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O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon

OMODULORDELECORBUSIER:
FORMA, PROPORÇÃOEMEDIDA NA ARQUITETURA
Ennio Possebon *

RESUMO ABSTRACT
Le Corbusier é um dos raros LE CORBISIER’S
arquitetos, não só do século XX, MODULATOR: FORM,
mas de toda a História da Ar- PROPORTION AND
quitetura, que propôs uma teo- MEASURE IN
ria de proporções e forneceu ARCHITECTURE
descrições de como foram apli-
cadas em seus projetos. Na sua Le Corbusier is one of the few
obra transparece, além do architects, not only in the 20th
olhar atento para a criação de century, but in the whole history
uma arquitetura consoante com of Architecture, to propose a
as transformações sociais, theory of proportions and to
trazidas pelas tecnologias make descriptions on how they
despontantes no século XX, um were applied to his projects. His
pensamento lógico, racional e work shows, besides the attentive
disciplinador que encontra sua look to the creation of an
plena expressão, em termos de architecture consonant with soci-
proporções, no seu sistema de- al changes brought by the 20th
nominado “Modulor”. century’s emerging technologies,
a logical, rational, and disci-
Palavras-chave: arquitetura, plinary thinking that finds its full
comodulação. expression, in terms of
proportions, in his system named
“Modulor”.

Keywords: architecture,
comodulation.

*
Ennio Possebon é graduado e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Trabalha com arquitetura, design
gráfico e artes visuais. Leciona desenho arquitetônico no curso de Arquitetura e Urbanismo do UniFIAM-FAAM e desenho de
observação e geometria no curso de Educação Artística dessa Instituição.

68 R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004


O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon

“Estais no país dos números.


Deixai-vos permanecer nele, maravilhados diante de
tanta luz intensamente espalhada.”
(Le Corbusier)

L
e Corbusier é um dos ra- sões. As dimensões medianas estão menos clássico que Palladio ou
ros arquitetos, não só do relacionadas com o corpo humano; Alberti, ao retomar um tipo de con-
século XX, mas de toda as dimensões extremas aplicam-se, trole de projeto tão essencialmente
a História da Arquitetu- por um lado, aos detalhes diminu- pertencente ‘a Renascença.
ra, que propôs uma teoria de propor- tos dos instrumentos de precisão e,
ções e forneceu descrições de como por outro lado, à escala dos grandes A PORTA DOS MILAGRES
foram aplicadas em seus projetos. projetos de planejamento.”2 DE LE CORBUSIER
Mais ainda, pretendeu e propôs que
sua teoria fosse utili- “A matemática
zada por outros. Seus é o magistral edifí-
desenhos e projetos cio imaginado pelo
são, por esta razão, homem para com-
um fértil terreno para preender o Univer-
o estudo da Geometria so. Nela encontra-
na sua conexão com a se o absoluto e o in-
Arquitetura. finito, o apreensível
e o não-apreensível,
O MÓDULO e está rodeada de
DE OURO altos muros diante
dos quais pode-se
Segundo John passar e de novo
Summerson, “[...] nos passar sem proveito
primeiros anos da Se- nenhum. Neles às
gunda Guerra Mundi- vezes abre-se uma
al Le Corbusier criou porta, entra-se e aí
o sistema que se cha- se está no lugar
mou ‘Modulor’. onde se encontram
Modulor é uma pala- os deuses e as cha-
vra composta a partir ves dos grandes sis-
de module, ou seja, unidade de me- Na obra de Le Corbusier, temas. Estas portas são as portas
dida, e section d´or ou secção de transparece, além do olhar atento dos milagres, e, franqueada uma
ouro: a divisão de uma reta de tal para a criação de uma arquitetura delas, já não é o homem quem atua,
modo que o segmento menor está consoante com as transformações porém o Universo que se manifesta
para o maior assim como o segmen- sociais, trazidas pelas tecnologias e diante dele desenrolam-se os pro-
to maior está para o todo. O despontantes no século XX, um digiosos tecidos das combinações
Modulor é um sistema de propor- pensamento lógico, racional e sem limites. Estais no país dos nú-
cionamento do espaço arquitetônico disciplinador, ao buscar um traçado meros. Deixai-vos permanecer nele,
baseado neste critério geométrico, e orientador do projeto, baseado na maravilhados diante de tanta luz in-
oferece toda uma gama de dimen- proporção áurea. E, aí, ele não é tensamente espalhada.” 3

