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Masculinidade e violência no Brasil:

ARTIGO ARTICLE
contribuições para a reflexão no campo da saúde

Masculinity and violence in Brazil:


contributes to reflection in health field

Edinilsa Ramos de Souza 1

Abstract This article reflects about the mascu- Resumo Efetua-se uma reflexão sobre a condi-
line condition in relation to violence. It focalizes ção masculina diante da violência, situando o te-
this theme in interdisciplinary Public Health ma no campo interdisciplinar da Saúde Pública.
field. The period of 1991 to 2000 was considered. Usam-se dados do Sistema de Informação sobre
The sources of mortality and morbidity data used Mortalidade e do Sistema de Autorização para
were Mortality Information System and Morbid- Internação Hospitalar referentes às causas exter-
ity Information System, respectively. The source nas para o Brasil e suas capitais, de 1991 a 2000.
of population was estimated by IBGE and it is As populações usadas nas taxas foram estimadas
disposed in home page of DATASUS/MS. The re- pelo IBGE e disponibilizadas na home page do
sults detached major victimization among men to Datasus/MS. Destaca-se que os homens são as
violence fatal and non-fatal. The average risk of maiores vítimas da violência. A taxa média de
masculine mortality by external causes was mortalidade masculina por essas causas na déca-
119,6/100.000 inhabitants in the decade. It was 5 da foi de 119,6/100.000 habitantes, sendo 5 vezes
times bigger than the average risk observed to maior que a taxa média observada para as mu-
women (24/100.000 inhabitants). Between 15 lheres (24/100.000 habitantes). Dos 15 aos 19
and 19 years they died 6.3 more times than anos, os homens morrem 6.3 vezes mais que as
women; between 20 and 24 years the men’s risk is mulheres; dos 20 aos 24 anos suas taxas são 10.1
10.1 times major than the women’s risk. In rela- vezes maior que a das mulheres. Nos homicídios
tion to homicide, this risk is intensified: it is al- esse risco é de quase 12 óbitos masculinos em re-
most 12 masculine deaths by homicide in relation lação a cada morte feminina. Macapá é a capital
to each female death. Macapá was the city that com maior sobremortalidade masculina: 10,3
had presented the major masculine super mortal- mortes masculinas para cada óbito feminino. En-
1 Departamento de
ity by external causes: 10,3 masculine deaths to fatiza-se que o gênero masculino ainda é forte-
Epidemiologia e Métodos
Quantitativos em Saúde, each female death. It finalizes affirming that mente configurado por práticas machistas e de
Centro Latino Americano masculine gender is more vulnerable at violence risco e que essas práticas são as mesmas que cons-
de Estudos de Violência e due their subjectivities are until strongly struc- tituem os homens como maiores vítimas da vio-
Saúde Jorge Careli, CLAVES,
Escola Nacional de Saúde tured in sexist and risk´s practices. These ques- lência. No Brasil, essas questões são potencializa-
Pública, Fiocruz. tions are potencialized to intense inequalities and das pelas intensas desigualdades e outras condi-
Av. Brasil 4036, sala 700, other adverse conditions at citizenship in Brazil. ções adversas à cidadania.
Manguinhos, 21040-361,
Rio de Janeiro RJ. Key words Violence, Mortality, Morbidity, Mas- Palavras-chave Violência, Morbi-mortalidade,
edinilsa@claves.fiocruz.br culine identity Identidade masculina
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Souza, E. R.

