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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO E CIÊNCIAS CONTÁBEIS


COLEGIADO DO CURSO DE CIÊNCIAS CONTÁBEIS
TRIMESTRE LETIVO EXCEPCIONAL – 2020.T
CAC 017 ÉTICA GERAL E PROFISSIONAL

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COLEGIADO DO CURSO DE CIÊNCIAS CONTÁBEIS
TRIMESTRE LETIVO EXCEPCIONAL – 2020.T
CAC 017 ÉTICA GERAL E PROFISSIONAL

Qual dos males?


O famoso psiquiatra e fundador da escola analítica de psicologia, Carl Jung, perguntou a um soba
africano qual era a diferença entre o bem e o mal. Este não teve dúvidas. Disse com todas as letras:
“Quando roubo as mulheres de meu inimigo, isso é bom. Quando ele rouba as minhas, isso é mau.”

No exercício a seguir, vamos distinguir males que constituem dilemas do cotidiano, mas que tenham −
detalhe altamente significativo − bases universalistas. Analise o evento e qualifique o po de mal que está em
jogo: ■ O mal menor (Mm) procura evitar um mal maior. ■ O mal necessário (Mn) procura alcançar um bem
maior. Alguns casos poderão ser interpretados como mal menor ou mal necessário, dependendo da
perspectiva que se adote. Por exemplo, tomar remédios a despeito dos efeitos colaterais e das reações
adversas pode ser encarado como mal menor diante da gravidade da doença (mal maior) ou como mal
necessário para curar-se de doença ou combatê-la (bem maior).

EVENTO RESPOSTA
1 Expropriar prédios particulares para a construção de estações de metrô cujas linhas se Mn
destinam a transportar centenas de milhares de usuários.
2 Usar a “pílula do dia seguinte” para dificultar a fecundação e evitar o nascimento de Mm
uma criança indesejada, apesar das contraindicações existentes (coágulos no sangue
para quem sofre de doença hematológica ou vascular, quem é hipertenso ou obeso
mórbido) e efeitos colaterais (alteração do ciclo menstrual e do tempo de ovulação).
3 Ordenar que caças derrubem aviões intrusos e suspeitos que entram no espaço aéreo e Mn
se recusam a aterrissar.
4 Confinar doentes infectocontagiosos. Mm
5 A delação premiada para obter informações valiosas que desbaratem operações Mn
ilícitas, em troca do abrandamento da pena.
6 A adição de iodo no sal para prevenir o bócio em adultos ou o cretinismo em crianças, Mm
embora o excesso cause tireoidite autoimune.

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7 A fila preferencial para idosos, gestantes, portadores de deficiência e pessoas Mm