2 SUMMERSON , John. in A linguagem clássica da Arquitetura, p.116.


3 LE CORBUSIER, in Modulor1, p. 69. (Trad. nossa.)

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ORIGENS E INTENÇÕES composição e pôde exprimir o pen- participando da matemática que


DO MODULOR samento musical de Mozart, rege o corpo humano, era possível
Beethoven, Debussy, Stravinsky, sustentar, também na construção, a
O Modulor1 tinha como subtítu- Satie, Ravel ... até os dias atuais. mesma harmonia. E como eles es-
lo “Ensaio sobre uma medida harmô- E na busca de uma analogia, Le tavam circunscritos a cada cultura
nica à escala humana e aplicável uni- Corbusier se coloca a questão: um específica, sem ter de cruzar distân-
versalmente à Arquitetura e à Mecâ- utensílio correlato, que tratasse de cias pelos mares, eram aptos e sufi-
nica”. Sem dúvida, uma grandilo- medidas visuais, geométricas, não cientes para cumprir seus desígnios,
qüente e pretensiosa aspiração ... seria desejável também no âmbito já que também não havia por que
da construção, não facilitaria tam- reclamar dessas medidas dentro de
Acompanhar o fio condutor do bém sua “escrita” e traria um enor- seus âmbitos operacionais.
seu pensamento ao longo do texto, me benefício à composição arquite-
tão rico em idéias mas nem sempre tônica? Entende que sim, e assim Com a Revolução Francesa,
claro e organizado, às vezes até per- conclui o seu raciocínio: diz Le Corbusier, o pensamento
turbado por excesso de dados, rela- laico entendeu que podia conquistar
tos burocráticos, citações enfado- Numa sociedade moderna me- o mundo. E além de colocar em
nhas e até mesmo com algumas im- canizada, cujas ferramentas se aper- jogo razões profundamente huma-
precisões geométricas, de certa ma- feiçoam a cada dia para proporcio- nistas, apresentou ainda muitas pro-
neira desvenda parte do que foram nar recursos de bem-estar, a apari- messas: ciência e cálculo empreen-
seu grande esforço, seus ideais, seus ção de uma gama de medidas visu- deram caminhos sem limites. No
sonhos, suas conquistas e seu lega- ais é admissível, posto que o primei- rastro dessa revolução também fo-
do: o que não é pouca coisa. Acom- ro efeito deste utensílio será unir, ram destronados pés e polegadas,
panhemos alguns fatos narrados nos enlaçar, harmonizar o trabalho dos juntamente com seus complicados
livros Modulor 1 e 2. homens, precisamente desunido cálculos, e então substituídos por
neste momento — até mesmo des- uma medida despersonalizada e abs-
Pertencente a uma família de troçado — pelo presença de dois trata, o metro (a décima milionési-
músicos, embora sem sê-lo, Le sistemas dificilmente conciliáveis: o ma parte do quadrante do meridiano
Corbusier sabia muito bem que a sistema dos anglo-saxões e o siste- terrestre),5 adotado imediatamente
música, assim como a arquitetura, se ma métrico decimal. 4 por sociedades mais ávidas de no-
desenvolvem no espaço e no tempo vidades, porém ainda em grande
e dependem da medida. Em algumas Ele compreende também que parte rejeitado em favor dos tradi-
considerações sobre a música ele ob- os partenons, os templos indianos e cionais pés e polegadas. Uma ten-
servou como, historicamente, o as catedrais de todos os tempos são se estabeleceu entre a nova me-
continuum sonoro foi fragmentado, sempre foram constituídos segundo dida de cálculo mais simples e a tra-
dividido, mas tornado passível de ser um código e se fundamentaram num dicional, mais complexa, porém
compreendido por meio de propor- sistema coerente que afirmava uma mais adequada à escala humana.
ções estabelecidas entre suas subdi- unidade essencial. E perguntando-se
visões. Com isso teve sua transmis- sobre de que instrumentos dispu- Le Corbusier entende que exis-
são possível, através do tempo e do nham, encontra sempre a resposta te uma carência de medida ou sis-
espaço, por meio da escrita musical, nas medidas baseadas em propor- tema proporcionalizador que satis-
que finalmente veio a ser codificada ções humanas: codo, dedo, polega- faça, sendo válidos para qualquer
no Ocidente por J. S. Bach, em sua da, pé, braço, palmo etc. . parte do mundo estes quesitos:
gama temperada. Este utensílio aper- racionalidade, simplicidade na orde-
feiçoado trouxe imenso impulso à Com esses instrumentos sutis nação do cálculo e adequação à es-

4 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 17. (Trad. nossa.)