Introdução preender a masculinidade a partir de experiên-


cias e práticas concretas dos homens e da dinâ-
O lugar e a condição dos homens e das mulhe- mica das inter-relações.
res no mundo ocidental contemporâneo vêm De acordo com Cecchetto (2004) inexistiam
sendo muito discutidos. Tradicionalmente a análises que enfocassem as relações de poder e
construção do que é ser homem, contraposta ao isso legitimou discursos sobre a “crise da mas-
que é ser mulher, tem sido hegemonicamente culinidade” que é traduzida no desconforto de
associada a um conjunto de idéias e práticas alguns homens diante de valores culturais mar-
que identificam essa identidade à virilidade, à cados por esquemas rígidos e uma imagem
força e ao poder advindos da própria constitui- masculina unívoca, associada a posições de po-
ção biológica sexual. Mais recentemente, essa der. Ser homem era sinônimo, sobretudo, de
visão, já bastante criticada, está sendo contra- não ter medo, não chorar, não demonstrar sen-
argumentada por aqueles que defendem uma timentos, arriscar-se diante do perigo, demons-
maior fragilidade biológica dos homens quan- trar coragem, ser ativo. Determinados símbolos
do comparados às mulheres. Essa concepção como armas, carros, esportes radicais, o espaço
fundamenta-se no fato de que, historicamente, público, dentre outros, fazem parte desse uni-
nascem mais bebês do sexo masculino, mas eles verso masculino. Já o novo homem é o oposto
morrem mais que os do sexo feminino antes de do macho man, pois expressa suas emoções e es-
completarem o primeiro ano. No outro extre- tá mais próximo à mulher e às crianças. A mas-
mo da vida também se percebe que os homens culinidade hegemônica seria um modelo cen-
morrem mais cedo que as mulheres e, por isso, tral, enquanto outros modelos são vistos como
têm uma expectativa de vida menor. Tais dis- inadequados, inferiores ou subordinados.
cussões se fazem acompanhar do debate mais Para Connell apud Cecchetto (2004) mas-
amplo a respeito da crise de identidade mascu- culinidades são “configurações de práticas”,
lina, datada do final do século 20, que estaria projetos de gênero que, por sua vez, são formas
transformando as formas dos homens se situa- de estruturação das práticas. À medida que a vi-
rem e se comportarem no mundo. Autores co- da pessoal e a estrutura social estão entrelaça-
mo Pereira (1995), Sloan & Jirón (2004) e Ce- das e a vida cotidiana é uma arena onde se tra-
carelli (1998) analisam a construção social do vam disputas de gênero, masculinidades são
gênero masculino a partir das características configurações específicas constituídas em situa-
psíquicas, sócio-históricas e políticas que o ções particulares e mutáveis.
constituem. Todos são unânimes em afirmar Embora esse modelo hegemônico de mas-
que a identidade masculina está em crise. Em culinidade construído a partir de valores pa-
outras palavras, falam da existência de uma con- triarcais e machistas já tenha sido tão ampla-
tradição entre o poder do macho e a vivência de mente criticado e mesmo que em época recente
novos modelos de masculinidade. ele conviva com outros modelos, ainda prepon-
Cecarelli (2001) destaca que as transforma- dera a noção de que existe associação entre essa
ções socioculturais, os movimentos feministas masculinidade viril, competição e violência.
pós-I Guerra Mundial, a revolução sexual dos Morelba (2000) tentando construir um per-
anos 60 e a crise da masculinidade, são alguns fil do gênero masculino na América Latina a
dos fatores que contribuíram para uma reorga- partir de estudos realizados no Peru, no Chile e
nização de valores e costumes. Ao mesmo tem- na Venezuela, encontrou que a masculinidade
po, segundo o autor, as referências simbólicas nessas sociedades privilegia uma estrutura de
do masculino e do feminino têm sido retraba- relação entre três variáveis: a sexualidade, a re-
lhadas produzindo conseqüências nos modelos produção e o poder, que admite variações de
identificatórios e na construção da identidade classe e particularidades históricas e étnicas. A
sexuada. autora destaca que trabalho, sexo-genitalidade,
Os autores que defendem essa idéia de crise reprodução, perpetuação e paternidade são ele-
contrapõem o modelo de masculinidade viril, mentos centrais da constituição do gênero mas-
constituída a partir de significados que asso- culino na América Latina.
ciam o masculino ao poder, à virilidade e à Cecchetto (2004) chamando a atenção para
agressividade, a novas formas de vivenciar a se- a relação entre masculinidade e competição afir-
xualidade e a experiência do que é ser homem ma que vários estudos etnográficos em diversas
no mundo, como o sexo virtual e o transexua- sociedades são recorrentes quanto a uma espé-
lismo. Essas novas abordagens buscam com- cie de característica intrínseca da identidade
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masculina: algo a ser conquistado por meio de por meio de comportamentos reafirmadores,
