1987) acentua que a nosologia psiquiátrica se desenvolve, (1926/1996b) sustenta, considerando, precisamente, as
desde o final século XIX até as primeiras décadas do século diferenças que ele estabelece entre sintoma e inibição. Essa
XX, com suporte numa distinção etiológica fundamental: investigação poderia ter seguido outras direções, entretanto,
os transtornos mentais cuja causalidade orgânica é consideramos que a preocupação freudiana em precisar o
identificável e as enfermidades em relação às quais não conceito de sintoma pela diferença da idéia de inibição vinha
é possível encontrar nenhuma correlação anatômica. Foi ao encontro de nosso interesse acerca da situação normativa
Kraepelin, informa Lacan (1987), quem sistematizou na dos sintomas psíquicos. Assim, podemos retomar o tema
nosologia psiquiátrica uma oposição entre dois grandes sobre as possibilidades de desdobramentos normativos da
grupos patológicos, o grupo das demências e o das psicoses, psiquiatria e da psicanálise em face das demandas em saúde
quaisquer que sejam as denominações que tiveram ao longo mental.
desse período. Um déficit mental é o princípio explicativo Decerto é lícito dizer que a questão fundamental da
das afecções que caracterizam o grupo das demências, ao idéia freudiana do psicopatológico é a referência à dimensão
passo que as psicoses devem ser reconhecidas considerando- da linguagem. A constituição de sistemas de representações
se os distúrbios da personalidade. Tal diferença se baseia no como realidade psíquica está diretamente relacionada à
critério etiológico e evolutivo da doença os quais justificam condição de desamparo originária da experiência humana,
a intervenção clínica sobre as causas dos sintomas sejam definida por Freud (1926/1996b) como excesso pulsional.
elas orgânicas ou funcionais. A função psíquica consiste em conduzir à excitação
Numa perspectiva menos epistemológica, Castel (1987, pulsional, condicionando-a a uma cadeia de representação,
p.80) enfatiza o peso político desses dilemas epistêmicos instituindo, dessa maneira, seu caráter simbólico. A ligação
da psiquiatria, considerando que a instituição da doença entre excitação e representação marca a ruptura com o
mental, “doença, não como a outra”, como objeto clínico, estado de desamparo absoluto, caracterizado pela irrupção
diz respeito, de um lado, às estratégias de modernização de energia pura, sem representação. A simbolização implica
da medicina mental em face de sua tradição alienista, a subordinação das ligações entre representações às leis de
caracterizada pela instituição hospitalar, e, de outro, ao associações e não à de descarga, isto é, ao princípio do prazer.
projeto de consolidação de uma área de conhecimento e Nessa linha de raciocínio, o psicopatológico diz respeito a
prática médica autônoma em relação à medicina geral. essa dimensão da experiência humana, a das pulsões e suas
O encargo da doença mental implica não só dispositivos representações, ou seja, experiência de satisfação. Assim é
institucionais e técnicos específicos, mas teorias que com relação à tendência do aparelho psíquico à satisfação,
sustentem a originalidade dessa área médico-psicológica. a qual é submetida às leis associativas e seus mecanismos,
Daí o campo da psicopatologia formado pela articulação de que os sintomas são entendidos. Ora, estes dizem respeito
várias disciplinas em torno do padecimento mental. aos impulsos recalcados, à realização de desejo interditada.
Nesse terreno, a psicanálise, numa posição Na verdade, possuem o estatuto de substituto do recalcado
mais independente ao prestígio médico, desmantela, e, nessa condição, como anota Freud (1926/1996b), implica
diferentemente da psiquiatria, a polaridade radical entre o rebaixamento da satisfação em compulsões.
o normal e o patológico. Freud em A interpretação de Assim, o mecanismo de recalcamento é essencial para a
sonhos (1900/1996a) e A psicopatologia da vida cotidiana especificação do patológico e aponta para aspectos tópicos,
(1901/1996c) estabelece identidade entre os fenômenos econômicos e dinâmicos do funcionamento do aparelho
psíquicos sob o argumento de que são realizações psíquico. Com efeito, o recalcamento é constitutivo de uma
de desejo. Nessa perspectiva, as noções de normal e divisão subjetiva, na qual o inconsciente é a referência para
patológico não apontam para uma descontinuidade absoluta a configuração do patológico. Como substituto do impulso
entre experiências psíquicas, porquanto, nos sonhos, inconsciente, o sintoma se forma por meio de um processo
esquecimentos corriqueiros, paralisias histéricas e delírios, tortuoso e complexo de metamorfose da ideia original,
por exemplo, o que está em jogo é o desejo do sujeito. mediante deslocamentos, substituições e projeções, tanto
Esse relativismo não implica, entretanto, do ponto do impulso quanto do seu representante, de tal modo que se
de vista freudiano, a não especificação do patológico em torna irreconhecível, daí o caráter interpretativo do trabalho
relação aos outros fenômenos psíquicos, pois, para Freud analítico. No que diz respeito ao seu posicionamento, o
(1926/1996b), a inibição, por exemplo, vai-se ver, não sintoma é uma formação localizada fora do ego, usufruindo,
é uma patologia, na medida em que é um fenômeno cuja como acentua Freud (1926/1996b), do privilégio da
referência é o desempenho do eu, e não, fundamentalmente, extraterritorialidade. Além disso, o sintoma não deixa de
o conflito intrapsíquico. exercer uma pressão para a satisfação pulsional, obrigando

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o ego a permanecer, incansavelmente, na posição defensiva. em si mesma patológica.


