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Responsabilidade profissional médica no caso

Mariana Drumond Lopes de Freitas


bebé Rodrigo
MEDICINA LEGAL

M
MESTRADO

2020

Mariana Freitas. Responsabilidade profissional médica no caso M.ICBAS 2020

bebé Rodrigo.

Responsabilidade profissional médica no caso bebé Rodrigo

Mariana Drumond Lopes de Freitas

INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS ABEL SALAZAR


MARIANA DRUMOND LOPES DE FREITAS

RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL MÉDICA NO CASO BEBÉ


RODRIGO

Dissertação de Candidatura ao grau de Mestre em


Medicina Legal submetida ao Instituto de Ciências
Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto.

Orientador
Doutor Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo
Bandeira
Professor Convidado
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar
(ICBAS)
Universidade do Porto

Coorientador
Doutora Maria José Carneiro de Sousa Pinto da
Costa
Directora do Mestrado de Medicina Legal
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar
(ICBAS)
Universidade do Porto
RESUMO

O erro médico, atualmente denominado por responsabilidade profissional, é um


assunto ainda pouco debatido no âmbito da medicina no que diz respeito às implicações
jurídicas e até mesmo dentro do estudo das atribuições médicas.

Pode-se dizer que esse facto é devido à mentalidade construída na antiguidade.


Naquela época o médico era visto como uma divindade, dessa forma, qualquer que fosse
o resultado da sua conduta havia plena aceitação da sociedade ao interpretar o erro
como uma fatalidade. Essa realidade começou a modificar com o Código de Hammurabi,
no qual eram previstas primitivas noções de responsabilidade profissional do médico.

O acesso da população à informação juntamente com a cientificação, tecnicização e


especialização da medicina, responsável por conduzir a crescentes expectativas dos
pacientes, tendem a aumentar a demanda de responsabilidade médica em todo o mundo.
No entanto, Portugal e muitos países da Europa ainda se encontram desfasados em
matéria de legislação, doutrina e jurisprudência do Direito Médico, o que torna esse
estudo ainda mais relevante e urgente.

O presente trabalho realiza um estudo sobre o caso do Bebé Rodrigo. Nascido a 7 de


outubro de 2019 no Hospital São Bernardo em Setúbal. A condição de Rodrigo
surpreendeu os seus pais e familiares, uma vez que o mesmo apresentava malformações
gravíssimas, dentre elas ausência de olhos, nariz e parte do crânio, não detetadas no
exame de diagnóstico pré-natal.

O estudo realizado aqui tem por objectivo apurar se essa condição deveria e poderia
ter sido prevista pelo médico, além das implicações jurídicas que acarretam tal facto,
nomeadamente a possibilidade de responsabilização nos âmbitos civil, penal e
disciplinar.

Palavras-chave: nascimento indevido, vida indevida, erro médico, erro diagnóstico,


erro em obstetrícia

1
ABSTRACT

Medical error, currently called professional responsibility in medicine, is a sensitive


subject with little debate concerning legal implications or even within the medical class.

We can say that this occurs because of the mentality built in antiquity. At that time
doctors were seen as a deity, so, whatever the result of their conduct, there was a full
acceptance by society for interpreting it as a normal fatality. This reality changed with the
Hammurabi Code, in which it foresaw primitive notions of professional responsibility of the
doctor.

The population’s access to information together with the advances in science,


technicalization and specialization of medicine, responsible for leading to an increase in
patients’ expectations, also increases the demand for medical responsibility worldwide.
However, Portugal, and many other European countries, are still lagging in terms of
legislation, doctrine and jurisprudence of Medical Law, which makes this study even more
relevant and urgent.

The present work carries out a study on the case of Bebé Rodrigo. Born on October 7
of 2019, at Hospital São Bernardo in Setúbal, Rodrigo’s condition surprised his parents
and family, since he was born with very serious malformations, including the absence of
his eyes, nose and part of the skull, those malformations were not detected during the
routine prenatal diagnostic testing.

The study aims to determine whether his condition should or could have been
predicted by the doctor, besides the legal implications that entail such a fact, namely the
possibility of accountability in civil, criminal and disciplinary areas.

Keywords: wrongful birth, wrongful life, medical error, diagnostic error, obstetrics
medical error

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LISTA DE ABREVIATURAS

SNS- Serviço Nacional de Saúde1

STJ- Supremo Tribunal de Justiça (Português)

DPN- Diagnóstico pré-natal

STA- Supremo Tribunal Administrativo

DGS- Direção Geral da Saúde

NOCS- Normas de Orientação Clínica

CC- Código Civil

IVG- Interrupção Voluntária da Gravidez

CP – Código Penal

CRP – Constituição da República Portuguesa

TC – Tribunal Constitucional

INMLCF – Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses

Artigo 64 da CRP
1- Todos têm o direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.
2- O direito à protecção da saúde é realizado:
a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições
económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam,
designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática
das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva,
escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de
vida saudável.
3- Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:
a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos
cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de
saúde;
c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço
nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados
padrões de eficiência e de qualidade;
e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos,
biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência;
4- O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

3
CDOM – Código Deontológico da Ordem dos Médicos

ML – Medicina Legal

MP – Ministério Público

CDRS- Conselho Disciplinar da Região Sul

CNECV- Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida

ERS- Entidade Reguladora da Saúde

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ÍNDICE

RESUMO .......................................................................................................................... 1
ABSTRACT ...................................................................................................................... 2
LISTA DE ABREVIATURAS ............................................................................................. 3
1 INTRODUÇÃO............................................................................................................... 6
1.1 ERRO MÉDICO .......................................................................................................... 9
1.2 ERRO EM OBSTETRÍCIA .........................................................................................16
1.3 ERRO DE DIAGNÓSTICO .........................................................................................18
2. RESPONSABILIDADE CIVIL .......................................................................................19
2.1 WRONGFUL BIRTH OU NASCIMENTO INDEVIDO .................................................21
2.2 WRONGFUL LIFE OU VIDA INDEVIDA ....................................................................26
2.2.1 CASO PERRUCHE .................................................................................................27
2.2.1.1 LEI ANTI PERRUCHE .........................................................................................30
2.2.2 CASO BABY KELLY ...............................................................................................32
2.2.3 JURISPRUÊNCIA PORTUGUESA .........................................................................33
2.2.4 AS LIMITAÇÕES ÀS ACÇÕES POR VIDA INDEVIDA ...........................................39
2.3 ENQUADRAMENTO DAS ACÇÕES DE NASCIMENTO E VIDA INDEVIDOS NOS
REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL ..............................................................45
3 RESPONSABILIDADE PENAL .....................................................................................49
4 RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR...........................................................................62
5 CONCLUSÃO ...............................................................................................................71
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................76
7 SITES PESQUISADOS ................................................................................................80
8 ENTREVISTA COM A SRA. TÂNIA CONTENTE ..........................................................85
9 EXAMES ECOGRÁFICOS..........................................................................................103

ÍNDICE FIGURAS

Figura 1 – Ecográfia 1....................................................................................................103


Figura 2 – Relátorio 1 ....................................................................................................104
Figura 3 – Ecográfia 2....................................................................................................105
Figura 4 – Relátorio 2 ....................................................................................................106
Figura 5 – Ecográfia 3....................................................................................................107
Figura 6 – Relátorio 3 ....................................................................................................108

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1 INTRODUÇÃO

O trabalho realizado visa discutir o acto médico do obstetra Artur Carvalho,


responsável por realizar os exames pré-natais da Sra. Marlene, mãe do bebé Rodrigo.

Entrei em contacto com a madrinha do Rodrigo, Sra. Tânia Contente (descoberta por
meio das inúmeras entrevistas e reportagens televisivas em que figurava como a porta-
voz da família), informei-a do presente estudo e questionei-a sobre a possibilidade de
conceder-me uma entrevista com finalidade de narrar, em minúcia a história da mãe do
Rodrigo desde o início da gravidez até à situação atual.

A Sra. Tânia prontamente aceitou o convite e assim procedemos à entrevista no dia


18/08/2020 em Lisboa. A partir daí tivemos conhecimento dos seguintes factos:

A Sra. Marlene é uma jovem com apenas 25 anos, saudável, e já possui uma filha de
seis anos também saudável. Ao descobrir que estava grávida de Rodrigo dirigiu-se à
médica de família, que lhe recomendou realizar o acompanhamento normal, visto que
não era uma gravidez de risco.

Dessa forma, foi dito à Sra. Marlene que se fosse às consultas uma vez por mês,
como é o habitual. A médica também a orientou sobre as ecografias, análises e outros
exames a serem realizados durante a gestação.

A Sra. Tânia afirmou que a Sra. Marlene tinha consultas com o obstetra Artur Carvalho
no Hospital São Bernardo em Setúbal (hospital público). Porém o médico informou que as
ecografias e análises deviam ser realizadas numa clínica particular que possuía acordo
com o SNS.

Foram recomendadas pelo obstetra as clínicas localizadas nas imediações do hospital,


na mesma avenida. A única que tinha horário na data que Sra. Marlene necessitava era a
clínica Ecosado. Por isso, todas as ecografias e análises durante todo o período da
gravidez foram realizadas nessa clínica.

O obstetra que realizou as ecografias da Sra. Marlene na clínica em questão também


foi o Artur Carvalho, que a acompanhava no Hospital São Bernardo. Mais tarde veio a
descobrir-se que o mesmo era sócio gerente dessa clínica privada.

De três em três meses foram realizadas as ecografias e análises a pedido da médica


de família, assim sendo, o Sr. Artur Carvalho fazia as ecografias e em anexo enviava um
relatório que era visto pela clínica geral, especialidade dos médicos de família.

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Nunca foi detetado pelo obstetra em questão algum tipo de problema nas ecografias,
até que a Sra. Marlene, no sexto mês de gestação e por conta própria, decidiu realizar
uma ecografia 5D do bebé numa outra clínica privada. Nesta ocasião teria sido alertada
pelo ecografista da grande possibilidade de o feto apresentar malformações na face.

Desesperada com a notícia, a Sra. Marlene marcou outra ecografia de urgência com o
médico Artur Carvalho. Este negou qualquer hipótese de malformações, tranquilizando
assim os pais.

Contudo, no momento do nascimento do Rodrigo, tanto a sua mãe como o médico que
realizou o parto ficaram surpreendidos ao repararem nas malformações graves que o
bebé apresentava e pela forma inesperada já que nada fazia prever os acontecimentos.
Após o susto inicial, os médicos que passaram a acompanhar Rodrigo afirmaram que ele
tinha expectativa de apenas uma semana de vida devido às suas deficiências , mas
entretanto fez um ano de vida no mês de outubro de 2020.

No presente momento ninguém consegue estimar a expectativa de vida do Rodrigo.


Todo o conhecimento médico disponível até hoje não é capaz de esclarecer a sua
sobrevivência.

O Rodrigo apresenta hoje hidrocefalia grave, o céu-da-boca como dos deficientes


profundos, não possui nariz nem olhos, é surdo e o cérebro do lado esquerdo quase não
existe. Além disso, não se sabe se ele sente dor, mal-estar ou se está em constante
sofrimento.

Sabe-se que o bebé faz uso constante de medicamentos desde que foi para a casa e
tem acesso a cuidados médicos e de enfermaria domiciliar.

Ao investigar a actividade exercida pelo Sr. Artur Carvalho nos últimos anos, que além
de médico obstetra era chefe do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São
Bernardo desde 1990, pode-se constatar que à data do nascimento do Rodrigo o médico
Artur Carvalho possuía pelo menos seis queixas abertas contra ele, tanto na Ordem dos
Médicos como no Judiciário. A maioria das queixas referiam-se a fetos nascidos com
malformações físicas gravíssimas que não foram diagnosticadas nas ecografias de rotina.

Dentro desses casos, um chama à atenção, pois em 2011 uma criança nasceu com o
rosto desfigurado, com malformação das pernas e lesões cerebrais graves. Em nenhum
dos cinco exames de imagem realizados pelo Sr. Artur Carvalho, foi indicada a existência
de algum tipo de problema. Houve queixa registada, mas foi arquivada pelo Ministério

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Público com base no laudo do Conselho Médico-Legal do IML, que descartou a
possibilidade dessas malformações serem detetadas em exames pré-natais de rotina.

Aquando do nascimento do Rodrigo, existiam um total de 10 queixas contra esse


médico, dentre essas, 4 arquivadas e 6 por analisar.

De igual modo, constitui objecto de estudo do presente trabalho analisar os motivos


pelos quais o obstetra Artur Carvalho permaneceu em actividade mesmo perante tantas
queixas abertas contra ele na Ordem dos Médicos e também na via judicial. A questão
que aqui se coloca baseia-se na ideia de que talvez se houvesse uma manifestação
precoce da Ordem dos Médicos, no sentido de suspender a sua actividade até à
determinação de todas as queixas, o bebé Rodrigo não seria outra vítima de erro de
diagnóstico do médico em questão.

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1.1 ERRO MÉDICO

Fala-se em erro médico ou responsabilidade profissional quando é possível detetar


que existiu a ocorrência um desvio na conduta em relação ao comportamento ou técnica
padrão do médico “médio”, termo utilizado analogicamente, uma vez que no direito civil,
para aferir a negligência, utiliza-se o critério do bonus pater familias, padrão objetivo e
abstrato do homem médio.

O STJ firmou entendimento2 de que o erro médico pode ser definido como conduta
profissional inadequada, resultante da utilização de uma técnica médica/terapêutica
incorreta que acaba por lesionar a saúde de determinado paciente.

Data do Acórdão: 25/02/2015

I - Em caso de concurso de normas regulando, diferentemente, o modo de consumação de prescrição do


procedimento criminal, deve aplicar-se a que mais favorável, no caso concreto, se apresente para o arguido.
II - Responsabilidade médica, por negligência, por violação das “leges artis“ tem lugar sempre que por
indesculpável falta de cuidado seu, o médico deixa de aplicar os conhecimentos científicos e os
procedimentos técnicos que, razoavelmente, lhe eram de exigir, em função da sua qualidade profissional.
III - O acto médico praticado em hospital público integrado no SNS representa um acto técnico no exercício
de uma dada profissão de acordo com certas prescrições, naturalmente que da ciência médica, constituindo
uma função pública, integrada na denominada “função técnica do Estado”, qualquer que seja a natureza de
que se revista o hospital, com ou sem autonomia patrimonial, empresarial ou sociedade anónima de
capitais exclusivamente públicos, segundo a classificação adoptada na Lei de Gestão Hospitalar n.º 27/2002,
de 08-11.
IV - O Hospital demandado, onde a arguida e demandada, médica especialista da área de medicina interna,
prestava serviço, à data dos factos - 2003 - assume a natureza de sociedade anónima, entidade englobada
num fenómeno visando a “criação de uma Administração indirecta privada“, uma “ privatização formal da
Administração e uma utilização instrumental da personalidade jurídica privada “, para o desempenho de
tarefas de interesse público correspondentes ao exercício da função.
V - Dominantemente se recusa a natureza contratualista à prestação de serviços médicos na rede nacional
de hospitais públicos, em contrário do que sucede nos hospitais privados, ditos particulares ou em
consultórios de idêntica categoria, havendo que fundá-la, antes, na responsabilidade civil extracontratual,
seja ela por facto negligente ou voluntário e, também, ilícito.
VI - A responsabilidade contratual, nos hospitais públicos, derivaria de o facto de o doente em tratamento
não ser um estranho e lhe assistir um genérico direito a não ver lesada a sua integridade física ou moral; é
alguém que, positivamente, tem direito a certo número de cuidados prestados com a diligência exigível.
VI - É, pois maioritária a posição - excluindo -se, ainda a concepção da natureza atípica - que perfilha o
entendimento de que a prestação de serviços médicos nos hospitais públicos se não enquadra no contrato
de prestação de serviços previsto no CC, no art. 1154.º e ss., antes assumindo uma simples prestação de
serviço público, em que como regra, o médico é desconhecedor da pessoa do doente e este da pessoa do
médico, surgido acidentalmente, ignorando as suas qualidades técnicas, de quem espera o melhor
desempenho na aplicação dos melhores e mais oportunos conhecimentos da sua ciência e que não recebe
do beneficiário ordens ou instruções, gozando de uma quase total ou, melhor dizendo, total independência.
VII - A obrigação de prestação de serviços médicos assume a natureza de prestação de meios não a de
resultado em que o médico se obriga a prestar cuidados ao doente, minorar-lhe a dor, proporcionar-lhe
bem estar, saúde, aliviá-lo do padecimento, restitui-lo à vida, se em perigo, envidar todos os esforços ao
seu alcance, pôr em prática os seus conhecimentos de acordo com a ciência e a executá-los conforme os
seus meios técnicos disponíveis, de acordo com as “leges artis “, um especial dever objectivo de cuidado,

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tendo como padrão um médico minimamente cuidadoso, diligente, sensível ao sofrimento alheio e aos
bens jurídicos da vida e saúde, tal como suposto pela ordem jurídica, que nas condições do caso concreto
agiria de forma diferente, como um “bonus pater familias“.
VIII - E não se trata de uma obrigação de resultado, de assegurar a todo o custo, a cura, mas a prestar os
seus serviços, incluindo cuidados e conselhos, esclarecimentos dos riscos usuais e comuns em certos
tratamentos, mas não já produzir um resultado esperado, porque na prestação de serviço podem interferir
variáveis absolutamente incontroláveis e imprevisíveis, mesmo que empregue toda a diligência.
IX - O DL n.º 48051, de 21-11-67, em vigor na data dos factos - 2003 -, revogado, como foi, ela Lei n.º
67/2007, de 31-11, regulou pela primeira vez a responsabilidade civil da Administração Pública pelo risco,
factos lícitos e ilícitos, dos seus órgãos, agentes e representantes, neles se englobando os médicos ao seu
serviço, agentes de gestão pública.
X - O seu art. 8.º regulava a responsabilidade civil do Estado por actos praticados pelos seus agentes, pelo
risco, relativamente ao funcionamento de serviços excepcionalmente perigosos, em casos especiais,
excedendo o âmbito normal de perigosidade, originando danos também especiais e anormais, mas sem
abstrair do resultado, do facto e do nexo causal. O art. 8.º é mais exigente quanto à responsabilidade pelos
actos de gestão pública, conceito caído em desuso, na lei que lhe sucedeu, que envolvam perigosidade do
que relativamente aos actos de gestão privada, na medida em que não abdica da excepcional perigosidade
dos actos, obrigando ao suporte dos riscos pela colectividade dentro de limites aceitáveis - cf Ac. do STA, de
22- 6-2004, Proc. n.º 01810.
XI - A responsabilidade a título de risco pelos serviços médicos não se compatibiliza com a natureza do acto
médico, procurados pelo doente para curar ou mitigar o seu sofrimento e não para exposição a riscos
daquela dimensão; como regra tal prestação não comporta risco, sem esquecer, no entanto, que, por vezes,
concorrem consabidos riscos graves e outros, supervenientemente, de forma imprevisível e absolutamente
indominável.
XII - A actividade de prestação de serviços médicos não se enquadra na previsão do art. 493.º, n.º 2, do CC,
prevendo a responsabilidade pelo risco, por tal actividade não ser, na sua essência, genericamente,
perigosa, nem por si nem nas suas consequências, devendo, por isso, o que retira proveito daquela sofrer as
consequências da sua prática e prová-las, sendo excessiva a presunção de culpa no caso da actividade
médica.
XIII - A responsabilidade médica só em situações muito excepcionais se deve considerar excepcionalmente
perigosa, o que teria a desvantagem, se fosse de assumir como regra, de conduzir a medicina com efeitos
defensivos, trazendo o efeito de retardar o progresso em certas especialidades em prejuízo para o próprio
doente, além de conduzir a inqualificáveis repercussões na dignidade pessoal e profissional do médico; de
nada se lucrando alargar, sem reflexão, as hipóteses de responsabilidade objectiva, sendo salutar que a
compensação pelos danos acidentais do acto médico, pelas suas “ faults “, se processe por meio de um
seguro ou fundo de garantia, com vantagem para o paciente que não tem que arrostar o cansaço do
processo e as dificuldades patrimoniais do médico em suportar o montante dos danos.
XIV - Os assistentes ao peticionarem indemnização cível ao Hospital demandado, à segurada dentro das
forças do contrato de seguro e à médica demandada, acusando-a de crime de homicídio negligente,
apoiaram o seu pedido cível indemnizatório, a sua causa de pedir, numa factualidade complexa, que tem
por fonte a assistência médica que aquela profissional prestou de forma negligente, pouco zelosa, omitindo
cuidados que a situação da falecida, doente, apresentava à chegada ao sector da Urgência, com sinais
visíveis de enfarte de miocárdio em evolução e ao não retê-la por mais tempo no hospital, antes lhe
concedendo alta, vindo a falecer no seu domicílio, antes de ali repetir o ECG e provas enzimológicas,
adoptando as providências que as regras de medicina ao seu alcance e as mais eficazes impunham.
XV - A complexidade da causa de pedir agrega a si os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual,
ou seja, os factos, a sua ilicitude, pela violação do cuidado exigível com perda do direito fundamental, do
direito à vida da vítima, a culpa da arguida na forma de negligência, e os danos discriminados, bem como o
nexo de causalidade entre os factos e a agente, como forma de dar resposta ao art. 483.º e ss., do CC, que
estabelecem os seus fundamentos.
XVI - Ambos os tipos podem concorrer, segundo alguns autores, havendo quem sustente neste concurso a
doutrina do cúmulo, tendo o lesado o direito de invocar, à sua escolha, conforme for de seu interesse, as
regras, cumulando-as, de uma ou outra responsabilidade, havendo ainda que distinguir a teoria da acção
híbrida, da opção e da reunião de acções autónomas; a doutrina do não cúmulo levaria à aplicação do
regime da responsabilidade contratual, consumindo esta a extracontratual.

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XVII - A autópsia médico-legal, no seu conteúdo e relatório, não colhe regulamentação específica no DL n.º
11/98, de 24-01, seu Anexo 2, revogado em parte pela Lei n.º 45/2004, de 19-08, que se lhe seguiu, como
da legislação antecedente, de que é percursora a Carta de Lei de 17-08-1899, mas, naturalmente, que há-de
ser claro e suficiente em ordem a auxiliar a decisão, sendo da mais elementar obrigação dos serviços
médico-legais, por diversas razões, processar-se no mais curto prazo temporal, de todo incompreensível
sendo que a ela se haja procedido em 29-09-2003, 4 dias após a morte da vítima.
XVIII - E como exame pericial que é, deve reunir, descrevendo, os indispensáveis factos, incluindo no caso
de morte súbita o estado das veias e artérias, o peso do coração, dos seus músculos, a sua coloração, a sua
morfologia externa e interna, de resto em obediência à deliberação do Comité de Ministros do Conselho da
Europa aprovou em 02-02-99 a Recomendação n.º 99 R. 3, em vista da harmonização médico-legal das
regras sobre as autópsias, enquanto exame a um corpo, “ post mortem “, estabelecendo os princípios e
procedimentos a adoptar nas várias hipóteses de causa de morte, entre as quais aquela, que, segundo o n.º
6, do Apêndice “… require extensive (…) investigations “ não se prescindindo do exame detalhado ao hábito
interno, das artérias e veias, sem embargo de o relatório de autópsia dever ser “completo, detalhado,
compreensivo, objectivo, escrito com sequência lógica, bem estruturado, legível, datado e assinado pelo
perito médico, revelando, ainda, a autoridade que o ordenou.”
XIX. - É de liminar evidência que o relatório da necrópsia não procede a essa descrição suficientemente
compreensiva, estando muito longe de se ter como modelar, e até usual, pois que o seu subscritor se limita
a inscrever : “Informação – Précordalgia - Hábito externo – Obesidade +- 7º kg, Forte, Volumoso, panículo
adiposo, Toráxico-adbominal, Hábito interno - Coração com lesões recentes de enfarte do miocárdio,
Pulmões edemaciados e congestionados, Fígado com petéquias (Moscado) ou fígado cardíaco. Conclusões
médico-legais: a morte deveu-se a enfarte recente do miocárdio (coração) edema e congestão pulmonar
(…).
XX - Um relatório assim elaborado peca por manifesta insuficiência factual ao nível das premissas
sustentando a conclusão, por isso as instâncias lhe teceram sérias críticas, chegando-se a pôr em dúvida a
sua autenticidade, reforçadas pelo depoimento em audiência de 9 médicos especialistas, desde
cardiologistas, a internistas e até de uma médica especialista legista, concluindo pela omissão de factos e
perícia microscópica, esta se impondo porque ao médico que subscreve o relatório da autópsia,
esclarecendo que o aspecto externo do coração apresentava uma tonalidade “ negra “ na ponta,
consequência inevitável da degradação apresentada, era de difícil, senão impossível, àquele descortinar a
causa da morte, pelo simples exame macroscópico.
XXI - Ao tribunal, sendo altamente deficiente a matéria de facto-base das premissas do silogismo pericial,
era consentido divergir do resultado, do juízo pericial, científico e técnico desde que, à luz do art. 163.º, do
CPP, face à prova tarifada que era presente, fundamentasse a disparidade de opinião num juízo de igual
valor.
XXII - Sempre que se conclui por um juízo alicerçado em mera presunção ou em carência de factos, sua
deficiência ou contraditoriedade, a regra da vinculação probatória cede e dá lugar à livre valoração dos
factos, pelo julgador, nos termos do art. 127.º, do CPP, por carência da certeza exigível.
XXIII - A disparidade do juízo científico ou técnico não tem que reduzir-se a um novo exame pericial, de
sentido contrário ou diferente, bastando que o julgador se não socorra de conhecimentos próprios, que em
via de regra não possui, sendo suficiente que lance mão, como o fez, de especialistas na área, infirmando,
com unanimidade, rigor e seriedade profissionais, de forma convincente, a conclusão da necrópsia.
XXIV - O parecer de um membro do Conselho Médico-Legal, no sentido de que a vítima devia permanecer
por mais tempo no Hospital, antes de atingir a alta, cerca de 4 horas após a entrada, altura em que já se
apresentava estabilizada, não passa de uma mera opinião, um parecer pessoal, nos termos do art. 155.º ,
do CPP, com inegável peso, é certo, pela sua qualidade profissional, no caso Professor Catedrático de uma
Faculdade de Medicina, mas não vinculativo, in casu porque não teve qualquer contacto com a vítima na
Urgência do Hospital , examinando-a e , por fim, observando o cadáver da vítima, não se tratando de
participante processual na perícia, não a construindo, sendo-lhe exterior.
XXV - Não se mostra, pois, infringido o preceituado no art. 163.º, n.º 2, do CPP.
XXVI - O caso julgado forma-se sobre a decisão recorrida, sobre o pedido, a extensão do caso julgado não
pode abranger, contudo, questões não formuladas e nem postas, sendo que a sentença forma caso julgado
na parte decisória e não nos motivos, considerandos ou enunciados em que se funda a decisão,
complementando restritivamente Dias Ferreira que ”os considerandos que estejam relacionados com a
decisão por forma a que com ela formem um todo um indivisível“, são atingidos pela eficácia do caso