competições ou provas. Para ela, o incentivo aos viris e agressivos, tornando-os agentes de vio-
meninos para afirmarem a sua virilidade por lência e por outro, a exposição a agressões e ou-
meio de provas dramáticas, em quase todas as tras formas de violência que estes comporta-
sociedades humanas, torna a aquisição da mas- mentos propiciam transformam-nos em alvo
culinidade um processo violento. da violência. Não é à toa que é a partir da ado-
A autora aborda a diversidade dos estilos de lescência e durante a idade adulta jovem que se
masculinidade e as suas variadas associações tem observado o crescimento dos índices de
com a violência a partir de estudo com jovens violência entre jovens de todos os estratos so-
do Rio de Janeiro envolvidos com galeras funk, ciais, nos quais tomam parte sobretudo como
lutadores de jiu-jitsu e freqüentadores de baile vítimas, mas também como infratores.
charme, concluindo que não é possível genera- Nos indicadores do País, com extensão para
lizar, com base no sexo, na idade e na classe so- os dados em nível mundial, observa-se o cres-
cial, a respeito da presença ou não do etos guer- cente envolvimento de rapazes, cada vez mais
reiro, bem como da adesão aos valores e, princi- jovens, em situações de violência (OMS, 2002;
palmente, às práticas da violência. Ela rejeita, Barros et al., 2001). O presente artigo tem, por-
portanto, qualquer afirmação universal sobre o tanto, como primeiro pressuposto, que a identi-
que é ser homem como uma espontânea e instin- dade masculina viril com as características que
tiva inclinação a praticar atos de violência física. até então lhe são inerentes tem contribuído pa-
Por outro lado, esse modelo hegemônico de ra o aumento da criminalidade e da vitimização
constituição do masculino tem trazido conse- envolvendo a população masculina jovem do
qüências para a saúde e a vida dos homens. Uma Brasil e do mundo.
delas é a dificuldade diante de medidas preven- Aliado a isso, autores como Cecarelli (2001)
tivas de saúde como o exame contra o câncer de e Cecchetto (2004) destacam o papel funda-
próstata que desperta angústia e medo da ho- mental dos aspectos sociais. Para o primeiro au-
mossexualidade e da impotência (Gomes, 2003); tor, quando o social apresenta-se de forma per-
outra são os riscos à saúde reprodutiva pela fal- versa (negando as satisfações substitutivas das
ta de proteção contra as doenças sexualmente pulsões recalcadas), todo o universo psíquico
transmissíveis e/ou por não aceitarem ter pro- do sujeito corre o risco de se romper, pois não
blemas de infertilidade, tornando difícil o diag- há porque manter a renúncia pulsional quando
nóstico e o tratamento, tendo em vista que a não se tem nada em troca. O resultado é uma
fertilidade é um componente importante da vi- ruptura profunda, e até definitiva com o social.
rilidade (Hardy & Jiménez, 2000). Outra conse- Dessa forma esse autor explica a delinqüência,
qüência é aquela que expõe os homens a agra- ou seja, ela é uma resposta a um social patoló-
vos acidentais e intencionais fatais e não-fatais, gico, perverso. Para a segunda autora a violên-
destacados no presente trabalho, em que o cor- cia não está referida somente ao gênero mascu-
po masculino aparece como aquele que busca lino. É mais um sintoma de um problema geral
ou se expõe a riscos e pelo qual se desenvolve a das sociedades, mas é preciso também proble-
violência e o enfrentamento como forma de ob- matizar sua vinculação mecânica com a pobre-
ter respeito. Por conseguinte, morrem primeiro za, aprofundar a correlação entre pobreza, mas-
que a mulher e as causas de suas mortes refle- culinidade e violência.
tem uma exposição deliberada de enfrentar ris- Greig (2001) ressalta que precisam ser feitas
cos e perigos. conexões entre homens, gênero e violência, a
Nas sociedades ocidentais contemporâneas fim de articular mais claramente o papel e a res-
é na fase da adolescência que voltam a aflorar ponsabilidade dos homens no fim da violência
os conflitos e angústias do processo de consti- baseada no gênero. Para ele é necessário enten-
tuição da subjetividade e da identidade vividos der o comportamento dos homens no contexto
na infância (Cecarelli, 1998). Entretanto, é nes- de suas vidas, focalizar o processo de socializa-
ta fase também que os jovens se abrem para o ção que produz conexões entre masculinidade e
mundo e por isso se tornam mais expostos e violência. Isto destaca o papel da família e da
vulneráveis aos riscos de serem vítimas de even- cultura na produção de homens violentos e in-
tos violentos. Nessa faca de dois gumes os jo- clui questões sobre a violência estrutural de gê-
vens vivenciam, por um lado, as tensões e ansie- nero, como uma construção social que determi-
dades geradas por uma identidade constante- na uma relação desigual e opressiva entre as
mente ameaçada e que necessita ser reforçada pessoas. Inclui ainda questões sobre conexões
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Souza, E. R.