Agora, não somente contra o impulso inconsciente, mas É com base nessa concepção do psicopatológico que
contra o seu substituto. Nesse jogo metapsicológico, a Freud (1926/1996b) estabelece diferenças entre sintoma e
formação do sintoma é um processo condicionado por inibição. Esta é um fenômeno que diz respeito às restrições
duas formas de atividade psíquica: de um lado, o trabalho das funções do ego, “como medidas de precaução ou
do aparelho para escoar energia, e, de outro, o trabalho de acarretadas como resultado de um empobrecimento de
limitação dos meios de satisfação. Com efeito, o cenário energia” (p. 2834). São, pois, as limitações das funções
próprio da produção do sintoma é a força, o conflito, a do eu que caracterizam uma inibição. Daí as inibições
defesa, a luta, que implica mecanismos diversos e instâncias de ordem sexual, social, motora, de nutrição, cognitiva,
diferentes. entre tantas, as quais não são em si mesmas patológicas.
Nessa perspectiva da subjetividade como espaço de As inibições só assumem caráter patológico quando
luta, de desprendimento de forças, a formação do sintoma condicionadas ao processo defensivo do ego contra um
implica a transformação necessária da economia psíquica impulso inconsciente, assim como, por exemplo, a inibição
contra a satisfação de um impulso substitutivo de um desejo de sair de casa, presente no caso do pequeno Hans. Somente
inconsciente cuja satisfação põe em risco o funcionamento neste contexto, conforme indicações freudianas, as inibições
do aparelho. A força necessária para que o ego se defenda podem ser consideradas patologias, pois complementam o
dos impulsos inconscientes é a angústia, um sentimento sintoma. Ora, para Freud, o patológico não se define pela
de desprazer intolerável. Assim, o sintoma diz respeito à disfuncionalidade do eu ou pelos limites de normatividade,
transformação do funcionamento psíquico ocasionado pela mas pela compulsividade de uma configuração psíquica,
referência a um grande perigo, e o maior temor do sujeito é a resultante de um processo metapsicológico de deformação
castração, de sorte que o caráter patogênico da formação do de desejos inconscientes.
sintoma consiste do jogo de forças entre desejos recalcados Agora, podemos retomar as questões acerca dos
e a angústia que sinaliza um grande risco para o ego. desdobramentos da psicopatologia tendo em vista sua
Daí a tese, estabelecida há pouco, de que Freud considera inserção no domínio da saúde mental. Considerando dois
a relação de diferença entre o normal e o patológico, aspectos fundamentais da mutação do campo médico-
na medida em que o sintoma diz respeito a conflitos psicológico, tais como estudou Castel (1987) - a perda da
intrapsíquicos, e define-se como substituto do recalcado, originalidade da patologia mental e o redimensionamento
que implica experiência-limite, angústia e um processo de dos critérios normativos -, talvez seja pertinente pensar na
deformação do desejo constitutivo do patológico. Assim, é inibição como o objeto característico de uma percepção
essa relação intrínseca com uma experiência devastadora, clínica direcionada por uma inquietação acerca do
bem como as metamorfoses associativas, econômicas e desempenho pessoal com vistas à qualidade de vida. A
semânticas, que conferem status patológico a determinadas problematização da inibição pressupõe uma reordenação
representações, como, por exemplo, o medo de ser mordido da hierarquização freudiana do aparelho psíquico acerca
por cavalos, que caracteriza a neurose fóbica do pequeno da demarcação da subjetividade. Isso quer dizer que as
Hans, caso examinado por Freud (1926/1996b), com o funções do ego, como por exemplos, os desempenhos
objetivo de especificar o sintoma em relação à inibição e sexuais e cognitivos, se tornam alvos de muitas atenções em
à angústia. Diante da situação de um menino que se recusa detrimento das inquietações com os conflitos inconscientes.
a sair de casa por medo de cavalos, Freud interroga-se Não queremos dizer, tal como alertou Castel (1987), que
sobre qual seria precisamente o sintoma psíquico: o medo, a psicanálise sucumbiu diante dessa superestimação do
a restrição do movimento ou o objeto do medo - o cavalo. ego, mas que se desdobrou e, portanto, deixa de ser a
Conforme as ponderações freudianas, o medo de cavalos definição por excelência da problemática psíquica. Se esta
era o substituto do recalcado e consistia da metamorfose hipótese estiver correta, diremos que a inibição psíquica,
da idéia de ser mordido por cavalo, a qual remetia aos as motivações do eu, a autoestima, por exemplo, adquirem
impulsos inconscientes em relação ao pai, os impulsos importância sob a perspectiva da saúde mental.
hostis. Na verdade, Freud conclui o que é necessariamente Essa percepção clínica que prioriza o sofrimento
sintomático nesse caso - a substituição do pai por cavalo. psíquico tendo em vista o desempenho do indivíduo e sua
Na análise freudiana, a angústia, que caracterizou o quadro inserção no ambiente está relacionada diretamente aos
psicopatológico do pequeno Hans, diz respeito à função do procedimentos empíricos e pragmáticos de classificação
ego de indicar um perigo iminente, interno ou externo, não psicopatológica, representada pelo DSM, em suas versões
devendo ser, portanto, tomado como sintoma. Da mesma III e IV, os quais implicam uma mudança epistemológica
forma, a incapacidade de sair de casa era uma inibição que em relação ao modelo da psiquiatria clássica, de acordo
o ego de Hans se impusera para evitar o medo, não sendo com Pereira (2003) e Sonenreich (2004). Trata-se de um

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Clara Virginia de Queiroz Pinheiro e Kelly Moreira de Albuquerque

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Endereço para correspondência:
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O DIÁLOGO ENTRE A NEUROCIÊNCIA E A EDUCAÇÃO: DA EUFORIA AOS
DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Leonor Bezerra Guerra

Bacharel em Medicina, Mestre em Fisiologia, Doutora em Morfologia pela UFMG. Especialista em


Neuropsicologia pela Universidade FUMEC. Professora adjunta de Neuroanatomia no
Departamento de Morfologia/ICB/UFMG. Docente do Programa de PG em Neurociências e
Coordenadora do Projeto NeuroEduca/UFMG.