5 Na atualidade, definido como a distância correspondente a 1.553.164, 03 longitudes de onda da banda vermelha do cádmio
no espectro a ar seco, a 15º de temperatura e a 760 mm de Hg de pressão.

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cala humana — tanto para a Arqui-

“Nos anos de ocupação da


tetura quanto para a Mecânica. Des-
de o início do século XX ele vinha
observando em obras de arquitetu-
ra aquilo que chamou de “o ângulo
reto dirigindo a composição”. Tam- França durante a Segunda
bém encontraram ressonância nele
as palavras de Choisy com sua His-
tória da Arquitetura (1902), especi-
Guerra Mundial, instituiu-se
almente quando trata de traçados re-
guladores ao explicar a organização o AFNOR, um órgão cuja
de composições arquitetônicas.

Na revista L´ Esprit Nouveau,


função era auxiliar a
reconstrução do país.”
junto com outros, Le Corbusier pro-
duz artigos teóricos, base doutriná-
ria para sua atividade projetual pos-
terior. “A grande indústria deve
ocupar-se com a edificação e esta- sado algumas críticas à arquitetura participar do empreendimento. Le
belecer em série os elementos da renascentista, por ver nas suas cons- Corbusier foi um deles.
casa. Deve ser criado o estado de truções, quando rigorosamente ori-
espírito da série: de construir casas entadas pela geometria, e por vezes “O AFNOR propõe normatizar os
em série, de habitar casas em série, segundo complexas estruturas, a objetos da construção e seu método é
de conceber casas em série.” 6 E pressuposição de um observador simplista: simples aritmética aplicada
aqui a normatização se torna ques- ideal que teria de se colocar no cen- aos usos e utensílios dos arquitetos,
tão fundamental. tro da obra e perceber como um engenheiros e industriais. Parece-me
todo, simultaneamente, todos os de- arbitrário e pobre. As árvores, por
Depois que publica o artigo talhes. Contra essa interpretação ele exemplo, com seu tronco, seus ramos,
“Os traçados reguladores” na L´ argumenta, então, que o observador suas folhas e nervuras, me afirmam
Esprit Nouveau, em 1921, Le concreto sempre está de pé, tem o que as leis de crescimento e combina-
Corbusier conhece os livros de foco de visão a mais ou menos 1,60 ção podem e devem ser mais ricas e
Matila Ghyka, sobre a proporção áu- m de altura e está em movimento sutis. Um laço geométrico tem de in-
rea, que lhe confirmam e demons- pelo espaço, apreendendo, a cada tervir nestas coisas e sonho instalar
tram matematicamente assuntos que vez, e no decorrer do tempo, as suas nas obras que mais tarde cobrirão o
já o ocupavam. E também em suas várias perspectivas. Tem percepções país, um enredado de proporções tra-
pinturas, experimenta a plasticidade diferenciadas a cada momento e, çado sobre o muro ou apoiado nele,
sobreposta a uma rigorosa geometria. enfim, uma estatura que deve ser feito com ferros laminados e soldados,
sempre considerada. que será a regra da obra, o modelo
Posteriormente, por volta dos que inicia a série ilimitada das combi-
anos 1940, as idéias desenvolvidas Nos anos de ocupação da Fran- nações e das proporções. O pedreiro,
por Wittkower a respeito do ça durante a Segunda Guerra Mun- o carpinteiro e o serralheiro irão aí
Renascimento, da proporção e dos dial, instituiu-se o AFNOR, um órgão escolher as medidas para seus traba-
traçados reguladores de projetos cuja função era auxiliar a reconstru- lhos, os quais, diversos e diferencia-
também encontrarão ressonância em ção do país. Industriais, engenheiros dos, serão testemunhos da harmonia.
Le Corbusier. Embora tenha expres- e arquitetos foram convocados a Tal é o meu sonho”. 7

6 In “Casas em série”, L´ Esprit Nouveau, 1921, citado em LE CORBUSIER, Modulor 1, p. 31. (Trad. nossa.)
7 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 34. (Trad. nossa.)

