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Sílvio Gallo
Do sedentarismo ao nomadismo:
intervenções do pensamento das
diferenças para a educação
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.
Realização:
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda.
© Alexandre Filordi de Carvalho, Sílvio Gallo
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.
As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores
e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.
C321d
Carvalho, Alexandre Filordi de
Do sedentarismo ao nomadismo [recurso eletrônico] : intervenções do pensamento
das diferenças para a educação / Alexandre Filordi de Carvalho, Sílvio Gallo. - 1. ed. -
Belo Horizonte [MG] : Fino Traço, 2022.
recurso digital
195 p. - ebook
Modo de acesso: world wide web
Apêndice
Inclui índice
ISBN 978-85-8054-490-9 (recurso eletrônico)
1. Educação - Finalidades e objetivos. 2. Educação multicultural. 3. Multiculturalismo.
4. Livros eletrônicos. I. Gallo, Sílvio. II. Título.
22-76335 CDD: 370.117 CDU: 37.017
Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439
Introdução...........................................................................................10
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Epílogo
7
Elucidário: o que move este livro?
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Em Vida Precária, Butler (2019) nos faz enxergar que todo autoritarismo
se impõe como estrutura de endereçamento único. Manifestado em múltiplas
feições e fantasiado inclusive de normalidade cotidiana, o autoritarismo rouba
de nós a singularidade de querer ser endereçado. A vida precária, segundo
Butler, emerge quando o endereçamento falha, pois o que é dirigido para nós
não partilha de nossa autonomia, reflexividade ou de nossos afeto e desejo.
Poderíamos dizer que o autoritarismo é o que desejam por nós e para nós; é o
que se nos impõe como cumprimento de ação, de fala, de papel, de tarefa, de
gênero, fora dos circuitos de nossa singularidade, diferença e multiplicidade.
“Ou seja, perdemos a condição de sermos endereçados, a demanda que surge
de outro lugar, às vezes de outro lugar sem nome” – como o sistema – “que
articula e pressiona nossas obrigações” (Butler, 2019, p. 159).
Por ser assim, o nosso endereçamento é uma cumplicidade com o que
desejamos. Gostaríamos de fazer desse endereçamento um convite de conexão
de desejos. Queremos convidar você a também produzir seus endereçamentos
de desejo. Quem sabe não seremos cúmplices? Quem sabe não seremos
parceiras e parceiros de cons/piração desejantes? Quem sabe não criaremos
formas de mani/festar a vida de outros modos?
O cenário escolhido por nós, para tanto, é o da educação. Sustentamos
que a educação, com todos os seus atos, pactos, modalidades, formas, políticas,
ações e tentativas, desde que contrária ao autoritarismo e afirmativa na
produção da multiplicidade de se desejar, é um terreno fértil para criarmos
novos endereçamentos.
Em tempos de desilusão programada, a tibieza da crítica e o conformismo
solidário não podem exercer domínios constantes na educação. Isso apenas
convém aos que comandam, aos plutocratas, à oligarquia, aos que se locupletam
com o poder gerencial e econômico intermediado pelo Estado. Contra eles,
ergamos a surpresa do desejo como plano de acontecimento, como potência de
sabotagem que age desregulando a máquina de autoritarismo. Concordemos
com Guattari (2013, p. 215): “O desejo como processo de singularização, como
um ponto de proliferação e de criação de possíveis no centro de um sistema
constituído”. Desejo em sua prolifer/ação: a favor de nós, a vida aberta ao
desejo. Eis o nosso duplo endereçamento neste livro.
9
Introdução
10
eles entram em uma deriva constante, em uma linha de fuga variável, em um
movimento lento, porém, de plena intensidade de resistência a toda gramática
de poder. Neste caso, como bem destacaram Deleuze e Guattari (2011) no
quarto platô de Mil Platôs, somos inseridos nos marcadores de poder pelas
próprias regras da gramática. A gramatologia do poder não abre mão, claro
está, do controle da linguagem. E ao manterem os livros vivos, eles vazam os
muros repressores das redundâncias que reduzem todo pluralismo de formas
de expressão e de sentidos.