acompanhadas de criança de colo, em desrespeito à ordem de chegada.
8 Utilizar aparelhos de raios X apesar da radiação nociva. Mn
9 Vacinar obrigatoriamente a população contra doenças contagiosas, a despeito do Mm
incômodo das picadas e dos efeitos colaterais em pessoas alérgicas.
10 Estabelecer o rodízio de carros em dias alternados, não obstante o transtorno causado Mn
aos motoristas que não usam transporte coletivo.
11 Construir hidrelétricas, embora inundem vastas áreas, desloquem moradores e afetem Mn
a fauna e a flora da região.
12 Utilizar agrotóxicos na agricultura, apesar dos impactos negativos sobre o meio Mn
ambiente (interferências nos processos de respiração do solo e distribuição de
nutrientes, além da mortandade de espécies de aves e peixes), bem como usar
pesticidas malgrado os efeitos nocivos sobre a saúde dos consumidores (risco de
contaminação dos alimentos) e sobre a saúde dos que trabalham com eles
(dificuldades respiratórias, problemas de memória, pele, câncer e depressão).
13 Escolher um paciente entre outros, com base em critérios objetivos, para ocupar a Mm
única vaga disponível na UTI, malgrado o fato de que os demais possam morrer.
14 Escolher o paciente que terá o fígado transplantado por critérios médicos e não pela Mm
ordem de inscrição.
15 Instalar reatores nucleares para gerar energia elétrica, apesar de haver lixo nuclear e Mn
risco de contaminação radioativa.
16 Aplicar a energia nuclear em diversos campos, a despeito do risco de contaminação, Mn
para obter benefícios como o diagnóstico e o tratamento de inúmeras doenças
(medicina), a irradiação de alimentos para a produção de sementes e para que durem
mais (agricultura), a verificação da qualidade de equipamentos e a esterilização de
materiais médicos e cirúrgicos (indústria), o monitoramento de poluentes e a
identificação de recursos aquíferos (meio ambiente).
17 Negar na mídia a iminente desvalorização da moeda (ação de autoridade ministerial) e Mm
correr o risco de ser desmascarado no dia seguinte ao lançar um pacote econômico.
18 Reter dados dos usuários para permitir investigações contra o terrorismo e o crime Mn
organizado. Com isso, os provedores de internet promovem a quebra da privacidade
de seus clientes.
19 Submeter-se a uma cirurgia invasiva, uma vez que se corre risco de morte ou de Mm
graves complicações, apesar dos perigos da anestesia e das infecções hospitalares.
20 Injetar recursos públicos na indústria automobilística norte-americana para evitar sua Mn
concordata. Por exemplo, em 2009, a General Motors recebeu US$ 49 bilhões do
Tesouro americano, conferindo ao governo 61% de suas ações. Recuperada a
empresa, o Tesouro se desfez da última fatia de 2,2% das ações no final de 2013. E,
embora contabilizasse uma perda de US$ 10 bilhões, evitou que o setor
automobilístico falisse, perdesse 2,6 milhões de empregos e que 600 mil
aposentadorias tivessem seus benefícios reduzidos ou extintos. Ademais, o setor criou
372 mil empregos novos desde a crise e desembolsou US$ 105,3 bilhões em impostos

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e taxas somente em 2009 e 2010.

A esta altura, três esclarecimentos se impõem. O primeiro diz respeito a uma questão bastante delicada: será
que o bem de muitos justifica o mal de poucos? Em certas circunstâncias, sim, e por razões óbvias. Por
exemplo: confinar doentes infectocontagiosos, construir hidrelétricas, desapropriar imóveis para construir
linhas de metrô, demitir funcionários para evitar uma iminente falência, encarcerar criminosos.

Todavia − e é preciso insis r nisso −, os interesses da maioria não podem atropelar os interesses da minoria.
Os doentes infectocontagiosos devem receber os cuidados necessários, poder se comunicar com os parentes
e, tão logo curados, retornar à convivência social. As hidrelétricas devem minimizar os efeitos negativos que
sua construção provoca: ressarcir a população que ocupava a área inundada, realocar a fauna e resgatar os
espécimes mais raros da flora regional. Os proprietários dos imóveis desapropriados para a construção de
metrô devem ser adequadamente indenizados, e o mesmo vale para funcionários demitidos. Os criminosos
devem ser encarcerados em condições dignas e libertados tão logo tiverem cumprido a pena.

O segundo esclarecimento também diz respeito a algo francamente perturbador: será que o bem de poucos
justifica o mal de muitos? Em situações excepcionais, e desde que respeitados os direitos básicos da maioria,
sim. Por exemplo: a fila preferencial para idosos, gestantes e portadores de deficiência; a escolha, com base
em critérios objetivos, de um paciente para ocupar a única vaga disponível na UTI, embora outros pacientes
aguardem a vez; instituições bancárias criarem divisões premium para atender clientes abonados, evitando-se
assim os “jeitinhos” que discriminam e humilham.