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julgado, in Caso Julgado, RLJ, 1926, 35, fazendo caso julgado os fundamentos sobre os quais se tomou
implícita posição, dela inseparável.
XXVII - Pode dizer-se que se dá acolhimento amplo, na nossa jurisprudência, à regra de que o caso julgado
se não alarga aos fundamentos da decisão, em aplicação da chamada teoria restritiva ou pseudorestritiva,
embora com alguns desvios, defendendo-se a extensão à decisão implícita, como decorrência do
julgamento, constituindo problema de interpretação da sentença saber se nela há um julgamento implícito,
aconselhando o Prof. José Alberto Reis, a que se procedesse a um “uso prudente e moderado“ do
julgamento implícito, nesta área de melindre e de terreno dificultoso“ cf Limites Objectivos do Caso Julgado
em Processo Civil, p. 135, do Prof. Castro Mendes e a muito extensa recensão jurisprudencial que faculta,
em nota.
XXVIII - Indiscutível é que o fundamento não pode ser razão de recurso, a jurisprudência mais recente deste
STJ mantém-se fiel ao ideário de que o caso julgado se forma apenas sobre o decidido e tem afirmado essa
limitativa extensão – cf Acs. de 23-02-78, BMJ 274, 191, de 29-06-76, BMJ 255-280, de 20 04-94, BMJ 436,
300 -; noutro enfoque seguido, ainda, força e autoridade de caso julgado estende-se à resposta final dada à
pretensão do autor, embora se acrescente que não obstante o respeito por esse princípio-regra, isso não
invalida que as questões preliminares que sejam um antecedente lógico e necessário sem a qual a decisão
se mostraria incompreensível visto o indispensável nexo causal que intercede entre ambas –cf Acs. deste
STJ, de 09-06-89, BMJ 387, -377 e de 05-12-91, AJ, 15.º/16.º, 2, 7, 09-05-96, in CJ, ACs. do STJ, 1996, 2, 25 –
estejam a coberto do caso julgado.
XXIX - Não se regista ofensa de caso julgado formal se o Tribunal da Relação, anulando o julgamento,
ordena a remoção da contradição entre factos provados e não provados e, em obediência, e para
harmonização entre todos aquelas, estabiliza numa versão, que o próprio tribunal goza de inteira liberdade
para construir, ainda que, de modo expresso, exclua, face aos factos “ex novo“, provados e não provados,
mas sobretudo quanto a estes, em desfavor dos assistentes, a responsabilidade negligente da arguida
médica, particularmente que a vítima se apresentasse à chegada à Urgência, com sinais evidentes de
enfarte de miocárdio, que foi negligentemente observada e diagnosticada, não procedendo a arguida aos
indispensáveis exames médicos e de diagnóstico correntemente adoptados na clinica nacional hospitalar -
revelando, de resto, tal perícia normalidade, a não ser quanto à tensão arterial, ligeiramente alta - , que tais
perícias fossem de repetir passados algum tempo, sendo prematura a sua alta, quatro horas e 4 minutos
depois da entrada na Urgência, aliás em condições já estabilizadas, e que a morte, já no seu domicílio, não
ocorreria permanecendo no Hospital, com o que se veio a concluir pela inexistência de nexo causal entre
essa alta prematura e a morte. Ao ordenar-se a repetição do julgamento ao nível da matéria de facto, tudo
se passa como se a anterior matéria de facto não tivesse sido fixada.
XXX - Igualmente se não regista ofensa de caso julgado pela Relação se, em nova e total anulação total do
julgamento, ordena a valoração, de resto sem repercussão ulterior na prova produzida, do depoimento de
uma testemunha, acolhendo, a final, na íntegra, a única alteração factual a que antes a 1:ª instância
procedera, referida em XXIX.
XXXI - Aos assistentes, por força da natureza unitária, não faseada, por etapas, da motivação do recurso,
aproveitando-se do facto de o prazo de interposição ainda não ter integralmente decorrido, é vedado, por
força da preclusividade da prática dos actos processuais, trazer um “acrescento“ ao primeiro segmento da
motivação.
XXXII - Igualmente é vedado nesse “acrescento“ deduzirem alteração do pedido, inicialmente fundado na
responsabilidade civil extracontratual, agora fundado na responsabilidade contratual e, também, em via
subsidiária, na responsabilidade pelo risco, aliás sem suporte em qualquer acervo factual, desprovidas de
causa de pedir, por não vigor em processo penal a modificação do pedido e causa de pedir em processo
civil, ainda assim com incontornáveis restrições, nos termos dos arts. 264.º e 265.º, ambos do CPC , como é
proibido aduzir resposta à contestação do enxerto cível.
XXXIII - A responsabilidade pelo risco não dispensa a comprovação do facto, do dano e do nexo de
causalidade entre o facto e o evento.

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/1ECB2E3A863FC82880257DF90039F5EA data de acesso: 9 de outubro de


2020.

12
Com a finalidade de sistematizar a prática médica, surge o conceito de leges artis que
é um modelo de conduta a ser seguido pelos profissionais. Refere-se a um complexo de
regras e princípios da actividade médica que apontam para a técnica adequada, são
normas de know-how do tratamento médico que visam uma atuação com o cuidado
objectivamente devido.

Por serem normas genéricas, o profissional deve sempre levar em consideração as


características especiais do caso concreto, além da influência de outros fatores.

Em princípio, a observância da leges artis exclui o erro médico. No entanto, através da


violação da leges artis só é possível concluir pela existência ou inexistência de indícios
da violação do dever objetivo de cuidado.

Importante ressaltar também que nem toda violação da leges artis é juridicamente
relevante.

Os actos médicos que são praticados com violação da leges artis podem ser puníveis
nos âmbitos civil, criminal e disciplinar. No âmbito civil, ocorre o dever de indemnizar
quando há a violação do direito de outrem que gera um dano a este. Já no ramo criminal,
estes actos serão puníveis quando colocar em risco a integridade física e/ou a vida do
paciente. A punição disciplinar é de competência da decisão do Conselho Disciplinar da
Ordem dos Médicos e pode levar a sanção mais gravosa que é a expulsão.

A literatura afirma que sobre os médicos recai a obrigação de meios, ou seja, não se
vinculam a obtenção de um resultado específico, geralmente a cura, mas tão-somente a
usar de todo o cuidado e diligência com o fim de alcançar um determinado resultado, no
entanto sem se vincular à concretização deste. Via de regra é o caso dos profissionais de
modo geral.

Neste contexto, em matéria de responsabilização dos médicos, esses não podem ser
responsabilizados simplesmente pelo fracasso na obtenção do resultado esperado, mas
somente caso reste comprovado que o profissional não empregou os meios adequados
decorrentes das leges artis.

Contudo, em algumas áreas da medicina ainda se discute se o médico se vincula a


uma obrigação de meios ou de resultado. Por exemplo, a cirurgia plástica carrega esse
questionamento, tendo em vista que a paciente que se submete a uma cirurgia de
implante de silicone mamário em regra não aceita um resultado diverso daquele
“prometido” pelo profissional. É, portanto, um tema ainda bastante controverso na
doutrina.

13
De especial importância para o presente trabalho, de igual modo controverso é o
questionamento se o ramo da obstetrícia se trata de um vínculo do médico a obrigação
de meios ou de resultado.

O Superior Tribunal de Justiça do Brasil já se posicionou sobre o tema por meio de


uma decisão que considerou o exame ultrassonográfico de rotina para controle da
gestação como obrigação de resultado, caracterizada pela responsabilidade objetiva. No
mesmo sentido existem decisões emitidas pelo STJ português3.

Ao contrário da obrigação de meios, na obrigação de resultado o profissional vincula-


se à prestação daquele resultado específico. Independentemente de estarmos a falar
aqui da arte médica que não é uma ciência exacta e muitas vezes os resultados sofrem

Data do Acórdão: 07/10/2010

I. A responsabilidade médica (ou por acto médico) assume, em princípio, natureza contratual.
II. Pode, todavia, tal responsabilidade configurar-se como extracontratual ou delitual por violação de
direitos absolutos (v.g os direitos de personalidade), caso em que assistirá ao lesado uma dupla tutela
(tutela contratual e tutela delitual), podendo optar por uma ou por outra.
III. A tutela contratual é, em regra, a que mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória, face às
regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (art.ºs 344.º, 487.º, n.º 1 e 799.º, n.º 1, todos do CC).
IV. Agirá com culpa ou negligência (cumprindo defeituosamente a obrigação) o médico que, perante as
circunstâncias concretas do caso, e face às leges artis, tenha feito perigar (ou lesado de modo irreversível,)
o direito do paciente à vida ou à integridade física e psíquica do paciente. Culpa essa «a ser apreciada pela
diligência de um bom pai de família (art.ºs. 482.º, n.º 2, aplicável ex vi do n.º 2 do art.º 799°, ambos do CC).
V. Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios (ou de pura diligência), cabendo, assim, ao
lesado fazer a demonstração em juízo de que a conduta (acto ou omissão) do prestador obrigado)não foi
conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar a produção do
almejado resultado.
VI. Já se se tratar de médico especialista, (v.g. um médico obstetra) sobre o qual recai oum específico dever
do emprego da técnica adequada, se torna compreensível a inversão do ónus da prova, por se tratar de
uma obrigação de resultado – devendo o mesmo ser civilmente responsabilizado pela simples constatação
de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base uma
presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta.
VII. A utilização da técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do
médico, pelo que, se o médico se equivoca na eleição da melhor técnica a ser aplicada no paciente, age com
culpa e consequentemente, torna-se responsável pelas lesões causadas ao doente.
VIII. Face ao disposto no art.º 798.º do CC, recairá, em princípio, sobre o médico a obrigação de indemnizar
os prejuízos causados ao seu doente ou paciente (art.º 566.º e ss. do CC).
IX. Segundo a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa, consagrada no art.º 563.º do
CC, o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada se, dada a
sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar (de todo) indiferente para a
verificação desse dano.
X. O Supremo pode, ao abrigo do n.ºs 2 e 3 do art.º 729.º do CPC, ordenar ex officio a ampliação da matéria
de facto se existirem factos (principais, complementares e instrumentais) alegados e contra-alegados de
manifesta relevância, carecidos de investigação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de
direito.

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2028519f107ac8ae802577b5003a8527?
OpenDocument data de acesso: 20 de setembro de 2020.

14
alterações que podem variar de paciente para paciente, se não ocorrer o resultado por
qualquer que seja o motivo, apesar do médico agir de forma correcta, existe uma
presunção de culpa por parte dele.

15
1.2 ERRO EM OBSTETRÍCIA

Já falamos acima que especificamente na área da obstetrícia existe um


questionamento quanto à vinculação do médico à obrigação de meios ou de resultado.

Alguns doutrinadores e juristas portugueses tendem a considerar a realização de


certos exames, principalmente aqueles que são de prática quotidiana e rotineira dos
médicos, além de análises laboratoriais, como obrigação de resultado.

Logo, a primeira questão que se coloca refere-se ao exame de imagem, mais


precisamente se uma ultrassonografia ecográfica seria uma obrigação de resultado do
profissional perante a gestante. Ou seja, ao médico recai o dever de analisar
correctamente, sem nenhuma margem de erro, aquela imagem, ou, seria escusável o
erro ao diagnosticar aquele feto? Seja porque todos nós erramos e o médico, como
humano é passível de cometer erros, seja porque ao tomar como parâmetro a época e os
recursos não poderia exigir-se maior conhecimento da técnica pelo profissional?

Acreditamos que para analisar esse facto é preciso conhecer a leges artis médicas à
época e somente assim poderemos saber se o profissional agiu de forma correcta,
mesmo diante da realização de um diagnóstico erróneo , ou, quando era possível e
previsível realizar o diagnóstico correcto não o fez por violação das regras da profissão,
causando um dano grave ao paciente que poderia ter sido evitado, e que por isso deve
ser responsabilizado.

Infelizmente em Portugal ainda não existem normas oficiais editadas pela Ordem dos
Médicos ou pela Sociedade Portuguesa de Obstetrícia, que funcionem como guidelines
referentes à boa prática médica no que diz respeito a realização de ecografias de rotina
em diagnóstico pré-natal. No entanto, já foram publicadas algumas orientações
normativas. Podemos citar o despacho ministerial nª 5411/974.

Doutrinariamente entende-se por Diagnóstico pré-natal um conjunto de medidas e


procedimentos a serem feitos por médicos obstetras, com o consentimento da mulher
grávida, que visa a deteção de possíveis anomalias congénitas e/ou malformações fetais.
Em último nível pode acarretar uma possível interrupção da gravidez ou até uma
intervenção cirúrgica no feto ainda dentro do útero da mãe, quando for possível “corrigir”
para melhorar a saúde daquele.

https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/legislacao/diagnostico-pre-natal/despacho-541197-2-serie-de-8-de-
julho-dr-n-180-ii-serie-de-6-de-agosto-pdf.aspx data de acesso: 22 de julho de 2020.

16
De acordo com as normas estabelecidas pela NOCS/DGS nª 023/20115, na gravidez
de baixo risco são realizados os seguintes exames ecográficos de rastreio:

• 1º trimestre: entre 11 e 13 semanas e seis dias;


• 2ª trimestre: entre 20 e 22 semanas;
• 3ª trimestre: entre 30 e 32 semanas.

A ecografia realizada entre a décima primeira e décima terceira semanas e seis dias
tem como objectivo confirmar a viabilidade fetal, determinar o número de fetos e
corionicidade, datar corretamente a gravidez, diagnosticar malformações major e
contribuir para avaliação do risco de aneuploidias.

Já a ecografia do segundo trimestre permite confirmar alguns dados da ecografia


anterior, mas destina-se, sobretudo, à identificação de malformações fetais. São de
especial relevância as malformações incompatíveis com a vida ou associadas à elevada
morbilidade pós-natal, anomalias com potencial para tratamento intrauterino ou que
exigem tratamento ou investigação pós-natal.

Por fim, a ecografia obstetrícia realizada entre as 30 e 32 semanas é o exame de


eleição para avaliação do desenvolvimento fetal e o diagnóstico de anomalias tardias.

Em obstetrícia, o erro médico pode estar presente nas situações de lesões físicas
provocadas na grávida ou no feto, nas eliminações de um feto saudável ou com uma
deficiência leve, no nascimento de uma criança com deficiência grave sem conhecimento
dos pais, na falta de proposta de DPN a uma paciente pertencente ao grupo de risco,
além de má execução técnica e falha na interpretação de resultados de exames de
imagem.

https://www.saudereprodutiva.dgs.pt/normas-e-orientacoes/gravidez/norma-n-0232011-de-29092011-
atualizada-a-21052013-pdf.aspx data de acesso: 25 de junho de 2020.

17
1.3 ERRO DE DIAGNÓSTICO

É necessário traçar breves considerações acerca do erro de diagnóstico.


Conceitualmente, o diagnóstico refere-se à prática médica destinada a detetar doenças
ou problemas de saúde do paciente. O erro poderá ocorrer quando há falhas na
execução de testes e exames ou até mesmo na escolha de métodos de investigação
desatualizados. Também faz parte do erro de diagnóstico a interpretação errónea do
resultado desses exames realizados por profissionais de saúde.

No entanto, um eventual erro de diagnóstico poderá não acarretar a responsabilidade


do médico quando forem utilizados de forma correcta os conhecimentos e regras de sua
ciência, mais conhecida por leges artis, mesmo quando leva o profissional a uma falsa
conclusão da realidade e proporciona um possível prejuízo de um futuro tratamento, fase
imediatamente posterior da actuação médica.

Em outras palavras, pode-se falar em erro de diagnóstico toda vez em que o médico
actuar de forma descuidada e sem atenção às regras da arte médica, cometendo erro
manifesto e grosseiro.

No que tange ao diagnóstico pré-natal, considera-se o objectivo principal a


comunicação aos pais sobre a saúde do feto, na medida em que a informação se torna
importante ao se materializar no direito de autodeterminação destes, notadamente da
mãe, quanto à liberdade reprodutiva e à continuação da gravidez.

18
2. RESPONSABILIDADE CIVIL

Em primeiro lugar, abordaremos a possível responsabilidade do médico obstetra, Artur


Carvalho em matéria de Direito Civil.

Fala-se em responsabilidade civil quando houver prejuízo de ordem material ou moral,


em que o agente lesante se vê obrigado a repará-lo. Pode derivar do incumprimento ou
cumprimento defeituoso de um contrato ou de negligência, imprudência e imperícia
causador de danos à vítima.

A responsabilidade civil está prevista no CC português e dispõe que aquele que com
dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes da violação.

A partir dessa disposição legal podemos afirmar que a responsabilidade no âmbito civil
possui como pressupostos o facto involuntário do agente, ilicitude, culpa, dano e, por fim,
imprescindível o nexo causal entre o facto e o dano.

Impende ressaltar que não há que se falar em responsabilidade civil na ausência de


prejuízo, ou ainda melhor, de dano, por parte da vítima.

A doutrina e a jurisprudência actuais consideram ser a responsabilidade civil dividida


em duas vias. Falamos em responsabilidade civil contratual, quando existe um contrato
em que as partes se vinculam. Na actividade médica trata-se de um contrato de
prestação de serviços. É o caso de clínicas e hospitais particulares em que o paciente
“livremente” escolhe o profissional liberal através do reconhecimento do seu trabalho. A
outra modalidade de responsabilidade civil é a extracontratual, na qual é assegurado o
cumprimento de direitos absolutos, mas não existe qualquer acordo prévio entre as
partes. Este tipo de responsabilidade civil manifesta-se na medicina pública, de hospitais
públicos e até parcerias público-privadas.

Em termos de ilicitude, podemos afirmar que a responsabilidade civil contratual nasce


da desconformidade entre a prestação devida e a conduta realizada. Já a extracontratual
ergue-se pela violação de direitos absolutos ou normas que visam a proteção de
interesses alheios.

Não podemos deixar de abordar a questão do ónus probandi da culpa. No âmbito


extracontratual é ao autor lesado que cabe fazer prova da culpa do médico, ou seja, que
este não agiu com o devido cuidado a que estava obrigado pelas regras da profissão. Já

19
no caso da responsabilidade contratual existe a inversão do ónus da prova. Ou seja, a
regra geral é de que “quem alega tem o dever de provar”, no entanto aqui é o contrário.
Constitui ónus do médico fazer prova de que ele agiu com a diligência devida.

A inversão do ónus da prova na responsabilidade contratual pode ser explicada pelo


facto de grande parte da doutrina nacional e estrangeira, por analogia, utilizar as regras
do direito do consumidor como se o contrato de prestação de serviços médicos fosse um
contrato de consumo. Com isso, tal como na relação de consumo, o paciente é
considerado a parte mais fraca da relação por ter dificuldade na produção da prova de
que o profissional de saúde não agiu com a diligência devida e não respeitou as normas
e técnicas da especialidade médica.

20
2.1 WRONGFUL BIRTH OU NASCIMENTO INDEVIDO

Dentro do campo da responsabilidade civil, acreditamos que o caso estudado no


presente trabalho se enquadra perfeitamente nas acções usualmente conhecidas por
Wrongful birth ou Nascimento indevido.

A acção de nascimento indevido surgiu primeiramente nos Estados Unidos nos anos
60. Pode referir-se a duas situações, quais sejam, o resultado de uma conceção
indesejada ou, quando desejada, vem acompanhada por um erro médico no diagnóstico
pré-natal.

Iremos restringir-nos a analisar aqui os casos em que a gestação é desejada pela


progenitora, no entanto uma falha no diagnóstico pré-natal conduz a uma informação
errada sobre a saúde do feto, o que a impede de optar pela IVG e dá origem ao
nascimento de uma criança portadora de malformações congénitas.

Essas acções são intentadas pelos pais da criança que reivindicam a violação ao seu
direito de autodeterminação e liberdade reprodutiva. Afirmam que, se não fosse pelo erro
do profissional médico ao interpretar erroneamente as ecografias obstetrícias, estes
saberiam da real condição de saúde de seu filho e poderiam optar pela IVG.

É necessário fazermos uma observação sobre a penalização do aborto em Portugal.


De acordo com o CP, a interrupção da gravidez é punível. No entanto, existem
determinadas condições em que se fala da exclusão da ilicitude.

Existem dois modelos no tocante à IVG não punível criminalmente:

O primeiro é o modelo dos prazos no qual o aborto não é punido se realizado dentro
de períodos de gestação determinados, normalmente no primeiro trimestre da gestação.
Esta modalidade não prescinde de argumentos ou fundamentos que justifiquem a
interrupção. Apenas é exigida a observância do prazo estabelecido em cada
ordenamento jurídico. Já o modelo das indicações pressupõe a punição do aborto,
exceptuando quando há justificativa capaz de consubstanciar-se numa indicação legal
para a interrupção da gravidez.

Por sua vez, Portugal aderiu a um modelo intermediário, que é o modelo das
combinações. Como o próprio nome diz, num primeiro momento gestacional o aborto não
é punido dentro de um prazo estabelecido na lei. Com o avanço da gestação, a
interrupção da gravidez fica condicionada à existência de uma indicação legal.

21
O artigo 142, nº1 do CP6 dispõe que a regra geral é que qualquer mulher, até a décima
semana de gravidez pode optar pela interrupção voluntária da gravidez sem necessidade
de uma justificativa. Até a décima segunda semana, caso se mostre indicado para evitar
perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou
psíquica da mulher grávida ; até à décima sexta semana, na hipótese de gravidez que
tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual; até vigésima
quarta semana em caso de feto com malformações e, a qualquer tempo, em caso de feto
inviável (indicação fetopática). Também é permitida a interrupção da gravidez a qualquer
tempo quando constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e
irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida.

Em relação aos danos, os autores da acção alegam prejuízos de natureza patrimonial,


referentes às despesas extraordinárias na criação de um filho com deficiência e,
extrapatrimonial ou morais pelo sofrimento, desgosto e principalmente o elemento
surpresa de ter que conviver com tamanha incapacidade.

O facto discutível aqui diz respeito ao nexo de causalidade, uma vez que o acto
médico não causa a deficiência da criança, ele apenas não a deteta, sendo tal facto
previsível e exigível através da leges artis medicinae da atualidade, no exame ecográfico
de rotina pré-natal.

Muitos autores acreditam não estar presente o requisito do nexo de causalidade,


obrigatório para configurar a responsabilidade civil. Trata-se do instrumento capaz de
ligar o dano sofrido pelo paciente à acção ilegal praticada pelo médico. Existe a dúvida se
no caso específico das acções de wrongful (birth e life) o profissional através da sua
conduta de facto gera o dano, tendo em vista que não é causador da deficiência na

Artigo 142, nº1 do CP:


1. Não é punível a interrupção da gravidez efetuada por médico, ou sob a sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida,
quando:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo
ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar o perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou
para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez.
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave
doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se
as situações de feto inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção
for realizada nas primeiras 16 semanas;
For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.

22
criança, que de qualquer forma nasceria com as malformações. Iremos voltar a esse
assunto posteriormente.

Atualmente pode-se dizer serem essas acções consensualmente aceites na


jurisprudência e pela doutrina da Europa e dos Estados Unidos, sendo também aceites
em Portugal7.

Tribunal da Relação do Porto:


Data do Acórdão: 01/03/2012

I - Embora a responsabilidade civil médica possa ser contratual e aquiliana, estando em causa actos médicos
contratados entre o médico e o paciente é daquela que se trata, configurando um contrato de prestação de
serviços.
II - Por força desse contrato, o médico deve agir, prudente e diligentemente, segundo os conhecimentos
científicos então existentes, cabendo-lhe a obrigação principal de tratamento que pode desdobrar-se em
diversas prestações, tais como: observação, diagnóstico, terapêutica, vigilância e informação.
III - Neste tipo de responsabilidade, a culpa é aferida pelo padrão de conduta profissional que um médico
medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria
tido em circunstâncias semelhantes, na data da prática do facto ilícito.
IV - Ao lesado compete fazer a prova da violação das leges artis, por parte do médico, ou seja, da ilicitude
da sua conduta, enquanto a este cabe demonstrar que não teve actuação culposa.
V - Age com culpa o médico radiologista que procede a exames de um feto às 12 e 19 semanas de gestação
e elabora os correspondentes relatórios fazendo constar neles que a gravidez tinha evolução favorável e
compatível com o tempo gestacional e que o bebé era perfeitamente normal, quando acabou por nascer, às
38 semanas, com síndrome polimalformativo e com patologias que seriam detectáveis por um radiologista
normal.
VI - O erro de diagnóstico das patologias e a omissão do inerente dever de informação impediram a grávida
de beneficiar do regime legal de interrupção voluntária da gravidez, violando assim o seu direito à
autodeterminação, enquanto direito de personalidade, pelo que, existindo o necessário nexo de
causalidade, o médico é responsável pelos prejuízos daí emergentes.
VII - A criança deficiente não tem direito próprio de indemnização pelo facto de ter nascido, por ausência de
dano reparável.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/9f726e11ba29e580802579c1003f7925
?OpenDocument data de acesso: 28 de outubro de 2020.

Acórdão do STJ:
Data do Acórdão: 12/03/2015

I - O novo quesito, com a redacção de que “A não detecção atempada das deformidades descritas em D)
impediu que os autores pudessem efectuar uma interrupção médica da gravidez?”, não comporta qualquer
referência a factos notórios, por não conter matéria de conhecimento geral, revestida do carácter de
certeza, sem necessidade de se recorrer a operações lógicas ou cognitivas, nem a juízos presuntivos.

II - Tendo o aludido quesito novo sido redigido, sob uma formulação negativa, que mereceu resposta de
“não provado”, tal determina que essa factualidade se deva considerar como não alegada, pelo que a falta
de prova desse facto negativo significa, apenas, que ele pode ter tido ou não lugar, mas não constitui prova
de que ele não teve lugar.

III - O STJ só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto, formado pela Relação, para além
das situações de contradição ou insuficiência da fundamentação factual, quando esta deu como provado

23
um facto, sem a produção de prova considerada indispensável, por força da lei, para demonstrar a sua
existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova,
admitidos no ordenamento jurídico nacional, de origem interna ou externa.

IV - Formulado novo quesito, com base no disposto pelo art. 662.°, n.° 3, al. c), do CPC, a repetição do
julgamento não abrange, em princípio, sem determinação expressa em contrário, a anulação das respostas
aos quesitos anteriores que não se encontrem viciadas, pois que, apenas, quanto aquele novo quesito
podem as partes apresentar novo rol de testemunhas.

V - As wrongful birth actions surgem quando uma criança nasce mal-formada e os pais, em seu próprio
nome, pretendem reagir contra o médico e/ou instituições hospitalares ou afins, por não terem efetuado os
exames pertinentes, ou porque os interpretaram, erroneamente, ou porque não comunicaram os
resultados verificados, sendo considerada ilícita a omissão do consentimento informado sobre essa
deficiência que, eventualmente, os impediu de terem optado pela interrupção da gravidez, proveniente de
um erro no diagnóstico pré-natal.

VI - Na responsabilidade contratual, a culpa só se presume se a obrigação assumida for de resultado,


bastando, então, a demonstração do inadimplemento da obrigação, ou seja, que o resultado,
contratualmente, assumido não se verificou, pelo que, face à culpa, assim, presumida, cabe ao devedor
provar a existência de fatores excludentes da responsabilidade.