Como sabemos, em toda sociedade autoritária, fascista, nazista, submetida
ao empenho de golpes e imposições políticas autocráticas, a linguagem, em
todas as suas perspectivas, é controlada e submetida a uma espécie de Index
Librorum Prohibitorum. Música, artes plásticas, literatura, danças, expressões
semióticas contrassignificantes são tomadas como ameaças às palavras de
ordens. Assim “a linguagem não é vida, ela dá ordens à vida; a vida não fala,
ela escuta e aguarda” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 13).
É claro que nas circunstâncias descritas acima as experiências de e com a
educação passam a padecer, pois as palavras precisam agenciar os graus e as
intensidades do poder abusivo que fazem da palavra apenas ordem, pressuposto
implícito de uma obrigação social sem vida. Mas, ainda assim, haverá os
nômades, tal como aqueles de Fahrenheit 451, e eles se circunscrevem para
além das linhas do Estado, para além das fileiras ordenadas das carteiras nas
salas de aulas; os nômades transitam onde o poder ordenador não imagina;
os nômades são a imaginação do contra-poder da unificação impositiva. Ao
lado deles, encontram-se multiplicidades de vida efervescendo outros modos
de pensar e de viver; com eles estão sendo traçadas linhas de fuga e um plano
de confiança coletivo, em um outro modo de se fazer grupo e de enunciar
coletivamente a resistência-existência; para eles, a política é uma manifestação
de vida e não um controle de vida.
Para tanto, os nômades desejam outra experiência de e com a educação,
porém, desejam-na como um modo diferente de querer a linguagem, as relações
humanas, os territórios dxs educadorxs e os seus próprios territórios; desejam
também outro desejo para a educação: desejo como potência libertária de
modos de ser que não se reduzem aos catálogos das amostras das sociedades
que a tudo tende a controlar, até o que se pensa.
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O presente livro tem a intenção justamente de se circunscrever nesta
perspectiva. Ele possui uma indagação latente: o que seria pensar o nomadismo
na educação? O que resiste ao nomadismo? Quais as consequências para
pensarmos a educação contemporânea desde a perspectiva do nomadismo,
que é a perspectiva das diferenças, das multiplicidades, de tudo que deseja
inventar pensamento, ações e atitudes contra a parasitagem dos padrões, da
burocratização que controla o que se pensa, e contra todo e qualquer micro
Index.
Ao menos desde 2013, iniciamos uma conversação em torno da educação
com o nomadismo, buscando pensar intervenções conceituais com a filosofia das
diferenças. Ao longo deste período, passamos a ver que há uma forma sedentária
de a educação se organizar, sistematizar-se, proliferar-se e desenvolver-se.
Como, a nosso ver, esta maneira sedentária de se proceder é insidiosa – sem
perdermos de vista que o pior tipo de poder abusivo é o insidioso – por sua vez,
ela acaba sendo normalizada, acolhida como forma e padrão únicos de fazer
vibrar as relações com a educação. Mas, para nós, o cenário pode ser outro.
Após algumas publicações na forma de artigos científicos que, cada a um
a seu modo, buscava elaborar e avançar na problematização do sedentarismo
na educação, chegamos ao denominador comum de que, de fio a pavio, o que
estava em jogo seriam a defesa e a luta em favor das diferenças no campo da
educação. Deste modo, sentimos a necessidade de retomar os nossos textos,
dilatando seus campos conceituais, e ao mesmo tempo atualizando-os dentro
do cenário sociopolítico brasileiro. Assim, este livro é uma espécie de corpo
ao que desejamos para a educação. É importante dizer que boa parte da versão
original dos textos foram publicadas em revistas francesas. A nossa intenção
com o livro, deste modo, também é a de ampliar o acesso de nossas reflexões
aos leitorxs da língua portuguesa.
Apesar da ressonância das intervenções do pensamento das diferenças
para a educação existente entre os capítulos, cada um deles, contudo, almeja
intensificar a especificidade de certas conexões conceituais.