Viver é interagir. Desde o nascimento o homem interage com seu ambiente através dos mais
variados comportamentos. Os comportamentos que adquirimos ao longo de nossas vidas resultam
do que chamamos de aprendizagem ou aprendizado. Aprender é uma característica intrínseca do ser
humano, essencial para sua sobrevivência (Kolb; Whishaw, 2002). Comumente diz-se que alguém
aprende quando adquire atitudes, habilidades, conhecimentos, competências para se adaptar a novas
situações, para resolver problemas, para realizar tarefas diárias importantes para a sobrevivência e
para implementar estratégias em busca de saúde, de realização pessoal e em sociedade, de melhor
qualidade de vida, enfim, em busca de viver bem e em paz. A educação visa ao desenvolvimento de
novos comportamentos num indivíduo, proporcionando-lhe recursos que lhe permitam transformar
sua prática e o mundo em que vive. Aprendemos o que é útil para a nossa sobrevivência e/ou que
nos proporciona prazer. Educar é proporcionar oportunidades e orientação para aprendizagem, para
aquisição de novos comportamentos. Aprendizagem, por sua vez, requer várias funções mentais
como atenção, memória, percepção, emoção, função executiva, entre outras. E, portanto, depende
do cérebro.
O Sistema Nervoso (SN), por meio de seu integrante mais complexo, o cérebro, recebe e
processa os estímulos ambientais e elabora respostas adaptativas que garantem a sobrevivência do
indivíduo e a preservação da espécie (Halpern; O'Connell, 2000; Ferrari et al., 2001). A evolução
nos garantiu um cérebro capaz de aprender, para garantir nosso bem-estar e sobrevivência e não
para ter sucesso na escola. A menos que o bom desempenho escolar signifique esse bem-estar e
sobrevivência do indivíduo. Na escola o aluno aprende o que é significativo e relevante para o
contexto atual de sua vida. Se a “sobrevivência” é a nota, o cérebro do aprendiz selecionará
estratégias que levem à obtenção da nota e não, necessariamente, à aquisição das novas
competência=.
O comportamento humano resulta da atividade do SN, do conjunto de células nervosas, ou
redes neurais, que o constituem. O comportamento depende do número de neurônios e de suas
substâncias químicas, da atividade destas células, da forma como neurônios se Informação, para o
neurônio, é a alteração das suas características eletroquímicas. Quando o indivíduo está em
interação com o mundo, exibindo um comportamento, vários conjuntos de neurônios, em diferentes
áreas do SN estão em funcionamento, ativados, trocando informações. As funções mentais são
produzidas pela atividade do SN e resultam do cérebro em funcionamento. Funções relacionadas à
cognição e às emoções, presentes no cotidiano e nas relações sociais, como sentir e perceber, gostar
e rir, dormir e comer, falar e se movimentar, compreender e calcular, ter atenção, lembrar e
esquecer, planejar, julgar e decidir, ajudar, pensar, imaginar, se emocionar, são comportamentos
que dependem do funcionamento do cérebro. Educar e aprender também (Kolb; Whishaw, 2002).
Se os comportamentos dependem do cérebro, a aquisição de novos comportamentos também
resulta de processos que ocorrem no cérebro do aprendiz. E, portanto, o cérebro é o órgão da
aprendizagem. As estratégias pedagógicas utilizadas por educadores durante o processo ensino-
aprendizagem são estímulos que produzem a reorganização do SN em desenvolvimento, resultando
em mudanças comportamentais. Cotidianamente, educadores, pais e professores, atuam como
agentes nas mudanças neurobiológicas que levam à aprendizagem, embora conheçam muito pouco
sobre como o cérebro funciona (Scaldaferri; Guerra, 2002; Coch; Ansari, 2009).
O conhecimento sobre o funcionamento do SN, especialmente do cérebro, cresceu muito nos
últimos anos, devido, principalmente, à chamada Década do Cérebro (1990-1999) que deu grande
impulso às neurociências, ou seja, aos diversos ramos das ciências que se dedicam às investigações
e estudos sobre o SN. As neurociências estudam as moléculas que constituem os neurônios, os
órgãos do SN e suas funções específicas e o comportamento humano resultante da atividade dessas
estruturas. Os avanços das técnicas de neuroimagem e eletrofisiologia, e aqueles obtidos pela
genética e pela neurociência cognitiva possibilitaram o estudo das áreas cerebrais envolvidas em
funções cognitivas específicas e esclareceram muitos aspectos do funcionamento do SN (Albright;
Kandel; Posner, 2000; Geake; Cooper, 2003). Embora os processos cognitivos ainda não sejam
integralmente conhecidos, devido às limitações técnicas e éticas que o estudo do comportamento
humano impõe, grande progresso já foi alcançado, incluindo descobertas que permitiram uma
abordagem mais científica do processo ensino-aprendizagem porque esclarecem alguns dos
mecanismos cerebrais responsáveis por funções mentais importantes na aprendizagem (Blakemore;
Frith, 2005; Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos, 2007).
Essas descobertas ultrapassaram os nichos acadêmicos e se estenderam às outras áreas do
conhecimento e entre elas, a educação. Além disso, por meio da divulgação científica, mediada por
poderosos veículos de comunicação, mas nem sempre fidedignos aos achados científicos, como
televisão, jornal, revistas, livros e internet, essas descobertas foram e são compartilhadas com o
público. Este tem ao seu alcance, tanto informações confiáveis e esclarecedoras, quanto inferências
e conclusões equivocadas, denominadas “neuromitos”, que geram aplicações e práticas sem
comprovação científica (Mason, 2009). A divulgação científica de qualidade é imprescindível para
a melhoria da qualidade de vida da população e tem benefícios enormes (Herculano-Houzel, 2007),
mas requer ética e compromisso científico e social (Sheridan; Zinchenko; Gardner, 2006; Silva;
Guerra, 2009;).
Assim, educadores e administradores de políticas públicas de educação tiveram
oportunidade de reconhecer o cérebro como o órgão da aprendizagem e perceberam sua
participação nas mudanças neurobiológicas que levam ao aprendizado. Qual seria, então, a
contribuição das neurociências, da neurobiologia para a Educação? O conhecimento sobre
funcionamento do cérebro poderia contribuir para o processo ensino-aprendizagem mediado pelo
educador? Assim, no final da década de 2000, estabeleceu-se a interface ente as neurociências e a
educação, denominada “mind, brain and education” (MBE) ou “mente, cérebro e educação” (MCE)
(OCDE, 2003; Goswami, 2004; Goswami, 2005; Posner; Rothbart, 2005; Stern, 2005).
As neurociências são ciências naturais, que descobrem os princípios da estrutura e do
funcionamento neurais, proporcionando compreensão dos fenômenos observados. A. Educação tem
outra natureza e sua finalidade é criar condições (estratégias pedagógicas, ambiente favorável, infra-
estrutura material e recursos humanos) que atendam a um objetivo específico, por exemplo, o
desenvolvimento de competências pelo aprendiz, num contexto particular. A educação não é
investigada e explicada da mesma forma que a neurotransmissão. Ela não é regulada apenas por leis
físicas, mas também por aspectos humanos que incluem sala de aula, dinâmica do processo ensino-
aprendizagem, escola, família, comunidade, políticas públicas. Descobertas em neurociências não
se aplicam direta e imediatamente na escola. A aplicação desse conhecimento no contexto
educacional tem limitações. As neurociências podem informar a educação, mas não explicá-la ou
fornecer prescrições, receitas que garantam resultados. Teorias psicológicas baseadas nos
mecanismos cerebrais envolvidos na aprendizagem podem inspirar objetivos e estratégias
educacionais. O trabalho do educador pode ser mais significativo e eficiente se ele conhece o
funcionamento cerebral, o que lhe possibilita desenvolvimento de estratégias pedagógicas mais
adequadas (Ansari, 2005; Ansari; Coch, 2006; Goswami, 2006; Coch; Ansari, 2009; Cubelli, 2009;
Mason, 2009; Willingham, 2009). Contribuem para o cotidiano do educador: conhecer a
organização e as funções do cérebro, os períodos receptivos, os mecanismos da linguagem, da
atenção e da memória, as relações entre cognição, emoção, motivação e desempenho, as
potencialidades e as limitações SN, as dificuldades para aprendizagem e as intervenções a elas
relacionadas (Koizumi, 2004; Rotta; Ohlweiler; Riesgo, 2006; Blake; Gardner, 2007). Mas, saber
como o cérebro “aprende” não é suficiente para realização da “mágica do ensinar e aprender”.
Observa-se um excessivo otimismo em relação às contribuições das neurociências para a
teoria e prática educacionais. Experimente pesquisar “neurociência e educação” no
www.google.com, www.scielo.org ou www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed e compare as três pesquisas.
Verifica-se uma cautela dos cientistas, que apontam aspectos importantes a serem considerados em
relação ao diálogo entre as neurociências e a educação. É necessário o estabelecimento de uma
linguagem mediadora entre as duas áreas, que esclareça as descobertas científicas e sua real
possibilidade de utilização na educação. Isso demanda seriedade e compromisso ético dos meios de
divulgação científica e o julgamento crítico do público alvo para que este conhecimento se aplique
adequadamente no cotidiano escolar. É importante entender a diferença entre conhecer os
mecanismos cerebrais, compreender os processos mentais resultantes destes e aplicá-los na prática
pedagógica. É imprescindível a investigação, rigorosa e científica, dos achados das neurociências
aplicados à sala de aula, antes que se estabeleça qualquer aplicação educacional. A falta de
conhecimento dos neurocientistas sobre o processo ensino-aprendizagem na sala de aula e sobre
metodologia e teoria educacionais básicas é mais um fator a ser contornado. A psicologia
educacional, desempenhada por educadores capacitados em neurociências básicas, poderá
contribuir para o uso adequado dos achados das neurociências e para a colaboração entre as duas
áreas. A inclusão dos fundamentos neurobiológicos do processo ensino-aprendizagem na formação
inicial do educador proporcionará nova e diferente perspectiva da educação e de suas estratégias
pedagógicas, influenciando também a compreensão dos aspectos sociais, psicológicos, culturais e
antropológicos tradicionalmente estudados pelos pedagogos. As teorias de Piaget, Wallon, Vigotsky
e mesmo a Pedagogia Inaciana estarão sujeitos a novos significados sob o olhar das neurociências
(Howard-Jones, 2005; Anderson; Reid, 2009; Coch; Ansari, 2009; Cubelli, 2009; Mason, 2009;
Willingham, 2009).
O educador tem procurado se capacitar em neurociências participando de congressos, cursos
de curta-duração e pós-graduações com a expectativa de que essa formação possa contribuir para a
resolução dos problemas na escola. É importante esclarecer que as neurociências não propõem uma
nova pedagogia e nem constituem uma panacéia para a solução das dificuldades da aprendizagem e
dos problemas da educação. Elas fundamentam a prática pedagógica que já se realiza,