VII - Mas, se a obrigação assumida consistir numa obrigação de meios, no âmbito da responsabilidade civil
contratual por factos ilícitos, incumbe ao devedor fazer a prova que a falta de cumprimento ou o
cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, ilidindo a presunção de culpa que sobre si
recai, nos termos do preceituado pelo art. 799.°, n.° 1, do CC.

VIII - Veiculando a maioria dos contratos de prestação de serviços médicos uma obrigação de meios, não
implicando a não consecução de um resultado a inadimplência contratual, quando não é atingido este
resultado, caberá, então, ao doente provar que tal fato decorreu de um comportamento negligente do
médico, que fica exonerado de responsabilidade se o cumprimento requerer uma diligência maior, e
liberando-se com a impossibilidade objectiva ou subjectiva que lhe não sejam imputáveis.

IX - Uma das exceções, na área da Ciência Médica, em que se verifica a obrigação de resultado, situa-se no
campo da realização dos exames laboratoriais e radiológicos.

X - Exprimindo a culpa um juízo de reprovabilidade da conduta do agente, que assenta no nexo existente
entre o facto e a vontade deste, que devia e podia actuar de outro modo, usando todos os conhecimentos,
diligências e cuidados que a profissão, necessariamente, impõe e que teriam permitido dar a conhecer aos
pais as malformações do filho, o erro de diagnóstico será imputável, juridicamente, ao médico, a título de
culpa, quando ocorreu com descuido das mais elementares regras profissionais, ou, mais, precisamente,
quando aconteceu um comportamento inexcusável em que o erro se formou.

XI - A comparação, para efeitos de cálculo da compensação, opera não entre o dano da vida, propriamente
dito, e a não existência, mas antes entre aquele e o dano da deficiência que essa vida comporta, pelo que o
valor negativo é atribuído à vida defeituosa e o valor positivo à vida saudável.

XII - Existe nexo de causalidade suficiente, ou nexo de causalidade indirecto, entre a vida portadora de
deficiência e a correspondente omissão de informação do médico pelo virtual nascimento do feto com
malformação, devido a inobservância das leges artis, ainda que outros factores tenham para ela concorrido,
como seja a deficiência congénita.

XIII - Ocorre a presunção, a favor do credor da informação sobre o diagnóstico, do seu não cumprimento
pelo médico, que faz parte dos denominados “deveres laterais do contrato médico”, e pode ser causa de
responsabilidade contratual, o teria feito comportar-se, de forma adequada, ou seja, no caso, que os pais
teriam optado por abortar, caso soubessem da deficiência do filho.

24
XIV - O facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que o mesmo se mostre, por sua natureza,
de todo inadequado à sua verificação, e tenha sido produzido, apenas, em consequência de circunstâncias
anómalas ou excepcionais, o que não acontece quando o comportamento do lesante foi determinante, ao
nível da censura ético-jurídica, para desencadear o resultado danoso.

XV - O nexo de causalidade entre a ausência de comunicação do resultado de um exame, o que configura


erro de diagnóstico, e a deficiência verificada na criança, que poderia ter culminado na faculdade dos pais
interromperem a gravidez e obstar ao seu nascimento, constitui o pressuposto determinante da
responsabilidade civil médica em apreço.

XVI - Nas wrongful birth actions, são ressarcíveis os danos não patrimoniais e patrimoniais, não se incluindo,
nestes últimos, todos os custos derivados da educação e sustento de uma criança, mas, tão-só, os
relacionados com a sua deficiência, estabelecendo-se uma relação comparativa entre os custos de criar
uma criança, nestas condições, e as despesas inerentes a uma criança normal, pois que os pais aceitaram,
voluntariamente, a gravidez, conformando-se com os encargos do primeiro tipo, que derivam do
preceituado pelo art. 1878.°, n.° 1, do CC.

XVII - A partir do momento em que a lei penal autoriza os pais a interromper a gravidez, ante a previsão
segura de que o feto irá nascer com malformação congénita incurável, o que está em causa não é a
possibilidade de a pessoa se decidir, mas antes de se decidir, num sentido ou noutro, de escolher entre
abortar ou prosseguir com a gravidez.

XVIII - O Direito é a ciência do mínimo ético, concêntrica com a Moral, mas com diâmetro inferior a esta, em
que apenas alguns dos valores que tutela têm igual denominador comum com aquele (nec omne quod licet
honestum est).

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/df88aba1ad4abd9d80257e0700377278?
OpenDocument data de acesso: 28 de outubro de 2020.

25
2.2 WRONGFUL LIFE OU VIDA INDEVIDA

Também acreditamos que cabe a discussão sobre eventual possibilidade desse tipo
de acção no caso do bebé Rodrigo juntamente com a acção de nascimento indevido. No
entanto, diferentemente da situação abordada acima, trata-se aqui de uma questão
extremamente polémica, controvertida na doutrina e pouco aceite pela jurisprudência
tanto nacional como estrangeira.

Existem duas modalidades de ações por vida indevida. A primeira refere-se à


demanda proposta pela própria criança contra o médico, que falhou em detetar a sua
malformação enquanto feto. Já a segunda modalidade é uma acção intentada também
pela criança, mas dessa vez contra seus pais, uma vez que estes decidiram conceber ou
não interromper a gravidez, mesmo tendo os devidos alertas sobre a grande
possibilidade de darem à luz um filho com malformações congénitas.

Nos reservaremos a análise apenas da primeira modalidade de wrongful life.

Podemos dizer detalhadamente que é uma acção intentada pela própria criança
deficiente, representada normalmente por seus pais, que visa obter uma indemnização
patrimonial e extrapatrimonial por considerar a sua vida como um dano. Da mesma forma
que as acções de nascimento indevido, aqui o pressuposto também é o erro médico que
impediu os seus progenitores de optar pela IVG, dando origem ao nascimento de uma
criança que vive em constante sofrimento.

O grande problema que circunda as acções por vida indevida refere-se à suposta
contrariedade em se afirmar a vida de uma criança como um dano e ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. Pode ser considerado uma forma de
desvalorizar a vida deficiente, a promover uma eugenia encoberta.

São vários os argumentos utilizados por profissionais da área no sentido de impedir a


procedência das acções de vida indevida, que iremos discutir adiante.

Como precedentes podemos citar dois casos de grande repercussão. Primeiramente o


caso francês denominado Arrêt Perruche datado de 17 de novembro de 2000 e, em
seguida, o caso holandês da bebé Kelly, de 18 de março de 2005. Ademais, também são
de grande valia as decisões emitidas pelo judiciário português.

A análise desses casos ilustrativos irá ajudar-nos a entender a limitação da aceitação


dessas acções de vida indevida por parte da doutrina e jurisprudência em todo o mundo.

26
2.2.1 Caso Perruche

A história emblemática da família Perruche inicia-se no início dos anos 80 em França.


Em 1982, o médico da família diagnosticou a filha do casal de apenas quatro anos de
idade com rubéola. Um ano mais tarde, a mãe Josette Perruche, na época grávida,
apresentou os mesmos sintomas da doença. Facto este que fez com que seu médico lhe
solicitasse um exame determinado a fim de confirmar a possível infecção.

Preocupada com a possível infecção de seu bebé, a Sra. Perruche afirma ao médico
que caso este facto viesse a ocorrer, optaria por interromper a gravidez, já que temia as
possíveis malformações no feto desencadeadas pela doença.

Assegurada pelo médico de que não possuía a doença e que o seu feto estava bem e
saudável, Josette surpreendeu-se com o nascimento de Nicolas Perruche em janeiro de
1983. O seu filho apresentava vários sintomas da síndrome de Gregg (também
denominada de rubéola congénita) como surdez bilateral, problemas cardíacos, cegueira
e danos neurológicos graves.

Toda essa situação levou a criança Nicolas, representado por seus pais, a entrar com
uma acção de ressarcimento de danos materiais e morais. Seu argumento baseou-se no
facto de que o erro do médico ao não identificar a infecção por rubéola na sua mãe a
privou de interromper a gravidez, ocasionando assim o seu nascimento prejudicado,
considerado por ele uma vida danosa.

Foram quase dez anos de julgamento e recursos. O pedido de Nicolas Perruche


abalou todo o sistema jurídico do país e desafiou os Tribunais com questões éticas,
morais e filosóficas a serem tuteladas pelo direito. Durante os oito anos de recurso, dois
julgamentos reconheceram a indemnização apenas para os pais, enquanto três
concediam o direito ao Nicolas.

O julgamento de primeira instância foi no Tribunal Superior de Évry, em 1992, no qual


foram condenados o médico e o laboratório por falha na deteção da rubéola em Josette.
Facto este que retirou da progenitora a possibilidade de realizar o aborto, tendo em vista
que já existia uma manifestação expressa da sua vontade neste sentido. Com isso, os
réus foram considerados responsáveis pelo estado de saúde atual de Nicolas Perruche.

Contudo, o médico não aceitou a decisão e recorreu à Corte de Apelação em Paris,


alegando que não possuía responsabilidade pelo exame errado do laboratório. O seu
argumento não foi aceite neste sentido, no entanto a decisão anterior foi reformada. A

27
corte entendeu não haver nexo de causalidade entre a conduta do médico e a deficiência
da criança, desconfigurando assim a responsabilidade civil.

Em 1996, a primeira Câmara Civil da Corte de Cassação volta a alterar a decisão


reafirmando o entendimento do Tribunal de Évry, em 1992. No entanto, em 1999 a Corte
de Apelação de Orleans retoma a argumentação e volta a concluir pela ausência do nexo
de causalidade.

Nicolas Perruche recorre mais uma vez e desta vez pronuncia-se a Corte de
Cassação8 em Assembleia Plena, decisão que ficou conhecida por Arrêt Perruche. Ali

https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000007041543/ data de acesso: 25 de junho de 2020.

28
ficou estabelecido de uma vez por todas que o erro de diagnóstico por parte do médico
violou o direito de autodeterminação da Sra. Perruche, que não pôde optar pela
interrupção voluntária da gravidez. Facto este que ocasionou o nascimento de uma
criança de saúde extremamente prejudicada e, que por isso esta teria direito a reparação
financeira pelos erros cometidos.

Para chegarem a esta decisão, os juízes basearam-se no postulado de que Josette


Perruche teria de facto interrompido a gravidez caso soubesse da real condição de seu
filho. E, além disso, no facto de que as malformações causadas em Nicolas pela rubéola
congénita não eram passíveis de terapia intrauterina e nem de tratamento depois do
nascimento, logo era presumível que o aborto seria a solução mais favorável ao feto.

A repercussão desta decisão foi enorme. A informação que a Corte de Cassação


passou para a população francesa foi de que houve dano causado a Nicolas, portanto foi
reconhecido o seu direito a indemnização pelo facto de ter nascido deficiente. Como na
situação dele compara-se o estado anterior ao dano ao estado posterior, fala-se em
direito de não nascer, já que era a única hipótese no caso da criança Perruche.
Lembramos aqui que a deficiência do Nicolas é inerente a ele e não foi causada pelo
profissional de saúde.

Os deficientes e associações de proteção a pessoas deficientes manifestaram-se


fortemente contra esta decisão por acreditarem que veiculava um conceito de diminuição
de valor e de dignidade de suas vidas; além de questionarem o polémico direito a não
existência.

29
2.2.1.1 LEI ANTI PERRUCHE

A última jurisprudência do caso Perruche decidida pela Assembleia Plena da Corte de


Cassação francesa dividiu opiniões. Muitos estudiosos concordavam com o argumento
básico das Associações protetoras dos direitos às pessoas deficientes, na medida em
que acreditavam que o fundamento da decisão que concedeu a indemnização a Nicolas
retirava a dignidade das pessoas portadoras de deficiência ao afirmar que a sua vida era
considerada um dano pelo facto de ser diferente do “padrão normal”. Além disso, ao criar
um novo direito, o direito de não nascer, também estar-se-ia afirmando que a não vida é
preferível a vida com deficiência.

De facto, existiram seguidores da jurisprudência à época, que defendiam o cabimento


dessa acção, tendo em vista que o não reconhecimento do direito de Nicolas Perruche
consistiria na afronta ao princípio da dignidade por impedir que o mesmo possa ter
condições melhores de vida, ao diminuir, pelo menos um pouco, o fardo que para ele é
viver.

Contudo, após algum tempo, por meio de outra demanda que visava confirmar o
mesmo entendimento dado ao caso de Nicolas pela Corte de Cassação, foi retomada a
discussão controversa. Com isso, foi proposta uma lei, e mais tarde promulgada,
designada por Lei Anti-Perruche (nª 2002-303 de 4 de março de 2002)9, que veio a
contradizer o entendimento utilizado no Acórdão Perruche em 17 de novembro de 2000.

Em linhas gerais, restou estabelecido por essa lei que ninguém pode ser indemnizado
pelo simples facto de ser nascido e nem alegar a sua vida como um dano.

Em segundo plano, também se decidiu que apenas os pais terão a possibilidade de


serem indemnizados em casos de erro de diagnóstico que não foram detetados durante a
gestação e, por isso, não permitiram que a gestante optasse por interromper uma
gravidez de um feto com deficiências.

Em relação ao direito de a criança nascida com malformações ser ressarcida,


restringiu-se às situações em que exista uma relação causal direta entre a conduta do
médico e a deficiência da criança. Aqui o legislador expressamente impediu que futuros
casos como o de Nicolas Perruche levasse ao ressarcimento da criança deficiente.

https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000000227015/ data de acesso: 25 de junho de 2020.

30
Os estudos do jurista belga Axel Gosseries10 contribuíram com essa legislação na
medida em que foi implementado, em França, um sistema criado anteriormente por ele
de reparação de danos a pessoas portadoras de deficiência independente do nexo de
causalidade entre uma acção causadora e a deficiência em si. Ou seja, era um amparo
monetário público a essas pessoas. Com isso, a lei Anti-Perruche trouxe uma ideia de
solidariedade do Estado Francês com o objectivo de garantir uma vida digna às pessoas
com qualquer tipo de deficiência.

Em contrapartida, como já dito anteriormente, essa legislação deu por finalizada toda
essa discussão ética e filosófica no âmbito da tutela jurídica patrimonial da criança
nascida com malformações ao não se permitir o direito à não existência.

10

Axel Gosseries; Faut-il couper lês ailes à l’arrêt ‘Perruche’? Publicado em: Revue Iinterdisciplinaired'études
juridiques, nº 48, 2002, páginas 93 à 110.

31
2.2.2 CASO BABY KELLY

A Holanda também se deparou com um caso de vida indevida no início dos anos
2000. Kelly Molenaar nasceu com várias deficiências físicas e mentais. O nexo causal
presente no erro médico aqui baseia-se no facto de que os pais da criança tinham
alertado o médico responsável da possibilidade e da preocupação da filha ser portadora
de graves deficiências na medida em que que existia um familiar paterno portador de
uma doença provocada por anomalia cromossómica. De forma negligente, o profissional
de saúde alegou não ser necessário realizar o DPN com fins investigativos.

Por isso, os pais intentaram uma acção de reparação de danos em nome próprio e em
nome da filha, cumulando assim as acções de vida e nascimento indevidos.

O Supremo Tribunal dos Países Baixos11, em 18 de março de 2005 pronunciou-se


considerando ambas as acções procedentes. Como argumento afirmou-se que a
actuação do médico violou o direito da mãe de abortar um feto gravemente deficiente e,
por isso, tanto o médico como o hospital foram condenados a pagar uma indemnização
por danos patrimoniais e morais aos pais de Kelly.

A criança também não ficou desamparada. Foi reconhecido o direito de Kelly Molenaar
a uma indemnização equivalente ao montante das suas despesas na área da saúde e da
educação até que completasse 21 anos. Além disso, houve uma compensação por danos
morais que teve como pressuposto o impacto de suas deficiências e o sofrimento delas
decorrente.

11

https://uitspraken.rechtspraak.nl/inziendocument?id=ECLI:NL:HR:2005:AR5213 data de acesso: 7 de julho


de 2020.

32
2.2.3 JURISPRUÊNCIA PORTUGUESA

Em relação às acções de vida indevida, o STJ pronunciou-se em duas situações:

A primeira ocorreu em 2001 e a história refere-se a uma criança, André Filipe, nascida
em 1996 com malformações nas duas pernas e na mão direita. O médico responsável
pelos cuidados durante a gravidez da mãe do André já a tinha acompanhado na sua
gravidez anterior e tinha conhecimento que à época se tratava de uma gestação de risco
por ser a mesma portadora de malformações uterinas.

Mesmo assim, apesar de ter realizado exames imagiológicos, o profissional, de acordo


com os conhecimentos da medicina na época, deveria ter optado por ser mais cauteloso
e estender propedêutica devido ao facto de a gestação ser considerada de alto risco em
decorrência da malformação uterina da gestante.

Em momento algum foi detetado pelo profissional qualquer deficiência no feto, facto
esse que levou a mãe da criança a acreditar que daria à luz um bebé saudável.

A criança, representada pela progenitora, afirma que o seu nascimento poderia ter
sido evitado caso a sua mãe tivesse o real conhecimento de sua condição deficiente,
uma vez que optaria pela interrupção da gravidez.

A acção foi interposta por André Filipe, representado por seus pais, visando ser
ressarcido por danos patrimoniais e não patrimoniais em decorrência à violação do direito
de autodeterminação de sua progenitora em interromper a gravidez, o que resultou no
seu nascimento considerado por ele próprio como um dano.

O STJ12 rejeitou a demanda e baseou-se nos seguintes argumentos principais:

12

Data do Acórdão: 19/06/2001

I - A nossa lei não prevê, no que toca à responsabilidade médica, casos de responsabilidade objectiva, nem
casos de responsabilidade civil por factos lícitos danosos - tal responsabilidade assenta na culpa.
II - Na actuação do médico, o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e protecção a que está
obrigado, pode ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais
a que contratualmente está obrigado, mas também de responsabilidade delitual, na medida em que a
referida violação represente igualmente um facto ilícito extracontratual.
III - Embora com limitações (desde logo as que resultarem de eventuais acordos das partes, dentro do
princípio da liberdade contratual), tem-se entendido que o lesado poderá optar pela tutela contratual ou
extracontratual, consoante a que julgue mais favorável em concreto.
IV - Ocorrendo a violação ilícita de um direito de personalidade (à vida ou à integridade física) na execução
de um contrato, os danos daí decorrentes assumem natureza contratual, mas a admissibilidade da
reparação de tais danos terá que sofrer restrições, sob pena de se poder gerar incerteza no comércio
jurídico; um dos possíveis critérios limitativos poderá ser o de atender à especial natureza da prestação e às

33
circunstâncias que acompanharam a violação do contrato, e terá que estar em causa uma lesão de bens ou
valores não patrimoniais de gravidade relevante.
V - No contrato de prestação de serviços que o médico celebra (contrato médico), existe como obrigação
contratual principal por parte daquele a obrigação de tratamento, que se pode desdobrar em diversas
prestações, tais como: de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, de informação; trata-se,
por regra, de uma obrigação de meios, e não de resultado, devendo o «resultado» a que se refere o art.º
1154 do CC ser interpretado como cuidados de saúde.
VI - Não há conformidade entre o pedido e a causa de pedir se o autor pede que os réus - médico e clínica
privada - sejam condenados a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que lhe advêm do facto de ter
nascido com malformações nas duas pernas e na mão direita, com fundamento na conduta negligente
daqueles, por não terem detectado, durante a gravidez, tais anomalias, motivo pelo qual os pais não
puderam optar entre a interrupção da gravidez ou o prosseguimento da mesma - o pedido de indemnização
deveria ter sido formulado pelos pais e não pelo filho, já que o direito ou faculdade alegadamente violado
se encontra na esfera jurídica dos primeiros.
VII - O direito à vida, integrado no direito geral de personalidade, exige que o próprio titular do direito o
respeite, não lhe reconhecendo a ordem jurídica qualquer direito dirigido à eliminação da sua vida.
VIII - O direito à não existência não encontra consagração na nossa lei e, mesmo que tal direito existisse,
não poderia ser exercido pelos pais em nome do filho menor.

www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a58b8e01db0db488802577a80046c040?Open
Document data de acesso: 25 de outubro de 2020.

34
Primeiramente afirma não existir conformidade entre o pedido e a causa de pedir,
tendo em vista que não seria direito do autor alegar os danos sofridos por ele com base
na violação do direito à autodeterminação da mãe, que não pôde usufruir do direito de
interromper a gravidez.

Depois, a mais polémica discussão acerca desse tema de vida indevida. A questão da
eventual procedência desse tipo de acção constituir um novo direito, que é o da não
existência. Aqui critica-se o facto de a vida deficiente poder ser considerada um dano e,
por isso ser concedido ao indivíduo afectado uma reparação em dinheiro. Com a intenção
de impedir a criação desse direito, cita-se os artigos 24 e 25 da CRP.13

Se por acaso se conseguisse vencer o obstáculo do direito à não existência, não


tutelado pelo nosso ordenamento jurídico, esbarraríamos em outro problema. A
reparação da vida de alguém que alega estar em constante sofrimento apenas poderia
ser exercido por ele próprio. Então, legitimados estariam apenas a criança deficiente
quando maior e capaz. A lógica desse raciocínio está no facto de que somente a pessoa
deficiente quando atingir certa maturidade (definida pelo CC como maioridade) consegue
ponderar e decidir se a sua vida é realmente um dano, mesmo porque o valor da vida e o
peso das deficiências variam de pessoa para pessoa.

Outra questão importante ressaltada pelo STJ nessa decisão foi sobre a
impossibilidade de calcular o valor do dano, uma vez que este consistiria numa
comparação valorativa entre a não existência e a vida deficiente.

Mais tarde o mesmo Tribunal foi provocado a manifestar-se sobre as acções de


Wrongful Life. Dessa vez, em 201314, houve uma cumulação de pedidos referentes à vida
e nascimento indevido.

13
Artigo 24 CRP:
1. A vida humana é inviolável.
2. Em caso algum haverá pena de morte.

Artigo 25 CRP:
1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.
14

Jurisprudência STJ:
Data do Acórdão: 17/01/2013

I O acordo havido entre a a Autora e os Réus com vista à efectivação dos exames neo-natais, consistentes
nas duas ecografias estabelecidas como obrigatórias no protocolo da Direcção Geral de Saúde, configura
uma obrigação de meios pois tais exames destinavam-se, primacialmente, à identificação, determinação e
informação de eventuais distúrbios e malformações do feto.

35
II Sendo a obrigação principal assumida pelo médico a de tratamento e dividindo-se esta obrigação em
outras quantas prestações diversas que passariam, ou poderiam passar, consoante o protocolo a seguir
segundo o caso concreto, por actividades de mera observação, diagnóstico, terapêutica efectiva e vigilância,
é a mesma de qualificar como obrigação de meios e não de resultado
III Há um erro médico, quando ocorra uma falha profissional, não intencional, consistente numa deformada
representação da realidade, in casu, imagiológica, decorrente das ecografias que foram efectuadas à
Autora.
III Por parte dos Réus houve uma conduta ilícita e culposa, pois poderiam e deveriam ter agido de outro
modo face à constatação inequívoca de malformações do feto, traduzindo-se a violação do dever cuidado
na preterição da leges artis na matéria de execução do diagnóstico porque este deveria ter conduzido à
aferição das aludidas malformações, atentos os meios empregues em termos de equipamento e tendo em
atenção a preparação privilegiada do Réu.
IV A conduta dos Réus ao fornecerem à Autora uma «falsa» representação da realidade fetal, através dos
resultados dos exames ecográficos que lhe foram feitos, contribuíram e foram decisivos para que a mesma,
de forma descansada e segura, pensando que tudo corria dentro da normalidade, levasse a sua gravidez até
ao termo.
V Estamos em sede de causalidade adequada, pois a conduta dos Réus foi decisiva para o resultado
produzido, qual foi o de possibilitarem o nascimento do Autor com as malformações de que o mesmo era
portador, o que não teria acontecido se aqueles mesmos Réus tivessem agido de forma diligente, com a
elaboração dos relatórios concordantes com as imagens que os mesmos forneciam, isto é, com a
representação das malformações de que padecia o Autor ainda em gestação.
VI Como deflui inequivocamente do preceituado na alínea c) do artigo 142º do CPenal, a Lei não pune a
interrupção da gravidez nos casos em que há «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de
forma incurável, de doença grave ou malformação congénita e for realizada nas primeiras 24 semanas de
gravidez», constituindo aquela solução o único meio de tutela de interesses juridicamente protegidos, isto
é, um meio sem alternativa, exigindo-se que sobre o caso haja um juízo de previsão fundada em motivos
seguros, integrada por conseguinte pela certeza de que o nascituro sofre já da doença e/ou malformação,
conduzindo desta sorte ao aborto por indicação embriopática ou fetopática.
VII A circunstância de a Lei permitir à grávidas a interrupção da gravidez nesta situação, além do mais, não
tem de per si a virtualidade de «interromper» o apontado nexo, fazendo antes parte do mesmo, porque
sendo aquela solução uma opção das interessadas, desde que devidamente informadas com o rigor que se
impõe neste tipo de ocorrências, impenderia sobre os Réus os mais elementares deveres de cuidado no que
tange à elaboração do diagnóstico, o que de forma culposa omitiram, impedindo assim a Autora de utilizar
o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em curso (inferior às vinte quatro
semanas), de não levar a termo a sua gravidez caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as
circunstâncias, daqui decorrendo o dever de indemnizar a Autora por banda dos Réus
VIII De uma maneira geral a doutrina e jurisprudência europeia e norte americana admite as acções de
wrongful birth, no caso sujeito a que se mostra intentada pela Autora, mãe do Autor, com vista a ser
ressarcida pelos danos decorrentes da gravidez, bem como aqueles que decorrem das necessidades
especiais da criança (onde se inclui a doutrina portuguesa maioritária, já que a nível jurisprudencial apenas
existe uma única decisão deste STJ a propósito desta temática, de 19 de Junho de 2001 (Relator Pinto
Monteiro)).
IX Todavia, aquelas mesmas correntes, nos casos em que a par da wrongful birth action se cumula uma
wrongful life action, esta é rejeitada in limine por se considerar inadmissível o ressarcimento do dano
pessoal de se ter nascido (para além igualmente das questões suscitadas a nível da quantificação do valor
da vida – quanto vale a vida? pode uma vida valer mais do que outra? uma vida com deficiência é menos
valiosa que uma vida sem deficiência? quais os critérios de valoração? etc - caso tal indemnização fosse
possível), sendo que esta questão nos coloca perplexidades várias, passando pelas filosóficas, morais,
religiosas, politicas, acrescidas, obviamente, das jurídicas.
X O problema com o qual nos deparamos, neste particular é o de saber se a atribuição de uma
indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor, constitui um dano
juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não nos parece ser enquadrável em
termos normativos, antes se nos afigurando a sua impossibilidade e nos levaria a questionar outras
situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as quais passariam a ter leituras diversas, chegando-
se então à conclusão que afinal poderá existir um “direito à não vida”, o que poria em causa princípios
constitucionais estruturantes plasmados nos artigos 1º, 24º e 25º da CRPortuguesa, no que tange à

36
protecção da dignidade, inviolabilidade e integridade da vida humana, quer na vertente do «ser», quer na
vertente do «não ser».
XI Nem se poderá seguir pela chamada «terceira via» da responsabilidade civil, através do enquadramento
neste instituto do contrato com eficácia de protecção para terceiro, um tertium genus, o que possibilitaria
abarcar as situações de violação de deveres específicos de protecção e cuidado emergentes daquele acordo
havido com os Réus e para com terceiros.
XII A nossa grande dificuldade, nesta possível construção jurídica, consiste na impossibilidade de se
considerar como «terceiro» o feto, pois não se pode aceitar, de todo em todo que a criança, inexistente
enquanto ser humano – em gestação apenas – face ao preceituado no normativo inserto no artigo 66º, nº1
do CCivil, que prescreve que a personalidade se adquire «(…) no momento do nascimento completo e com
vida.», possa ser tida como parte interessada num contrato havido entre aqueles que a conceberam e
outrem, sendo a mesma na altura um nascituro e por isso carecida de personalidade jurídica, sem prejuízo
da Lei lhe atribuir alguns direitos.
XIII Nenhum outro direito se afigura concretizável com o nascimento do nascituro, maxime, o decorrente de
um pretenso contrato com eficácia de protecção de terceiro (terceiro este apenas nascituro, falho da
qualidade jurídica de terceiro para efeitos obrigacionais, por ausência de personalidade jurídica), a quem a
Lei não concede qualquer protecção por via da celebração daqueloutro contrato de prestação de serviços
médicos, a não ser a protecção directa do mesmo, ou seja, a decorrente de uma actuação do médico
dirigida especificamente ao feto e por isso causadora das suas eventuais malformações, o que não se
mostra ter ocorrido no caso sub judice.
XV O Autor existe, mas concluir-se que o mesmo não deveria existir assim desta forma deficiente e por isso
tem o direito a ser ressarcido, não pode ser, uma vez que a tal se opõe, além do mais, o direito.