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TENTATIVA E ERRO NA o uruguaio Justino Serralta e o fran- a altura padrão do homem será
INVENÇÃO DO MODULOR cês Maisonnier, e foi relatado no retificada para 6 pés ou 182,88 cm.
Modulor 2. Esse traçado produz (altura média de um inglês), valor
Em 1943, Le Corbusier propõe duas séries de valores baseados na esse que irá satisfazer mais, em vir-
a seu assistente Hanning uma tare- proporção áurea, então chamadas tude de os valores em polegadas
fa: “Tome um homem com o braço “série vermelha” e “série azul”, esta corresponderem com mais proximi-
levantado com 2,20 m de altura, última correspondendo aos valores dade à série Fibonacci que se forma
inscreva-o em dois quadrados referidos ao duplo quadrado. na série azul: 3, 5, 8, 13, 21, 34 ...
superpostos de 1,10 m, coloque-o a
cavalo sobre os dois quadrados e Essa rede de proporções Le Corbusier quer contribuir
um terceiro quadrado resultante lhe antropometricamente combinadas, para o jogo das normatizações ne-
dará uma solução. O ‘lugar do ân- recebeu depois a denominação cessárias a uma produção em série,
gulo reto’ deve poder ajudá-lo a co- “modulor” (sugerida a Le Corbusier racional e eficiente, de elementos
locar o terceiro quadrado. Com este por Robert Lancrey-Javal, doutor pré-fabricados. Mas quer evitar tam-
enredado, regido por um homem em Direito). O modulor, na sua pri- bém o empobrecimento formal pro-
instalado no seu interior, estou se- meira versão, tinha como base um duzido por normatizações efetuadas
guro que chegará a uma série de homem com 1,75 m (a altura mé- pelo mínimo esforço. Quer colocar
medidas que poderão colocar de dia de um francês), de onde resul- no lugar do trivial, do monótono e
acordo a estatura humana (o bra- tavam suas medidas principais. Tec- sem graça o harmonioso, o diverso,
ço levantado) e a Matemática.”8 nicamente foi definido da seguinte o elegante. E remover o obstáculo
maneira: “O modulor é um aparato que resulta da incompatibilidade das
Essa indicação, um tanto enig- de medida fundamentado na estatu- medidas centímetro e polegada.
mática quando meramente lida, en- ra humana e na matemática. Um
tretanto, continha o germe do que homem com o braço levantado dá “O modulor rege as longitudes,
viria a ser claramente desenvolvido os pontos determinantes de ocupa- as superfícies e os volumes, manten-
no traçado final do modulor. Era ção do espaço: o pé, o plexo solar, do sempre a escala humana, pres-
ainda uma primeira intuição. a cabeça e a ponta dos dedos com tando-se a infinitas combinações e
o braço levantado — três interva- assegurando a unidade na diversi-
Mas daí surgiu o primeiro tra- los que definem uma série de dade: benefício inestimável, milagre
çado, em 25 de setembro de 1943, secções áureas de Fibonacci; e ain- dos números.” 10
que sofreria uma retificação realiza- da por outra parte, a matemática,
da por Elisa Maillard, três meses que oferece a variação mais imedi- Quando elege a proporção áurea
depois, em 26 de dezembro de ata e significativa de um valor: o como princípio estruturador do seu
1943. Ambos os traçados têm ain- simples, o dobro e as duas secções enredado de proporções (modulor),
da incoerências e incorreções geo- áureas. “9 Em síntese, a unidade, a Le Corbusier preocupa-se em acoplar
métricas, que, embora não interfi- duplicidade e a proporção áurea — nele a estatura humana (estabelecida
ram totalmente na praticidade e na o modulor. no padrão médio de 1,82 m ou 6 pés)
aplicabilidade da idéia, serão revis- Essa régua de proporções com- e pretende com isso criar um disposi-
tos posteriormente, e mediante vá- bina-se, assim, através do ponto das tivo proporcionador das medidas de
rias tentativas e aproximações, pro- duas séries de segmentos áureos, sua arquitetura. E neste aspecto pare-
gredirão até resultar num traçado que ele chamou de “vermelha” e ce se colocar em perfeita sintonia
rigoroso e preciso em todos os sen- “azul”, com a estatura humana nos com o conceito vitruviano de sime-
tidos. O traçado definitivo contou seus principais pontos de ocupação tria, de comodulação. A proporção
com a colaboração de dois jovens, do espaço. Num momento posterior, áurea é o módulo que engendra as

8 Idem, op. cit., p. 35. (Trad. nossa.)


9 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 52. (Trad. nossa.)
10 Idem, op. cit., p. 88. (Trad. nossa.)