demonstrando que, estratégias pedagógicas que respeitam a forma como o cérebro funciona, tendem
a ser mais eficientes. Segundo Stern (2005), a neurociência por si só não pode fornecer o
conhecimento específico necessário para elaboração de ambientes de aprendizagem em áreas de
conteúdo escolar específicas, particulares. Mas fornecendo “insights” sobre as capacidades e
limitações do cérebro durante o processo de aprendizagem, a neurociência pode ajudar a explicar
porque alguns ambientes de aprendizagem funcionam e outros não.
Sem dúvida, já existem contribuições das neurociências que fundamentam a prática
educacional (Kolb; Whishaw, 2002; Koizumi, 2004; Blakemore; Frith, 2005; Herculano-Houzel,
2005; Rotta; Ohlweiler; Riesgo, 2006; Blake; Gardner, 2007; Conselho Nacional de Pesquisa dos
Estados Unidos, 2007). Embora não seja possível, a partir delas, prescrever receitas para a solução
dos problemas da educação, conhecer a aprendizagem numa perspectiva neurobiológica pode
auxiliar educadores, professores e pais, a compreender alguns aspectos das dificuldades para
aprendizagem e inspirar práticas educacionais cotidianas.
Sabemos que os cuidados com o pré-natal são fundamentais para o desenvolvimento
adequado do SN. Neste período, estruturas cerebrais são formadas e conexões entre células
nervosas – sinapses - determinadas geneticamente, são estabelecidas, garantindo a organização
estrutural e funcional fundamental para comportamentos típicos da espécie, como andar, se
comunicar, sugar, expressar emoções, entre outros. Deficiências nutricionais, ingestão de certas
substâncias químicas, infecção por vírus e protozoários, exposição a radiações e até informações
genéticas ou cromossômicas erradas (síndromes de Williams, Down, Asperger, autismo, dislexia,
etc.) podem alterar a estrutura básica do SN. A criança que tem um SN diferente apresentará
comportamentos, habilidades limitações e potencialidades cognitivas distintas das demais e poderá
demandar estratégias de aprendizagem alternativas.
Após o nascimento, a interação do bebê com o meio em que vive e os cuidados na primeira
infância são muito significativos. Este é um período receptivo, de intenso desenvolvimento do SN,
no qual as redes neurais são mais sensíveis às mudanças, quando novos comportamentos podem ser
progressivamente adquiridos, preparando o cérebro para novas e mais complexas aprendizagens. A
educação infantil e a exposição a estímulos sensoriais, motores, emocionais e sociais variados,
freqüentes e repetidos nessa fase contribuirá para a manutenção das sinapses já estabelecidas, com
preservação de comportamentos com os quais nascemos, e para a formação de novas sinapses,
resultando em novos comportamentos. Falta de estimulação pode levar a perda de sinapses.
Crianças pouco estimuladas nos primeiros anos de vida podem apresentar dificuldade para a
aprendizagem, porque o cérebro delas ainda não teve a oportunidade de utilizar todo o potencial de
reorganização de suas redes neurais. Embora necessitem de mais estímulos e estratégias alternativas
de aprendizagem, ainda terão chance de recuperar o tempo perdido e as habilidades não
desenvolvidas até então. Um lar saudável, um ambiente familiar adequado, bons exemplos e uma
boa escola podem fazer grande diferença no desenvolvimento escolar.
Neuroplasticidade é a propriedade de “fazer e desfazer” conexões entre neurônios. Ela
possibilita a reorganização da estrutura do SN e do cérebro e constitui a base biológica da
aprendizagem e do esquecimento. Preservamos as sinapses e, portanto, redes neurais relacionadas
aos comportamentos essenciais à nossa sobrevivência. Aprendemos o que é significativo e
necessário para vivermos bem e esquecemos aquilo que não tem mais relevância para o nosso viver.
Atenção é importante função mental para a aprendizagem, pois nos permite selecionar, num
determinado momento, o estímulo mais relevante e significativo, dentre vários. Ela é mobilizada
pelo que é muito novo e pelos padrões (esquemas mentais) que já temos em nossos arquivos
cerebrais. Daí a importância da aprendizagem contextualizada. É difícil prestar atenção por muito
tempo. Intervalos ou mudanças de atividades são importantes para recuperar nossa capacidade de
focar atenção. Dificilmente um aluno prestará atenção em informações que não tenham relação com
o seu arquivo de experiências, com seu cotidiano ou que não sejam significativas para ele. O
cérebro seleciona as informações mais relevantes para nosso bem estar e sobrevivência e foca
atenção nelas.
Memorizamos as experiências que passam pelo filtro da atenção. Memória é imprescindível
para a aprendizagem. As estratégias pedagógicas devem utilizar recursos que sejam
multissensoriais, para ativação de múltiplas redes neurais que estabelecerão associação entre si. Se
as informações/experiências forem repetidas, a atividade mais freqüente dos neurônios relacionados
a elas, resultará em neuroplasticidade e produzirá sinapses mais consolidadas. Esse conjunto de
neurônios associados numa rede é o substrato biológico da memória. Os registros transitórios -
memória operacional - serão transformados em registros mais definitivos - memória de longa
duração. Quando estuda apenas na véspera da prova, o aluno mantém as informações na memória
operacional. Assim que as utiliza na prova, garantindo a nota, as esquece. A consolidação das
memórias ocorre, pouco a pouco, a cada período de sono, quando as condições químicas cerebrais
são propícias à neuroplasticidade. Enquanto dormimos, o cérebro reorganiza suas sinapses, elimina
aquelas em desuso e fortalece as importantes para comportamentos do cotidiano do indivíduo.
Dormir pouco, dificulta a memorização. Para aprender, precisamos estar despertos e atentos para
absorver a experiência sensorial, perceptual e significativa, mas necessitamos do sono para que
essas experiências sejam memorizadas e, portanto, apreendidas. Memória não se forma de imediato,
“da noite para o dia”. A formação de sinapses demanda reações químicas, produção de proteínas e
tempo. Por isso, a aprendizagem requer re-exposição aos conteúdos e diferentes experiências e
complexidade crescente. Assim, compreendemos a importância da espiral da aprendizagem: Além
disso, preservamos na memória o que é importante no cotidiano. Esquecemos o que não tem mais
valor, significado ou aplicação para nossa vida.
São as emoções que orientam a aprendizagem. Neurônios das áreas cerebrais que regulam as
emoções, relacionadas ao medo, ansiedade, raiva, prazer, mantêm conexões com neurônios de áreas
importantes para formação de memórias. Poderíamos dizer que o desencadeamento de emoções
favorece o estabelecimento de memórias. Aprendemos aquilo que nos emociona.
Aprender não depende só do cérebro, mas, também, da saúde em geral. Exercícios físicos
aumentam a quantidade de fatores neurotróficos que contribuem para estabilização das sinapses e
para manutenção e formação de memórias. Uma dieta balanceada, incluindo proteínas, carboidratos,
gorduras, sais minerais e vitaminas, possibilita o funcionamento das células nervosas, a formação de
sinapses e a formação da mielina, estrutura que participa da condução das informações entre redes
neurais. Problemas respiratórios que perturbam o sono, anemia que reduz a oxigenação dos
neurônios, dificuldades auditivas e visuais não facilmente detectadas, entre outros fatores, podem
dificultar a aprendizagem. É importante o aprendiz estar em boas condições de saúde para aprender
bem.
Aprendizes são indivíduos em transformação. Seus cérebros, portanto, estão sempre
mudando um pouco. O cérebro do adolescente ainda está em desenvolvimento, principalmente na
chamada área pré-frontal, parte mais anterior do lobo frontal, envolvida com as funções executivas,
ou seja, com a elaboração das estratégias de comportamento para solução de problemas e auto-
regulação do comportamento (Herculano-Houzel, 2005). Cérebros adolescentes testam novos
comportamentos com o objetivo de selecionar habilidades, atitudes e conhecimentos de fato
proveitosos para a sobrevivência na vida adulta. Eles aprendem o que os motivam, o que os
emocionam, o que desejam, aquilo que tem significado para seu cotidiano. Transformar o conteúdo
programático de uma disciplina em algo relevante para o aprendiz é um grande desafio para o
professor.
Outros fatores também influenciam a aprendizagem (Rotta; Ohlweiler; Riesgo, 2006).
Aprendizes privados de material escolar adequado, de ambiente para estudo em casa, de acesso a
livros e jornais, de incentivo ou estímulo dos pais e/ou dos professores, e pouco expostos a
experiências sensoriais, perceptuais, motoras, motivacionais e emocionais essenciais ao
funcionamento e reorganização do SN, podem ter dificuldades para a aprendizagem, embora não
sejam portadores de alterações cerebrais. Transtornos psiquiátricos, como o transtorno do déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH) e depressão, que demandam orientação médica e tratamento,
podem dificultar a aprendizagem. Transtornos, como a dislexia e discalculia, caracterizados por
dificuldades na aquisição de habilidades de escrita, leitura e do raciocínio lógico-matemático,
resultantes de organização cerebral diferente, de provável origem genética, também comprometem a
aprendizagem. Nesses casos, as crianças conseguirão aprender, mas necessitarão de estratégias
alternativas de aprendizagem, uma vez que seus cérebros utilizam caminhos ou circuitos neuronais
diferentes para atingir o mesmo aprendizado.
E quando não aprendemos, o problema está sempre no cérebro? Nem sempre. Aprendizagem
não depende apenas do funcionamento cerebral. A maioria dos casos tem relação com outros
fatores, e não com um “problema cerebral”. Fatores relacionados à comunidade, família, escola, ao
meio ambiente em que vive o aprendiz e à sua história de vida interferem significativamente na
aprendizagem. Além disso, ela é influenciada por aspectos culturais, sociais, econômicos e também
pelas políticas públicas de educação, que tornam as neurociências apenas mais uma contribuição
para a abordagem da aprendizagem. Devido à sua etiologia multifatorial, a abordagem de uma
dificuldade para a aprendizagem é necessariamente multidisciplinar.
Postula-se que o avanço do conhecimento neste milênio só será possível a partir de uma
perspectiva transdisciplinar. As diversas áreas do conhecimento deveriam utilizar seus pressupostos
para avançar em direção a novos conhecimentos. A educação pode se beneficiar dos conhecimentos
da neurobiologia para abordagem das dificuldades escolares e suas intervenções terapêuticas. A
reflexão sobre as possibilidades e desafios do diálogo entre a neurociência e a educação pode trazer
avanços para ambas as áreas. Com conhecimento científico, intercâmbio de experiências,
julgamento crítico, paciência, vontade, disposição, energia, dedicação, mas sem euforia, poderemos
fazer bom uso das contribuições das neurociências. E assim, saber como o cérebro funciona, pode,
de fato, ajudar a educar.