entre gênero e outras formas de violência estru- vários autores que utilizam as ciências sociais
tural, em torno da sexualidade, da raça e da para explicar as intrincadas relações entre mas-
classe social e diferencia o papel e a responsabi- culinidade e violência.
lidade dos homens em relação a essa violência.
Significa explorar as conexões entre gênero e
violência em um contexto de estruturas de de- Impacto da violência no gênero masculino:
sigualdade e opressão. panorama epidemiológico brasileiro
No caso brasileiro essas questões se expres-
sam de forma intensa, tendo em vista as imensas No Brasil, de 1991 a 2000, ocorreram 1.118.651
desigualdades socioeconômicas, estruturais da mortes por causas externas, das quais 926.616
sociedade e estruturantes das identidades de gê- ou 82,8% eram homens. Nesse período, a taxa
nero, aliadas a uma cultura latina historicamen- média de mortalidade masculina por essas cau-
te machista. Desse modo, enuncia-se o segundo sas na década foi de 119,6/100.000 habitantes,
pressuposto do artigo, o qual considera que tais sendo cinco vezes maior do que a taxa média
características constituem o pano de fundo que observada para as mulheres (24/100.000 habi-
serve de cenário para a maior vulnerabilidade tantes). O gráfico 1 dá uma idéia das diferenças
do gênero masculino vir a se envolver com a que há entre os sexos quando se analisa a mor-
violência, ora como autor ora como vítima. talidade por acidentes e violências.
O artigo pretende efetuar uma reflexão so- No gráfico 2 percebe-se claramente que há
bre a expressão da violência no gênero masculi- uma diferenciação da mortalidade por causas
no, tomando dados epidemiológicos para fun- externas entre os sexos e que ao longo de toda a
damentar a discussão. Destacam-se a vitimiza- vida ocorre maior mortalidade masculina, mas
ção masculina, os elevados índices de mortali- essa sobremortalidade se intensifica na fase da
dade e de internações hospitalares provenientes adolescência e início da idade adulta. Dos 15
da violência que incide sobre a população mas- aos 19 anos, os homens morrem 6.3 vezes mais
culina brasileira contemporaneamente. do que as mulheres por essas causas; na faixa etá-
ria seguinte – dos 20 aos 24 anos –, a taxa dos
homens é 10.1 vezes maior que a das mulheres
Metodologia nessa mesma faixa. O gráfico mostra ainda que
a sobremortalidade masculina só recrudesce na
Trata-se de um artigo eminentemente teórico faixa dos 60 ou mais anos, mas mesmo nessa
que visa contribuir para a reflexão sobre o tema idade os homens ainda morrem 2.4 vezes mais
do gênero e suas relações com a violência no por acidentes e violências do que as mulheres.
campo da saúde. Quando se analisa a mortalidade por causas
Para embasar a discussão foram analisados externas específicas observa-se que em todas
dados de mortalidade por causas externas e de elas o risco do homem é de 2 a 4 vezes maior
morbidade por agressões no Brasil e suas capi- que o da mulher. Contudo é nos homicídios
tais, no período de 1991 a 2000. Os dados de que esse risco se intensifica, alcançando quase
mortalidade foram extraídos do Sistema de In- 12 óbitos masculinos em relação a cada morte
formações sobre Mortalidade (SIM/Data- feminina por essa causa. Esses dados podem ser
sus/MS) e os de morbidade, do Sistema de In- visualizados no gráfico 3.
formações Hospitalares (SIH/Datasus/MS). Entre as capitais do País, Macapá é a que
Utilizaram-se os códigos da Classificação Inter- apresenta a maior sobremortalidade masculina:
nacional de Doenças da CID 9a revisão (E800 a 10,3 mortes masculinas para cada óbito femini-
E999) e CID 10a revisão (V01 a Y98). A popula- no. Em seguida aparece João Pessoa com um
ção residente usada no cálculo das taxas foi es- risco masculino nove vezes maior que o femini-
timada pelo IBGE e encontra-se disponibiliza- no. Em outras capitais como Recife, Vitória, São
da na home page do Datasus/MS. As taxas de Paulo e Cuiabá observam-se também elevados
mortalidade e de morbidade foram calculadas riscos para os homens numa relação em que as
incluindo-se os óbitos e internações com infor- taxas masculinas são em torno de sete vezes
mações ignoradas sobre sexo e faixa etária. Va- maiores que as taxas femininas. Em Palmas, São
riáveis de sexo, faixa etária e causas externas es- Luís, Natal, Belo Horizonte, Curitiba e Porto
pecíficas foram analisadas. Alegre essa relação é menor, mas mesmo assim
O estudo busca uma aproximação entre in- as taxas masculinas ainda são, em média, qua-
formações epidemiológicas e o pensamento de tro vezes maiores que as femininas.
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Gráfico 1
Taxas de mortalidade por causas externas segundo sexo. Brasil, 1991 a 2000.