O capítulo primeiro aborda a concepção própria do sedentarismo. O
próprio título anuncia ao que vem: Sedentarismo: as forças do hábito e as
forças da representação. Não se trata apenas de evidenciar como o hábito
opera um tipo específico de relações de poder paralisantes no campo da
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educação. Se há uma tendência com a qual o pensamento das diferenças tende
a questionar, ela se encontra na dimensão das representações. A busca por
identidades, significados, normas, princípios na educação quase sempre maneja
a cristalização de representações. Problematizá-las, com efeito, é movimentar
as tendências sedentárias acampadas na educação, donde também será preciso
definir o que é sedentarismo.
Uma vez definido o sedentarismo, o capítulo dois elabora uma espécie
de genealogia de como o sedentarismo é uma memória longa responsável por
alguns vínculos marcantes na educação. A memória longa do sedentarismo no
campo da educação: ainda somos e vivemos como nossos pais? é o título do
segundo capítulo
Mas há uma especificidade naquela memória longa que não pode
ser abordada de modo isolado. Trata-se, conforme mostrou Foucault em
suas pesquisas, de um tipo de relações de poder específico que, direta ou
indiretamente, incidiu em nossas formações culturais: a pastoral cristã.
Assim, o capítulo três, cujo título é: Embates com o poder institucional na
educação: a pastoral cristã como caso de phylum sedentário, busca avançar
nesta compreensão.
Ora, mas se a nossa questão é justamente aportar o pensamento das
diferenças para o campo da educação, a partir do capítulo quatro introduzimos
certas Explorações em torno de nomadismo na educação. Mais do que definir
o que é o nomadismo, buscamos conceber a sua operação como máquina de
guerra contra o Estado, ou seja, contra as formas unificadoras e paralisantes de
ações que tendem a bloquear e controlar a potência das diferenças na educação.
A partir daí, apresentamos duas situações emergentes do nomadismo na
prática, ou seja, como território existencial por onde a educação pode ousar
criar níveis de relação humana, de relação com o conhecimento e com as
escolas de modo singular e numa multiplicidade de perspectivas. Assim, o
capítulo cinco apresenta: Nomadismo 1 – a caravana do grupo-sujeito: alunos e
alunas produzem uma política de subjetividade nômade enquanto no capítulo
seis emerge a seguinte problematização: Nomadismo 2 – confiar e o dizer-
verdadeiro: comunidade política nômade e vínculos éticos na relação pedagógica.
As perspectivas que os capítulos cinco e seis deflagram nos convidaram
a pensar especificamente na importância de defendermos a escola em uma
perspectiva viva e, como gostava de dizer Guattari, funcionando como
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outro equipamento coletivo. Em tempos de políticas corrosivas aos valores
educacionais, mais do que nunca, é fundamental que tenhamos consciência
do papel da escola e da educação em nossa sociedade, embora não de modo
sedentário. Visando a avançarmos nesta reflexão, o sétimo capítulo se denomina:
Defender a escola do dispositivo pedagógico: o lugar do experimentum scholae
nômade como outro equipamento coletivo.
No capítulo 8, investigam-se os processos de inclusão levados a cabo na
política educacional brasileira entre 1985 e 2016, bem como sua precarização
nos dias de hoje. Para compreender tais processos, usa-se a biopolítica de
Michel Foucault e seu operador conceitual governamentalidade, colocando-
se a hipótese de que teríamos nas últimas três décadas o desenvolvimento
no Brasil de uma governamentalidade democrática, que operou uma lógica
inclusiva para o governo das diferenças. No atual momento político, em que
aquela estratégia já não opera, vivemos um neoliberalismo exacerbado, que
precariza os corpos diferentes, que já não cabem na lógica do capital e de sua
produção. Em tal contexto a defesa da escola pública democrática e republicana
ganha especial importância e atualidade.
A escola tomada como equipamento coletivo é revisitada no nono capítulo,
no qual desenvolvemos a localização espaço-temporal deste experimentum:
a sociedade contemporânea, mais que nunca sob ameaça do viés autoritário
que vem sendo desenvolvido pelo neoliberalismo, viés que tem sido estudado
por autores como Maurizio Lazzarato (2019) e Grégoire Chamayou (2020).