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RESUMO caso necessário


Educar é proporcionar oportunidades e orientação para aprendizagem, para aquisição de novos
comportamentos. Comportamentos resultam da atividade cerebral. O cérebro, portanto, é o órgão da
aprendizagem. As descobertas das neurociências estão esclarecendo alguns dos mecanismos
cerebrais responsáveis por funções mentais importantes na aprendizagem. No entanto, a aplicação
desse conhecimento no contexto educacional tem limitações. As neurociências não propõem uma
nova pedagogia, mas fundamentam a prática pedagógica que já se realiza, demonstrando que
estratégias pedagógicas, que respeitam a forma como o cérebro funciona, tendem a ser mais
eficientes. Conhecer a aprendizagem numa perspectiva neurobiológica pode auxiliar educadores,
professores e pais, a compreender alguns aspectos das dificuldades para aprendizagem e inspirar
práticas educacionais, mas não possibilita a prescrição de receitas para a solução dos problemas da
educação. Aprendizagem não depende apenas do funcionamento cerebral. Diversos fatores, como
condições gerais de saúde, ambiente familiar, estímulos na infância, interação social, tipo de escola,
aspectos culturais, sócio-econômicos e até políticas públicas de educação, também interferem na
aprendizagem. Cabe, assim, uma reflexão sobre as possibilidades e desafios do diálogo entre a
neurociência e a educação.