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e657efc25ebbdf3b80257af7003ca979?O
penDocument data de acesso: 25 de outubro de 2020.

37
Novamente o caso retrata a história do nascimento de uma criança profundamente
deficiente. Estamos a falar em ausência de mãos e braços, deformação dos pés, da
língua, do nariz, dos olhos, mandíbula e céu-da-boca. A mãe da criança realizou o DPN,
no entanto, não foram detetadas anomalias, e pelo contrário, foi informada de que estava
a gerar um feto saudável.

Mas, na realidade a progenitora tinha no seu útero um bebé que viria a padecer de
profundas deficiências.

O argumento utilizado foi idêntico ao dos casos anteriores, no sentido de que o erro
médico no diagnóstico pré-natal violou o direito dos pais à autodeterminação e à
liberdade reprodutiva, já que sabendo das reais condições do feto iriam optar pela IVG.

O pedido de indemnização dos pais por danos patrimoniais e não patrimoniais foi
aceite pelo Tribunal, contudo no tocante ao ressarcimento da criança deficiente manteve-
se o entendimento anterior da jurisprudência de 2001.

Aqui é válido ressaltar que o STJ não aceitou o enquadramento deste caso no instituto
do contrato com eficácia de proteção para terceiros, uma vez que a criança era à época
da formalização do contrato entre a gestante e o médico apenas um nascituro, que pela
nossa legislação carece de personalidade jurídica, motivo este pelo qual não pode ser
considerado parte contratual.

38
2.2.4 AS LIMITAÇÕES ÀS ACÇÕES POR VIDA INDEVIDA

Como já foi dito acima, a procedência das acções por vida indevida esbarram numa
imensa barreira ética, filosófica e moral que gera a incessante dúvida se poderia e
deveria ser tutelado pelo Direito.

Na tentativa de vencer os obstáculos expostos por doutrinadores e juristas iremos


realizar um passo a passo dos principais argumentos contra esse tipo de acções.

Inicialmente iremos abordar o facto da suposta ilegitimidade dos pais ou outro


representante legal para propor esse tipo de acção em nome da criança enquanto esta
for menor e/ou permanecer na condição de incapaz. Ora, se assim fosse correríamos o
risco de injustiçar deficientes desprovidos de capacidade, violando a sua dignidade. É
inegável que se refere a uma valoração subjectiva e individual, ou seja, somente caberia
à pessoa deficiente avaliar a gravidade das suas lesões. No entanto, trata-se na maioria
das vezes de deficiências tão gravosas que impediriam a qualquer tempo que o autor em
nome próprio pudesse reivindicar o seu direito. De acordo com Paulo Mota Pinto15, não
existe disposição legal vigente capaz de limitar as capacidades parentais no tocante a
interesses estritamente pessoais. Além disso, outra questão a se considerar é que seria
presumível que a criança quando maior e capaz se sentiria afetada pela sua condição,
razão pela qual não deverá haver óbice à demanda dos pais. Avançando mais ainda,
certo é que a vida deficiente é sim uma vida mais limitada do que a dita “normal”, razão
pela qual à criança é devida a indemnização patrimonial e moral pelo erro médico,
mesmo que a esta falte capacidade para fazer tal apreciação.

Outro problema assenta na alegação de ausência de conformidade entre o pedido e a


causa de pedir. Os defensores desse argumento afirmam que o demandante baseia o
seu direito à indemnização na privação da faculdade de abortar dos pais, ou seja, na
violação do direito de autodeterminação daqueles. Logo, a questão que aqui se levanta
refere-se à impossibilidade de o autor reclamar algo fora da sua esfera jurídica. No
entanto, quando estivermos diante da responsabilidade civil contratual, podemos vencer
esse impedimento pela utilização da figura do contrato com eficácia de proteção a
terceiros.

Explicamos melhor. O problema reside no facto de a criança, autora da acção de vida


indevida não ter sido parte no contrato de prestação de serviços médicos realizados entre

15

Paulo Mota Pinto; Indemnização em caso de Nascimento indevido e vida indevida; páginas 5 à 25.

39
o obstetra e a gestante. Contudo, alguns autores, como por exemplo, Carlos da Mota
Pinto16, defendem a existência dessa nova modalidade que reconhece além dos deveres
tradicionais entre devedor e credor, deveres especiais de proteção e cuidado com a
pessoa não participante na conclusão do negócio.

Somente poderão beneficiar do contrato, os terceiros que estiverem em contacto


próximo com a prestação principal, possuir relação pessoal ou de dependência social em
face ao credor.

Assim, com base nesse fundamento, podemos estender o contrato realizado entre a
mãe e o médico a ambos os progenitores e a criança. Uma vez que de modo patente os
três possuem o mesmo interesse que é o melhor acompanhamento médico possível
durante a gestação, assegurando o nascimento de um bebé saudável.

Por outro lado, também podemos explorar a teoria do escopo da norma violada. De
acordo com Menezes Leitão17, o autor entende somente ser necessário a comprovação
de que os danos ocasionados decorreram de um facto que violou o direito de outrem ou
norma destinada a proteger interesses alheios, variável de acordo com as duas
modalidades de ilicitude. Em outras palavras, no cenário das acções por vida indevida, os
pais na relação médico paciente visavam evitar o nascimento de uma criança deficiente.
Constituiu-se assim ser o dano um nascimento nessas condições, que ao ocorrer dá
origem ao nexo causal.

Por conseguinte, não há que se falar em ausência de conformidade entre o pedido e a


causa de pedir, tendo em vista que essas duas teorias do nexo de causalidade
demonstram ser a criança demandante parte nessa relação de prestação de serviços
médicos e que, portanto, teve ferido um direito seu.

Um dos principais argumentos contra a viabilidade dessas acções resume-se na


tradicional ideia da santidade da vida. A descriminalização do aborto em certas
circunstâncias trouxe mais direitos à mulher gestante principalmente no que diz respeito à
sua autodeterminação e liberdade reprodutiva. Além disso, as indicações fetopáticas
também vieram assegurar a dignidade de fetos gravemente deficientes e inviáveis.

16

Carlos da Mota Pinto; Cessação da posição contratual; página 423.


17

Menezes Leitão; A responsabilidade do gestor perante o dano do negócio no direito Civil português;
páginas 281 e ss.

40
Contudo, essa crença de que a vida não pode ser considerada um dano permanece até
os dias de hoje, principalmente em países extremamente católicos, como Portugal.

O problema de a vida possuir uma valoração positiva absoluta é que na maioria das
vezes não se consegue vislumbrar o real sofrimento de um deficiente profundo. É a
crença de que qualquer vida, por mais degradante, sofrida e dolorosa vale a pena ser
vivida e é preferível à não vida. Enfatizamos que esse tipo de acção não propõe uma
reconstituição natural daquilo que foi violado, mesmo porque estaríamos a fazer uma
apologia à morte da criança. No entanto, vedar-lhe o direito a uma indemnização não é
justificável por afirmar que a vida não poderia ser considerada um dano.

No tocante a esse argumento específico acreditamos que existe uma má interpretação


sobre as acções de vida indevida. Aqui a criança demandante não coloca em causa a
sua vida, apenas demonstra o nexo de causalidade entre o erro médico no diagnóstico
pré-natal e o seu nascimento com deficiência, tendo em vista que caso seus progenitores
soubessem da sua real condição teriam optado pela IVG. O pedido de indemnização
refere-se à dor e ao sofrimento de uma condição de infra-vida e não pelo facto de ter
nascido.

Concordamos com Paulo Mota Pinto18 na medida em que o autor acredita que ao
atribuir uma indemnização capaz de promover materialmente o suporte da criança a uma
vida deficiente com o mínimo de condições estaria a respeitar a dignidade desse ser
humano. Dessa forma, indemnizar uma criança deficiente não retiraria dela sua
dignidade, mas ao contrário, permitiria que sua deficiência fosse encarada de forma
menos penosa com o auxílio monetário por promover condições que diminuam a sua dor
e lhe dê maior bem-estar.

Também muito debatida nas acções por vida indevida está a suposta criação do
Direito à não existência. Muitos consideram que o facto de a criança reclamar o direito a
uma indemnização está ligado à ideia de que esta considera a sua vida um dano e por
isso seria preferível não ter nascido. Como é sabido, o ordenamento jurídico não tutela e
nem poderia tutelar esse tipo de interesse. No entanto, o dano alegado pela criança
demandante aqui não é o nascimento em si mesmo, mas o facto de a sua deficiência ser
tão grande que torna insuportável para ela a dor e o sofrimento causado, e é por isso que
tem lugar a sua demanda. Esclareço mais uma vez que este não se dá pelo nascimento

18

Paulo Mota Pinto; Indemnização em caso de nascimento indevido e vida indevida; página 20.

41
de alguém, mas pelos danos graves decorridos da sua deficiência, que juntamente com
os outros requisitos da responsabilidade civil permitem que seja vindicado o seu direito.

Talvez seja tão difícil identificar o dano nessas acções e também separar os conceitos
de nascimento, nascimento deficiente, vida deficiente e vida como um dano, porque aqui
a criança já nasce com o dano que ela reclama. Ou seja, a partir do momento que é
considerado pessoa já possui o dano, qual seja a sua vida deficiente. Na realidade esta
deficiência é inerente à criança. O que torna a acção passível de indemnização é a falha
do diagnóstico médico em detetar essa condição, já que este não agiu conforme as
regras da profissão.

Mais uma vez a dificuldade de entender as acções por vida indevida baseia-se na
comparação da condição do lesado antes e após o dano. Assim, seria fácil acreditar
tratar-se de uma comparação entre o nascimento deficiente (que era a única hipótese da
criança) e a condição anterior, que era o não nascimento, já que os pais teriam optado
pela IVG caso não houvesse falha no diagnóstico pré-natal do médico. Contudo, esse
tipo de comparação não pode ser feito pelo direito, diante da não consagração do direito
à não existência no nosso ordenamento jurídico. O que se faz é uma comparação entre a
vida dita “normal” e a vida deficiente. É nesse aspeto que o demandante consegue
exercer o seu direito de ser ressarcido por danos patrimoniais e morais, decorridos de
todas as suas limitações, dores e sofrimentos pela condição de deficiente.

Coloca-se em causa se o facto de ressarcir uma pessoa por ser portadora de


deficiência retirar-lhe-ia a sua dignidade. Nas últimas décadas essas pessoas têm lutado
pelos seus direitos, tanto de igualdade no sentido de terem os mesmos direitos que as
pessoas ditas “normais” como no sentido de demonstrar à sociedade que devido às suas
condições seriam necessárias certas mudanças físicas para que pudessem integrar-se
na comunidade. Por isso, não podemos compactuar com a ideia de que diante de um
erro médico uma indemnização concedida pelo judiciário seria algo que lhe diminuísse
como pessoa. Na realidade, como já foi dito anteriormente, acreditamos que justamente
pelo facto de as pessoas com qualquer tipo de deficiência terem os mesmos direitos que
as “outras” é que se promove sua dignidade ao permitir, ao menos monetariamente, que
as suas limitações sejam menores.

Além disso, reconhecer uma vida deficiente e seus danos provenientes dessa
condição não é desvalorizar alguém por considerar que a sua vida não mereça ser vivida,
retirando-lhe a sua dignidade. Há que se separar dois conceitos diferentes; um refere-se
a vidas indignas de serem vividas, conceito não admitido e outro diz respeito a condições

42
de vidas indignas, quando se fala em uma criança gravemente deficiente, por exemplo a
Kelly Molenaar.

Outro obstáculo colocado em causa é a impossibilidade de calcular o valor do dano.


De facto, ao pensarmos nas acções por vida indevida como uma comparação entre a
única forma de vida daquela criança em si, que é a vida deficiente, e sua condição
anterior à lesão, que seria a não vida, concordaríamos com essa afirmação. No entanto,
como já é sabido, não é isto que ocorre. Estamos diante da comparação de uma vida dita
“normal” e uma vida deficiente. Apesar de ser difícil realizar o cálculo do dano por se
tratar de valores extremamente subjectivos, como por exemplo dor, sofrimento e lesões
em sede moral, hoje já existem diversas decisões jurisprudenciais com diferentes valores
de indemnização sobre questões extremamente pessoais sem grandes dificuldades de
cálculo. No que diz respeito ao dano patrimonial torna-se um pouco mais fácil por serem
mais mensuráveis os gastos com educação especial, gastos médicos e hospitalares,
despesas pessoais, entre outros.

Para exaurir o rol dos principais argumentos contra essas acções, falaremos agora
sobre a impossibilidade de se considerar o nascituro como parte integrante do contrato
estabelecido entre a gestante e o médico obstetra, através da figura do contrato com
eficácia de proteção a terceiros. É aceite pela doutrina considerar o nascituro como parte
integrante desse contrato estabelecido para que se possa caracterizar o pressuposto do
nexo de causalidade na responsabilidade civil.

Contudo, alguns autores, valendo-se da legislação civil, afirmam que a personalidade


jurídica apenas surge do nascimento com vida, e que por esse motivo o nascituro não
poderia ser enquadrado como parte contratual. É de suma importância o entendimento de
Vera Lúcia Raposo19, na medida em que, apesar dessa referida disposição legal, afirma
que alguns direitos patrimoniais a que estes virão a serem titular reportam-se a um
momento prévio ao seu nascimento. Ou seja, os direitos de uma pessoa só surgem com
a sua personalidade jurídica, que, por sua vez, só se inicia com o nascimento com vida.
De outro modo, aos nascituros são assegurados alguns direitos que, no entanto, ficam
suspensos até que ocorra o dito nascimento com vida. O que queremos demonstrar,
pactuando da ideia da autora é que a criança nascida pode reivindicar o seu direito ainda
que o facto lesivo seja retroativo ao momento em que era apenas um nascituro.

19

Vera Lúcia Raposo; As wrong actions no início da vida (wrongful Conception, wrongful birth e wrongful life)
e a responsabilidade médica; páginas 61 à 99.

43
Com isso, resta demonstrado que pela via da figura do contrato com eficácia de
protecção a terceiros, o nascituro, através das disposições da legislação civil atual possui
capacidade para ocupar a posição de contraente, ao lado dos pais, da prestação de
serviços médicos.

Importante ressaltar que o objectivo aqui não é afirmar com total clareza a procedência
dessas acções, apenas contra-argumentar essas questões postas pelos diversos
Tribunais para que se possa sopesar os dois lados e enriquecer a discussão sobre a vida
indevida. Além disso, contribuir para um possível consenso futuro, já que pelo menos em
Portugal, esses argumentos não mudaram desde o início dos anos 2000, em que pese
todo o avanço na bioética e biodireito.

44
2.3 ENQUADRAMENTO DAS ACÇÕES DE NASCIMENTO E VIDA INDEVIDOS NOS
REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Como mencionado acima, para que haja responsabilidade civil é necessário que sejam
preenchidos cumulativamente cinco requisitos: (1) o facto voluntário do agente; (2) a
ilicitude; (3) a culpa; (4) o dano e (5) o nexo causal entre a conduta e o resultado danoso.

Esse primeiro requisito refere-se a uma acção ou omissão humana. Tanto no caso das
acções de nascimento indevido como de vida indevida temos o mesmo facto ilícito: a
abstenção do médico, quando este deveria agir de acordo com a leges artis da medicina.
São exemplos o facto de o profissional não realizar os exames relativos ao pré-natal na
gestante ou, mesmo quando os realiza, não informa o resultado correcto aos pais,
violando assim o direito destes sobre a sua liberdade reprodutiva.

Passemos para a análise do segundo requisito. De acordo com o artigo 483 do CC20, a
ilicitude pode derivar da violação de um direito de outrem ou, de violação de lei que
protege interesses alheios.

Em relação às acções por nascimento indevido, é fácil detetar a ilicitude. Esta resulta
de dois fatores. Pode-se falar sobre a conduta do médico, que, ao falhar um diagnóstico
pré-natal que poderia e deveria ser constatado, demonstra evidente a sua violação das
regras da arte médica pelo seu comportamento negligente. E, no tocante aos pais da
criança, estes tiveram o seu direito à autodeterminação e liberdade reprodutiva violados
na medida em que o diagnóstico médico erróneo sobre o seu bebé os impediram de optar
pela IVG.

Já em relação à caracterização da ilicitude nas acções por vida indevida, a análise


deverá ser mais acurada. A ilicitude resulta aqui na violação de um dever subjectivo, que
seria o direito da criança vir a nascer saudável e além disso, a violação do dever
profissional de agir de acordo com a leges artis. Contudo, fica difícil identificar a ilicitude
nesses casos, porque, como já explicado anteriormente, ao ser reivindicado pela criança
um ressarcimento por considerar sua vida um dano, a interpretação que se faz é que esta
se vale de um direito à não existência, direito este não consagrado no nosso
ordenamento jurídico. O que a criança reclama na realidade é o seu nascimento

20

Artigo 483 CC:


1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da
violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.

45
deficiente, que não foi detetado pelo médico responsável quando poderia e deveria fazê-
lo.

Em relação à culpa, para que o lesante tenha o dever de ressarcir o lesado, é


imprescindível, primeiramente, que este seja imputável, depois, que lhe fosse exigível
agir de outra maneira.

Quando da análise de seu comportamento, exige-se que o profissional actue como um


“bom pai de família”, conceito trazido pelo CC, que significa o dever de agir como um
homem médio. Na medicina esse conceito diz respeito ao cumprimento das leges artis
como principal obrigação e, veio transmutado da legislação civil pela autora Vera Lúcia
Raposo21 como “médico médio” com o objectivo de demonstrar que é exigido legalmente
de qualquer profissional médico uma diligência dentro dos padrões da normalidade, ou
seja, médio.

Importante ressaltar que nas acções de nascimento e vida indevidos, o dever de


ressarcimento ao lesado dá-se pela negligência médica e não pelo dolo. Refere-se à falta
do dever de cuidado, por exemplo, ao não pedir determinados exames necessários em
sede de diagnóstico pré-natal, ou, não detetar malformações no feto quando possível
através das ultrassonografias, além de não informar os pais acerca da possível
deficiência de seu filho.

Também aqui cabe relembrar como funciona o ónus da prova. Como já foi referido
anteriormente, a legislação civil estabelece que na responsabilidade civil extracontratual
cabe ao paciente lesado fazer a prova de que o profissional lesante agiu com culpa. E, na
responsabilidade civil contratual é precisamente o contrário. Aqui se estabelece a
inversão do ónus da prova e, por isso, é o médico lesante que fica encarregado de provar
que agiu conforme deveria.

Sobre o dano, a constatação do prejuízo é condição obrigatória para que haja o dever
de indemnizar. Como já vimos, talvez esse seja o requisito mais problemático de todos da
responsabilidade civil ao tentar enquadrar as acções por vida indevida.

Acreditamos que os danos patrimoniais devem ser ressarcidos ao autor da acção de


vida indevida porque possuem o condão de auxiliar materialmente a criança a suportar os
encargos de sua deficiência, sejam estes gastos com equipamentos médicos, com
cuidadores e assistentes de saúde vinte e quatro horas por dia, entre outros.

21

Vera Lúcia Raposo; Responsabilidade Médica em sede de diagnóstico pré-natal; página 85.

46
Em relação aos danos não patrimoniais, ou morais, observa-se maior discussão
doutrinária e jurisprudencial quanto ao cabimento. Para nós os danos morais devem ser
ressarcidos uma vez que visam compensar a criança pela dor e sofrimento
desencadeados pela sua deficiência. Vale dizer que não se faz aqui um apelo para que
estas pessoas sejam indemnizadas. Não é a condição de deficiente por si só que garante
a alguém um ressarcimento, mas sim o sofrimento e as dores que poderão existir de
acordo com cada caso concreto.

Sobre o nexo de causalidade importa conceituar que se refere ao vínculo existente


entre a conduta do agente lesante e o dano sofrido pela vítima.

O CC consagrou no seu artigo 56322 a teoria da causalidade adequada. Significa dizer


que aquele que praticou o acto lesante somente estará obrigado a reparar o dano se ficar
comprovado que este foi consequência única e específica do referido acto.

Esta teoria dificulta a visualização do nexo causal nas acções de vida indevida, tendo
em vista que nesses casos o médico violador das leges artis não causa a deficiência da
criança. Ele apenas não é capaz de detetá-la quando era previsível e exigível que o
fizesse. A deficiência que está em causa é inerente ao bebé, ou seja, este só poderia ter
nascido da forma que se apresenta.

Contudo, partilhamos do entendimento do doutrinador Guilherme de Oliveira23. Para


ele não há necessidade dessa causalidade ser directa, basta que exista uma causalidade
indirecta ou mediata, capaz de demonstrar o vínculo existente entre a conduta e o
prejuízo da vítima. Ao transportar esse entendimento para as acções aqui em causa,
pode-se falar que o erro médico no diagnóstico pré-natal (acto), criou um dano que foi a
violação do direito á autodeterminação dos pais em relação à IVG (dano 1), que por sua
vez deu origem ao nascimento de um bebé deficiente (dano 2). Ou seja, na realidade
pode ser estabelecida uma relação de causalidade mesmo que o acto principal não
produza diretamente o dano, mas proporcione um segundo acontecimento capaz de criar
a produção do dano principal.

Alguns autores exigem diante desse cenário que seja feita prova de que a gestante,
diante da real situação do feto, optaria pela IVG. Essa prova poderia ser feita por

22

Artigo 563 CC:


A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido
se não fosse a lesão.

23

Guilherme de Oliveira; Temas de Direito da Medicina; página 230.

47
exemplo através de testemunhas (pessoas próximas ou até mesmo o médico caso tenha
sido declarado pela progenitora a sua vontade nesse sentido), ou pela comprovação de
que a mesma já teria realizado um aborto anteriormente. No entanto, discordamos desse
posicionamento porque acreditamos que o simples facto de retirar dos pais a
possibilidade de escolha da interrupção da gravidez frente àquela situação concreta já
violaria o seu direito à autodeterminação e liberdade reprodutiva, mesmo que no final das
contas a gestante optasse por ter o bebé gravemente deficiente.

Apesar do nosso CC consagrar a teoria da causalidade adequada, como já foi


mencionado acima, alguns autores também se socorrem da teoria do escopo da norma
violada para explicar o nexo causal nas acções de vida indevida. Em outros termos,
configura-se o nexo causal dentro da responsabilidade civil pela simples violação de
direito de outrem ou da norma destinada a proteger interesses alheios. Vale dizer, na
relação médico gestante, se visava a proteção do nascituro através do acompanhamento
pré-natal e o nascimento de uma criança saudável, constituindo o dano um nascimento
deficiente. Uma vez que isso ocorra, fala-se em violação da norma destinada a proteger
interesses alheios, segunda modalidade de ilicitude prevista no artigo 483, nº 1 do CC.

Em relação às acções de nascimento indevido é muito mais fácil identificar o nexo


causal. Esse refere-se à falha médica no que concerne à correta informação sobre a
anomalia congénita do nascituro que privou os pais, ou mais precisamente a mãe, de
optar pela IVG, violando assim seu direito de autodeterminação e liberdade reprodutiva.
De facto, é difícil fazer prova de que caso a conduta do médico fosse a correta, a
progenitora realmente optaria pelo aborto. Contudo, mais uma vez partilhamos da ideia
de que não é imprescindível ter essa certeza, uma vez que o dano potencial resultaria da
mera privação de sua possibilidade de escolha.

48
3 RESPONSABILIDADE PENAL

Quando falamos em direito ou em processos jurídicos normalmente a primeira coisa


que vem a cabeça das pessoas é o encarceramento em sistema prisional. Percebe-se aí
a grande notoriedade da responsabilidade penal. Existe uma ideia de que a prisão de um
criminoso ou alguém que agiu de maneira a lesar o direito de outrem é a maior e melhor
satisfação que a vítima poderia ter. De facto, em parte dá para compactuar com isso,
tendo em vista que a restrição da liberdade é a pena mais gravosa existente no
ordenamento jurídico português.

Contudo, importa ressaltar que a responsabilidade penal decorre do cometimento de


um crime. Sabe-se que o direito penal é a última ratio, ou seja, somente é acionado na
hipótese dos outros âmbitos do direito não serem capazes de trazer uma sanção de
forma satisfatória ao bem jurídico tutelado.

Por isso, o grau de culpa exigido, quando da análise de uma suposta responsabilidade
penal, é infinitamente superior ao da responsabilidade civil. Ainda que a mesma conduta
possa integrar acções no âmbito civil, criminal e disciplinar separadamente, uma eventual
sentença absolutória em algum desses ramos não faz coisa julgada no outro.

O Direito Penal define como crime uma conduta típica, ilícita, culposa e punível.

O facto típico pode ser estabelecido por uma acção ou omissão humana que gera um
resultado que deve estar previsto legalmente como crime.

Por ilicitude entende-se ser a relação de contrariedade entre facto típico e o


ordenamento jurídico.

Ao tratar do juízo de ilicitude na responsabilidade médica, utiliza-se o conceito das


leges artis na tentativa de interpretar corretamente o que seria uma conduta (acção ou
omissão) contrária as normas técnicas estabelecidas pelas regras da medicina naquela
área específica. Contudo, quando estivermos diante de uma ausência dessa previsão,
deve-se recorrer ao modelo padrão da prática e do costume médico.

É necessário chamar a atenção, como afirmam os autores Paula Ribeiro de Faria24 e


Figueiredo Dias25, para o facto de que as regras estabelecidas pelas leges artis da

24

Paula Ribeiro de Faria; Erro em Medicina e Direito Penal; página 17.


25

Jorge de Figueiredo Dias; Direito Penal parte Geral – Questões fundamentais da doutrina geral do crime
Tomo I; página 877.