Enquanto este procura traçar a genealogia do neoliberalismo autoritário,
desde a década de 1970, mostrando como a lógica da empresa coloniza o
político e o social, o primeiro elucida a bifurcação que enfrentamos neste
momento e que nos leva a escolher e, necessariamente, a tomar partido: fascismo
ou revolução. Neste capítulo, intitulado Lutas democráticas na educação,
conjugaremos quatro atos que se endereçam a uma problematização das lutas
democráticas na educação, em ação contrária àquilo que se descortinou no
capítulo oitavo. A partir de nossa vivência com o pensamento de Deleuze e
de Guattari, exploraremos o conceito de Urstaat para sustentar que as formas
antidemocráticas atuais não passam de atualizações do próprio Urstaat. Aí
veremos que o Estado é apenas um estrato majoritário de formas prevalentes
de autoritarismo.
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Se o Estado reconhece como “normal” apenas casamentos entre homem e
mulher, o que vemos é a refundação de um endereçamento único aos modos
de se relacionar; se o Estado impõe um currículo oficial, ele transforma em
aberração os saberes que escapam ao cânone do oficialato escolar; se o Estado
se fia no saudosismo ditatorial para convencer seus “súditos”, ele rebatiza a
mortificação da democracia. “A política – e o poder – funciona em parte
por meio da regulação do que pode ser mostrado, do que pode ser ouvido”,
argumenta com precisão Butler (2019, p. 179). Quando buscamos novos atos
de endereçamento ao que pode ser mostrado, ouvido e, claro está, também
desejado, não estaríamos criando condições de uma nova política para o
nosso modo de ser? Por isso mesmo, é preciso nos endereçar contra a política
instituída do Urstaat que reduz a democracia ao impedimento controlado de
novas políticas de vida, de relações, de saberes, de subjetividades etc.
Ao desenvolvermos, contudo, o que é o Urstaat e o seu avanço como
arquétipo de um Estado primordial, apresentamos a hipótese de que a
democracia é uma produção de relações subjetivas que necessariamente vão
na direção contrária dos sensos e dos consensos do Estado. A essa altura,
tomaremos como ato o pensamento político de Rancière para defender o
registro singular da democracia face à política universalista do Urstaat. Em
questão encontram-se os lugares da multiplicidade e da máquina de guerra
para pensarmos as lutas democráticas contemporâneas. A nossa intenção
final, com os atos de lutas democráticas na educação, é convergi-los ao
seguinte endereçamento: é urgente concebermos a educação como experiência
imprescindível e privilegiada de lutas democráticas antiurstáticas, ou seja,
antiautoritárias, em seus aspectos micro e macroscopolíticos.
Por isso mesmo, e finalmente, produzimos um manifesto pela ousadia
do desejo na educação, que fecha o livro, ao modo de uma “conclusão” que
convida o leitor a seguir adiante. Trata-se de um intercessor para mobilizar
nossos endereçamentos a toda educação a ser desejada outramente, com outras
mentes, afetadas com conexões de desejo que não se intimidam a ousar nas
linhas cansadas da história. Você será convidadx a continuar o manifesto; você
será convidadx a se autoendereçar, a se transendereçar, a se multiendereçar,
a se alterendereçar – a manifestar a ousadia de seu desejo para a educação.
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Com estes textos, tal como os nômades pensantes em Fahrenheit 451,
fazemos a nossa comunidade caminhante, a nossa própria caravana que passa
enquanto ladram os cães dos poderes dominantes. Talvez, como aqueles,
“somos a minoria excêntrica que clama no deserto” (Bradbury, 2018, p. 185).
Mas juntos com tantos outros que também passaram por seus desertos e que
aqui nos acompanham, já que são os nossos companheiros de pensamento,
Nietzsche, Deleuze, Guattari, Foucault, Schérer, Rancière etc., também sabemos,
parafraseando Deleuze e Guattari, que somos, cada um de nós, vários, o que
já é muita gente.
O nosso convite é para você – leitor/a – unir-se a nós neste empreendimento
para, juntos, seguirmos em caravana, pensando e fazendo diferentemente na
educação o que fazem e pensam. Pois, no final, também cremos que oásis
florescem nos desertos. Portanto, sejamos a minoria excêntrica que não deixa
de clamar no deserto.