Palavras-chave: aprendizagem, cérebro, educação, neurociência, sistema nervoso


Psicologia.pt
ISSN 1646-6977
Documento publicado em 13.05.2018

PSICOPATOLOGIA
Definições, Conceitos, Teorias & Práticas

2018

Marcus Deminco
Escritor e Psicólogo brasileiro. Tutor de Programação Neurolinguística. Doutor Honoris
Causa em Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (Brazilian Association of
Psychosomatic Medicine)
marcusdeminco@gmail.com

RESUMO

O principal objetivo deste trabalho consistiu em pesquisar e descrever as principais


Definições, Conceitos, Teorias e Práticas utilizadas na Psicopatologia. MÉTODOS: triangulação
de dados obtidos por revisão não sistemática em fontes secundárias, e análise correlacional em
periódicos científicos brasileiros indexados nas áreas de psicologia, psiquiatria e psicanálise
utilizando as palavras-chave: (a) Psicopatologia Definição, (b) Psicopatologia Conceitos, (c)
Psicopatologia Teorias, e (d) Psicopatologia prática. CONCLUSÃO: a Psicopatologia está
diretamente ligada com diferentes áreas do conhecimento. Sobretudo, entre a Psicologia,
Psicanálise, Neurologia e Psiquiatria. Dessa forma, devido aos muitos discursos que ela abrange
possui uma grande dificuldade de coesão teórica.

Palavras-chave: Psicopatologia, semiologia, semiotécnica, sensopercepção, nosologia,


nosografia.

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INTRODUÇÃO

Um fenômeno é sempre biológico em suas raízes e social em sua extensão final.


Mas não nos devemos esquecer, também, de que, entre esses dois, ele é mental

(Jean Piaget).

A etimologia da expressão Psicopatologia é composta de três palavras gregas: psychê, que


produziu "psique", "psiquismo", "psíquico", "alma"; pathos, que resultou em "paixão", "excesso",
"passagem", "passividade", "sofrimento", "assujeitamento", "patológico" e logos, que resultou em
"lógica", "discurso", "narrativa", "conhecimento". Dessa forma, Psicopatologia pode ser
compreendida como um discurso ou um saber (logos) sobre a paixão, (pathos) da mente, da alma
(psiquê). Ou seja, um discurso representativo a respeito do pathos psíquico; um discurso sobre o
sofrimento psíquico sobre o padecer psíquico. A psychê é alada; mas a direção que ela toma lhe é
dada pelo pathos, pelas paixões. (BERLINCK, 1998 apud CECCARELLI, 2005).

A expressão Psicopatologia, que deu nome ao que muitos médicos faziam, principalmente
na França, na Alemanha e na Inglaterra, durante todo o século XIX, inaugurou a tradição
médica que se manifesta, até hoje, nos tratados de psiquiatria e de Psicopatologia médica.
O aparecimento da Psicopatologia como disciplina organizada se dá com a publicação da
Psicopatologia Geral (1). (Et seq. Idem).

Para Jaspers a Psicopatologia é uma ciência complexa: é uma ciência natural, destinada à
explicação causal dos fenômenos psíquicos mediante os recursos e teorias acerca dos nexos
extraconscientes que determinam esses fenômenos; e é ciência do espírito, voltada para a descrição
das vivências subjetivas, para a interpretação das suas expressões objetivas e para a compreensão
de seus nexos internos e significativos. A Psicopatologia deve considerar o individuo globalmente
atentando sempre para os padrões de normalidade aonde o indivíduo a ser questionado está
inserido, não se deixando guiar “cegamente” pelos sintomas. Considerar um sintoma isolado é
fazer com que o objetivo principal de entendê-lo (compreender o indivíduo) seja esquecido
(FIGUEIREDO, 1989 apud MENDOZA, 2007).

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(1)
Tratado de medicina e filosofia, publicado em 1913, pelo psiquiatra e filósofo alemão, Karl Jaspers. Nessa
obra, Jaspers propõe distinguir a Psicopatologia da psiquiatria. Enquanto a primeira é ciência pura, a segunda é perícia.
O psiquiatra é uma personalidade vivente que analisa e atua, a ciência lhe serve apenas como meio auxiliar.

Barlow & Durand (2008) também salientam que a Psicopatologia é um termo ambíguo:
refere-se tanto ao estudo dos estados mentais patológicos, quanto à manifestação de
comportamentos e experiências que podem indicar um estado mental ou psicológico anormal. Os
transtornos psiquiátricos são descritos por suas características patológicas, ou Psicopatologia, que
é um ramo descritivo destes fenômenos.

A Psicopatologia como o ramo da ciência que trata da natureza essencial da doença mental
- suas causas, as mudanças estruturais e funcionais associadas a ela e suas formas de
manifestação. A Psicopatologia, em acepção mais ampla, pode ser definida como o
conjunto de conhecimentos referentes ao adoecimento mental do ser humano
(CAMPBELL, 1986 apud DALGALARRONDO, 2000).

Baumgart (2006 apud FERNANDES, 2008) destaca que atualmente a Psicopatologia tem
dificuldade de coesão teórica devido aos muitos discursos que abarca. Percebe-se que os
conhecimentos a ela relativos parecem constituir-se apenas como um aglomerado de
especialidades. A Psicopatologia está ligada a diversas disciplinas: as psicologias, as psiquiatrias
e ao corpo teórico psicanalítico. Dentro da Psicologia, liga-se com Psicologia Clínica (direcionada
ao diagnóstico, e ao estudo da personalidade), Psicologia Geral (noções de subjetividade,
intencionalidade, representação, atos voluntários etc.), e ainda Psicologia ligada às neurociências,
tradições hinduístas e outros.

Considerando ainda que, a Psicopatologia perpassa e dialoga com diferentes campos do


conhecimento (principalmente entre a Psicologia, Psicanálise, Neurologia e Psiquiatria) faz-se
imprescindível também, uma melhor definição sobre os limites inerentes a essas áreas dentro das
práticas e/ou atuações psicopatológicas; tanto diante dos estados mentais patológicos, quanto frente
as suas manifestações comportamentais. Inserida nesse contexto, a Psicanálise é um procedimento
investigativo dos processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, um
método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos, e uma coleção de
informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumulou numa
"nova" disciplina científica. A Psicologia, entretanto é a ciência que se preocupa com o
comportamento humano em seus aspectos e condutas observáveis, que possam ser medidos,
testados, compreendidos, controlados, descritos e preditos objetivamente. (FREUD, 1923 apud
HAAR, 2008).

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Por um lado a psicanálise se diferencia da psicologia por ter como seu objeto de estudo
específico os fenômenos psíquicos inconscientes. Enquanto o estudo da psicologia
abrange os fenômenos conscientes e inconscientes: estes são os objetos de estudos
específicos da psicanálise, a qual utiliza, com essa finalidade, uma metodologia própria e
específica (FREIRE, 2002).