Contudo, as prioridades devem assegurar à maioria o direito de ter um atendimento digno nos
estabelecimentos que estabelecem filas preferenciais. Idem para os pacientes preteridos na única vaga
disponível na UTI: merecem saber quais critérios objetivos os impediram de obter a vaga. Idem para os
clientes que, por falta de renda suficiente ou de volume de investimentos, não foram autorizados a integrar o
segmento prime: merecem ser convidados quando tiverem preenchido os requisitos.

Em suma, decisões pelo mal menor e pelo mal necessário não correspondem a um vale-tudo errático:
precisam estar devidamente fundamentadas e cuidar o tempo todo para não incorrer no viés particularista, o
que detonaria sua legitimidade ética.

Isso nos leva a um terceiro esclarecimento pertinente. É possível justificar meios ilícitos ou “impuros” em
nome de ideais retoricamente igualitários? Por exemplo, desviar recursos públicos em nome da perpetuação
no poder de um partido que se proclama portador da “sociedade dos amanhãs cantantes”, ou seja, do
socialismo? Dando nome aos bois, é o caso do “mensalão” no Brasil.

A cooptação de apoio parlamentar ao governo do presidente Lula, em seu primeiro mandato inaugurado em
2003, se fez por meio do desvio de recursos públicos. Se não, vejamos. Do Fundo Visanet, de quem o Banco
do Brasil era acionista, foram R$73,9 milhões; do próprio Banco do Brasil foram 2,9 milhões; da Câmara dos
Deputados foi 1,1 milhão; do Banco Rural foram 32 milhões, disfarçados em empréstimos (fictícios) para o
Partido dos Trabalhadores e para as agências de publicidade de Marcos Valério, operador da propinoduto; do
Banco BMG, nos mesmos moldes, foram R$31,9 milhões.

A crônica desse episódio infame da história brasileira começa em junho de 2005 quando o presidente do
PTB, deputado Roberto Jefferson, afirma que o PT pagava R$ 30 mil por mês para que parlamentares
votassem a favor do governo Lula na Câmara. As acusações forçaram o ministro-chefe da Casa Civil, José

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Dirceu, a pedir demissão. Em agosto de 2007, o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, fez
a leitura da denúncia contra 40 suspeitos de envolvimento no mensalão. Logo depois, o STF aceitou a
denúncia e todos se tornaram réus. Em agosto de 2012, após 49 sessões e quatro meses e meio, o julgamento
terminou com 25 réus condenados, 12 absolvidos e 3 excluídos da ação (acolhido um recurso em 2014, um
dos condenados foi absolvido). Finalmente, em novembro de 2013, ou seja, mais de oito anos após a
denúncia do esquema, o STF determinou a prisão imediata dos condenados, entre eles o ex-ministro José
Dirceu.

O mensalão foi um caso de corrupção política sob o falso pretexto de que “os fins justificam os meios”.
Quais fins? Particularistas. Expectativas de que o PT obtivesse uma maioria estável para governar e pudesse
prolongar sua permanência no poder; de que o aparelhamento da máquina do Estado permanecesse nem que
fosse com o apoio dos velhos patrimonialistas de sempre; e de que ministérios e cargos públicos fossem
loteados como butim, desde que velhos militantes petistas e sindicalistas de chapa branca pudessem continuar
a se banquetear. Para tanto, perpetraram-se seguidos crimes contra a cidadania e contra a coisa pública. A
República foi conspurcada. Não se tratou de causa nobre que pusesse em jogo interesses universalistas. Não:
foi caso típico de falseamento, de racionalização antiética do “mal necessário” (corrupção) em prol de um
pseudo “bem maior” (o socialismo). Ora, nem esse mal era necessário, nem o socialismo totalitário
pretendido era o bem maior, haja vista as experiências fracassadas do planejamento central e as brutais
repressões dos tempos da União Soviética, dos países do Leste Europeu, da China, da Coreia do Norte, do
Camboja, de Cuba e de outros países congêneres.
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Srour, R.H. Casos de ética empresarial: chaves para entender e decidir. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. (Edição do Kindle).

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