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CAPÍTULO 1
Sedentarismo: as forças do hábito e as forças da
representação
Em cena, as atitudes de Lucky são todas controladas pela força que Pozzo
aplica sobre a corda, acompanhada pela transmissão do monofluxo de demandas
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instauradas pela vontade imperiosa de seu senhor: “alto!”, “casaco!”, “para
trás!”, “cesta!”, “banqueta!”.
Após recomporem-se da momentânea paralisia decorrente da entrada de
Pozzo e Lucky na arena dos acontecimentos sob os quais Estragon e Vladimir
se subjugavam, estes vão tentar compreender, sempre com muito espanto, o
que se processa no relacionamento dos visitantes. Tanto o autoritarismo de
Pozzo quanto a passividade de Lucky são surpreendentes àqueles que mal
conseguem enxergar a própria passividade a que estão sujeitos, já que também
agem candidamente diante de uma espera que se delonga, sem nenhuma
garantia da chegada do misterioso Godot.
Não é, contudo, o pescoço em carne viva; o esforço inútil de segurar uma
mala pesada ao encontrar-se parado, no lugar de depositá-la no chão; o aspecto
idiota de Lucky; o fato de Pozzo evocá-lo como porco – numa clara alusão a
um tratamento desumano – que causarão espanto a Estragon e a Vladimir. O
que lhes causa espécie é o fato de descobrirem que Lucky é capaz de pensar.
A condição para Lucky pensar, entretanto, condiciona-se ao desejo e à ordem
de Pozzo. Por sua própria vontade e atitude, Lucky não pode pensar.
“Afastem-se”, diz Pozzo a Estragon e a Vladimir, criando o clímax em
torno do momento em que Lucky haverá de pensar. “Pense, porco! (Pausa.
Lucky começa a dançar). Pare! (Lucky para). Adiante! (Lucky vai em direção a
Pozzo). Aí! (Lucky para). Pense!” (Beckett, 2005, p. 84). Eis uma amostra de
Lucky a pensar:
Dada a existência tal como se depreende dos recentes trabalhos públicos de
Poinçon e Wattmann de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca
ququa fora do tempo e do espaço que do alto de sua divina apatia sua divina
athambia sua divina afasia nos ama a todos com algumas poucas exceções não
se sabe por quê mas o tempo dirá atormentados atirados ao fogo às flamas
às labaredas que por menos que isto perdure ainda e quem duvida acabarão
incendiando o firmamento a saber levarão o inferno às nuvens tão azuis às vezes
e ainda hoje calmas tão calmas de uma calma que nem por ser intermitente é
menos desejada mas não nos precipitemos e considerando por outro lado os
resultados da investigação interrompida não nos precipitemos a investigação
interrompida mas consagrada pela Academia de Antropopopometria [...]
(Beckett, 2005, p. 85)
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O mal-estar que se instala no leitor-expectador, provavelmente após uma
risível reação, fruto do breve contato com o pensamento de Lucky, não pode ser
calculado. Gostaríamos, todavia, de presumir certo estupor que emerge menos
da constatação da aparente incoerência e da ausência de significado advindas
de seu discurso do que pelo questionamento das condições que permitiram a
Lucky pensar dessa maneira, ou seja, de não pensar com coerência. Dito de outro
modo, parece-nos que em Lucky o ato de pensar e a geração do pensamento
como efeito de causa são derivados das ações que o objetivam de tal maneira
a ponto de bloquear não apenas as suas ações próprias como também, por
suposição, gerar um refluxo capaz de estancar suas possibilidades de agir
sobre si mesmo. O seu pensamento é sintoma de uma existência constituída
de modo objetivado. Tanto é que após Pozzo ordenar a Vladimir retirar o
chapéu de Lucky para que deixasse de pensar, Vladimir a ele indaga: “Mas
ele não vai perder o rumo?”. Pozzo responde: “Eu dou o rumo (Cobre Lucky
de pontapés). De pé! Porco!” (BECKETT, 2005, p. 87).