49
medicina se referem a uma valoração médica e técnica, pela qual se torna inviável uma
exata conformidade desse conceito com a violação do dever objectivo de cuidado,
referente a uma valoração jurídica. Certo é que se pode afirmar ser a violação da leges
artis apenas um indício de violação do dever objectivo de cuidado por parte do
profissional médico.

Quando falamos em culpabilidade referimo-nos à análise de três elementos. A


imputabilidade do agente, ou seja, o conjunto de elementos subjectivos capazes de lhe
conferir o discernimento para gerir os seus actos. Além disso, há um valor sobre a
potencial consciência da ilicitude, referindo-se à capacidade do agente em compreender
o carácter ilícito da sua acção. Por fim, a exigibilidade de conduta diversa é o juízo de
ponderação se àquele agente poderia ser exigido que agisse de maneira diferente
daquela que agiu.

Sobre a conduta do médico em sede de responsabilidade penal fala-se em ilicitude e


culpabilidade quando o profissional não actuou conforme as leges artis a que era adstrito.
Dessa forma, a origem dessa responsabilização está na ausência dos cuidados exigidos
dentro do campo profissional.

De suma importância está a necessidade de o autor possuir a habilitação para o


exercício da medicina, caso contrário incorre também em outros crimes.

Além disso, no tocante à culpa, esta não tem dolo, ou seja, o autor médico de facto
produziu um dano ao paciente, contudo sem a intenção. Refere-se à culpa comum, na
qual existe a ausência do cuidado, porém o resultado era previsível. É a negligência em
sentido lato que se subdivide em negligência sentido strictu, imprudência e imperícia.

Como já dito acima, referimos aqui ao erro negligente, modalidade de culpa, tendo em
vista que não é comum o profissional médico ter a intenção de lesionar o paciente. A
violação do dever objectivo de cuidado a que está obrigado o médico divide-se na
previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico e na não observância
de cuidado objectivamente adequado a impedir o resultado típico.

Entendemos que recairá sobre o médico uma responsabilidade penal sempre que
possa ser comprovado que ao violar o dever objectivo de cuidado deu origem ao
resultado morte ou ofensas à integridade física.

Assim, podemos subdividir a inobservância do dever objectivo de cuidado em três


modalidades. São elas:

50
1. A negligência em sentido strictu, que se refere à omissão médica, ou seja, o
profissional deixa de actuar quando necessário.

2. A imprudência que, pelo contrário, se refere a uma atuação precipitada do médico


no que diz respeito ao zelo e ao cuidado com o objectivo final.

3. A imperícia que por sua vez é a falta de aptidão técnica do profissional. Este não
possui a habilidade necessária para realizar o trabalho previamente estabelecido.

É pacífico na doutrina, com destaque para o autor Faria da Costa26, que o termo
negligência grosseira (tratando-se aqui de negligência em sentido lato) é entendido como
a violação do dever objectivo de cuidado mais grave na medida em que se refere ao
completo desrespeito pelas normas que visam assegurar uma correta diligência daquele
que é responsável pela conduta.

Feitas estas considerações, iremos analisar o caso concreto do bebé Rodrigo e tentar
perceber se caberia ou não uma responsabilidade penal do médico Artur Carvalho.

A doutrina portuguesa questiona-se acerca da relevância penal nos comportamentos


que ocorrem durante a gestação e afectam a criança depois do seu nascimento.

É entendimento majoritário que o direito penal apenas tutela os bens jurídicos da vida
e integridade física do ser humano sujeito de direitos, ficando reservado ao feto apenas a
tutela no que diz respeito ao seu direito de desenvolvimento intrauterino. A tipificação do
aborto em algumas hipóteses dispostas nos artigos 140 e 141 do CP27 corroboram esse
entendimento.

26

José de Faria Costa; Direito Penal Especial – Contributo a uma Sistematização dos problemas “especiais” da
Parte especial; página 94.
27

Artigo 140 CP: Aborto


I. Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com
pena de prisão de dois a oito anos.
II. Quem, por qualquer meio e com o consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com
pena de prisão até três anos.
III. A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto
próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até três anos.

Artigo 141 CP: Aborto agravado


I. Quando do aborto ou dos meios empregados resultar a morte ou uma ofensa à integridade física
grave da mulher grávida, os limites da pena aplicável àquele que a fizer abortar são aumentados de um
terço.
II. A agravação é igualmente aplicável ao agente que se dedicar habitualmente à prática de aborto
punível nos termos dos nºs 1 ou 2 do artigo anterior ou o realizar com intenção lucrativa.

51
É necessário termos a consciência de que o CP não prevê casos em que se pune uma
lesão dolosa ou negligente ao embrião. Por outras palavras, podemos afirmar que não se
pode recorrer à legislação penal para aplicar uma sanção àquele que de forma imperita,
através da violação do dever de diligência não foi capaz de diagnosticar correctamente
uma ecografia obstetrícia. Facto este que a partir do nascimento da criança trouxe uma
série de danos não somente a ela, mas também à progenitora.

Apesar do incrível desenvolvimento da ciência nas últimas décadas, o que também


deu origem a mudanças de paradigmas e de questionamentos em torno da biomedicina e
da bioética, deparamo-nos ainda com a difícil tarefa de caracterizar os direitos do
nascituro e enquadrá-los de acordo com os avanços da medicina genética e reprodutiva.

A legislação penal ainda determina ser a partir do instante do nascimento que se inicia
a tutela aos direitos do ser humano.

Partilhamos da assunção de Roxin28, quando este acredita que ao embrião são


devidos alguns direitos, pelo facto de que mesmo antes do nascimento já é considerado
uma forma de vida. É o que o autor mesmo diria se tratar de cessar a condição de fim em
si mesmo do embrião. Contudo, também não podemos ignorar o argumento segundo o
qual se afirma que por mais que se possa considerar o embrião uma forma de vida, esta
ainda é muito precoce, e está sujeita a inúmeras intercorrências antes de se tornar um
ser humano sujeito de direitos. Por isso, não seria justo que as duas formas de vida
tivessem o mesmo valor e a mesma tutela jurídica. Não obstante, não se pode desprezar
o argumento apontado por alguns no sentido da necessidade de tutelar a condição do
feto, mas além disso valorar de forma diferente o nascituro de acordo com a idade
gestacional, tendo em vista que quanto mais avançada, mais próximo está de se tornar
um ser humano e, por isso, deveria ter mais direitos do que um feto recente.

É importante também realçar que existem alguns autores que discordam da ideia de
que aos embriões somente deveria ser concedido certos direitos. Para Pedro Vaz Patto29,
as vidas intra e extrauterina não devem ser diferenciadas no que diz respeito à proteção
dos seus direitos. Ainda, ousamos em discordar de Lobo Xavier30, por afirmar que não

28

Claus Roxin; tradução Luís Greco, Estudos de Direito Penal, páginas 167 e 168.
29

Pedro Vaz Patto, No cruzamento do direito e da ética.


30

Rita Lobo Xavier, O respeito pela vida humana não nascida e respectiva tradução no ordenamento jurídico
português.

52
existe distinção entre os estádios de desenvolvimento do feto/embrião e a pessoa já
nascida, razão pela qual acredita que toda vida tem igual valor.

Há que se encontrar um meio termo, que não negue ao embrião qualquer direito, mas
também que não o iguale ao daquela pessoa já nascida.

Podemos afirmar que a CRP não esclarece se ao embrião e ao nascituro são


atribuídos direitos e quais seriam eles. No artigo 24, inciso primeiro está disposto que a
vida humana é inviolável. Contudo, resta a dúvida, seria a vida daquele que ainda não
nasceu considerada uma vida humana e por isso assegurados os direitos inerentes a
qualquer pessoa?

Ao tentar responder essa questão, o TC31 apela à interpretação de que somente goza
do direito à vida preceituado pela CRP aquele que é pessoa humana, já nascido e por
isso sujeito de direitos.

31

Jurisprudência do TC:
Data do Acórdão: 8/07/2009

1 - Filomena de Lurdes da Rocha Carvalho Ferreira instaurou no Tribunal Judicial de Penafiel acção
declarativa (processo n.º 1187/04.9 TBPNF) contra Aida Maria da Silva Vieira, Joaquim Batista Perdigão
Neves e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe uma
indemnização de (euro) 276.035,00, acrescida de juros de mora, por danos patrimoniais e não patrimoniais
sofridos em consequência de acidente de viação imputável à Ré Aida Maria e ao condutor não identificado
de outro veículo.

Nos danos alegados estavam incluídos a perda da vida do seu filho intra-uterino e o sofrimento deste no
período que antecedeu a sua morte.

Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, tendo
absolvido os Réus do pedido formulado.

Inconformada, a Autora recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão
proferido em 18 de Junho de 2007, julgou o recurso parcialmente procedente, tendo condenado os Réus
Aida Maria da Silva Vieira e o Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora a quantia de (euro)
161.972,56, acrescida de juros de mora, e absolvido o Réu Joaquim Batista Perdigão Neves do pedido.

O recurso não logrou provimento, além do mais, quanto à parte da decisão recorrida relativa ao pedido de
indemnização pelos danos imputados à perda da vida do filho intra-uterino da Autora e do sofrimento deste
no período que antecedeu a sua morte.

2 - Quer a Autora quer o Fundo de Garantia Automóvel recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal
de Justiça (STJ), questionando a correcção jurídica da resposta dada a várias questões com influência no
julgado.

3 - Na parte que concerne à Autora e nas alegações de recurso apresentadas perante o Supremo Tribunal
de Justiça, esta alegou, entre o mais que "o artigo 24.º da Constituição protege o direito à vida e
integridade física e psíquica do ser humano" (1); a ofensa do direito à vida intra-uterina constitui um facto
ilícito gerador de responsabilidade" (2); para reparar a perda do direito à vida do filho nascituro da autora é

53
ajustada a quantia de (euro)50.000,00" (3); deve ser fixada no montante peticionado a indemnização para
reparar o sofrimento do filho da autora entre a data do acidente e a morte" (4) e "a não se entender assim
ou seja, que o artigo 66.º do Código Civil o não permite, será tal interpretação materialmente
inconstitucional, porque ofensiva do disposto no artigo 24.º da lei Fundamental" (5).

4 - Por acórdão proferido em 9 de Outubro de 2008, o STJ julgou improcedente o recurso da Autora e
parcialmente procedente o recurso do Fundo de Garantia Automóvel, revogando a decisão recorrida
apenas no segmento em que condenou esta parte no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de
(euro) 130.000,00 a partir da citação, determinando que tais juros se vencem a partir da sentença da 1.ª
instância.

5 - Dizendo-se, mais uma vez inconformada, a Autora interpôs recurso do acórdão do STJ para o Tribunal
Constitucional, através de requerimento do seguinte teor:

"[...] vem, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 75.º-A, n.os 1 e 2 da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do douto acórdão recorrido
no que tange à questão da inconstitucionalidade material suscitada nas alegações de recurso para este
Tribunal, por violação do artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa que protege a inviolabilidade
da vida humana, inclusive a intra-uterina cuja violação ilícita é ressarcível civilmente".

6 - Convidada pelo primitivo relator a "explicitar de forma clara, precisa e concisa a interpretação normativa
contida na decisão recorrida cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, com a cominação prevista
no artigo 75.º-A, n.º 7, da LTC", a Autora veio a apresentar um longo requerimento em que, além do mais,
diz que «o objecto do recurso de inconstitucionalidade é o, salvo melhor opinião, errado entendimento
sufragado pelo douto acórdão recorrido proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, na
interpretação segundo a qual "o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental ao considerar a vida humana
inviolável está a impor a protecção genérica da gestão humana, sem considerar o nascituro como centro
autónomo de direitos"»

7 - Tendo sido determinada a produção de alegações sobre o recurso de constitucionalidade, a recorrente


concluiu-as do seguinte jeito:

"A) A nossa ordem juridico-constitucional, máxime, no artigo 24.º, n.º 1, protege a vida humana desde a
concepção e até à morte natural.

B) A vida humana que a nossa lei fundamente protege não é a abstracta mas sim a concreta de cada ser
humano, como sujeito de direitos, in casu, do filho nascituro já concebido e completamente formado da
autora e ora recorrente.

C) A vida humana existe desde a concepção ou pelo menos desde a nidificação ou seja da implantação do
embrião no útero da mãe.

D) A partir da concepção passa a existir um "ser humano", sujeito de direitos, reconhecido pela ordem
jurídica, com interesses próprios e diferentes dos da mãe e até com quem pode entrar em conflito e que
são exercitáveis judicialmente, até pelo pai biológico.

E) Se a lei fundamental tutela o bem jurídico colectivo e objectivo da identidade e inalterabilidade do


património do genoma humano, mais terá de tutelar a própria vida humana por esta ser um prius em
relação àquele.

F) Que a vida intra-uterina é humana, máxime, a existente no embrião e feto não restam dúvidas, pois se
nada impedir a sua evolução natural formar-se-á um ser humano, como aconteceu, in casu.

G) A nossa lei fundamental ao proteger os mais fracos e débeis, quis, seguramente, incluir o nascituro já
concebido, ou seja, a vida humana desde o seu início e até à morte natural.

54
H) A vida humana só deve ceder em caso de conflito com outra vida humana e segundo o princípio do
interesse preponderante.

I) Aquando da morte do filho da ora recorrente o feto estava já completamente formado, (de termo) tendo
perfeita autonomia física e psíquica em relação à mãe biológica, estando em condições de poder sobreviver
à luz do dia, não fosse a agressão letal sofrida, pelo que não pode deixar de qualificar-se, pelo menos neste
caso, juridicamente como um ser humano sujeito de direitos e com direito à vida.

J) Na verdade se a agressão tivesse sido de menor gravidade e o feto tivesse sobrevivido a esta, este teria
vindo ao mundo por cesariana ou espontaneamente, dado estar completamente formado e com total
autonomia da mãe biológica, podendo, pois demandar judicialmente o agressor pelos danos materiais e
morais sofridos, pelo que não faz qualquer sentido, que tendo a agressão sido letal, não possa exercitar o
seu direito pela perda do seu bem mais precioso, a vida humana, o que seria juridicamente inaceitável, o
que tudo bem demonstra que o feto é um ser humano cuja vida é tutelada jurídico constitucionalmente.

K) Uma vez que o filho da autora à data da morte se encontrava completamente formado, com forma
humana e sem deformidade e ou aleijão, como se vê dos autos, máxime, com um peso de 3.495
quilogramas, com 9 meses de gestação e com a altura de 0,515 metros, tendo falecido "in útero", em
consequência das lesões traumáticas meningeas, associadas à asfixia, provocadas pelo poli traumatismo
sofrido pela mãe, em consequência do acidente dos autos, não pode deixar de qualificar-se o mesmo como
"ser humano", sujeito de direitos, incluindo o direito à vida.

L) O artigo 24.º, n.º 1, da lei fundamental não distingue entre vida intra-uterina e extra-uterina, pois o que
quis dizer foi que onde existir vida humana, máxime, pertença da espécie humana, dada a sua dignidade, a
mesma é juridicamente tutelada como sujeito de direitos, só podendo ceder em caso de conflito com outra
vida humana, sendo assim um valor absoluto, princípio e fim da sociedade humana.

M) Justifica-se, assim, uma interpretação abrangente do dito normativo constitucional, de modo a incluir
toda a vida humana desde a concepção e até à morte., porque toda ela merecedora de igual protecção, em
especial quando é mais débil, maxime, no princípio e fim.

N) Não faz assim sentido de um ponto de vista jurídico constitucional não proteger a vida humana ou
proteger menos na sua fase embrionária ou fetal, pois pelo contrario resulta do texto fundamental que este
quis proteger, em particular, os mais débeis e indefesos, onde se incluem os nascituros já concebidos.

O) A nossa Constituição deve ser interpretada do ponto de vista espiritualista ou seja no sentido de que a
mesma assimilou os valores culturais dominantes na nossa sociedade ocidental na qual a vida humana é
sagrada e inviolável desde o seu início e até à morte natural.

P) O filho da ora recorrente como ser humano, com dignidade própria, é um sujeito de direitos,
reconhecido pela ordem jurídica, tendo assim direito à vida, por cuja perda tem direito a ser ressarcido
civilmente.

Q) Mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer o filho da autora como ser humano e
com direito à vida, reconhecido pela ordem jurídica, pelo que a perda desta é ressarcível civilmente
conforme foi peticionado.

R) O valor a ressarcir pela perda do direito à vida deve ser igual para qualquer ser humano não devendo ser
graduado, pois trata-se de um valor absoluto e sem preço.

(…)

15- Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.

55
Declaração de voto

Votei vencido por entender que podia e devia ter sido conhecido o mérito do recurso interposto, tendo o
Tribunal Constitucional perdido uma excelente oportunidade para se pronunciar sobre um tema de especial
importância como é o do alcance da protecção do direito à vida.
Na verdade, a recorrente nas alegações apresentadas perante o Tribunal recorrido suscitou a questão da
inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do Código Civil, no sentido "de que o nascituro não é
titular de um direito à vida, cuja ofensa deva ser indemnizada".
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional efectuou-se a indicação da
norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que fosse verificada por mera remissão para a questão que
havia sido suscitada perante o tribunal recorrido.
Convidada a enunciar expressamente a interpretação cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, a
recorrente optou por uma formulação indirecta, apontando qual a interpretação que o tribunal deveria ter
seguido para respeitar o parâmetro constitucional que entendia violado pela interpretação perfilhada pelo
acórdão recorrido - "a interpretação feita pelo tribunal recorrido é materialmente inconstitucional, por
violar frontal e directamente o disposto no artigo 24.º n.º 1 da Lei Fundamental, já que este normativo deve
ser interpretado no sentido de proteger o direito à vida, mesmo a intra-uterina, máxime, a do filho da
autora, como titular de direitos, inclusive o direito à vida, violação esta que é ressarcível civilmente".
Apesar deste não ser o método mais correcto e esclarecedor de apontar a interpretação normativa cuja
fiscalização se pretende, face aos termos em que havia sido suscitada a questão perante o tribunal
recorrido e para a qual a recorrente remeteu no requerimento de interposição de recurso, é perfeitamente
possível verificar que foi vontade da recorrente arguir perante este Tribunal a inconstitucionalidade da
interpretação do artigo 66.º, do CC, no sentido de que o nascituro concebido não é titular de um direito à
vida, cuja ofensa deva ser indemnizada.
Essa vontade foi depois inequivocamente precisada pela recorrente nas alegações de recurso apresentadas.
Foi, pois, perceptível para todos os intervenientes processuais, incluindo o próprio Tribunal, qual a questão
de constitucionalidade colocada pela recorrente, estando, pois, suficientemente definido o objecto do
recurso, pelo que, no meu entendimento, nada impedia o seu conhecimento.
E, apreciando o mérito do recurso, pronunciar-me-ia pela sua procedência pelas razões que passo a expor.
O artigo 66.º, do Código Civil, sob a epígrafe "Começo da personalidade", dispõe:
"1 - A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
2 - Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento".
No direito civil a personalidade jurídica traduz a aptidão para se ser sujeito autónomo de relações jurídicas,
com a inerente titularidade dos poderes e adstrição a vinculações que essa qualidade envolve.
Se o reconhecimento desta qualidade por uma determinada ordem jurídica obedece às opções valorativas e
culturais que nela prevalecem, também não deixa de estar condicionado pelo papel do Direito como
instrumento de satisfação de interesses humanos. Daí que nem sempre a personalidade jurídica tenha sido
reconhecida a todos os Homens (v. g. as sociedades esclavagistas), assim como actualmente não é uma
condição exclusiva do Homem (v. g. as pessoas colectivas).
O acórdão recorrido sustentou que o artigo 66.º, do Código Civil, ao recusar aos nascituros concebidos
personalidade jurídica, não permite que estes possam ser considerados titulares de qualquer direito antes
do seu nascimento, incluindo o próprio direito à vida.
A fixação do momento da aquisição da personalidade jurídica no acto de nascimento com a consequente
exclusão dos nascituros da condição de pessoa jurídica, já remonta ao direito romano (vide, sobre a
condição dos nascituros no direito romano, Max Kaser, em "Direito privado romano", pág. 101, da ed. de
1999, da Fundação Calouste Gulbenkian, e SANTOS JUSTO, em "Direito privado romano I. Parte Geral
(Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos)", pág. 105-107, da ed. de 2000, da Coimbra Editora),
sendo essa também a solução da nossa tradição jurídica (vide, anteriormente ao Código de Seabra, Borges
Carneiro, em "Direito civil de Portugal", vol. I, pág. 65, da ed. de 1826, e Coelho da Rocha, em "Instituições
de direito civil português", Tomo I, pág. 35, § 56., da 6.ª ed., da Imprensa da Universidade), a qual veio a
obter consagração no artigo 6.º, do C.C. de 1867 (vide, sobre este preceito, Dias Ferreira, em "Código Civil
Português anotado", vol. I, pág. 11-13, da 2.ª ed., da Imprensa da Universidade, Cunha Gonçalves, em
"Tratado de direito civil, em comentário ao Código Civil Português", vol. I, pág. 176-182, da ed. de 1929, da
Coimbra Editora, e Luís Cabral de Moncada, em "Lições de direito civil", pág. 253-257, da 4.ª ed., da
Almedina). E apesar de serem atribuídos alguns direitos aos nascituros, num sinal que eles não deixam de
ter protecção jurídica, perfilhou-se o entendimento que a respectiva aquisição só se torna efectiva com o

56
seu nascimento. Como impressivamente disse Cabral de Moncada (ob. cit. pág. 253), "o homem só existe
para o direito como pessoa, depois de ter nascido".
O artigo 66.º do C.C., resultante de anteprojecto apresentado por Manuel de Andrade (vide Esboço de um
anteprojecto de Código das Pessoas e da Família, no B.M.J. n.º 102, pág. 153.), manteve-se nesta linha de
pensamento, enunciando que a personalidade se adquire no momento do nascimento (n.º 1) e frisando que
os direitos que a lei reconheça aos nascituros (v.g. nos artigos 952.º e 2033.º, do CC) dependem sempre do
seu nascimento (n.º 2). É esta também a solução dos sistemas jurídicos que nos são próximos (v. g. artigo 1,
do C.C. Italiano, artigo 311, n.º 4, do CC Francês, artigo 30, do CC Espanhol, § 1, do BGB, artigo 2.º, do CC
Brasileiro).
A interpretação do artigo 66.º, do CC, perfilhada pelo acórdão recorrido, negando a qualidade de sujeito de
direitos ao nascituro concebido, corresponde à leitura maioritária efectuada pela doutrina e a
jurisprudência (Antunes Varela, em "A condição jurídica do embrião humano perante o direito civil", em
Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez", vol. I, pág. 631-633, ed. de 2000, da
Almedina, Castro Mendes, em "Teoria geral do direito civil", vol. I, pág. 103-109, da ed. de 1978, da AAFDL,
Heinrich Hörster, em "A parte geral do Código Civil Português", pág. 293-296, da ed. de 1992, da Almedina,
Carlos Mota Pinto, em "Teoria geral do direito civil", pág. 199-202, Inocêncio Galvão Telles, em "Introdução
ao estudo do direito", vol. II, pág. 165-167, da 10.ª ed., da Coimbra Editora, Carvalho Fernandes, em "Teoria
geral do direito civil", vol. I, pág. 193-199, da 3.ª ed., da Universidade Católica, Rodrigues Bastos, em "Notas
ao Código Civil", vol. I, pág. 107-108, ed. de 1987, do autor, Rita Lobo Xavier, em "A protecção dos
nascituros", em Brotéria, vol. 147, pág. 176-184, e Diogo Lorena Brito, em "A vida pré-natal na
jurisprudência do Tribunal Constitucional", pág. 121-122, da ed. de 2007, da Universidade Católica),
registando-se as opiniões dissonantes daqueles que, apesar do disposto no artigo 66.º, n.º 1, do CC,
entendem que o sistema jurídico acaba por reconhecer personalidade jurídica aos nascituros concebidos
(Oliveira Ascensão, em "Direito civil. Teoria geral", vol. I, pág. 48-55, da 2.ª ed. da Coimbra Editora, Menezes
Cordeiro, em "Tratado de direito civil português", vol. I, tomo III, pág. 293-306, da ed. de 2004, da
Almedina, Pedro Pais de Vasconcelos, em "Direito de personalidade", pág. 104-118, da ed. de 2006, da
Almedina, Órfão Gonçalves, em "Da personalidade jurídica do nascituro", na RFDUL, Ano 2000, pág. 525-
539, Leite de Campos, em "Lições de Direito da família e das sucessões", pág. 511-514, da 2.ª ed., da
Almedina, e Stela Barbas, em "Direito do Genoma Humano", pág. 235-242, da ed. de 2007, da Almedina),
ou uma personalidade jurídica parcial ou fraccionária (Rabindranath Capelo de Sousa, em "Teoria geral do
direito civil", vol. I, pág. 265-281, da ed. de 2003, da Coimbra Editora, e Pereira Coelho, em "Direito das
sucessões. Lições ao curso de 1973-1974", pág. 192-193, da ed. pol. de 1992), ou ainda que retroagem a
personalidade jurídica do nascituro concebido ao momento da constituição do direito em causa (Dias
Marques, em "Código Civil anotado", pág. 23, da ed. de 1968, da Petrony).
A opção pelo momento do nascimento, como marco certo, seguro, inequívoco e objectivamente
determinável a partir do qual se inicia a personalidade jurídica da pessoa, foi justificada pela voz autorizada
de Antunes Varela com três razões fundamentais:
"a) Por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento, em contraste com o
secretismo natural e social da concepção do embrião;
b) Embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da pessoa, no fenómeno
continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático do organismo humano, quanto às
propriedades fundamentais do ser humano (a consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo
do nascimento do indivíduo do que da fecundação do óvulo no seio materno;
c) Olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, compreende-se
perfeitamente que seja o nascimento, como momento culminante da autonomização fisiológica do filho
perante o organismo da mãe, o marco cravado na lei para o reconhecimento da personalidade do filho." (na
ob. cit. pág. 633).
Rita Lobo Xavier (no est. cit.) acentuou a falta de autonomia biológica e social do nascituro concebido como
razão preponderante para o Direito Civil, enquanto disciplina positiva da convivência humana elaborada
numa perspectiva de autonomia da pessoa no desenvolvimento da sua personalidade, não sentir
necessidade de lhe atribuir personalidade jurídica.
Será que nesta construção, em que não se reconhece personalidade jurídica ao nascituro concebido, a
impossibilidade deste ser titular de um direito subjectivo à vida afronta o disposto no artigo 24.º, da CRP?
Conforme o Tribunal Constitucional já tem afirmado e aqui se reitera, apesar da vida em gestação ser um
bem jurídico constitucionalmente protegido, compartilhando da tutela objectiva conferida em geral à vida
humana, não é possível retirar daquele preceito um direito fundamental à vida do nascituro concebido,

57
tendo este por sujeito (vide os Acórdãos n.º 85/85, 288/98 e 617/06, em "Acórdãos do Tribunal
Constitucional", vol. 5.º, pág. 245, vol. 40.º, pág. 7, e vol. 66.º, pág. 7, respectivamente).
Esta posição pressupõe que o ente humano, apesar de já concebido, enquanto não nascer não se inclui no
universo dos cidadãos que integram a comunidade político-jurídica a quem é reconhecida a titularidade dos
direitos subjectivos constitucionalmente consagrados, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, da C.R.P..
Mas o facto de se considerar que a vida intra-uterina é uma das etapas da vida humana abrangida pela
exigência da sua inviolabilidade reclama da ordem jurídica infraconstitucional a adopção de medidas que a
protejam e tutelem.
Está aqui em causa a dimensão mais importante da vida intra-uterina, que é a da sua própria existência,
importando desde logo verificar se o não reconhecimento pelo Direito Civil de um direito subjectivo à vida
do nascituro concebido implica um défice de tutela que ponha em causa a garantia de um nível mínimo de
protecção daquele bem jurídico-constitucional.
Independentemente do juízo que se efectue sobre a necessidade da intervenção dos meios típicos de
protecção dos bens jurídicos disponibilizados pelo Direito Civil para protecção da vida intra-uterina, verifica-
se que a intervenção desses meios não está dependente de um reconhecimento de um direito à vida do
nascituro concebido.
Como se tem constatado a melhor forma de proteger uma determinada entidade não passa
necessariamente por se lhe reconhecer subjectividade jurídica, mas sim pela respectiva elevação à
categoria de bem jurídico.
Na verdade, na tutela de um bem jurídico como é a vida intra-uterina, o Direito Civil disponibiliza não só a
utilização de medidas preventivas, intimações de abstenção e o recurso a acções inibitórias, mas também
faculta o instituto da responsabilidade civil, através do qual impõe, a quem ofenda bens tutelados pela
ordem jurídica, a reconstituição da situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que obriga
à reparação ou a indemnização em dinheiro, quando aquela reconstituição não é possível.

https://dre.pt/application/file/a/3264343 data de acesso: 15 de setembro de 2020.