140,0
masculino
120,0
feminino
100,0
total
80,0

60,0

40,0

20,0

0,0
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Fonte: SIM/DATASUS

Gráfico 2
Taxas de mortalidade por causas externas segundo faixas etárias e sexo. Brasil, 2000.

250
masculino

200 feminino

total
150

100

50

0
0-09 10-14 15-19 20-24 25-29 30-39 40-49 50-59 60 e +

Fonte: SIM/DATASUS
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Souza, E. R.

Gráfico 3
Taxas de mortalidade por causas externas específicas segundo sexo e sobremortalidade masculina. Brasil, 2000.

60,00
masculino

50,00 11,6
feminino

40,00

30,00 4,3

20,00

3,5 4,6
10,00 4,2 4,1
2,4
2,0
0,00
ac. transp. queda queimadura subm./sufoc. outros ac. suicídio homicídio lesões ig.

Fonte: SIM/DATASUS

Ao analisar a violência não-letal, a vulnera- agressão foi de 5,7 entre os homens e de 3,8 por
bilidade e o risco dos homens continuam sendo 100 internações, na população feminina.
maiores, quando comparados às mulheres, con- As três principais formas de agressão que le-
forme se depreende dos dados das internações varam à internação foram o uso de arma de fo-
hospitalares por causa externas. go, com a proporção de 33,2% de todas as in-
Considerando a rede própria e conveniada ternações por agressão; o uso de objeto cortan-
do Sistema Único de Saúde/SUS, e excluindo os te e penetrante (26,4%) e a força física (14,8%).
atendimentos nas emergências hospitalares, o A arma de fogo também apareceu como sendo
Brasil teve, no ano de 2000, 34.132 internações a causa de internação com a maior taxa de mor-
hospitalares por agressões, o que corresponde a talidade hospitalar (9,7 por 100 internações) e
5,4% de todas as hospitalizações por causas ex- o maior custo (R$ 892,38) que é 34,4% mais ele-
ternas e uma taxa de internação de 0,20 por vado que o custo de todas as agressões. Isso in-
1000 habitantes. A maioria dessas internações é dica o grande potencial de letalidade e a gravi-
de pessoas jovens (35,2% na faixa etária 15 aos dade dos danos provocados por armas de fogo.
24 anos) e de adultos jovens (37,1% na faixa Palmas e Vitória aparecem com as mais eleva-
dos 25 aos 39 anos). O sexo masculino repre- das taxas de internação hospitalar por agressão
sentou 84,5% dessas internações. Os dados de (3,81 e 1,53 por 1000 habitantes, respectivamen-
internação por agressão refletem o mesmo pa- te). São Luís (0,00), Recife (0,01), Boa Vista (0,02)
drão da violência por homicídio, ou seja, são os e Belém (0,07) apresentaram as menores taxas.
homens adolescentes e adultos jovens os que Como se percebe, a violência interpessoal
sofrem mais lesões e traumas, sejam elas fatais impacta dramaticamente a população masculi-
ou não. na e sobrecarrega o setor saúde com uma cres-
Ao avaliar a intensidade da agressão a partir cente demanda por atendimento.
de alguns indicadores como o tempo médio de
internação e a taxa de mortalidade hospitalar,
percebe-se que as agressões são mais graves nos Contexto explicativo da relação
homens. Em 2000, eles permaneceram em mé- masculinidade e violência sob a ótica
dia 6,1 dias hospitalizados por agressão, en- de diferentes disciplinas
quanto às mulheres correspondeu um tempo
médio de 5,6 dias internadas por essa mesma As explicações para a ocorrência de incidência e
causa. A taxa de mortalidade hospitalar por prevalência de morbi-mortalidade por violên-
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cia tão altas no gênero masculino podem ser tro locais públicos – que se perpetram os homi-
buscadas em várias áreas do conhecimento co- cídios masculinos e é no espaço privado do lar
mo a epidemiologia, a sociologia, a antropolo- que ocorre a maioria dos homicídios femini-
gia e a psicologia, dentre outras. Cada uma de- nos. Além disso, os homicídios masculinos são
las, isoladamente, por meio de suas teorias e em grande parte perpetrados por homens des-
métodos específicos, lançam luzes sobre esse fe- conhecidos, enquanto os agressores das mulhe-
nômeno. Contudo, um olhar interdisciplinar res são seus conhecidos, companheiros e ex-
para a abordagem da questão da masculinidade companheiros. Segundo o Movimento Nacio-
e suas relações com a violência parece ser mais nal dos Direitos Humanos no Brasil, compa-
profícuo porque é capaz de focalizá-la sob os nheiros e ex-companheiros foram responsáveis
diferentes ângulos que a complexidade desse por 72,3% dos assassinatos de mulheres no
objeto requer. Neste item destacam-se algumas País, em 1996 (CFEMEA, 1999).
contribuições que vêm sendo dadas, sobretudo Os dados do Brasil aqui apresentados apon-
pela epidemiologia e pelas ciências sociais. tam para um fenômeno que é global, mas que
Do ponto de vista epidemiológico, estudos possui em sua dinâmica fatores que atuam re-
de tendência e ecológicos e técnicas de análise gional e localmente como lembra Michel Wie-
estatística espacial têm buscado explicar os di- viorka (1997): a grande vitimização de jovens
ferenciais observados na distribuição da morbi- pelo narcotráfico. Como ficou demonstrado, a
mortalidade de grupos e áreas específicas, a partir de dados do setor saúde, é na adolescên-
partir de características das áreas (Szwarcwald cia e na faixa etária jovem que incide a violên-
& Castilho, 1998). A partir desses estudos, al- cia letal e não-letal no sexo masculino.
guns fatores associados às áreas têm sido desta- No pensamento de Wieviorka o narcotráfi-
cados como responsáveis pela distribuição desi- co constitui uma atividade ilegal e criminosa
gual da mortalidade em geral, dos óbitos ocor- global, mas que possui particularidades no seu
ridos na população menor de um ano e pela processo de produção, distribuição e comercia-
mortalidade por causas externas. lização inter e intrapaíses. Nos países em desen-
Neste artigo a análise epidemiológica trouxe volvimento como o Brasil, o narcotráfico tem
à luz alguns pontos fundamentais que merecem assumido a característica particular de utilizar
ser ressaltados porque parecem estar carregados pessoas jovens para o desempenho de suas ati-
de significados. O primeiro deles é o fato das vidades. De acordo com Szwarcwald & Castilho
duas principais causas externas de mortalidade (1998) a facilidade de captação de menores pa-
masculina serem o homicídio e o acidente de ra o tráfico de drogas pode ser uma decorrência
transporte. O segundo ponto a destacar é que a das crescentes desigualdades sociais do País. O
maior parte dos homicídios que ocorrem no perfil brasileiro de concentração de renda se re-
Brasil é perpetrada com armas de fogo, confor- flete fortemente na exclusão de oportunidades e
me salientado por Souza et al. (2004). Ora, es- na busca por atividades informais, ilícitas e cri-
sas duas causas estão diretamente ligadas aos minosas como forma de sobrevivência.
dois grandes símbolos de masculinidade no O conhecimento consolidado por estudos
mundo atual – as armas e os carros – e exercem epidemiológicos e compreensivos indica que,
uma forte atração sobre os jovens. Os carros na realidade brasileira, as principais vítimas dos
simbolizam poder de locomoção, velocidade, li- agravos violentos são os jovens mais pobres,
berdade e status social, que são signos de suces- com baixa ou nenhuma escolaridade e qualifi-
so e de sedução. As armas têm o poder de sub- cação profissional, provenientes de famílias cons-
meter o outro a seus desejos e interesses, o po- tituídas por mulheres chefes de família, com
der de vida ou morte. Esses objetos são intro- baixa renda, de cor negra ou parda e residentes
duzidos desde cedo na vida do menino, na for- nas periferias das grandes áreas urbanas. Nesses
ma de brinquedos, e passam a fazer parte do mesmos espaços sociais costumam ser recruta-
universo masculino com todos os simbolismos dos para o exercício de atividades ilegais, mui-
que possuem no contexto capitalista ocidental tas vezes transformando-se em agentes de vio-
contemporâneo. lência (contra seus companheiros e parceiras) e
A terceira questão a ser assinalada e que em vítimas. Atualmente, no Brasil, grande par-
também guarda um forte componente de gêne- cela dos jovens que morrem por homicídio é as-
ro se refere ao que a literatura tem demonstra- sassinada por outros jovens que possuem perfil
do acerca do local de ocorrência desses homicí- socioeconômico e cultural semelhante ao de
dios. É nos espaços públicos – ruas, bares e ou- suas vítimas. Segundo Minayo & Souza (1993)
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Souza, E. R.