Estamos perante um “teatro da representação”, no sentido proposto por
Deleuze em Diferença e Repetição (2003). A representação é uma máquina
binária. Ela opera no fluxo do significado-significante angariando padrões,
deslocando os pensamentos, as ações, os desejos, as condutas por intermédio
de finalizações e de sentidos que são avalizados pela reprodução do Mesmo.
A representação pauta-se pela intensificação da experiência qualitativa;
aprofunda-se em um sentido proposto a partir de uma força que se impõe e
que também se verticalizará; dá as costas para quantidades de experiências
que ameacem quebrar o seu aprofundamento linear na relação do que está
representado. Não sem sentido, toda representação generaliza-se no hábito.
Neste caso, “a generalidade”, recordou-nos Deleuze, torna-se “hábito como
segunda natureza” (2003, p. 11). No limite, a representação naturaliza as relações
solicitadas por uma norma: as produções de comportamento, de ideias, de
sentido, de desejo e, assim, a constituição da subjetividade humana, são tomados
como expressões inevitáveis de um tem que ser assim.
O hábito atuante, nesse caso, é uma insistente intensidade operativa. Não
é pelo volume abrupto de um acontecimento estrondoso que encontraremos a
justificativa original, tipo de recalque enfunado em sua repetição. Colmatado
numa série de representações silentes, o hábito diz respeito às heranças
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constitutivas dessa espécie de “natureza” que nos ronda noite após noite.
Ele é uma moral crida sem deixar saber as razões que fazem dessa crença
uma confiança em sua ação. O hábito: um tipo de “educação de todos os
instantes”. Esta expressão de Bergson (1979, p. 212) não nos deixa enganar:
“é nos costumes, nas instituições, na própria linguagem que se depositam as
aquisições morais; elas se comunicam em seguida por uma educação de todos
os instantes: assim passam de geração a geração hábitos que acabaram por se
acreditar hereditários”.
O consequente equívoco de se esquecer as séries de microrrelações
envolvidas no apontamento de Bergson pode conduzir o pensamento a uma
distorção de olhar. Por um lado, pelo fato de negligenciar o cotidiano infame
responsável pela manutenção e sustentação de um automatismo sedentarizado
nas mais distintas camadas dos gestos repetidos, nos movimentos padronizados,
nas palavras repertoriadas, na moralavalizada. De outro lado, pelo fato de que
a própria teoria – qualquer que seja – pode-se contaminar com o hábito da
interpretação, pois a “própria linguagem”, advertiu-nos Bergson (1979), também
engendra esse tipo de hereditarismo que, por vezes, insiste em alocar os objetos
nos mesmos lugares ou, o que é pior, em seus devidos lugares.
Ora, se é certo que tal diagnóstico não deixa de coincidir com o automatismo
dos hábitos que são desdobrados em intensidades numa sociedade que
naturalizou as suas possibilidades de ser pelo engendramento do habitual
calcado nos costumes, nas instituições, na linguagem, o seu oposto não deve
ser ignorado. Qualquer possibilidade de intervenção no campo dos costumes,
das instituições, da linguagem também irá se configurar como elemento de
criação para além do instituído. Negligenciar essa possibilidade nos coloca
no mesmo nível de descuido com o olhar que esquece de perspectivar as
microrrelações. A busca por micropossibilidades de acontecimentos tem o seu
peso na contrabalança das ações que respaldam a educação de todos os instantes.
Mas, longe de tal possibilidade, redundam Pozzo e Lucky. Ei-los como
maquinaria binária produtora de múltiplas relações que subjetivam um e
outro; “estrutura sedentária da representação” (DELEUZE, 2003, p. 54):
mando e obediência, superior e inferior, condutor e conduzido, chefe e
empregado, controlador e controlado, confessor e confessado, forte e fraco,
solicitante e demandado; disposição cíclica de relações que se harmonizam
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pelo sedentarismo da representação; efetivação do Mesmo, desdobrado na
confluência de uma condição humana binarizada.
Como Lucky, contudo, chegou a pensar? Pela solicitação impositiva binária
dominante. Em outros termos, a ativação de sua voz, veículo verborrágico
descontrolado, é a evidência de um pensamento operado por automatismo.
Mais do que isso, o seu lugar, a sua posição é hábito corrente inquestionável.