58
Parece ser também entendimento jurisprudencial que a vida do embrião e do nascituro
deva ser tutelada de forma gradual, ou seja, no sentido de que uma vida pré-natal
próxima de chegar ao termo da gravidez deva ter maiores direitos do que um feto
recente, por exemplo. Usam como critério o nível de desenvolvimento daquela vida não
nascida que originará uma pessoa humana.

Concordamos com essa determinação. No entanto, apesar dos inúmeros


entendimentos acerca da CRP no que diz respeito ao ser ainda não nascido ter alguns
direitos, ainda não foram editadas normas nesse sentido, o que gera uma enorme
insegurança jurídica nas acções que tem como escopo uma suposta violação de bens
jurídicos que poderiam pertencer ao feto.

A maioria dos juristas consideram existir duas formas de vida pela interpretação do
artigo 24 da CRP. Estaria em causa uma vida anterior à aquisição da personalidade
jurídica, referente aos embriões, fetos e nascituros. Sendo que em relação a estes
apenas poder-se-ia falar de uma protecção de valor objectivo. Dessa forma, apenas
caberia uma protecção da vida com valor subjectivo quando se tratasse de uma pessoa
já nascida, que é dotada de personalidade jurídica de acordo com o CC.

Por outro lado, o autor Lucas Pires32 entende que não se consegue realizar essa
divisão já que a vida em formação seria uma sucessão de eventos biológicos contínuos,
e por isso, impossibilitada de ser caracterizada como pré e pós personalidade jurídica.

Justificaria assim equiparar a protecção da vida do ser humano já nascido àquele que
ainda não nasceu.

Partilhamos do entendimento do doutrinador na medida em que se deve recorrer à


regra do in dubio pro vita quando houver dúvidas acerca da atribuição dos direitos que a
CRP dá aos não nascidos. Além disso, a CNECV sugere que se siga o entendimento que
afirma ser considerado ilícito atentar contra uma entidade que não se sabe ao certo ser
investido de dignidade humana.

Colocadas em causa todas essas questões constitucionais, regressamos ao ponto


nevrálgico deste capítulo. A legislação civil, através de doutrinas e jurisprudências ainda
consegue proteger o nascituro quando da violação de alguns direitos. Contudo, a
legislação penal, mais precisamente na parte especial do Código Penal, não dispõe de
nenhuma norma capaz de assegurar ao nascituro uma protecção a lesões na sua

32

Lucas Pires; Aborto e Constituição; páginas 59 e 60.

59
integridade física, seja derivado de dolo ou de culpa. A única tutela que existe ao
nascituro é pela tipificação do crime de aborto.

Contudo, torna-se irrelevante para nós, diante deste caso concreto, tentar atestar pela
protecção à integridade física do nascituro, uma vez que a deficiência do bebé Rodrigo
não foi causada pelo médico, esta era inerente ao nascimento da criança.

O que ocorreu foi um possível erro de diagnóstico médico que impediu uma correcta
informação da progenitora acerca da saúde do seu filho. O papel do Direito Penal aqui
era permitir que a esta mãe fosse assegurado o direito de interromper a gravidez pela
exclusão de ilicitude.

Podemos afirmar que a legislação penal cumpriu o seu papel na medida que assegura
esse direito nos termos do artigo 142, alínea C do CP.

Apesar da conduta do profissional supostamente ter violado esse direito, através da


negligência na modalidade de imperícia, não existe um tipo penal que se encarregue de
proteger um paciente, seja não nascido ou já nascido, de uma conduta não intencional
que não viole nem a vida, nem a integridade física propriamente dita, tendo em vista que
são os bens jurídicos de maior tutela no direito penal.

Sem prejuízo da inocência do médico obstetra Arthur Carvalho no caso retratado, nos
termos do artigo 32 nº2 da CRP33, eventualmente poderá estar em causa o crime de burla
previsto no artigo 217 do CP34 caso fique provado que as ecografias realizadas por esse
profissional, mediante contraprestação monetária, não estavam conforme os correctos
parâmetros técnicos, o que fazia com que as utentes fossem enganadas quanto à
competência deste para a realização de ecografias obstétricas.

Justamente por ser o Direito Penal o último ramo a ser utilizado, acreditamos que o
direito civil, e eventualmente o direito administrativo sancionatório, pelo facto de o caso

33

Artigo 32 CRP:
2- Todo o arguido se presume inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser
julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
34

Artigo 217 CP:


1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro
ou engano, sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que
lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três
anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
4. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206º e 207º

60
ter tido alegadas implicações e irregularidades no serviço prestado pela clínica privada,
devam ser os mais indicados para tratar das eventuais responsabilidades abarcadas no
caso retratado.

61
4 RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR

Analisadas as responsabilidades civil e criminal no caso do obstetra Artur Carvalho


pela realização das ecografias no bebé Rodrigo, resta ponderarmos sobre a sua
responsabilidade disciplinar perante a Ordem dos Médicos.

Inicialmente é necessário esclarecer que as acções por responsabilidade civil e


criminal são acções jurídicas e são julgadas pelos Tribunais. Já as acções de
responsabilidade disciplinar ocorrem num âmbito interno. Dessa forma o seu julgamento
é de competência do Conselho disciplinar da Ordem dos Médicos.

Por isso, é de salientar que a eventual condenação em sede de responsabilidade


disciplinar não significa dizer que existe ou deve existir uma responsabilização jurídica e
vice-versa. No mesmo sentido, não se pode afirmar que a violação das leges artis que
gerou uma obrigação de indemnizar possa ser considerada um erro médico diante de
uma perspetiva disciplinar.

Assim, os tribunais ao julgarem acções de responsabilidade civil e criminal por erro


médico somente utilizam as normas contidas no Código deontológico para interpretar se
no caso concreto houve ou não uma violação do dever objectivo de cuidado pelo
desrespeito às regras da prática médica.

Outro ponto importante a referir antes de começar a analisar a responsabilidade


disciplinar propriamente dita, é a necessidade de o médico estar inscrito regularmente na
Ordem dos Médicos, caso contrário estaríamos diante de um crime pelo exercício
irregular da medicina, expresso no CP. Ao agir com a regularidade devida, submete-se
aos regulamentos previstos no Código deontológico e outras disposições internas.

Dito isso, podemos conceituar doutrinariamente a responsabilidade disciplinar como a


violação de normas e deveres éticos dispostos nos regulamentos internos da actividade
médica que podem vir a ter consequências das mais brandas às mais graves, no caso, a
expulsão do profissional dos quadros da Ordem dos Médicos.

Sobre a actuação do médico Artur Carvalho, há que ter em consideração os seguintes


pontos:

No caso do bebé Rodrigo, foi recomendado à Sra. Marlene, pela médica de família,
que fosse acompanhada pelo sector de obstetrícia do Hospital São Bernardo, e este, por
sua vez direcionou-a para a clínica Ecosado, com a finalidade de realizar as ecografias
de rotina.

62
Era uma clínica privada que supostamente possuía um acordo com o SNS. Por isso,
ao mostrar as credenciais do serviço público, a Sra. Marlene não pagava pelos exames.

O Sr. Artur Carvalho à época dos factos era sócio gerente da clínica e foi quem
realizou as três ecografias na paciente. Como já explicado anteriormente, uma a cada
trimestre da gestação.

A partir dos exames imagiológicos realizados à Sra. Marlene, foi feito um laudo pelo
médico destinado à apreciação da médica de família, no qual era atestado a saúde do
feto sem nenhuma intercorrência.

Foi-nos dito pela Sra. Tânia, quando da entrevista realizada, que os pais do Rodrigo,
já no final da gravidez, quiseram realizar em outra clínica privada a ultrassonografia 5D,
com o objectivo de ver os traços do bebé. Lá, foram alertados pela grande possibilidade
de estarem a gerar um feto com malformações graves na face.

A partir desse alerta, foram ao encontro do obstetra Artur Carvalho que realizou uma
nova ecografia e negou qualquer tipo de possibilidade de o feto vir a nascer com
malformações.

Necessário fazermos a primeira análise aqui.

A primeira questão que se coloca é sobre a possibilidade de terem sido previstas pelo
médico obstetra as malformações do feto nas ecografias realizadas.

Ou seja, refere-se a uma valoração sobre possível violação das leges artis por parte
do profissional médico.

Tentamos contactar inúmeros médicos obstetras com o fim de realizar uma entrevista
para que fosse esclarecida essa dúvida acerca da previsibilidade da deficiência do
Rodrigo nas três ecografias morfológicas realizadas, uma vez que tivemos acesso aos
exames da Sra. Marlene.

No entanto, não conseguimos que nenhum profissional se manifestasse.

Para responder a essa questão recorremos a algumas declarações públicas dadas por
diversos médicos sobre a realização das ecografias e as malformações possíveis de
serem detetadas, além do período em que deveriam ser visualizadas pelo médico
obstetra.

O Presidente da Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-natal, Sr. Álvaro Cohen


afirmou que na ecografia do segundo trimestre, realizada entre a vigésima e vigésima

63
segunda semana, é suposto ser visto o nariz, os olhos e estruturas do cérebro, ainda
acrescenta que quando o profissional não conseguir visualizar, deve fazer uma
justificação no relatório médico. Além disso, seria recomendado à paciente a voltar nos
próximos dias a fim de realizar novamente o exame.35

Em outra oportunidade, o médico Fernando Cirurgião, director do serviço de


obstetrícia do hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, também explicou que, via de
regra, quarenta por cento das anomalias são detetadas nas ecografias do primeiro
trimestre, ou seja, por volta da décima segunda semana de gestação. Além disso, na
segunda ecografia, referente à do segundo trimestre de gestação e por volta da vigésima
segunda semana consegue-se encontrar mais trinta e cinco por cento de anomalias. E,
na última ecografia realizada no terceiro trimestre, perto da trigésima segunda semana, é
possível perceber malformações mais subtis, referente a quinze por cento, uma vez que
os traços e o corpo da criança que virá a nascer já estão mais definidos.

O médico ainda chama a atenção para o facto de que somadas todas essas
percentagens, temos um total de noventa por cento. Dessa forma, ele entende que não é
possível ter a certeza absoluta sobre possíveis malformações que a criança venha
apresentar.36

No entanto, consideramos que apesar de impossível ter essa certeza, noventa por
cento é um número muito alto, o que demonstra grande probabilidade do médico obstetra
detetar anomalias no feto em alguma das três ecografias de rotina realizadas na mulher
gestante, principalmente no caso de malformações “grosseiras”.

O médico Pedro Gonçalves Pereira, neurorradiologista também esclarece que caso


ocorram dúvidas durante o procedimento ecográfico, no qual não se visualizem estruturas
que deveriam ser visualizadas, deve ser solicitada a realização de uma ressonância
magnética fetal, realizada por radiologistas e neurorradiologistas.

Explica que o objectivo deste exame é analisar de forma mais profunda e detalhada o
cérebro, o crânio e toda a estrutura do corpo do feto. É um exame diferencial de

35

https://www.cmjornal.pt/viver-com-saude/familia/detalhe/o-que-se-consegue-ver-nas-ecografias-ao-
longo-da-gravidez data do acesso: 30 de setembro de 2020.
36

https://www.sabado.pt/vida/detalhe/malformacoes-podem-ser-detectadas-nos-primeiros-tres-meses data
do acesso: 30 de setembro de 2020.

64
diagnóstico que busca detetar malformações no caso de incertezas relativamente ao
exame ecográfico.37

Além dessas declarações de profissionais da área, também abordamos anteriormente


a norma 023/2011 da DGS em que está previsto o diagnóstico de malformações major na
ecografia do primeiro trimestre, e, que a ecografia do segundo trimestre se destina
sobretudo à deteção de malformações fetais, principalmente aquelas incompatíveis com
a vida e de elevada morbilidade pós-natal. Além dessas duas previsões, na ecografia do
terceiro trimestre ainda se rastreiam possíveis anomalias tardias.

Ainda, a Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-natal disponibiliza na sua página


da internet, no ambiente reservado à informação aos pais, orientações na ecografia de
gravidez de baixo risco. É um texto de responsabilidade do Centro de Diagnóstico Pré-
natal do Hospital Garcia de Orta.

Novamente são estabelecidas as finalidades das três ecografias de rotina pré-natal.


Nesse sentido, também é previsto no documento que o exame ecográfico do segundo
trimestre tem como objectivo principal estudar a forma interna e externa do feto, para que
possa ser comprovada a existência ou não de malformações ou defeitos congénitos38.

Não podemos afirmar com certeza se houve ou não no caso estudado uma violação
às leges artis no ramo da obstetrícia, mais precisamente na realização das ecografias
pré-natal. Contudo, podemos afirmar através dessas normas e declarações acima, que
existia uma grande probabilidade de serem detetadas as malformações do bebé Rodrigo.

Como tratamos aqui de anomalias na face e no crânio, precisamente ausência de


olhos, nariz e parte do crânio, não acreditamos tratar-se de malformações subtis que não
seriam detetados por quem realizou a ecografia.

Como já foi esclarecido anteriormente pelo Presidente da Associação Portuguesa de


Diagnóstico Pré-natal, Sr. Álvaro Cohen, na ecografia do segundo trimestre é suposto ver
o nariz, olhos e estrutura do cérebro. A acrescentar, o neurorradiologista Pedro
Gonçalves Pereira ainda complementa ao dizer que quando não for possível detetar
essas estruturas, deverá recorrer-se ao exame mais específico, nomeadamente a

37

https://magg.sapo.pt/atualidade/atualidade-nacional/artigos/bebe-rodrigo-ressonancia-magnetica-fetal-
deve-ser-pedida-em-caso-de-duvidas data do acesso: 1 de outubro de 2020.
38

http://www.apdpn.com/pt/informacao-aos-pais/ecografia-na-gravidez-de-baixo-risco data do acesso: 27 de


outubro de 2020.

65
ressonância magnética fetal, com a finalidade de afastar a dúvida e poder atestar com
maior clareza a possibilidade de existirem anomalias.

Podemos observar, nas três ecografias realizadas pela Sra. Marlene e anexados neste
estudo, que os laudos escritos pelo obstetra Artur Carvalho mostram inicialmente na
primeira ecografia que a estrutura do crânio e do osso nasal estão aparentemente
normais. Mais tarde, quando da realização da segunda e da terceira ecografia também
atesta que as estruturas do crânio estão aparentemente normais e que em relação à
face, e ao nariz também estão aparentemente normais.

O médico afirma nas observações da ecografia do segundo e do terceiro trimestre que


não se detetou nenhum tipo de anomalia.

Dessa forma, parece ter sido o caso de falha técnica, na medida em que o médico
atestou visualizar estruturas da face do feto que nunca existiram.

Um segundo ponto importantíssimo a abordar é que anteriormente ao caso do


Rodrigo, o mesmo obstetra já possuía queixas por analisar na Ordem dos Médicos,
outras já arquivadas, além de queixas feitas ao Ministério Público que também foram
arquivadas. Podemos citar os seguintes casos:

O Vicente foi paciente do Sr. Artur Carvalho e somente viveu duas semanas. A criança
nasceu sem a parte esquerda do coração. Foram realizadas quatro ecografias pelo
obstetra em causa e nunca foi detetada tal anomalia.

Outro paciente foi o Afonso, nascido em 2018, também morreu quando tinha apenas
meses de idade. Novamente decorrente de má formação no coração. Aqui também
houve movimento por parte dos pais, que anotaram uma reclamação no livro de
reclamações da Clínica Padre Cruz em Almada. Contudo, quando foi confrontado, o
obstetra Artur Carvalho alegou não existir prova de que realizou um diagnóstico errado.

Nascida em 2016, Diana foi outra paciente desse médico. Possuía duas vaginas e dois
rectos funcionais, só tinha um rim e espinha bífida. Felizmente hoje a criança encontra-se
bem de saúde e sem problemas cognitivos para já. Contudo, teve que passar por muitas
cirurgias. O profissional realizou as duas primeiras ecografias na progenitora e também
não conseguiu detetar o problema.

Também chegou ao nosso conhecimento o caso da Paciente Luana, nascida em 2011.


Quando do seu nascimento, não apresentava queixo, tinha as pernas viradas ao
contrário, dedos dos pés colados e lesões cerebrais graves. O Dr. Artur acompanhou a
gravidez ao realizar cinco ecografias, contudo novamente não visualizou os problemas.

66
Hoje a criança possui oito anos e já passou por cinco cirurgias. Os pais dela
prosseguiram com a queixa, mas esta foi arquivada pelo MP sem que fossem prestados
quaisquer esclarecimentos por parte do médico. O responsável pela decisão afirmou que
foi suficiente o parecer do Conselho de ML do INMLCF, segundo o qual não existiu por
parte de nenhum profissional envolvido violação de seus deveres profissionais, na
medida em que era praticamente impossível detetar tal condição patológica.

O nascimento do Rodrigo naquelas situações críticas em que se encontrava, além da


surpresa daquele diagnóstico por parte da família fez com que estes optassem por
recorrer à media com o fim de contar a infeliz história dessa criança e alarmar a
sociedade para eventuais erros médicos grosseiros que geralmente ficam impunes seja
por parte da Ordem dos Médicos, seja pela via judiciária.

Quando houve a mediatização do caso nas redes sociais, televisivas e jornalísticas, foi
revelado pela Ordem dos Médicos que existiam cinco processos disciplinares activos
contra o obstetra Artur Carvalho, e já no final do ano corrente de 2019 eram
contabilizadas 14 queixas contra o mesmo.

Este facto pode demonstrar que a má prática médica era recorrente na realização de
ecografias de rotina em mulheres grávidas por parte desse profissional nas diferentes
clínicas em que trabalhava.

Ora, é de se admirar o facto de que um profissional conceituado, chefe do setor de


ginecologia e obstetrícia do Hospital São Bernardo em Setúbal há mais de vinte anos,
não possua as capacidades medianas exigíveis a um especialista dessa área da
medicina de detetar as condições do nascituro, quando da realização das ecografias nos
três trimestres, ou até mesmo de solicitar outros exames capazes de realizar um
diagnóstico diferencial quando este não conseguia ter uma margem de certeza
satisfatória na realização das ecografias.

É necessário chamar a atenção para o facto de que em Portugal, desde 2013 existe
uma orientação interna do Colégio de Especialidade de Ginecologia /Obstetrícia, a norma
nº 4/2010, referente ao reconhecimento de aptidão em ecografia obstetrícia
ginecológica.39

39

https://ordemdosmedicos.pt/norma-complementar-no-4-2010-reconhecimento-de-aptidao-em-ecografia-
obstetrica-ginecologica/
ficheiro: Norma_Complementar_4_2010_aptidao_ecografia_obstetrica_ginecologica
data de acesso: 28 de outubro de 2020.

67
Nessa norma são estabelecidos os critérios necessários para requerer a esse colégio
o reconhecimento de aptidão em ecografia ginecológica e obstetrícia. sublinhamos o
facto de que não basta o título de médico especialista nessa área para ter a devida
capacidade.

Durante uma entrevista, o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia, Sr.


Luís Graça, afirmou que o médico Artur Carvalho não possuía essa competência, tendo
em vista não se tratar de algo inerente à especialização médica, mas sim de uma espécie
de pós-graduação dentro dessa especialidade.40

A partir disso podemos entender que o obstetra mencionado aqui realizava essa
função, contudo sem a devida competência.

Entretanto, no momento em que o Bastonário da Ordem dos Médicos teve notícia do


caso do bebé Rodrigo e ainda, do número de queixas que o obstetra tinha por analisar no
CDRS ficou alarmado com a gravidade da situação.

Outra questão que se coloca é, como um profissional que possuía à época cinco
queixas por analisar na Ordem dos Médicos pôde continuar em exercício das suas
funções antes de concluídos os processos disciplinares. Mais alarmante ainda é o facto
dessas queixas se referirem basicamente à mesma situação que se resume à falha no
diagnóstico pré-natal no que diz respeito à deteção de anomalias fetais através de
exames ecográficos.

Acreditamos ter havido uma falha grave do CDRS da Ordem dos Médicos pela falta de
celeridade na análise dos processos que acarretou numa omissão de possível sanção
disciplinar ao Dr. Artur Carvalho, que poderia ter evitado o surgimento de novas vítimas,
como o Rodrigo.

Apesar desse grande transtorno acarretado às diferentes famílias e precisamente no


que concerne este estudo, à família do Rodrigo, também é nossa tarefa reconhecer que
mesmo que tardiamente a Ordem dos Médicos teve uma actuação louvável e por isso
exemplar.

Diante da repercussão do nascimento do Rodrigo naquelas condições, o Sr. Miguel


Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos, ordenou que o CDRS prontamente

40

https://www.dn.pt/vida-e-futuro/ordem-lanca-base-de-dados-para-gravidas-procurarem-medicos-
habilitados-11470105.html data de acesso: 1 de outubro de 2020.

68
analisasse e emitisse os pareceres acerca dos cinco processos disciplinares anteriores.
Em relação ao caso do Rodrigo, foi o próprio Bastonário quem apresentou a queixa.

Por fortes indícios que estaria a actuar negligentemente e por receio de que o médico
continuasse a trabalhar em desconformidade com a leges artis, foi decisão do CDRS
suspender previamente o médico obstetra Artur Carvalho até que fossem concluídos os
processos disciplinares pendentes.

A partir da análise do caso em questão e anteriores, o Conselho Disciplinar da Ordem


do Médicos proferiu a sanção máxima ao referido médico. O obstetra Artur Carvalho teve
uma proposta de expulsão da Ordem dos Médicos em junho deste ano. Acreditamos que
foi tomada essa decisão por ter sido considerado que, por inúmeras vezes, agiu violando
as regras profissionais de actuação na especialidade de obstetrícia, mais precisamente
no tocante à realização de ecografias de controle gestacional.

Significaria dizer que esse profissional não detém a capacidade mínima necessária
para o exercício da sua função. Essa incapacidade teria sido atestada pelo número de
reincidências na má prática na realização de ecografias.

No entanto, é necessário explicarmos que foi realizada uma análise com base nos
dados que obtivemos. Em relação à decisão de expulsão do obstetra Arthur Carvalho
houve uma suposição da nossa parte daquilo que aconteceu, ou seja, dos argumentos
que embasaram a decisão. É importante ressaltar que não tivemos acesso aos processos
disciplinares, nem judiciais. Pelo que não podemos esquecer a presunção de inocência
como um todo, uma vez que podem existir informações que desconhecemos totalmente.
Sem prejuízo das conclusões objectivas deste trabalho.

O Sr. Artur Carvalho, hoje já reformado, afirma que vai recorrer da decisão do
Conselho Disciplinar.

Ainda sobre a postura da Ordem dos Médicos a respeito do caso analisado no


presente trabalho, podemos dizer que houve uma preocupação não só em punir o médico
responsável, mas também em criar soluções a partir de novas orientações e normas no
que diz respeito à realização de ecografias pré-natal.

De modo ilustrativo, indicamos a criação do Colégio de Competência em Ecografia


Obstétrica Diferenciada41, aprovado pela Assembleia de Representantes em 16/12/2019.

41

https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2020/01/Regimento-Ecografia-Obstetrica-Diferenciada-
2019.12.16.pdf data de acesso: 26 de outubro de 2020.

69
São normas que visam atestar a capacidade dos profissionais da área e assegurar as
gestantes acerca da competência dos profissionais médicos na realização de ecografias
obstétricas.

Ainda, na medida em que os profissionais forem considerados aptos a exercerem a


actividade e requisitarem o reconhecimento através desse Colégio de Competência em
Ecografia, será criada uma lista e disponibilizada no site oficial da Ordem dos Médicos o
nome daqueles clínicos. As pacientes poderão ter livre acesso a essa consulta através
dessa base de dados, que poderá trazer maior segurança em relação à actividade
obstétrica realizada em Portugal.

70
5 CONCLUSÃO

No final do presente trabalho, foi possível perceber que no caso do bebé Rodrigo
houve implicações de vários ramos do Direito, inclusive alguns não tratados aqui.

O direito administrativo sancionatório também possui enorme relevância nesse caso


tendo em vista que a clínica na qual foram realizadas as ecografias obstetrícias era
privada, mas supostamente possuía acordo com o SNS. No entanto foi descoberto mais
tarde, através de investigações, não existir o dito acordo.

O que ocorria era que, alegadamente, havia uma segunda clínica que faturava pelas
requisições do SNS utilizadas na clínica Ecosado, onde eram realizados os exames
ecográficos. Foi aberta uma investigação com o objectivo de apurar a existência de
eventual crime económico e financeiro.

Além disso, também foi descoberto que a licença da clínica foi conseguida via online e
que a ERS nunca tinha fiscalizado a mesma.

Contudo, apesar da grande relevância não é tema do presente trabalho, que se refere
apenas à possível responsabilidade pessoal do médico obstetra Artur Carvalho.

Sobre essa, a partir do estudo realizado, podemos concluir que em sede de


responsabilidade civil acreditamos que o profissional possui responsabilidade pela
violação ao direito de autodeterminação e liberdade reprodutiva dos pais, que devido ao
suposto erro de diagnóstico não foram informados correctamente acerca das
malformações fetais e por isso não puderam optar pela IVG. Dessa forma, atestamos
pela procedência da acção de nascimento indevido.

Em relação à acção de vida indevida não é nosso objectivo exaurir a matéria e nem
atestar pela procedência ou improcedência diante desse caso concreto, mas tão somente
enriquecer a discussão acerca desse tema muito debatido hoje com o desenvolvimento
da bioética, biomedicina e biodireito.