a morte desses jovens realiza a segunda seleção sentimentos de marginalização e diminuição da


social, tendo em vista que são os sobreviventes auto-estima provocando crises de identidade, e
da primeira seleção social que se processa na isso mostra como são intrincadas as influências
mortalidade infantil. dos aspectos sociais no equilíbrio psíquico e
Portanto, conforme Souza (2001), consti- bem-estar, e na participação comunitária do in-
tuem um grupo que assume riscos, seja pela divíduo.
mera aventura da busca de sentido e prazer na As reflexões acima, que partem de alguns
vida, características que fazem parte de sua pontos de vista sociológicos, encontram respal-
identidade masculina, seja porque essa é a úni- do em estudos epidemiológicos que demons-
ca forma possível de sobreviver e ter algum di- traram a existência de associações entre morta-
reito ao reconhecimento e ao respeito no inte- lidade pós-neonatal e padrões geográficos de
rior de seu grupo e ao consumo, mesmo que pobreza, indicando que a prevenção da morta-
conseguido de modo ilegal e violento, porque lidade infantil deve focalizar características físi-
as condições adversas do meio em que vivem cas, culturais e psicossociais das comunidades e
não lhes garante tais direitos. Por outro lado, que é extremamente necessário atuar em áreas
nessas comunidades carentes nas quais costu- segregadas pela ampla e extrema condição de
mam ocorrer tais mortes, existem fatores que pobreza (Szwarcwald et al., 2002).
transcendem os comportamentos e desejos in- Costa et al. (2003), em análise de série tem-
dividuais de exposição ao risco e geram uma poral sobre a tendência decrescente da mortali-
vulnerabilidade para certos grupos ou espaços dade infantil no Brasil em um período de crise
sociais específicos. Tratam-se de situações em econômica, observaram fortes correlações da
que os jovens se encontram sob risco pelo fato mortalidade infantil com indicadores demográ-
de pertencerem a determinado grupo social (ser ficos, socioeconômicos e de atenção à saúde.
pobre, negro, desempregado) ou residirem em Consideraram provável que as flutuações apre-
determinada comunidade (favelas, periferias e sentadas na curva sejam resultantes do impacto
demais áreas pobres das grandes cidades). da agudização das crises econômicas ocorridas
Vethencourt (1990) afirma que muitos des- no período em estudo, embora tal impacto seja
ses jovens jamais se arriscariam em situações atenuado pela adoção de políticas públicas com-
violentas se tivessem outras possibilidades e pensatórias. Entretanto, questionam se tais po-
condições de vida. Cabe aqui também resgatar líticas serão capazes de garantir esse ritmo de
o pensamento de Cecarelli (2001) que vê a de- redução caso persistam as crises econômicas e o
linqüência como uma resposta a um social per- aumento da exclusão social com aprofunda-
verso. Portanto, é certo que muitos desses jo- mento das desigualdades no acesso aos serviços
vens jamais morreriam se vivessem em um am- de saúde e aos bens de consumo coletivo.
biente social que não os expusesse tanto à vio- No caso específico da mortalidade por vio-
lência. lência, Szwarcwald & Castilho (1998) realiza-
As influências das desigualdades sociais nas ram uma análise espacial da mortalidade por
mortes violentas e alguns agravos à saúde tam- armas de fogo no Estado do Rio de Janeiro, no
bém foram apontadas nos estudos de Kaplan et período de 1979 a 1992, conforme sexo, idade e
al. (1996) e Wallace (1990), mostrando que so- região de residência (capital, cinturão metropo-
ciedades com grande concentração de renda litano e interior do Estado). O estudo constata
parecem também não investir em políticas pú- o maior crescimento das mortes por armas de
blicas sociais. Estudos realizados nos Estados fogo entre adolescentes de 15 aos 19 anos e
Unidos com jovens de comunidades carentes adultos jovens de 20 aos 24 anos, do sexo mas-
identificaram como fatores associados à predis- culino e uma nítida interiorização dessas mor-
posição do jovem para a criminalidade a pobre- tes. No início do período observou-se uma dis-
za, a falta de um lar e de integração entre os pa- seminação em direção aos municípios situados
res, a precária capacitação profissional dos pais na costa leste do Estado, seguindo o trajeto da
e o abuso de drogas (Friday, 1995). BR-101, uma rodovia federal que liga o Rio de
Os achados de Padilla (2003) sobre os efei- Janeiro ao Estado do Espírito Santo. Já no pe-
tos da violência estrutural na saúde mental de ríodo entre 1990 e 1992, a difusão ocorreu em
rapazes dos setores urbanos pobres do Peru po- todas as direções, mostrando que o fenômeno
deriam ser tomados para se pensar a realidade não se concentra mais nos bolsões de pobreza
brasileira. De acordo com esse autor o desem- das metrópoles. No caso do Rio de Janeiro des-
prego crônico e a falta de participação geram tacam dois aspectos: 1) o crime organizado in-