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com 89 polegadas contendo as duas

“Durante as conversações no escalas, um quadro numérico com


as medidas das duas séries e um
manual de instruções. John Dale
processo burocrático de editou, então, um boletim mundi-
al contendo notícias e discussões
requerimento e concessão de entre os usuários do modulor. Isso
foi cogitado em 1947. Houve pers-
patentes irão despontar as pectivas de que empresários ame-
ricanos se interessassem pela sua
várias perspectivas comerciais fabricação e comercialização, mas
e direitos possíveis pela sua o produto modulor nunca chegou
ao mercado.
utilização, aos quais Le A partir da edição do livro
Corbusier depois renunciará.” Modulor 1 (1948) há uma intensa
troca de correspondência entre Le
Corbusier e inúmeros estudiosos e
formas da arquitetura, nas partes e no mas na verdade não é o que tem usuários interessados no modulor.
todo, e leva em conta, todo o tempo, mais importância. Parece-nos mais Correções, retificações e ampliações
a escala humana. E aqui, como importante a tentativa de Le da idéia são dirigidas a ele, e
Zeizyng o fizera no século XIX,11 re- Corbusier de buscar coerência na interagindo com essas respostas o
afirma a insinuação de ser ela a disposição das proporções de suas projeto se redefine, torna-se mais
legismetria12 do crescimento e do de- obras, guiando-se por determina- preciso e se esclarece. Ele mesmo,
senvolvimento dos seres orgânicos. ções sugeridas pelos processos por iniciativa própria, estará sempre
construtivos da Geometria, combi- interessado em dialogar com mate-
O modulor, dito de uma outra nados com todas as outras disposi- máticos, engenheiros e outros pro-
maneira ainda, é a combinação de ções e determinações necessárias ao fissionais, buscando e aceitando o
duas séries coordenadas de segmen- dimensionamento da Arquitetura. E aperfeiçoamento do projeto quando
tos áureos que estabelecem um sis- nesse sentido ele age, antes de tudo, lhe é proposto por outros. O próprio
tema proporcional e relacionado com como um geômetra. nome “modulor” foi proposto por
a estatura humana — evidentemen- Lancrey-Javal. A princípio, Le
te, com um padrão médio escolhido: O modulor é patenteado por Le Corbusier não o considerou adequa-
uma grandeza referencial que deter- Corbusier. Durante as conversações do e o rejeitou. Toda troca de infor-
mina as dimensões e proporções cri- no processo burocrático de requeri- mações, idéias, sugestões e adver-
adas dentro deste criterium defini- mento e concessão de patentes irão tências, e as respectivas respostas e
do pela proporção áurea. despontar as várias perspectivas co- considerações, se encontram exaus-
merciais e direitos possíveis pela tivamente descritas no Modulor 2
Nota-se que existe, de certa sua utilização, aos quais Le (1950), juntamente com as defini-
maneira, uma obsessão em eliminar Corbusier depois renunciará. Como ções finais do sistema, além da des-
a incompatibilidade entre os siste- um produto a ser lançado no mer- crição de inúmeros casos do siste-
mas métrico e de polegadas. Isso é cado foi, na época, pensado e com- ma aplicado por ele mesmo ou por
resolvido, ou contornado, em parte, posto das seguintes peças: uma fita outros arquitetos.

11 ZEISING, Adolf. in Neue Lehre von den Proportionen des menschlichen Korpers, aus einem bisher unerkannt gebliebenen, die
ganze Natur und Kunst durchdringenden morphologischen Grundgesetz entwicklt. (“Nova teoria das proporções do corpo hu-
mano desenvolvida de uma lei morfológica básica, até então desconhecida, que impregna a inteira Natureza e a Arte.”)
(Trad. nossa.)
12 Legismetria . Neologismo criado por F. Muller para a tradução do vocábulo “Gezetzmassigkeit’, do alemão.