Dele pode-se dizer o que Foucault argumentou sobre o corpo dócil: nele,
“lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia
dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em
silêncio, no automatismo dos hábitos” (FOUCAULT, 2009, p. 131, grifos nossos).
Lucky é o inferior na hierarquia dominante. Não voltará a pensar até
uma próxima concessão, um novo chamamento que ordenará a sua ação
incansavelmente. O mesmo é válido para toda a sua condição humana: como
ele põe em marcha as suas ações, o seu valor, a sua emoção, a sua fala, a sua
razão? Lucky está ligado, senão amarrado, a determinadas condições que
o impedem de avançar livremente. Tem uma corda-guia em seu pescoço,
que, tensionada, mostra-lhe o raio de sua circunscrição por onde pode se
movimentar. Mas o mesmo deve ocorrer com quem direciona a corda. Ambos
se ligam nesse binarismo perverso: limitam-se mutuamente no espaço de
deslocamento determinado; territorializam-se; autorreferenciam-se por suas
representações; sedentarizam-se por não cortar as amarras que fundem seus
binarismos, co-habituam-se e co-habitam-se.
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pensamentos diferentes das amarras que ligam as polaridades sedimentadas
na educação?
Essas indagações não visam à busca de respostas capazes de pavimentar
uma via sólida, acomodando a poeira que se levantaria diante de nossos olhos,
impedindo-os de enxergar com limpidez, a fim de acessar a saída dos problemas
que se interpõem a nós. Elas são, no máximo, um exercício de pensamento
que toma por empenho a tentativa de se criar novos circuitos diante de uma
realidade que, por vezes, torna-se habitual em demasia.
Destarte, é preciso confrontar os esforços que os empreendimentos
unificadores a favor de todo serialismo do hábito produzem com as possibilidades
emergentes de criação de novos acontecimentos. Abrir-se ao évènement já um
passo crucial para bloquear a gramática codificante do hábito. Infelizmente
o poder do automatismo do pensamento, do entendimento, das ações, dos
perceptos dos sujeitos, isolando-os cada vez mais dos horizontes potenciais
de criação de novas experiências subjetivas para além daquelas que já são e
foram instaladas em seus modos de ser. Há todo um padecimento daquilo
que Guattari denominou de “vertigem da possibilidade de um outro mundo”
(1992, p. 83).
A vertigem é uma paralisia subjetivante capaz de estancar os circuitos
criadores de qualquer tipo de experiência existencial, quer seja no âmbito do
pensamento, da ação, do desejo, das relações humanas, enfim, da condição
subjetiva individual ou coletiva. Eis por que, ao mesmo tempo, ela impede
a produção do acontecimento, uma vez que “um acontecimento surge onde
nada se produzia, onde se estagnava na pura redundância. Surgimento não de
uma singularidade, mas de um processo de singularização, com suas aberturas
pragmáticas, suas virtualidades, seus Universos de referência ontológicos”
(GUATTARI, 1992, p. 85).
O controle do acontecimento é o que dá sentido ao hábito. O oposto é
verdadeiro, o hábito se dissolve à medida que os processos de singularização,
força motriz do acontecimento, tomam lugar, ou melhor, são permitidos ou
até mesmo fabricados. Quanto maior a sua intensidade maior as implicações
nas bases da redundância, nos fundamentos repetitivos e nas estruturas
homogeneizantes.
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Ora, quando pensamos que a civilização contemporânea se tornou tão
dependente das instituições públicas e privadas que se fixaram, desde o mais
distante horizonte emergente da Modernidade, como esteios estabilizadores
das condições sociais, políticas, morais, educacionais, econômicas e científicas,
em hipótese alguma podemos ignorar o papel que a Escola desempenhou.