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tensificado nos anos 80 em torno do tráfico de de esportes radicais e arriscados por essa cama-
drogas e do contrabando de armas para o con- da jovem da população.
trole dos pontos de venda; e 2) o crescente por- O que se pretende ressaltar na reflexão aqui
te de armas por parte da população civil como realizada é que parece existir uma relação entre
forma de se garantir contra o sentimento de in- masculinidade e violência no Brasil, embora es-
segurança diante dos crescentes índices de cri- se não seja um fenômeno restrito às nossas
minalidade. Estudos de Cruz (1996), Najar fronteiras. Também é preciso ressaltar que essa
(1997) e Lima (2003) também evidenciaram a relação entre masculinidade e violência, que
forte influência das características das áreas nos aqui se expressa nos dados de morbi-mortali-
diferenciais de mortalidade por violência nas dade sobretudo de jovens, ultrapassa as frontei-
realidades do Rio de Janeiro e de Pernambuco. ras do subjetivismo, como constituição de iden-
Szwarcwald & Castilho (1998) ressaltam a tidades individuais ainda hegemonicamente
necessidade de compreender por que certos seg- calcadas na força, na competição, no machismo
mentos populacionais são tão vulneráveis, acar- e, por que não dizer, na própria violência, e é
retando uma propagação tão rápida das mortes fortemente influenciada por determinantes so-
por armas de fogo, e lembram que pesquisas cioeconômicos e culturais que de alguma forma
com grupos sociais específicos sugerem relação potencializam a associação entre o ser masculi-
entre homicídios e consumo de drogas. Contu- no e a violência.
do, resultados mais conclusivos associam homi-
cídios com o tráfico de drogas (Suarez Toriello,
1989). Expectativas de mudanças
Por outro lado, as conexões entre violência e necessidade de aprofundamentos
e uso de drogas são debatidas por Minayo &
Deslandes (1998) que apontam as dificuldades Pensar em como efetuar alterações nas relações
e a obscuridade no estabelecimento das relações de gênero e deste com a violência significa, co-
causais entre drogas e violência. As autoras des- mo afirma Greig (2001), mudar a forma de en-
tacam a necessidade de discernir entre o uso de focar as conexões entre masculinidade e violên-
drogas como um fator que desencadeia compor- cia. Isto é, trabalhar para que o homem entenda
tamentos violentos e esse uso como fator causa- seu papel e responsabilidade em relação à vio-
dor. Para elas a única afirmação que se pode fa- lência das relações sociais opressivas, como a es-
zer com segurança é a alta proporção de atos truturada pelo gênero e outros “sistemas de ex-
violentos quando as drogas estão presentes. ploração” baseados na classe econômica, no sta-
No caso do Brasil, segundo Szwarcwald & tus social, na sexualidade, na raça/etnia e na
Castilho (1998), a entrada de crianças e jovens idade. Significa, enfim, trazer à tona as diversas
carentes nas atividades ilegais do narcotráfico é formas de violência estrutural e as conexões en-
um processo facilitado pelas aparentes vanta- tre elas e o gênero.
gens imediatas do dinheiro fácil, a ilusão do po- Ao fazer estas conexões abrem-se novas pers-
der pelo porte de armas, a identificação com a pectivas de trabalho, tanto com vítimas como
imagem do bandido herói, a falta de outras com agentes da violência estrutural, em termos
oportunidades no mercado de trabalho e o de- de racismo, homofobia, idade, discriminação e
sejo de se expor ao perigo e à aventura, que pa- opressão baseada em classe social a que eles es-
rece estar ocorrendo entre jovens das diversas tão submetidos. Dependendo de sua relação
camadas sociais. com a estrutura social opressiva, diferentes gru-
Callaham & Rivara (1992), ao estudarem es- pos de homens têm interesse de mudar a vio-
colares dos Estados Unidos, identificaram a lência estrutural que oprime a eles e às mulhe-
existência de práticas comportamentais que au- res. A ênfase nestes aspectos políticos pode aju-
mentam o risco de os jovens morrerem por uma dar a direcionar o trabalho com homens para
causa violenta e que esse fenômeno não se res- além das questões de gênero. Deixam de enfo-
tringe a grupos de alto risco. No Brasil, parece car o que significa ser um homem-não-violen-
ser cada vez maior o envolvimento de rapazes to, para abordar questões políticas do que sig-
de classe média e alta – denominados pitboys – nifica criar um mundo mais justo e menos vio-
em eventos violentos como brigas em boites, es- lento.
pancamentos de pessoas discriminadas como Segundo Greig (2001), os programas nos
mendigos e homossexuais, ao mesmo tempo Estados Unidos estão muito dirigidos para a
em que também parece ser ascendente a prática mudança do comportamento individual e são
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Souza, E. R.