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Sobre o modulor, o rigoroso O modulor de Le Corbusier nais de Le Corbusier segue depen-


Ernst Neufert, a despeito de algumas constitui uma resposta preliminar. À dendo dos conceitos que o pensa-
críticas com relação às aproximações luz da História aparece com a inten- mento pitagórico-platônico legou à
e arredondamentos de medidas esta- ção fascinante de coordenar a tradi- humanidade do Ocidente.”14
belecidos nas séries vermelha e azul, ção com o nosso mundo não-
comentou em seu livro A industria- euclidiano. Em primeiro lugar por- Num encontro com Albert
lização das construções: que toma como ponto de partida o Einstein, Le Corbusier relata que,
homem e seu entorno, e não um após ouvir suas explicações e co-
“[...] é importante que um ar- conjunto de universálias. Com isto mentários, e depois de ter verifica-
quiteto de tanta popularidade como Le Corbusier acerta o passo das nor- do matematicamente os esquemas
Le Corbusier tenha dedicado sua mas absolutas com o das relativas. do modulor, teria assim resumido
atenção ao problema das medidas seu parecer a respeito: “Uma esca-
na construção e que tenha coloca- Porém, tenta uma nova conso- la de proporções que torna o mau
do em primeiro plano necessidades lidação neste nível. Os velhos sis- difícil e o bom fácil”.15 Essa boa
arquitetônicas que haviam sido dei- temas de proporções eram o que po- receptividade ele encontrou também
xadas de lado, como pouco acerta- deríamos chamar de sistemas de entre numerosos matemáticos, enge-
das, substituídas por normatizado- mão única, por constituírem desen- nheiros e arquitetos. O modulor re-
res mecânicos e exclusivistas. volvimentos coerentes de conceitos almente despertou, na época, um
básicos, geométricos ou numéricos significativo interesse no ambiente
Não menos importante é o fato (mais aritméticos). Outro tanto profissional e acadêmico.
de que para desenvolver as constru- ocorre com o modulor de Le
ções se possa jogar com proporções Corbusier. Seus elementos são ex- Com o passar dos anos o inte-
baseadas na secção áurea.13 ” tremamente simples: quadrado, du- resse se esmaeceu e o próprio Le
plo quadrado e as secções áureas. Corbusier acabou pondo de lado sua
E Wittkower comenta em So- Estes elementos se fundem num sis- obsessão inicial e o uso persistente
bre a arquitetura na idade do tema de razões geométricas e numé- e sistemático do sistema. E, desafor-
humanismo, em tom um tanto exa- ricas: o princípio básico da simetria tunadamente, também deixou de ser
gerado e claramente apologético: se combina com as duas séries di- estudado com a profundidade que
vergentes de números irracionais merece o que representou esse im-
“[...] Todos sabemos que quan- derivados da secção áurea. portante processo surgido dentro da
do a geometria não-euclidiana pas- obra de um dos mais representativos
sou a ser a base da visão moderna A despeito do que esta opinião arquitetos do século XX.
do universo no final do século XIX e possa suscitar, se trata, sem dúvida,
início do XX, produziu-se uma ruptu- da primeira síntese coerente desde O PRODUTO MODULOR
ra básica com o passado, mais pro- a decomposição dos velhos siste-
funda até que aquela entre o univer- mas, síntese que reflete a natureza John Summerson também afir-
so hierarquizado e escolástico da da nossa própria civilização e é, ao ma: “Le Corbusier defendeu inten-
Idade Média e o matemático e mesmo tempo, um testemunho de samente o Modulor como um siste-
euclidiano de Leonardo, Copérnico e nossa tradição cultural. E, igual- ma que, se amplamente adotado,
Newton. Que repercussões teve e terá mente como as proporções da geo- poderia solucionar muitos dos pro-
sobre a proporção nas artes e a subs- metria plana utilizadas na Idade blemas de padronização na indús-
tituição das medidas absolutas do Média e as proporções musicais e tria e, ainda, dar harmonia ao con-
espaço e do tempo por uma nova re- aritméticas do Renascimento, o sis- junto do meio físico. Talvez isso pu-
lação dinâmica espaço-tempo? tema dual de magnitudes irracio- desse ter acontecido. Porém desde

13 N EUFERT, Ernst. in Industrializacion de las construciones, p. 35. (Trad. nossa.)


14 WITTKOWER, Rudolf. in Architectural principles in the age of humanism, p. 537-538. (Trad. nossa.)
15 L E CORBUSIER, in Modulor1, p. 55. (Trad. nossa.)