Em relação à eventual responsabilização do médico em Direito Penal, tendemos a


acreditar em não ser viável por dois motivos:

Em primeiro lugar, existe enorme discussão acerca da norma do inciso 1 do artigo 24


da CRP que não é clara em relação aos direitos assegurados aos não nascidos, apenas
tendo a certeza de que esta afirma a necessidade de tutelar esses seres. E, pelo silêncio

71
do legislador ordinário, não conseguimos enquadrar a tutela do bem jurídico integridade
física à condição de nascituro.

Em segundo lugar, ainda que fosse possível fazer essa ligação, o caso analisado não
se refere a uma criança nascida com malformações ocasionadas por um acto médico. O
profissional supostamente falhou, apesar de não intencional, ao realizar um diagnóstico
de ecografia morfológica. Contudo, essa deficiência era inerente ao nascimento da
criança.

Portanto, não há que se falar em crime propriamente dito, nem pensamos que deva ter
esse facto tutela do direito penal, uma vez que a imperícia médica não se trata de crime
doloso e aqui concretamente não violou os bens jurídicos de maior valor no Direito Penal.

Já dissemos anteriormente que o Direito Penal deve encarregar-se de tutelar os bens


jurídicos mais valiosos, quando os outros ramos do Direito forem insuficientes para fazê-
lo.

Já no que diz respeito à responsabilidade disciplinar, não só acreditamos existir, como


também já foi manifestado pelo Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos, que existe
uma proposta de expulsão do obstetra Artur Carvalho.

Supostamente a má prática médica foi verificada nas queixas existentes contra ele.
Este seguiria um padrão de actuação que viola as regras da arte da medicina, mais
concretamente no que diz respeito à realização de ecografias obstetrícias. Também
existe violação de normas deontológicas e de regulamentos internos uma vez que o
mesmo não estava apto para realização desse exame e mesmo assim o fazia.

Importante ponderarmos que quando falamos em erro médico e das possíveis


responsabilidades acarretadas no âmbito do direito, estamos diante de um juízo jurídico
sobre a actividade médica. Explicamos melhor, trata-se aqui de um julgador licenciado
em Direito com conhecimento em leis afirmar ou negar que a conduta de um profissional
médico foi de acordo com a leges artis.

Ora, por mais que um juiz seja um intelectual e alguém com alta sabedoria, não se
pode exigir desse os conhecimentos acerca das variadas profissões. É nesse contexto
que surge a prova pericial médico-legal que visa suprir a inaptidão técnica do juiz em
relação aos conceitos e procedimentos médicos e lhe permite uma melhor vantagem para
julgar o caso.

A prova pericial médico-legal para verificação de erro médico nada mais é que um
profissional médico credenciado pelo INMLCF que, à requisição do tribunal, analisa um

72
processo de suposto erro médico na conduta do profissional e responde ao final quesitos
formulados pelo poder judiciário com o fim de atestar se houve ou não violação da leges
artis.

Em Portugal existem duas figuras de perito. Um é o oficial, que integra os quadros do


INMLCF e são requisitados pelo juízo quando da necessidade dos seus pareceres. O
outro é um perito requisitado pelas partes, na tentativa de constituir prova a seu favor.

O laudo pericial deverá levar em consideração a época dos factos, o ambiente em que
esse se passou, tendo em vista que não se pode exigir de um profissional médico a
mesma conduta em um hospital grande com inúmeros recursos do que em pequenos
centros de saúde com recursos escassos. Além disso, é também de suma importância
considerar a área de especialização daquele médico para uma melhor apreciação do
conhecimento que lhe era exigível naquele caso concreto.

Necessário ressaltar que o juiz não se vincula a nenhuma prova. Nesse sentido, este
não está obrigado a basear a sua decisão no laudo pericial, quer seja o oficial ou o
requisitado pelas partes. Contudo, o parecer médico-legal tem o intuito de auxiliar o
julgador em áreas técnicas que este não domina. Por isso, não é muito comum ver uma
decisão judicial que não esteja em conformidade com o laudo pericial, principalmente em
relação àqueles oficiais.

O grande óbice à responsabilidade jurídica do médico reside principalmente na crença


de que o facto do médico perito analisar a conduta do colega e atestar pela possível
violação das regras da medicina acaba por romper com o elo de solidariedade entre os
profissionais. Dessa forma, este poderia ficar sujeito a retaliação de outros peritos caso
eventualmente fosse demandado em tribunal.

É notória essa situação quando analisamos os processos submetidos a peritos oficiais


que alegam não ser possível atestar pela violação das normas técnicas médicas nos
quesitos formulados pelo poder judiciário, tendo em vista ser claramente visível a suposta
falha médica em muitos casos concretos.

Esse corporativismo é muito comum nas profissões liberais, contudo ao contrário do


que alguns profissionais pensam, aquele que está na condição de perito apontar uma
possível violação das regras técnicas de actuação da profissão não constituiria um valor
negativo, nesse caso em relação à classe médica, mas sim possibilitaria a longo prazo
uma melhoria na qualidade da assistência médica como um todo.

73
Nesse sentido acreditamos ser de suma importância a realização de laudos periciais
imparciais como previsto nas normas do CDOM.

O objectivo dessa tese de mestrado não se exaure apenas na história do Rodrigo e


nas possíveis responsabilidades acarretadas pelo suposto erro médico, mesmo porque
acreditamos que neste caso mediático a família recorrerá à justiça e terá o seu direito
assegurado.

Para nós o importante é demonstrar que a actividade médica, em qualquer de suas


áreas, é difícil de ser analisada no que respeita a eventuais erros. Existe uma linha muito
ténue em relação ao que é possível e esperado pelo paciente que seja detetado pelo
médico e ao que seria a este previsível e exigido pelas leges artis.

O Direito Médico é um direito relativamente recente e, dentre as suas atribuições,


possui o dever de ao longo do tempo normatizar essa interface entre o Direito e a
Medicina. Podemos referir aqui, a criação de leis e normas que visam delimitar a
actividade médica como legal ou não, criminosa ou não.

Contudo, não é tão simples. Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento do


Direito Médico é a utilização da tecnologia no que diz respeito à confirmação de
diagnóstico, por exemplo. Aqui fica difícil delimitar o que é falha na área médica e o que é
falha das máquinas utilizadas para realizar os exames.

Voltando às ultrassonografias, ressaltamos que se trata de um operador dependente.


Isso significa que o resultado do exame muitas vezes depende da técnica empregada
pelo médico. Como não é o caso de uma imagem parada, como por exemplo nos exames
de radiografia, nas ecografias são analisadas um feto, órgão ou tecido em movimento.

A partir daí podemos entender o quão importante são as atribuições técnicas de cada
profissional. Actualmente, com o desenvolvimento da tecnologia, ao médico deixaram de
ser exigidos somente os conhecimentos da medicina, mas também passou a ser
imprescindível o domínio das variadas técnicas na realização dos exames.

Nesse sentido, acreditamos que ao criar um Colégio especial de competência em


ecografia, a Ordem dos Médicos acaba por demonstrar essa preocupação com a técnica
dos profissionais e assim melhorar a qualidade dos serviços prestados pela classe
médica ao promover a capacitação destes.

Este cuidado com a competência dos profissionais contribui para que no futuro
ocorram menos erros de diagnóstico. Em outras palavras, contribui para que os médicos

74
sejam cada vez menos acusados de falhas técnicas e ao mesmo tempo assegura a
prestação de um serviço de excelência.

O caso do bebé Rodrigo por mais infeliz, penoso e absurdo talvez tenha sido, talvez
tenha servido para alarmar a sociedade portuguesa da actuação médica. O Bastonário da
Ordem dos Médicos ficou mais atento ao que acontece nos conselhos regionais em
relação aos processos disciplinares, além de terem sido criadas normas e orientações
para melhorar a qualidade do serviço.

Quanto à família do bebé Rodrigo, é evidente que merece a melhor protecção jurídica
e assistência médica, de forma que sejam assegurados os seus inúmeros direitos pelo
facto do seu infortúnio.

Por fim, cabe-nos ressalvar que este trabalho apenas abordou uma pequena
percentagem do caso em si e algumas das possíveis responsabilidades que o Rodrigo e
toda a sua família possuem o direito de requerer.

75
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84
8 ENTREVISTA COM A SRA. TÂNIA CONTENTE

Data: 18 de agosto de 2020


Local: Lisboa
T- Neste momento está em perigo de vida (apresentação do vídeo do bebé Rodrigo),
portanto o nariz não existe, isso são as tais narinas, mas que não são suficientes para
respirar, a tirar dali será uma questão de estética, os olhos estão vazios, por que não há
nada dentro, o céu da boca é igual ao dos deficientes profundos, não é? Tem
hidrocefalia, a cabeça neste momento está em quase o dobro do que está aqui. E está
bolha está três vezes maior. Na parte de trás da cabeça não tem osso. O cérebro dele do
lado esquerdo quase não existe, o do lado direito tem uma bolinha assim. (impercetível)
era o tronco cerebral, o que faz o tronco cerebral? Dá as funções básicas: comer, dormir,
fazer xixi, coco, chorar. O certo é que ele interage com toda a gente, conhece toda a
gente, responde aos estímulos todos, parece que vai andar, ao menos força nas pernas
tem para o futuro, obviamente não se consegue levantar se quer a cabeça, porque o
peso da cabeça é gigantesco.
M- Claro.
T- Agora tudo isto ele não viu, eu acho que mesmo uma máquina há trinta anos atrás
não era possivel não ver isso, e ele diz que não viu, mas assinalou em todas as
ecografias que estava lá, que estava perfeito.
M- Um dos meus pontos, das minhas questões aqui é exatamente, se eu puder ter
acesso a essas ecografias, não precisa ser hoje, não precisa mandar agora, porque eu
vou fazer uma entrevista, como eu estou fazendo com a senhora, eu vou fazer uma
entrevista com um médico obstetra que o meu orientador do mestrado sugeriu e ai eu
quero, porque eu vou pegar os argumentos dele, ele vai virar pra mim e falar assim, isso
aqui era notável, isso aqui um médico regular, um médico mediano consegue notar essas
deficiências, que isso é um bom argumento para mim.
T- É através disso que eu acho que é possivel incriminá-lo, porque ele de acordo com
o juramento que faz na ordem, ele não pode mentir, e basicamente o que ele tem é uma
mentira pegada, ou seja, ele não diz que não visualiza, se ele dissesse que não
visualizava era fácil, ok, não reparou, não viu, mas ele diz que viu e que estava normal.
M- Além de tudo, ainda tem uma questão, que foi que eu vi através das entrevistas,
não sei se foi isso que aconteceu mesmo na realidade, mas o que eu li foi que, quem
chamou atenção para a possivel má formação foi os pais.
M- Depois de fazer a ecografia 5D.

85
M- Ou seja, então além dele poder não ter visto, ela ainda chegou pra ele e falou
assim, olha me alertaram para esse problema, e aí? E aí ele olhou e falou não, não tem
problema nenhum.
T- Não não, fez uma ecografia e disse, não ta a ver aqui o nariz do menino? Não ta a
ver aqui? O menino ta perfeito. Desvalorizou por completo, ele deitou a baixo, deitou a
baixo tudo aquilo que a Marlene tinha acabado de dizer.
M- Claro, eu dei uma olhada nos casos antigos dele, e teve um que me chamou…
(toca o celular e Tania atende)
M- Outra questão, eu queria que você me contasse a história desde quando a Marlene
engravidou, como que foi a escolha desse hospital? O hospital é público, a clínica é
pública?
T- O hospital, é assim, em Portugal, agora se é que mudou, porque já tenho outro
caso em mãos, que foi este da senhora que teve quatro dias em trabalho de parto.
M- Que foi antes do Rodrigo?
T- Morreu, não agora, a uma semana e meia. Deixaram-na só em trabalho de parto
durante três dias, ao fim de três dias, morreu. Trabalho de parto de três dias.
M- Teve um dos casos, que foi…
T- Mas não foi deste medico, foi de outro.
M- Teve um dos casos desse médico que foi isso, a mulher estava em trabalho de
parto e ele ficou prolongando, prolongando, porque eu acho que ele não era o médico
responsável, e aí o bebe nasceu com um déficit grande e passado pouco tempo morreu.
T- No dia em que aconteceu isso e o Rodrigo nasceu, estavam outras mulheres em
trabalho de parto, uma delas estava aos gritos obviamente, não lhe davam assistência,
deixaram-na na casa de banho em pleno trabalho de parto para não a ouvir-lhe. Portanto
o hospital de Setúbal de São Bernardo é público, a Marlene fez exatamente o que eu fiz e
todas as pessoas que vivem aqui na área, percebes? Quando somos novas, não temos
nada de problemas nem complicações, ela descobriu que estava grávida, a médica de
familia confirmou a gravidez e depois o que nos é feito é, em Portugal os hospitais só
servem para trabalho de parto ou então, no caso da maternidade Alfredo da Costa aqui
em Lisboa, é que faz o acompanhamento das grávidas de risco ou nos hospitais são
seguidos, eu sei que a maternidade faz porque eu tenho por experiência isso, mas todo o
resto eles reportam para sermos nós a arranjar um obstetra, arranjar o sítio onde
fazemos os exames e depois passam as credenciais, porque nós temos direito a isso,
aqui em Portugal a lei, o serviço público cobre isso tudo, passam as credenciais e a gente
faz onde quer. Os hospitais em Portugal não respondem sobre todas as meninas
grávidas, respondem nos casos que requer esse acompanhamento, que é alguma coisa

86
que indique isso. No caso da Marlene não havia, portanto, 25 anos saudável, um parto
normal, sem problema nenhum, não havia nada que alertasse para isso.
M- Ela já havia tido outro filho?
T- A Marlene tem uma filha de 6 anos, tinha 5 na altura. Portanto, nada que indicasse
como tal, ela foi a médica de familia, a médica de familia fez o acompanhamento, que era
ir a consulta mensalmente e depois passava as credenciais, na altura no minimo
tinhamos que fazer 3 ecografias e as analises e depois aqueles exames todos que eles
pedem, e ela assim fez, portanto, ali na avenida do hospital é onde se concentra a maior
parte das clínicas, como em quase no país todo, em Portugal sempre que vamos a um
hospital diferente temos umas clínicas privadas que normalmente são dos médicos que
trabalham nesse hospital, pronto. Era o caso dele, alias, ele na própria identificação da
clínica, ele chama-lhe clínica Ecosado, mas a descrição logo a frente, entre parenteses é
de frente para o hospital de Setúbal, portanto ele faz valer o nome do hospital público
para publicitar a clínica.
T- A clínica privada, que é a clínica dele.
T- Ou seja, cria aquele elo que nós notamos que está ligado ao hospital. E ela tinha
feito o acompanhamento, à duas clínicas ali, uma é de outro médico também ali do
hospital, que por acaso foi o que fez o meu acompanhamento das minhas gravidezes, é
materno infantil, e entretanto, havia a dele, o que acontece, a outra ela foi lá marcar e não
havia vagas para aquelas datas, porque nós temos que fazer as ecografias na
determinada semana, e não havia data. Aí ela foi a outra, porque basicamente a gente
passa pelos médicos se tem porta aberta está tudo certo, não é?
M- Quem vai suspeitar, não é?
T- É. De frente para um hospital, obviamente que não nos cabe na cabeça que uma
clínica pode não ser fiscalizada, não nos entrava na cabeça não é. Nem que os médicos
obstétras não podiam fazer ecografias, não é? Também não entrava a mim na cabeça,
nem sonhava, pronto, e, entretanto, foi a esse.
M- Você sabe se a Marlene chegou a pagar alguma quantia em dinheiro?
T- Nunca pagou nada.
M- Mas essa clínica era privada?
T- A clínica é privada. Aparentemente com o acordo do serviço nacional de saúde.
Nós chegamos com a credencial lá e damos a credencial, a credencial vale o dinheiro.
M- Entendi.
T- A médica de família passa a credencial, a gente chega lá, entrega e não pagamos
nada. Eles vão receber do Estado.
M- Sim. Todos esses exames de diagnóstico pré-natal que ela fez então foram
realizados pelo Dr. Artur?

87
T- Todas as ecografias foram realizadas pelo Dr. Artur, porque depois, por acaso é lá
perto, nós temos que fazer sempre. Mariana não tem filhos ainda?
M- Não.
T- Nós temos que fazer de três em três meses, as ecografias e as análises. As
análises, há clínicas que fazem, nem sei se a dele faz, a faz, na porta ao lado tinha um
que também fecharam, descobriu-se que vinha tudo do mesmo (impercetível), pronto.
Mas ele só fazia diretamente ecografias, depois na porta ao lado tinha um acordo, quem
queria fazia as análises lá, mas a Marlene também fez numa longe dali, que
habitualmente faz as análises dela, pronto. Então, o que nós temos que fazer de três em
três meses naquela semana é: fazer as análises e fazer a eco, depois ele faz a eco sai o
relatório e ele confirma que está tudo bem e levamos a médica de familia os exames
todos. O que ela faz basicamente, desde que não haja lá nenhum alerta, as médicas de
familia é clínica geral, o que eles vão ver? Vão ver o relatório escrito, porque as
ecografias, nós não percebemos nada daquilo, eu vi a duas ecografias do meu filho, e
tirando alí uma parte da cara que se vê o nariz e tal, ele dizia-me partes que para nós nos
é igual, é chinês, eles veêm coisas onde a gente não via. Nós não percebemos, o que ele
descobriu depois, e olhando para as ecografias pode confrontar esse médico é que ele
chegou ao ponto de fazer medições em bolsas de líquido amniótico, tanto é que aquele
senhor viajou completamente na maionese. Agora, se foi por ser um médico aprendiz, eu
até desculpava.
M- Mas com os anos que ele tem de trabalho.
T- Com os anos que tem, e não se esqueça de uma coisa Mariana, esse médico
começou a trabalhar com as primeiras máquinas de ecografia, se alguém tem que estar a
saber como fazer uma ecografia bem é ele. Ele começou com umas máquinas que não
se via nada. E agora não consegue ver esta? É doído.
M- Claro, isso é negligência grosseira.
T- Grosseira. Vá, vou me calar porque estou falando muito. Mariana, fala.
M- Olha, eu vou te fazer uma pergunta delicada, se não souber ou se não quiser
responder, fique a vontade. Você acredita, conhecendo a família, que se a Marlene e
inclusive o pai também, soubessem…
T- Abortavam.
M- Abortavam?
T- Claro, o que que a Marlene vai fazer da vida dela? Meu afilhado precisa de
cuidados 24 horas por dia. Nesse momento estão os dois desempregados, é impossível,
uma pessoa não consegue, tenho dois filhos, eu pego meu afilhado ao colo, ao fim de
dois minutos não aguento com as dores no braço.
M- Claro, demanda deles também 24 horas.

88
T- Se a gente fizer assim, aliviando o braço a cabeça cai. Ele não aguenta o peso da
cabeça.
M- Claro. E em relação a expectativa de vida dele?
T- Neste momento ninguém sabe. O que a medicina no mundo inteiro, tudo o que está
escrito da medicina até hoje, ele devia estar morto. Os médicos não sabem, não há
conhecimentos científicos para justificar como é que ele está vivo. Amanhã quando se
fizer a ressonância, vai se tentar perceber como é que o cérebro desenvolveu. Há aqui
uma coisa que a Mariana não sabe, ou se calhar viu na televisão, eu falo com alguma
liberdade disto porque tenho um filho que é considerado um caso raro no mundo inteiro.
Meu filho com seis meses, ele é doente, Moia-Moia. Com seis meses fez 3 AVC’s,
metade do cérebro desapareceu, e ele tem 5 anos e corre, salta e esperneia por todo
lado, faz tudo. O que se reparou é que, a maior parte das zonas do cérebro eles não
sabem pra que existe, para que serve. Até hoje não há justificação, as que são
consideradas partes cinzentas, que não tem justificação. No caso do meu filho, a cabeça
dele, nas tais partes cinzentas, que até então não havia vida, meu filho tem lá vida, por
isso é que consegue manter as funções todas. Eles não sabem se é devido a doença, se
foi devido aos AVC’s, se foi devido a operação, não sabem. Portanto continua a ser
acompanhado e um caso de estudo no mundo inteiro. Eu com a experiência que tenho, a
curiosidade que eu tenho é que muito provavelmente o cérebro adaptou-se no caso do
meu afilhado e deve estar a acontecer o mesmo. Porque o que nós vemos é um menino
cego, mas a começar, obviamente mais lento que as outras crianças, ele agora tem 10
meses, mas já diz tia, já palra, responde aos estímulos todos, portanto deve haver
alguma coisa la dentro.
M- Claro.
T- Que só amanhã é que vamos saber. Tem haver ali alguma coisa, agora nós
perguntamos aos médicos, a neurologista que é a Dra. Rita Silva, e a Dra. Anete Ciranda,
que é a neurocirurgiã, e o que ela diz é “não sei, o que eu estudei, o que eu sei do mundo
inteiro, ele devia estar morto”. E ele ta cá.
M- Você falou que os pais estão desempregados, e em relação a algum gasto extra
psicológico, emocional para eles?
T- O hospital de Setúbal, quando eu fui falar com a administração do hospital, pedi
esse apoio, e depois obviamente que isto rebentou eles facultaram, deram logo naquele
dia, depois de eu falar com a administração do hospital, facultaram algum apoio e o apoio
tem se mantido. Alias, a Fabiana, a outra filha da Marlene tem recebido, agora acho que
algum tempo não vai porque ela encaixou muito bem, os miúdos tem um poder de
encaixe brutal, então acho que agora nos ultimos tempos, no ultimo mês não tem ido,
mas ela foi indo a várias consultas e obviamente eles vão estando atentos porque o

89
David é uma bomba relógio, não podemos esquecer que ele tem 21 anos, quando foi pai
tinha 20 e a Marlene quando foi mãe tinha 25 e aquilo é duro para qualquer idade, no
caso deles complica ainda mais não é?
M- Claro. Sobre a relação médico paciente, do Dr. Artur com a Marlene?
T- Não há.
M- Era puramente só fazer as ecografias?
T- Era.
M- Não tinha cuidado, não tinha curiosidade, era simplesmente só analisar a
ecografia?
T- Fazê-la e fazer o relatório.
M- O médico então que fez o parto da Marlene não foi o Dr. Artur?
T- Não, um parto normal em Portugal nunca é feito por um obstétra, nunca ou
habitualmente não é feito por um obstétra. Há enfermeiros parteiros, quando os partos
são normais e sem stress.
M- Entendi.
T- O médico vai lá, faz o toque, depois para quem quer a epidural vai lá o médico
anestesista da epidural e aquilo é feito.
M- Entendi.
T- Quando não há riscos, não há enfermeiro para o bebé, quando nasce, tá sempre lá
na sala, o bloco de parto, os blocos de parto pelo menos ali em Setúbal são brutais,
parece um hotel, porque é uma sala de partos para cada um, sabemos que há hospitais
em Portugal, muitos são (impercetível) ali não, é uma sala para cada um, uma casa de
banho, somos muito bem tratados pelo pessoal que ta ali, eu pelo menos fui, não tenho
em mim uma razão de queixa, eu me espantei nesse sentido, porque depois do que eu já
soube daquele hospital, eu fico assim…
M- Claro.
T- Em pensar se estou no mesmo planeta e tive a mesma experiência que essas
pessoas , mas efetivamente, os cuidados são do melhor que há, dão-nos uma parteira, a
parteira ta ali, quando nós sabemos e temos as evidências que o bebé vai começar a
expulsar, deles terem uma pessoa no quarto, que foi o caso do Davi, e ta lá a parteira e
ta a enfermeira para receber o bebé, para tratar dele assim que ele nascer.
Simplesmente é isto, portanto a não ser que haja alguma complicação, ele é que não vai
lá fazer nada.
M- Entendi. Então a Tânia já falou que você está com advogado né? Um advogado e
vocês estão processando civil e criminalmente?
T- Civil vai agora quando ele fizer um ano, portanto a parte criminal ainda tá em fase
de inquerito né, ta entregue ao Ministério.