Tanto a Psiquiatria quanto a Neurologia são especialidades médicas. A Psiquiatria lida com
a prevenção, atendimento, diagnóstico, tratamento e reabilitação das doenças mentais em humanos,
sejam elas de cunho orgânico ou funcional. A meta principal é o alívio do sofrimento psíquico e o
bem-estar psíquico. Para isso, é necessária uma avaliação completa do doente, com perspectivas
biológica, psicológica, sociológica e outras áreas afins. Uma doença ou problema psíquico pode
ser tratado através de medicamentos ou várias formas de psicoterapia. A Neurologia estuda e atua
nas doenças estruturais, provenientes do Sistema Nervoso Central (encéfalo e medula espinal), do
Sistema Nervoso Periférico (nervos e músculos) e de suas estruturas invólucros (meninges). Uma
doença estrutural, portanto, refere-se à existência de uma lesão identificável em nível genético-
molecular (mutação do DNA), bioquímico (alteração de substância responsável pelas reações
químicas mantedoras das funções dos tecidos, órgãos ou sistemas) ou tecidual (alteração da
histológica ou morfológica própria de cada tecido, órgão ou sistema). (LAMBERT & KINSLEY,
2006).
Em confluência com os diversificados conceitos, através do paradoxo proposto por Lantéri-
Laura (1998 apud SALLET e GATTAZ, 2002) ao considerar a Psicopatologia como um fenômeno
subjetivo que tramita entre a psicologia do patológico e a patologia do psicológico – verifica-se
também, a relevância da Semiologia e das suas técnicas observacionais. Nesse aspecto,
Dalgalarrondo (2000) elucida a diferença entre Semiologia e Semiotécnica:

➢ Semiologia é a ciência dos signos, estando presente em todas as atividades humanas que
incluam a interação e a comunicação entre dois interlocutores pelo uso de um sistema de
signos (falas, gestos, atitudes, comportamentos não verbais etc.). Dedica-se ao estudo dos
sintomas e sinais das doenças, permitindo ao profissional da saúde identificar alterações
físicas e mentais, ordenar os fenômenos observados, formular diagnósticos e estabelecer
métodos de tratamento.

➢ A Semiotécnica, por sua vez, refere-se a técnicas e procedimentos específicos da


observação, coleta e descrição de sinais e sintomas. Sendo assim, é de essencial
importância para a prática da Semiotécnica em Psicopatologia, a observação minuciosa,
atenta e perspicaz do comportamento do paciente, do conteúdo de seu discurso e da sua

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maneira de falar, da sua mímica, da postura, do vestuário, da forma como reage e do seu
estilo de relacionamento com o entrevistador, com outros pacientes e com seus familiares.
Dentro desse contexto mostra-se igualmente importante, a compreensão sobre Nosologia e
Nosografia. Segundo Karwowski (2015) esclarece, a Nosologia (do grego 'nósos', "doença" +
'logos', "tratado", "razão explicativa") é a parte da medicina, ou o ramo da patologia que trata das
enfermidades em geral e as classifica do ponto de vista explicativo (isto é de sua etiopatogenia).
Enquanto a Nosografia as ordena desde o aspecto meramente descritivo (graphos = descrição).
Dessa maneira, o diagnóstico nosológico é estabelecido através de um conjunto de dados que
envolvem anamnese (pesquisa), exame físico e testes complementares.
Consequentemente, revela-se necessários que os pressupostos básicos da Psicopatologia
sejam submetidos a indagações concernentes as suas possibilidades. Isto significa que devem ser
objeto de uma ciência primeira, conforme o psicanalista francês Pierre Fédida denominou de
Psicopatologia Fundamental: uma Psicopatologia Primeira, convocada a dar conta da
interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade inseridas nas Psicopatologias atuais (BERLINCK,
1998 apud CECCARELLI, 2005).

A noção de fundamental deve ser compreendida no sentido de uma "fundamentalidade",


uma "intercientificidade dos objetos conceituais". Trata-se de um projeto de natureza
intercientífica, onde a comparação epistemológica dos modelos teórico-clínicos e de seu
funcionamento propiciaria a ampliação do limite e da operacionalidade de cada um destes
modelos e, conseqüentemente, uma transformação destes últimos. A Psicopatologia
Fundamental é o fórum de toda a metaPsicopatologia (Ibidem).

De acordo com Barlow & Durand (2008) o transtorno psicológico ou comportamento


anormal é uma disfunção psicológica que ocorre em um indivíduo e está associada com angústia,
diminuição da capacidade adaptativa e apresenta uma resposta que não é culturalmente aceita.
Jaspers (2003) enumera ainda o que deve ser entendido como enfermidade:

1. Processos somáticos;
2. Acontecimentos graves que causam ruptura com a vida até então considerada sã;

3. Desvios grandes em relação ao normal estatístico e visto como indesejados pelo afetado
ou seu meio.

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Segundo Leonhard (1997 apud SALLET e GATTAZ, 2002) as falsificações


sensoperceptivas podem ser explicadas pela simbolização das representações. Em geral há uma
forma singular de perturbação do pensamento abstrato: os pacientes mantêm a crítica para os
acontecimentos do dia-a-dia e mostram-se adequados, mas falham nas tarefas que exigem
abstração. As alterações sensoperceptivas também são características na alteração de humor e
podem abranger todas as áreas do sentido, embora prevaleçam as alucinações auditivas. Entretanto,
ainda que na excitação os doentes possam xingar contra as vozes, tal como os doentes paranoides,
posteriormente eles sempre demonstram um claro juízo do caráter patológico das mesmas.

BRITTO (2004) acentua que a discussão sobre juízo para fins psicopatológicos são tomados
como base os juízos de realidades, principalmente pelo fato dos juízos de valores serem definidos
sócio-historicamente. Dessa forma, uma patologia do juízo será sempre uma alteração no juízo de
realidade. Um termo traduzido da palavra alemã Wahn ou Wahsinn que se refere a uma síndrome
constituída por um conjunto de ideias mórbidas que traduzem uma alteração fundamental do juízo,
no qual o doente crê com uma convicção inabalável. No delírio, por exemplo, os mecanismos
associativos do indivíduo desviam-se da realidade ou da lógica, podendo conduzir a juízos e
raciocínios anormais, levando à produção de alucinações, percepções delirantes e ideias delirantes.

Entende-se por surto psicótico um estado mental agudo caracterizado por grave
desorganização psíquica e fenômenos delirantes e/ou alucinatórios, com perda do juízo
crítico da realidade. A capacidade de perder a noção do que é real e do que é fantasia,
criação da mente da própria pessoa, é um aspecto muito presente nos quadros agudos da
esquizofrenia. A pessoa adoecida pode criar uma realidade fantasiosa, na qual acredita
plenamente a ponto de duvidar da realidade do mundo e das pessoas ao seu redor. Fala-se
em Percepção Delirante quando o paciente atribui à uma percepção normal da realidade
um significado anormal sem que para isso, existam motivos compreensíveis. Não existe,
neste caso, uma verdadeira alteração da percepção, mas é a interpretação dessa percepção
que sofre um juízo crítico distorcido e patológico. (BARBOSA, 2000 apud Ibidem).