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a sua publicação, em 1950, o inte- lação, que estão contidos no seu tra- CRÍTICAS UNILATERAIS
resse por esse sistema vem diminu- balho, é que podem ser de imenso
indo. Estou inclinado a pensar que, valor. Recentemente, Frings, num ar-
como em outras situações seme- tigo sobre a ocorrência e o papel
lhantes, a importância real do Ou seja, se o Modulor não que a proporção áurea desempenhou
Modulor está em que ele é parte da pôde servir como produto final, na teoria da Arquitetura, escreve
aparelhagem mental de seu autor e pronto e acabado para ser usado duras e unilaterais críticas ao traba-
lhe permite realizar projetos tão por outros é, no mínimo, um imen- lho de Le Corbusier, embora, em
originais como a capela de so manancial de pesquisa para uma exame de detalhes, também possam
Ronchamp — um edifício de forma profunda imersão no significado ser justificadas em parte. E como
tão livre que chega a ser quase uma real e mais profícuo do que pode a contraponto ao que já foi exposto
escultura abstrata —, seguro de seu Geometria, quando bem compreen- até agora, cabe aqui também a sua
completo domínio dos procedimen- dida, significar para o trabalho do apresentação:
tos racionais.”16 arquiteto. Mas mesmo arquitetos e
teorizadores que tiveram o velho “O Modulor, na proposta de Le
Summerson parece ter alguma mestre como a grande figura Corbusier, combina quadrado e
razão quando afirma que a raciona- inspiradora de uma arquitetura ra- secção áurea, mas como resultado
lidade conquistada por Le Corbu- cional, liberta das formas do pas- não oferece nada além de um siste-
sier, ao aprofundar-se na pesquisa sado, criativa e inovadora, parecem ma modular. Da série azul de núme-
da proporção áurea e sua expressão ter deixado de lado esse aspecto de ros (secção áurea da altura total) e
sistematizada, que é o Modulor, tem sua obra. da série vermelha (altura do umbi-
um valor relativo, isto é, vale como go) resulta uma seqüência de medi-
ferramental de projeto de seu autor, Mas a carência dos tempos das de 27 a 226 cm (e mais além)
porém não pode como tal servir a sempre acaba por despertar em degraus de 27 e 16 cm. Na fun-
mais ninguém. potencialidades latentes. Klaus- ção desempenhada pelo umbigo
Peter Gast, por exemplo, é uma como origem da série vermelha, Le
Mas também essa afirmação bem-vinda alteração dessa situação Corbusier alude à tradição do
tem valor relativo. Pois ao esforço com seu livro Le Corbusier. Paris- homo vitruvianus e às especulações
de Le Corbusier para chegar até este Chandigarh, recentemente publica- relacionadas com as harmonias
pretendido produto final, o Modu- do (2000). num cosmos antropocêntrico, bem
lor, subjaz todo um processo de mostrados numa figura emblemá-
pensamento organizacional de Poderíamos discutir a estética tica no livro Modulor 2.”
projeto que tem a proporção áurea de suas obras, questionar até que
como célula-mãe e se desdobra em ponto Le Corbusier conseguiu, por O Modulor tem, entretanto, al-
harmonias derivadas dela. E o que esse seu geometrizar, resultados sig- gumas deficiências. Primeiro, em-
tem valor maior, finalmente, é a nificativos e expressivos. Mas, inde- bora Le Corbusier pretenda que
compreensão que hoje temos desses pendente disso, sua atuação como seja usado para todas as dimensões,
desdobramentos que ele pôde exe- arquiteto-geômetra, que é inegável, verticais e horizontais, ele prioriza
cutar, operando com este paradig- está longe de ser entendida e a dimensão vertical. Além disso, é
ma, e não aquilo que ele bem- divulgada tanto quanto o são tantos baseado em aproximações aos nú-
intencionadamente, mas talvez equi- outros aspectos exemplares e conhe- meros da série Fibonacci. E desde
vocadamente, tenha sonhado em cidos de sua obra. E dentro do âm- que as séries azul e vermelha podem
oferecer à cultura do século XX bito desta pesquisa, nossa ênfase é ser combinadas ao sistema, ele se
como produto. O resgate e o justamente no processo geometri- torna tão elástico que a secção áu-
aprofundamento no estudo desse zador por meio do qual eram gera- rea acaba sendo difícil de detectar.
processo de busca de uma comodu- dos seus projetos. Neufert critica, numa edição mais