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M- Bom, eu não sei, por enquanto a minha parte criminal eu ainda não defini como é
que vai ser, mas a civil eu não sei se bate com os argumentos do seu advogado, mas eu
vou falar especificamente das ações de vida indevida e nascimento indevido, que eu
acho que se aplica muito no caso do Rodrigo.
T- De vida?
M- Vida indevida e nascimento indevido. As ações de nascimento indevido são bem
aceitas na jurisprudência hoje, que é exactamente o caso do Rodrigo. O bebé nasce com
malformações congênitas e…
T- Vou gravar isso.
M- Pode gravar. Vida indevida e nascimento indevido.
T- Ok.
M- O de nascimento indevido são ações que andam sendo bem aceitas na
jurisprudência hoje, da Europa, dos Estados Unidos. Essas ações começaram nos
Estados Unidos, como é óbvio, e é isso, quando tem um nascimento de um bebé que, no
caso do Rodrigo, foi planejado, os pais queriam, mas basicamente o que aconteceu é
que o médico fez um diagnóstico errado e o erro dele foi no sentido de tirar a
autodeterminação dos pais sobre ter ou não aquele filho, com aquela deficiência. O que
eu acho que é exactamente, na esfera civil, é exactamente o caso do Rodrigo. Então isso
eu acho que vai ser uma parte já mais esclarecida e mais tranquila de abordar. Agora,
essa outra ação, de vida indevida é uma ação completamente polemica, a maioria dos
tribunais hoje em dia não aceitam, mas a ideia não é me colocar no sentido de que
deveria ser concedido a ele essa vida indevida, mas de trazer o argumento, trazer a
discussão. Que é o seguinte, Rodrigo em nome próprio entra com um processo,
representado pelos pais, afirmando que a vida dele, é dificil falar, mas na medida em que
a vida dele é um dano para ele, as condições em que ele vive, então que a atitude do
médico repercute diretamente no tipo de vida que ele tem. E por que que não é muito
aceito? Por causa da questão dos deficientes, a primeira ação discutida em relação a
isso foi na Holanda, em que o tribunal concedeu aos pais, chama até caso você queira
pesquisar, caso Perruche, tem a jurisprudência toda na internet. A mãe era portadora de
rubeula e afirmou para o obstétra que se tivesse possibilidade do filho dela ter as más
formações devido a rubeula ela queria abortar, ela não queria ter o filho, o médico falou
que não, que o bebe estava perfeito e que não tinha problema. Ele nasceu com severas
más formações devido a rubeula, o tribunal concedeu a ação de vida indevida e
nascimento indevido, ou seja, indenizou os pais pelo nascimento indevido e indenizou a
criança pela vida considerada como um dano. Só que imediatamente depois veio uma
repercussão social enorme dos deficiêntes frente a isso, afirmando que nenhuma vida
pode ser vista como um dano, não existe esse peso de viver, qualquer vida valeria a

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pena ser vivida. E apartir disso os tribunais tem tomado cuidado com esse assunto, do
tipo, até que ponto, a gente como representante da lei pode afirmar que uma vida vale ou
não a pena ser vivida. Entendeu? É como se eles estivessem dando um atestado que a
vida dele…
T- Eu acho que todas as vidas são indevidas quando não podem ser vividas pela
própria pessoa.
M- Exatamente, na minha opinião nos últimos anos a gente ganhou muito em relação
a direitos humanos, a dignidade humana, mas isso ao mesmo tempo é negativo, porque
agora tudo é extremismo, você entende? Qualquer coisinha é violação do direito humano,
você pensa, e a condição que o Rodrigo está agora? Como será que ele se sente em
relação a vida dele? E os pais?
T- Não sabemos sequer se ele sofre. Parece-me que não, que ele estava indisposto,
partimos do principio que ele age, não sabemos se ele sente dor, porque por exemplo a
bolha rebentou ontem, é uma pequena fissura mas está lá, e ele está bem disposto
aparentemente, mas nós não sabemos se ele tem perceção de dor, se tem perceção do
mal estar, pode não ter isso. Se não tiver isso ele pode estar num sofrimento atroz e só
não consegue manifestar.
M- E mesmo assim eu dei uma lida e o Rodrigo tá em uso de medicamentos desde
que ele foi pra casa, não está?
T- Sim. Ele tem medicamento porque a cabeça mesmo assim vai aumentando,
aguentou 10 meses sem arrebentar, mas o medicamento que lhe dão é um medicamento
que faz com que a espinha não produza tanto líquido, que é o que vai para o cérebro. E
através desse líquido que nos permite o movimento por exemplo, mas não sabemos até
que ponto é que para evitar o crescimento da cabeça nós estamos a comprometer as
restantes partes do corpo, não é? Porque esse líquido é fundamental para gerar
movimento no corpo inteiro, das funções mais essenciais para ter uma vida com alguma
qualidade de vida.
M- Então na esfera civil é isso que eu vou abordar. Como eu te falei, nascimento
indevido é uma coisa muito tranquila, acho que até seu advogado com certeza sabe, se
não vale a pena você discutir com ele isso, não sei qual estratégia que ele vai usar.
Agora, a vida indevida eu acho que é uma discussão muito rica para eu ter aqui,
entende? Não quero que você, como representante da familia leve no sentido de que eu
to menosprezando a vida dele, ou nada nesse sentido, mas que…
T- As coisas são como são Mariana.
M- Mas simplesmente porque, até que ponto essa questão da santidade da vida
humana deve ser levada? Todas as vidas merecem ser vividas? E aí a gente teve
também um processo dele, tem precedente, aqui em Portugal do STJ, também você pode

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pesquisar, em que um dos argumentos foi o seguinte, se caberia a própria pessoa
reclamar a vida dela como um dano, que ela faça isso quando ela for maior, porque
querendo ou não quem esta dizendo isso são os pais ou representante, então está
condicionando isso pra ele. Ok, posso até concordar com isso, mas e as pessoas que
nunca serão capazes? Vão ser maiores e não vão ser capazes, o Rodrigo não vai ser
capaz.
T- Não sabemos, e se morrer, entretanto?
M- Exatamente
T- O dano foi pra quem? A morte, acho que é a melhor prova em como uma vida
indevida. Nós não esperamos, não damos à luz uma criança para morrer antes de ser
maior de idade, a não ser que haja um acidente, que haja alguma causa. Agora de
causas naturais, o percurso normal de vida não esta feito para isso, a lei de vida não esta
feita para isso.
M- De forma alguma.
T- A probabilidade, ou aliás, do que se sabe em medicina até hoje é o que vai
acontecer ao Rodrigo. Isso pode acontecer a qualquer momento, aliás o Rodrigo para
além da bolha rebentar, para além disso, nós temos umas amígdalas à volta da cabeça,
duas já descaíram, se descair mais duas ele vai se deixar dormir e não vai acordar mais.
Basicamente o que nós sabemos é que sempre que o Rodrigo dorme nós não sabemos
se ele volta a acordar. Nós queremos acreditar que sim, mas se nós analisarmos a
situação sem o coração, não sabemos quando é a ultima vez que o Rodrigo vai se deixar
dormir e não vai acordar mais, aliás no inicio ele teve um mês no hospital, depois ao fim
do mês ele começou a vir a casa e acabou por ficar na minha casa por isso mesmo, nós
aguardávamos que a qualquer momento o Rodrigo se deixasse… ou seja, nós
constantemente nos despediamos dele, porque nós não sabiamos quando é que era a
proxima vez, porque o que estava a ser dito pelos médicos é o que ia acontecer, era
certo. Ninguém passava pela cabeça que ele aguentaria 10 meses, ninguém. De facto
quando a Mariana diz assim, a vida foi um dano, é claro que foi um dano, foi um dano no
aspeto que se ele não sobreviver, ele só veio ao mundo, claro, ok, nós afeiçoamos, mas
a parte sentimental, se for colocada de parte, é impossivel não sentirmos empatia por
aquele ser que não pediu para nascer, mas isso tem a ver com os nossos valores. No
caso do médico por exemplo não sentiu qualquer tipo de empatia, portanto, se nós
tirarmos a parte sentimental, ele veio ao mundo, sem qualidade de vida, acabou por ser
um peso na vida daqueles pais (impercetível) e sem futuro porque acaba por morrer.
M- Sem expectativa de vida nenhuma né?
T- Sim.

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M- Então é isso, eu acho que esse argumento vai ser muito rico, a parte civil já é
basicamente isso, eu acho que essa informação que você trouxe, falando que se os pais
soubessem da real condição do Rodrigo eles teriam abortado, isso já é um argumento
muito favorável né, porque alguns tribunais exigem isso, mas e sobre a parte disciplinar?
Vou fazer alguns, na medida do que eu posso, fazer algumas criticas, que foi exatamente
nesse sentido que meu orientador falou, faça criticas mas ao mesmo tempo, tenta criticar
mas mudar o sistema, dando sugestões de como mudar, não só criticar a ordem dos
médicos, pois a ordem dos médicos aqui em Portugal é complicada.
T- É aquilo que nós falamos
M- É, mas então…
T- Maçonaria pura, são eles que mandam no pais.
M- Mas então a parte criminal que eu ando pesquisando sobre qual lado que eu vou
abordar, eu andei vendo o artigo que trata do aborto legal, e tem uma alinea especifica
que trata das más formações, que se o bebe tiver má formações a mãe pode abortar até
24 semanas ou se…
M- O quê? O quê foi?
T- Nós podemos abortar até o último dia de gravidez.
M- Não, mas aí vem a segunda parte, que se for um feto inviável pode abortar em
qualquer tempo, e eu acredito que esse seja o caso do Rodrigo.
T- A partir das 24 semanas, o que diz a lei é que tem que ir a um debate de conduta
ética médica, um júri, depois é levado no juiz onde é assinado o documento e é permitido.
No meu segundo filho, teve o documento até o último dia, se eu quisesse tirar, se
houvesse evidencias obviamente, de ter malformação do meu primeiro, eu poderia tirar o
meu filho a qualquer momento.
M- Entendi.
T- Quando é o caso, como é no caso do Rodrigo, é evidente que as malformações
dele eram, aliás, os médicos descrevem isso da melhor forma possível, as malformações
dele são incompatíveis com a vida.
M- Exatamente.
T- Portanto, tudo isto foi uma surpresa, mas até o último dia de nascimento, poderia
obviamente, seria justificado às malformações dele para permitir um aborto.
M- Porque uma abordagem que eu li muito, que muitos autores dizem, é que na
obstetricia é muito dificil você ter uma condenação criminal, a não ser que seja por um
facto diretamente causado na hora do parto, uma má atuação do médico causou, de uma
causa mediata, causou alguma má formação no feto, que não foi o caso do Rodrigo. Mas,
eu li alguns autores dizendo que se a gente conseguir uma interpretação desse artigo
que eu te falei, do artigo 142 do código penal da alínea c, de que a interrupção voluntária

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da gravidez, ela não é só para alivio da mãe, mas também do feto, a gente consiga
interpretar que é lícito abortar nessa situação porque o feto sofre
T- É incompatível com a vida
M- É incompatível com a vida, talvez a gente possa…
T- Acho que é a melhor definição que pode encontrar
M- As vezes a gente consegue…
T- O feto, o Rodrigo, as malformações do Rodrigo são incompativeis com a vida. Logo,
não faz sentido.
M- Sim. Então talvez por essa abordagem seja mais fácil fazer a responsabilidade
criminal. Mas, eu confesso que isso ainda está em aberto, ainda não discuti com o meu
orientador, a gente ainda não sabe mesmo, a gente sabe mais é a civil. Bem, acho que é
isso de importante. Eu queria mesmo, é realmente muito importante pra mim, se eu tiver
acesso não só as ecografias, mas ao estado atual de saúde dele agora, exames... não
precisa ser nada original, pode ser digitalizado ou cópia ou qualquer coisa que seja. Isso
vai ser única e exclusivamente documento da tese, pode ficar tranquila, eu posso até
fazer um documento…
T- Não, isso é público não tem problema.
M- Mas é que isso é de grande valia. Vir o laudo do médico que vai atestar que era
completamente visivel os problemas do Rodrigo e evitável e que agora, como é que faz?
T - A parte administrativa também é interessante, porque se nós pensarmos que a
clínica era legal, nunca foi vistoriada, nunca, ou seja, a direção geral de saúde falhou, o
Ministério da Saúde falhou, a Ordem dos Médicos falhou, falharam todos.
M - Agora, só uma coisa que eu estou lembrando. Você ou seu advogado tiveram
algum contacto com as outras famílias?
T - Sim, algumas delas vão se juntar ao processo do Rodrigo, aqueles que
prescreveram.
M - Porque eu dei uma lida e o que eu mais lembro é desse caso que eu te falei, que
foi uma senhora que teve uma filha, mas que adiaram tanto o parto dela, eu acho até que
o Dr. Artur falou assim “a, dá um cházinho com biscoito”, foi algo assim que eu lembro da
entrevista. E adiou, o bebé nasceu com falta de oxigênio no cérebro e aí passaram
poucos meses e ele morreu. Algo assim, eu lembro desse caso
T - E, há a Luana que nasceu com as pernas ao contrário
M - Acho que também pode ser né, quer dizer…
T - Ele também não viu as pernas ao contrário.
M - Como?
T- Ele não vê nada?

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T- Agora a parte administrativa obviamente, aliás, (impercetível) eu apresentei queixa
contra o estado português, aliás vou apresentar.
M- O que você tiver da parte administrativa que você achar interessante também e de
grande valia você pode me passar, ou me falar qualquer coisa que eu tento encaixar
aqui, mas por enquanto é isso, se eu precisar de mais alguma coisa a gente pode se
encontrar de novo, e os exames também que são muito importantes, e se você quiser eu
posso também, a medida que eu for fazendo meu trabalho, eu também posso te mandar
algumas coisas, tirar alguma duvida se você quiser.
T- A grande dificuldade é de facto a parte criminal.
M- É, sim.
T- Essa é a grande dificuldade, mas já não contando que através da ordem dos
médicos, o facto de ele ser culpado e ser expulso da ordem…
M- Já ajuda.
T- Ajuda depois a comprovar, porque ele falhou, no momento em que ele falha ao
juramento cai por terra toda a boa vontade que ele possa ter como médico, porque ele
falhou naquele juramento e aí tem que ser julgado como homem. Penso eu, não é?
Portanto está comprovado que ele falhou como médico redondamente, falhou ao
juramento que fez e isso abre a porta para ele ser julgado como um homem médio. E pra
isso nós vamos ter que reportar que o ato dele não foi utilizando todas as boas praticas
da medicina e por ai conseguir agarrar a parte criminal.
M- E o que é importante também é o seguinte, a culpa na esfera disciplinar não é
vinculativa com as outras esferas, mas ela é um indício de que ele violou a Legis Artis da
medicina.
T- Não nos podemos esquecer que quem vai ao tribunal são outros médicos.
M- Então isso aí já ajuda bem na parte criminal, é um indício de que a conduta dele
não foi aquela que deveria ter sido. E também eu acho que ajuda muito o caso de ter
vários precedentes, não é? 11 queixas só que eu dei conta vendo aleatoriamente na
internet. Agora eu tenho uma outra questão, eu não consigo ter acesso nem as queixas
dele na ordem dos médicos, eu queria muito isso…
T- Queria, meta-se na fila.
M- Não, eu não consigo ter acesso, queria ter, já ia me ajudar muito, não é? Como
também queria saber sob quais argumentos eles arquivaram as queixas, queria ver o
laudo médico legal.
T- Tem que aproveitar que ta aqui em Lisboa, e ir ali bater a porta à ordem dos
médicos.
M- Mas se eu for assim eles não vão nem me escutar.
T- Vão vão.

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M- Você acha que vale a pena?
T- (impercetível) porque essa informação é pública.
M- É pública essa informação? E onde que é?
T- Na ordem dos médicos
M- É.
T- É a rotunda do relógio, ao pé do aeroporto. É logo a seguir a rotunda do relógio,
umas vivendas amarelas.
T- Essa informação eles podem não querer dar, mas a Mariana como advogada tem
que bater o pé né, porque isso é público, então e as decisões não são públicas?
M- São muito importantes. Eu queria ver o argumento sob qual…
T- Só não se esqueça que um médico quando é decidido que a expulsão dele ou
arquivamento dos outros casos teve que ir ao edital. Então é público.
M- Isso que eu queria pegar, quais foram os argumentos que…
T- Ou pelo menos dizer… já viu na página da ordem dos médicos?
M- Já, já entrei na página deles.
T- Dizer qual é o tal edital, foi publicado quando, que é para conseguir aceder online,
pelo menos. Eles têm que lhe dar.
M- Que eu quero ter os argumentos que eles utilizaram para arquivar as queixas. E
tem outra, isso eu não tenho certeza também, mas eu acho que ele não poderia estar em
exercício com 5 queixas em aberto, as arquivadas tudo bem.
T- Claro que não
M- As que foram arquivadas seja lá por qual motivo for, que eu também discordo
completamente.
T- Prescrição todas elas, ou quase todas elas. Veja lá que antigamente havia os
conselhos regionais, aqueles conselhos que eles se juntam para deliberar. Mas agora,
porque diziam que eram os médicos que tinham conhecimento científico para falar aquilo,
eles agora, como as queixas eram muitas contrataram um escritório de advogados, ou
seja, eles chutaram pra canto, todas elas são a base de prescrição e tudo aquilo que os
advogados podem, começaram a arquivar. Tudo aquilo que estava prescrito pumba. Só
que houve muitos que entraram em contacto com o meu advogado, eu falo do advogado
porque ele é meu advogado, mas quem deu o advogado à Marlene fui eu. E então houve
muitos que se quiseram apesar de estarem prescritos, quiseram se juntar e então fazer
reforço, Jõao Camolas é o nome do meu advogado.
M- É até interessante né que a gente pode trocar algumas coisas. Eu vou lá procurar
isso porque isso é fundamental para a minha parte disciplinar.
T- Mas eles têm que lhe dar isso, isso teve que ser publicado.

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M- Que aí isso também eu entro em contaco com algum médico legista, com algum
perito e peço pra ele analisar a decisão. Da pra mostrar que é um corporativismo sem fim
aquilo ali.
T- Completamente, mas isso (impercetível), já me disseram que é caça as bruxas, que
é trinta por uma linha.
M- E olha, infelizmente isso não é só em Portugal.
T- Pois.
M- Essa questão dos médicos, é complicado.
T- Pois, mas não pode ser. É assim, ok eu aceito erros de toda a gente, dos médicos
muito mais porque eles conseguem fazer coisas com o coração a bater que ninguém
consegue, faz-me lembrar a história do mecânico. Uma vez um médico levou o carro ao
mecânico, não trabalhava, e então o mecanico arranjou o carro e tal e depois, 400 euros
o arranjo Dr. O médico disse 400 euros? Então o senhor cobra mais do que eu que sou
médico, que opero as pessoas, e o mecânico disse, está a ver, precisou disso, isso tem
muita ciencia, as tantas lá o mecânico justificou e disse o médico, pois, mas só que você
faz com o motor desligado e eu faço com o motor ligado. Como é que você leva mais do
que eu? Não é? E de facto os médicos tem uma capacidade, agora obviamente eles
podem se enganar.
M- Claro
T- Eu compreendo isso, claro, mas nós estamos a falar aqui de uma coisa que..
M- De um erro que não foi...
T- Propositado.
M- E não foi uma coisa ligeira, não foi uma coisa escusável, como a gente fala.
T- E que aconteceu uma vez, então ele há 26 anos quando teve o primeiro caso, ou o
segundo ou terceiro, (impercetível) bem, vou parar, o erro pode ser meu.
M- Não e não existe uma vida profissional em que a pessoa tenha tantos erros iguais.
T- Todos iguais.
M- Não existe, essa é a questão, tantos erros iguais numa carreira profissional assim.
T- São todos para ele.
M- Não tem lógica.
T- E é isso que eu não consigo fazer prova.
M- Pois é, é isso que a gente tem que trabalhar em cima. A questão é…
T- Como é há uma clínica que recebe as credenciais, não tem um apoio (impercetível)
e ninguém vê? Quando é que não viram? Foi na primeira, na segunda, na terceira, na
décima, na décima primeira, na décima quinta, qual das queixas é que não viram? Qual
foi a queixa que eles não viram? Que que eles fizeram as outras? Nenhuma delas tinha.
Qual foi das queixas que viram que ele não tinha condições pra fazer ecografias? Porque

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eu quando entrei no hospital de Setúbal, a primeira coisa que a administração me disse
foi, mas este médico não faz ecografias em Setúbal, no hospital, não tem conhecimentos
para tal.
M- Falaram?
T- Ele no hospital de Setúbal não fazia ecografias. Parece que tem de haver numa
especialidade para os médicos aprenderem a fazer ecografias, por isso é que neste
momento só há 180 médicos em Portugal pela ordem dos médicos e iam criar uma lista
para diferenciar os obstétras daqueles com competencias para fazer ecografias. Agora,
vamos lá ver uma coisa, a queixa quando dá entrada na ordem dos médicos, houve
muitos pais que também fizeram no ministério público, aliás houve mais pais a fazer no
ministério público do que na ordem dos médicos. O ministério público não viu que aquela
clínica não tinha acordo? Em qual das queixas é que não viu? Não viu na primeira, na
segunda, na terceira, na décima, quantos foram precisos? O que que fizeram as queixas?
O ministério público viu aquilo como? De cabeça para baixo? Que raio de analise eles
fizeram? Quantas vidas podiam ter sido poupadas?
M- Claro
T- Se não fosse feita uma análise correta.
M- Se tivessem fechado o estabelecimento
T- Então, mas ninguém vê?
M- Claro que viram
T- Mas agora vão ver, porque eu vou espetar com isto no Direito dos homens Portugal,
vai andar nas horas. A Marlene disse que dá o dinheiro aos pobrezinhos.
M- Claro
T- Mas eu vou rebentar com esse país, garanto-lhe isso, se meu afilhado morre então,
vão ter que, fujam… porque eu a bem levam-me tudo de tudo de mim. Mas a mal, tenho
tão mal feitio e mexeram, pra mim é o mais sagrado, que é os meus filhos. Porque eu
tenho meu afilhado como filho, vão ter que fugir porque eu vou virar esse país de cabeça
para baixo. (impercetível)
M- Sim, e acho justo.
T- A probabilidade de isso acontecer é gigante.
M- É.
T- Agora, falharam todos, todos! E dizem que não há corporativismo?
M- É o que mais há.
T- Então explica-me, ok não há corporativismo, então expliquem-me não foi na do
Rodrigo que foi flagrante, em todas as outras. E então? Então somos todos negligentes?
E o médico é o único que tá certo, então se não vai de uma maneira vai de outra. Então

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temos um médico que é um inocente, foi um erro, certo? Todo resto, o médico só teve
uma ação, não é?
M- Teve uma ação que todo mundo fala que..
T- Que não foi intencional, vamos partir desse pressuposto, foi um erro, ok. Agora,
metam a bola a girar, metam no serviço do ministério, metam a ordem dos médicos,
metam a direção geral de saúde, metam no ministério da saúde, metam ás entidades
fiscalizadoras, metam os serviços das finanças que eles pagavam tudo e mais alguma
coisa os serviços a uma clínica que não era credenciada. Sim eles não viram que a
clinica da baixa da banheira que tava a faturar, chegava a ter, porque assim, vamos lá ver
uma coisa, estamos a falar de uma clinica da baixa da banheira que faturavam três
clinicas, se nós estamos a falar de uma clinica que de dez em dez minutos entra uma
paciente, se lhe juntar mais outra clinica no atendimento deles com outro médico que tem
de dez em dez minutos um paciente e se juntarem ainda uma outra terceira clinica que é
a da baixa da banheira em que de dez em dez minutos tem uma paciente, ou eles são
mágicos ou olham para o mesmo contribuinte, para a mesma clinica e dizem “epa, isto é
um espetáculo”, porque eles conseguem estar no mesmo minuto a fazer cinco ecografias
M- Eu acho importante...
T- São um espetáculo
M- Eu acho...
T- Quem é que assinou a credencial? Foi outro médico? Porque teve de ser outro
médico com conhecimentos… epa, o médico que assinou a credencial vai ter isso, se
não, se foi o Artur Carvalho que assinou, quando lá bateu a credencial não viram que o
médico não tinha competências para…? Ah! Ninguém viu lá a cédula profissional, não
confirmaram que quando o número do meu alvará, vão ver se eu tenho habilitações
para… é para isso que a gente tem alvarás e tem cédulas profissionais e tem tudo isso.
Ah! Ninguém viu? Falhámos todos e o médico é o santo! De facto, o médico foi o único
que só teve uma atitude não deliberada, não é? No dizer dele. Tudo o resto falhou,
portanto quem tá errado? É o país inteiro, ele não foi o único.
M- Olha, só uma dúvida, essas outras pacientes dela, você sabe se também foram
nessa mesma clínica?
T- Tudo pelo público. É assim, ele deu durante vinte e tal anos em várias clínicas. A
Ecosado era dele, depois era outra na Amadora, depois acho que ainda havia uma
terceira, também acho que era na Amadora… Ah! Em Almada. Três clínicas. Como nós
sabemos os médicos no privado cobram taxas, e que faziam, que ele fazia nas três,
portanto nenhuma delas tinha acordo com o serviço nacional de saúde. Isto era faturado
numa clínica da baixa da banheira… descobriu-se.
M- Ou seja, o médico é a ponta do iceberg né?

100
T- É. Então eu vou lhe dizer mais uma coisa, para você perceber o buraco fundo que a
gente…
(telefone toca)
T- Imagine que você trabalha vinte e seis anos no mesmo sítio…. Imagine, vamos
comparar a sua sala com um bloco operatório, que normalmente ninguém entra para um
bloco…
(telefone toca)
T- Se eu lhe disser assim… a ex mulher dele trabalha no hospital de Setúbal, a filha
trabalha no hospital de Setúbal, ele trabalhou vinte e seis anos no hospital de Setúbal.
Eu… um dos meus funcionários… a mulher dele trabalhou onze anos no bloco operatório
com ela, onze anos. Saiu agora, neste verão, há uma semana atrás. Onze anos a
trabalhar com uma pessoa que trablhava lá a vinte e seis, ninguém sabia no hospital que
a mulher dele… a ex mulher trabalhava lá, ninguem sabia que a filha trabalhava la, e
ninguém sabe sequer qual é o carro dele, não sabem nada dele. Imagina Mariana o que
é trabalhar vinte e seis anos com pessoas que não sabem nada da sua vida. Você chega
a estar horas fechada numa sala, sabe como é que são os médicos, somos todos nós,
não é? Então o que que fizeste hoje? E o teu filho? E não sei que, é ou, não é?
M- Claro.
T- Ele é… no hospital de Setúbal ninguem sabe, nem a administração. Mas não sbem
mesmo, porque eu sou boa a analisar pessoas, não sabem mesmo. Não sabem o que ele
gosta, o que é que ele faz, ele entrava mudo e saia calado durante vinte e seis anos.
M- Olha, além de tudo ele era chefe né, do serviço da obstetrícia?
T- Agora não era, porque eu estive com o chefe da obstetrícia, mas foi até a dois anos
atrás. Estranho né? Parece que estou a lidar com um fantasma, é a sensação que eu
tenho.
M- Agora só uma última pergunta, aquilo que você falou incialmente, que você acha
que as malformações foram causadas por ele de medicamentos, teve algum
medicamento específico que ele passou para a Marlene?
T- Não, ele não passa nada. Há um medicamento que foi proibido em França, é
conhecido isso, foi agora a pouco tempo até foi discutido, misturado no gel da ecografia
pode gerar essas malformações.
M- Ah entendi.
T- Porque são, é muito estranho que são todas a mesma. É sempre a mesma, não é
um que tem um problema no coração e o outro no fígado, outro no estômago.
M- É a mesma coisa…
T- Não, tudo malformações físicas. Todas. Portanto é alguma coisa que entrou em
contato com a pele, o que me leva a crer.

101
M- Entendi.
M- Olha, então ta bom, não quero te prender mais. Eu vou embora hoje, mas vou
passar lá antes disso, qualquer coisa se eu estiver com dificuldade eu volto com o meu
orientador.
T- É assim, agora no mês de agosto, o relações públicas daquilo é o Diamantino
Nunes. O caso que foi apresentado é.. aquilo são três moradias amarelas que a Ordem
dos Médicos principal, onde está o Bastonário, está ao centro, depois do lado direito é do
Norte, depois do lado esquerdo é do Sul, mais da ponta é a do sul. Ok? Nós somos da
ordem do Sul, mas pode ir a qualquer uma delas. A do Norte não, não convém muito,
mas diz lá a plaquinha. É logo, está a rotunda do relógio, está a paragem do autocarro
aqui na rotunda, é logo a seguir, é logo a casa amarela a descer.
T- Porque isso é público, têm que lhe dar.
M- Sim, eu vou lá…
T- Mas eles fecham-se…
M- Sim, eles vão primeiro dar algum argumento… eu sei.
T- Pode ser mais (impercetível) para eles, que eles até, eles ganham medo. A
secretária normalmente, não lhe dê muita conversa.
M- E aí você só fica de me mandar por favor os… isso é bem importante para mim e aí
eu vou vendo o que é que eu vou conseguindo juntar. De qualquer forma daqui a
algumas semanas eu vou de férias e eu vou passar por aqui de novo, então qualquer
coisa a gente marca, se eu tiver alguma dúvida, ou precisar de mais alguma coisa, mais
informação a gente vai mantendo o contato.
T- A parte criminal é mal mesmo
M- É. Mas vai ter. Eu quero falar sobre isso. Alias, é a única parte que mexe com ele
né, que vai mexer fisicamente assim, que vai pegar nele, vai ser ele ser condenado
criminalmente
T- Eu se me dissessem assim… que a juíza dizia culpado, mesmo com as penas
suspensas seja o que for, culpado…
M- A gente tem que achar um argumento, alguma norma que encaixe aí.
T- Entretanto quando for, a Mariana se quiser vir a assistir ao julgamento, não sei
quando é que vai acontecer, não sei se aquilo vai ser sala trancada a jornalistas. Se for,
conta comigo que entra comigo (impercetível).
M- Então, você me deixa informada sobre as datas? Então a gente vai conversando.

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9 EXAMES ECOGRÁFICOS

Figura 1 – Ecográfia 1

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Figura 2 – Relátorio 1

104
Figura 3 – Ecográfia 2

105
Figura 4 – Relátorio 2

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Figura 5 – Ecográfia 3

107
Figura 6 – Relátorio 3

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