fornecedores de serviços sociais. Eles não con- quase indiferença diante da morte violenta fre-
seguiram ainda mobilizar os homens para desa- qüente de amigos e parentes.
fiarem a violência de gênero relacionada à es- E esse risco real e concreto que é constituí-
trutura de opressão e se constituírem como ca- do por fatores externos de um ambiente socio-
talisadores de mudança social. De qualquer cultural perverso é potencializado por uma so-
modo, eles começam a articular os papéis dos cialização ainda bastante tradicional que conti-
homens tanto no que se refere ao fim da violên- nua a construir subjetividades e identidades
cia de gênero em suas próprias vidas, mas tam- masculinas calcadas em símbolos e relações de
bém sobre a violência que afeta as comunidades força e de agressividade. Aqui, é importante
nas quais vivem. Alguns programas tentam fa- lembrar as idéias de Cecchetto (2004) de que
zer um trabalho integrado de intervenção e para entender a violência masculina, os senti-
promoção modificando a abordagem para um mentos de ódio e vingança compartilhados pe-
modelo de organização comunitária em que o los homens na rivalidade violenta, é preciso
foco é a comunidade e não meramente o indi- compreender as formas contemporâneas do
víduo; conectar comportamento e contexto, etos da virilidade, configurado a partir da vio-
violência interpessoal e estrutural. Desse modo, lência e do uso das armas de fogo no tráfico de
a ênfase é, simultaneamente, desafiar e dar apoio drogas e de armas.
aos homens para agirem diferentemente no A implantação de políticas alternativas, in-
mundo. tegradoras e sobretudo inclusivas, dirigidas pa-
Souza (2001), comentando trabalho de Spink ra os jovens poderia diminuir os índices de vio-
(2001), acredita que a violência que hoje viti- lência e, portanto, resolveria parcela considerá-
miza os jovens brasileiros é expressão da destra- vel do problema. Entretanto, também é neces-
dicionalização de instituições como a escola, a sário realizar uma profunda reflexão sobre os
família e a religião, o que seria um processo in- valores, as formas de socialização e a constru-
verso àquele identificado por Chesnais (1981), ção das identidades masculina e feminina nas
no qual a criação de instituições como a escola sociedades atuais. Enquanto pais derem armas
e a polícia, em determinada época histórica, ga- de brinquedo ou reais a seus filhos do sexo mas-
rantiu os direitos de cidadania e o controle da culino e incentivarem neles a competitividade e
criminalidade em países da Europa. Segundo o individualismo tão amplamente dissemina-
Souza, esse processo de destradicionalização de dos socialmente, ao invés da solidariedade; en-
certas instituições, sobretudo em sociedades ca- quanto não for permitido aos homens expres-
pitalistas tardias, como é o caso do Brasil, esta- sarem suas fragilidades, sem que isso signifique
ria se realizando sem que direitos básicos sequer a perda de sua masculinidade, estar-se-á contri-
tenham sido conquistados. buindo para a reprodução e perpetuação desse
Hoje, pensar sobre o que é ser homem nas estado de coisas e os jovens continuarão mor-
sociedades contemporâneas significa buscar rendo pelas armas e pelo trânsito. Contradito-
compreender, a partir de distintas disciplinas, riamente, esses são os mesmos meios aos quais
como atuam a epidemiologia e as ciências so- aspiram desesperadamente como forma de te-
ciais, as situações de vulnerabilidade aos riscos rem uma vida e uma identidade reconhecidas.
de vir a ser autor ou vítima de violência, sobre- Para finalizar é importante ressaltar que
tudo quando se é jovem. Implica admitir que muito ainda precisa ser investigado, tanto em
não se pode pensar a juventude em geral, e bra- termos conceituais como de fatores determi-
sileira em particular, sem que o tema da violên- nantes e de risco para a maior compreensão da
cia venha à pauta nas suas mais diversas expres- intrincada dinâmica das relações entre masculi-
sões. Requer também admitir que existe uma nidade e violência. Um dos pontos que necessi-
parcela de jovens para os quais o simples fato de ta ser aprofundado é a própria noção de risco
viver é, por si só, um grande risco e que há um com a qual as diferentes disciplinas trabalham.
preço a pagar pelo fato de ser jovem e homem Como bem lembram Minayo et al. (2003) o
em uma sociedade de injustas e intensas desi- conceito de risco não tem fronteiras acadêmicas
gualdades. Em meio às adversidades das condi- definidas e pode ser abordado tanto pela epide-
ções ambientais nas quais vivem, esse risco é co- miologia (sendo um de seus conceitos centrais)
tidiano e mesmo banalizado, tanto no fato de as como pela sociologia, ciências políticas, econo-
crianças brincarem com armas de fogo reais, mia e antropologia.
como nas relações interpessoais e de gênero Do ponto de vista epidemiológico, o risco,
marcadas por práticas violentas, ou ainda na hoje, tem uma conotação negativa. No entanto,
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a discussão de Deslandes et al. (2002) sobre o duo devidamente informado poderia escolher
risco em relação às doenças sexualmente trans- racionalmente, diante das muitas opções de ações,
missíveis e Aids traz uma outra conotação e po- aquela que não lhe traria danos. Contudo, au-
de muito bem ser apropriada para o tema da tores da antropologia como Connors (1992) de-
masculinidade e violência aqui abordado. Esses fendem que a vivência do risco e sua percepção
autores ressaltam que, do ponto de vista epide- são negociadas na rede de relações sociais. Os
miológico a noção de “correr risco” exclui qual- comportamentos de risco são frutos das intera-
quer reconhecimento dos benefícios (reais ou ções sociais e é neste campo que as estratégias
percebidos) pelo indivíduo, o “gosto pela aven- de prevenção deveriam atuar (Deslandes et al.,
tura”, a “prova de coragem”. Ora, isso é exata- 2002). Convém salientar que nessas negocia-
mente o que se espera sobretudo dos homens ções precisam ser incluídas as identidades e as
jovens, como forma de garantir uma identidade práticas de gênero, pois, parafraseando Morelba
masculina. Deslandes et al. (2002) lembram que (2000), a discussão sobre gênero e violência é a
nas abordagens epidemiológicas sobre compor- via para uma cultura mais igualitária.
tamentos de risco o pressuposto é que o indiví-

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