Jaspers (2003 apud IORIO, 2005) define o delírio com sendo um juízo patologicamente
falseado e que deve, obrigatoriamente, apresentar três características:

1) Uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável com


impossibilidade de se sujeitar às influências de quaisquer argumentações da lógica;

2) Um pensamento de conteúdo impenetrável e incompreensivo psicologicamente para o


indivíduo normal;

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3) Uma representação sem conteúdo de realidade, ou seja, que não se reduz à análise dos
acontecimentos vivenciais.

Dalgalarrondo (2000) divide as funções psíquicas em: consciência, atenção, orientação,


vivências do tempo e do espaço, sensopercepção, memória, afetividade, vontade e
psicomotricidade, pensamento, juízo de realidade, linguagem. Além das funções psíquicas
compostas, que são consciência e valoração do eu, esquema corporal e identidade, personalidade
e inteligência. Definiu a sensação como o fenômeno elementar gerado por estímulos físicos,
químicos ou biológicos variados, originados de fora para dentro do organismo, que produzem
alterações nos órgãos receptores, estimulando-os. Já por percepção entende-se a tomada de
consciência de um estímulo sensorial.

De acordo com Ballone (2005) a Sensopercepção é a Instância psíquica através da qual


apreendemos o mundo externo, utilizando-nos de diversas variedades de estímulos, sendo esses
visuais, táteis, auditivos, olfatórios ou gustativos. É a sensopercepção que permite a aquisição dos
elementos do conhecimento procedente do mundo exterior e do mundo interior, orgânico e
psíquico. Ela requer a participação dos cinco sentidos externos (olfato, tato, visão, audição e
paladar), dos sentidos internos (cenestésico, cinético e de orientação) e a percepção do mundo
mental pela consciência.

Esse mesmo autor salienta ainda que a sensação é o elemento primário da sensopercepção.
É o registro, na consciência, da estimulação produzida em qualquer dos aparelhos sensoriais. Elas
podem ser externas (refletem propriedades e aspectos isolados das coisas e fenômenos que se
encontram no mundo exterior) e internas (refletem os movimentos de partes isoladas do nosso
corpo e o estado dos órgãos internos). As sensações internas são de 3 tipos:

1. Motoras ou cinéticas (nos orientam sobre os movimentos dos membros e do nosso corpo);

2. De equilíbrio (provém da parte interna do ouvido e indicam a posição do corpo e da


cabeça);

3. E orgânicas ou proprioceptivas (se originam nos órgãos internos).

A percepção, todavia, relaciona-se diretamente com a forma da realidade apreendida, ao


passo em que a sensação se relacionaria aos fragmentos esparsos dessa mesma realidade. Ao
ouvirmos notas musicais, por exemplo, estaríamos captando fragmentos, mas a partir do momento
em que captamos uma sucessão e sequência dessas notas ao longo de uma melodia, estaríamos
captando a forma musical. Sendo assim, existem três estágios de percepções:

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1.1 A percepção anterior à realidade consciente é a percepção despojada de toda e qualquer


subjetividade, é a objetividade pura. Ela é anterior a toda e qualquer interpretação, anterior a
toda e qualquer compreensão e anterior a toda e qualquer significação. Ela permite a
experiência da própria percepção em estado puro. Ela é radicalmente exterior ao sujeito, é a
percepção do mundo exterior objetivo por excelência. É uma sensação vazia de
subjetividade.

1.2 A percepção que se transforma na realidade consciente é a percepção cuja objetividade


já remete à uma subjetividade ou à um significado consciente real. Ela não se permite
circunscrever apenas ao mundo exterior e passa a pertencer ao mundo interior do sujeito.
Trata-se da ponte que une o objeto ao sujeito (o mundo objetal ao sujeito), tal como uma
porta que introduz o mundo exterior para dentro da subjetividade. Entretanto, esta percepção
que se transforma na realidade consciente é somente uma porta de entrada, e é sempre ao
mesmo tempo uma passagem do objeto ao sujeito, é tanto a porta quanto o trânsito através
dela, e sempre no sentido que conduz da percepção à subjetividade.

1.3 A percepção posterior à realidade consciente é a percepção que não contém


propriamente uma nova subjetividade, mas toca nela a partir de estímulos atuais. Ela reforça
a subjetividade pré-existente e a partir dela, constrói novos elementos subjetivos.

Portanto, enquanto a sensação oferece à pessoa o fundamental da realidade, na percepção


esse fundamental se organiza de acordo com estruturas específicas, conferindo originalidade
pessoal à realidade apreendida. A partir da percepção que se transforma na realidade consciente, o
sujeito passa a oferecer às suas sensações um determinado fundo pessoal sobre o qual se assentarão
as demais futuras sensações.

Sims (2001), no entanto, considera a Psicopatologia como um método de estudo sistemático


do comportamento, da cognição e da experiência anormais; o estudo dos produtos de uma mente
com um transtorno mental. E conforme os preceitos estabelecidos por esse mesmo autor, essa
análise inclui dois tipos de Psicopatologias:

1. A Psicopatologia Explicativa, nas quais existem supostas explicações, de acordo com


conceitos teóricos (p. ex., a partir de uma base psicodinâmica, comportamental ou
existencial, e assim por diante);

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2. A Psicopatologia Descritiva, que consiste na descrição e categorização precisa de


experiências anormais, como são informadas pelo paciente, e observadas em seu
comportamento.

Figura 1. O Modelo das Psicopatologias propostas por Sims (2001)

Sims (2001) distingue ainda que a Psicopatologia descritiva consiste por duas partes
distintas: a observação do comportamento e a avaliação empática da experiência subjetiva. A
observação acurada é extremamente importante e um exercício muito mais útil do que
simplesmente contar os sintomas; às vezes o uso servil de listas de sintomas, para a verificação de
sua presença ou ausência, tem impedido a observação clinica genuína. A objetividade é crucial,
além da necessidade de observar mais do que apenas o comportamento. A outra parte da
Psicopatologia descritiva avalia a experiência subjetiva através da empatia como termo
psiquiátrico, que significa literalmente "sentir-se como".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se, portanto, que a Psicopatologia refere-se tanto ao estudo dos estados mentais
patológicos, quanto às manifestações comportamentais, ou experiências que possam indicar um
estado mental patológico (ou psicologicamente anormal). Percebe-se, entretanto, que a sua
principal preocupação está direcionada com a doença da mente. Revela-se por isso, um tema vasto
a partir do momento em que se defronta com questões subjetivas, como por exemplo: o que é
considerado doença? Qual a definição exata de um comportamento atípico? O que é um estado
mental patológico? Além disso, a Psicopatologia está diretamente ligada com diferentes áreas do
conhecimento. Sobretudo, com a Psicologia, Psicanálise, Neurologia e Psiquiatria. Dessa forma,
devido aos muitos discursos que ela abrange demonstra uma grande dificuldade de coesão teórica.

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