16 SUMMERSON, John.in A linguagem clássica da Arquitetura, p.117.

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O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon

recente do ‘Bauordnungslehre’, primeiros experimentos onde Le O LEGADO DE LE CORBUSIER


ambas as indefinidas práticas: de ar- Corbusier usa a secção áurea para
redondar números, de tal modo que desenvolver seu catálogo de medi- O modulor parece representar
as adições passam a ser incorretas das, o qual não tinha — devido aos um curioso ponto de virada na His-
e mais ainda nas imprecisões ao arredondamentos e combinações — tória da Arquitetura. Num sentido,
transcrever medidas mé- foi um corajoso, persisten-
tricas para o sistema britâ-
nico das polegadas. E fi-
nalmente, o Modulor não
“Mas isso não invalida te e pretensioso esforço
para criar uma regra
unificadora para toda a Ar-
está de fato longe do pró-
nem desqualifica o quitetura; e noutro, mos-
prio sistema de Neufert, o processo geometrizador trou a falência e as limita-
‘Sistema Octamétrico’ ções de tal tentativa. Mas
(Neufert, 1941). Por esta de seu criador, nem a isso não invalida nem
razão o Modulor não deve desqualifica o processo
ser considerado um siste- riqueza formal e geometrizador do seu cri-
ma de proporções, mas ador, nem a riqueza formal
sim um catálogo de medi- funcional de sua e funcional de sua arquite-

arquitetura.”
das irregulares [...] tura; ao contrário, confere
“Durante um longo a esse legado de «Corbu»
período a secção áurea um imenso valor. O esfor-
não foi mencionada na teoria da muito mais em comum com a ço despendido por Le Corbusier, até
arquitetura. Ela primeiramente secção áurea ou a série Fibonacci. onde ele pode ser compreendido
aparece no século XIX, através de De fato, Neufert e Le Corbusier pa- como intenção consciente, eviden-
Zeising e Fechner, e então surge recem utilizar a secção áurea de ciou uma busca intensa por
novamente com um certo fascínio modo a glamourizar sua própria determinantes e alvos que foram
na terceira e quarta décadas do sé- criação artística subjetiva com te- também aqueles mesmos anterior-
culo XX, quando Neufert e Le oria e razão. Em todo caso, a mente pertencentes à Arquitetura
Corbusier vêm a conhecê-la. secção áurea certamente desempe- clássica, conforme descritos por
Neufert alimenta grandes esperan- nha um papel nos escritos destes Vitrúvio e expressos na Renascença
ças para uma renovação da arqui- teoristas da Arquitetura. Antes do por seus arquitetos e teóricos. Ou
tetura através da secção áurea, mas século XIX, todavia, a secção áurea seja, a proporção, a simetria ou co-
logo cai em si. Não obstante ele a está simplesmente ausente da teoria modulação, a harmonia e a euritmia
apresenta in extenso. Depois dos da arquitetura escrita até então”.17 do edifício. A beleza, enfim.

17 FRINGS. Marcus, in “The Golden Section in Architectural Theory”, Nexus Network Journal, vol. 4, no 1, 2002,
http://www.nexusjournal.com/Frings.html

Referências bibliográficas:
GAST, Klaus-Peter. Le Corbusier: Paris – Chandigarh. Basel: Birkhauser, 2000.
LE CORBUSIER. El Modulor. Buenos Ayres: Poseidon, l953.
LE CORBUSIER. El Modulor 2. Buenos Ayres: Poseidon, 1962.
LE CORBUSIER. The Marseille´s block. London: The Harvill Press, 1953.
LE CORBUSIER. “L´Architecture et l´esprit mathématique”, in Les grand courants de la pensée mathématique, presentée par F. de
Lionnais. S. l.: Cahiers du Sud, 1958.
LE CORBUSIER. “L´ Unité d´ habitation de Marseille”. Le Point, nº 38. S.l.: Souillac (Lot) Mulhouse, nov. 1950.
N EUFERT, Ernst. Industrializacion de las construciones. Barcelon: Gustavo Gili, 1969.
SUMMERSON, John. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ZEISING, Adolf. Neue Lehre von den Proportionen de menschlichen Korpers, aus einem bisher unerkannt gebliebenen, die ganze
Natur und Kunst durchdringenden morphologischen Grundgesetz entwicklt. Leipzig: s.e., 1854.
W ITTKOWER, Rudolf. Architectural principles in the age of humanism. London: Tiranti, 1952.

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