No interior da solidificação do Estado. Escola, com “e” maiúsculo, passou a
compreender todas as formas possíveis por onde a escolarização e a educação
do indivíduo e das coletividades tiveram lugar. Escola para crianças, jovens,
adultos, pessoas diferentes – todas as compatíveis com o rol das anormalidades
– escola correcional, escola superior, escola para se formar quem atuará nas
escolas, numa palavra, uma sociedade escolarizada dentro de uma grande
“grade” curricular fomentadora de hábitos. A Escola como lugar de formação
é um dos braços mais ativos do Estado que “age por captura mágica imediata,
‘agarra’ e ‘liga’, impedindo qualquer combate” (DELEUZE; GUATTARI, 1997,
p. 12). Nela, todo conjunto de alinhamentos obrigatórios é executado desde a
mais tenra idade dos indivíduos, por intermédio de uma série de redundâncias
canônicas.
É certo, contudo, que tal estrutura se acaba por chocar com uma demanda
mutante que se instala como acontecimento na própria Escola. Parece-nos
que estamos vivendo em uma importante travessia daquilo que Foucault
(1999) denominou de umbral epistemológico. Todo serialismo de conteúdo,
de práticas autoritárias, de experiências monodialógicas, de didatismo
empoeirado pelo pó de giz – instrumento pré-histórico na arte de ensinar
–, toda monoperspectiva: alunos sentados nas mesmas posições, mestres
infalivelmente distribuídos numa mesma corporeidade, todo fechamento
instalado na Escola, toda monocultura de saber dependente do Estado, dão
as costas para as mais distintas possibilidades de acontecimentalização no
campo da formação humana.
A representação da relação Pozzo-Lucky encontra-se aí. O hábito daquela
relação impede a Pozzo de enxergar a aberração de sua condução, aliás,
malgrado a objetividade da corda que ele segura é preciso concebê-la como
parte integrante de seu gesto, de seu corpo, algo incorporado em seu dia-
a-dia na relação com Lucky. Apesar da aparente contradição, Pozzo vê
a corda sem enxergá-la, pois é um autômato com ela. Mas por que Lucky
23
não se revolta, não foge ou luta para isso, não desobedece? Porque ele não é
capaz de pensar ou conceber esta possibilidade. Ele pensa sem se implicar no
pensamento, ou seja, ele reproduz o que tem de se adequar a uma necessidade
exterior à sua própria capacidade de pensar: não diz coisa com coisa, embora,
por ser humano, pudesse fazer algo totalmente diferente. Mas a diferença
não tem lugar na relação, pois o hábito binário dita os fluxos monocórdios
anteparados em um vislumbre pré-concebido pelo agente controlador da
ação. Sinais do tempo?
Assim como Anne Querrien, como bem nos recordaram Deleuze e Guattari
(1997), evidenciou que o Estado se constrói sobre o fracasso da experimentação,
quer dizer, fechando-se ao acontecimento, pois toda experimentação é a
intensificação vivida do imponderável contido no acontecimento, devemos
nos indagar se também a Escola, nessa acepção de grande angariadora das
condições da formação humana, não se constrói também sobre o fracasso da
experimentação.
Como ignorarmos a sua falta de sintonia com o atual necessário de nosso
umbral epistemológico, ou seja, de nossas experiências contemporâneas com
o movimento, o tempo, a informação, o consumo, a dissolução de valores, as
microciências, os experimentalismos corporais e desejantes? Se avançarmos
nesse diagnóstico, veremos a distância pungente entre imperativos de fixação
e experimentação em mobilidades. Dois tipos opostos de concepção no que
diz respeito a modos de ser, a possíveis constituições de sujeitos. Em uma
perspectiva fechada, de modelo legal, “não paramos de nos reterritorializar num
ponto de vista, num domínio, segundo um conjunto de relações constantes;
mas, segundo o modelo ambulante, é o processo de desterritorialização que
constitui e estendo o próprio território” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 40).
Eis aí um embate de condições distintas: sedentarismo versus mobilidade;
melhor ainda, sedentarismo versus nomadismo.
Basta-nos, com efeito, repousar nosso olhar sobre um breve diagnóstico
de nossas atuais demandas de condições históricas para aventarmos o fracasso
constante que o sedentarismo na formação humana vem ocasionando. Sem
pretensão positivista nenhuma, poderíamos dizer que a reprodução de toda
sistemática escolar vem contribuído de forma viciosa para o impedimento
no avanço e na transformação de um pensamento mais maduro, exigente a
24
todo virtualismo mutante que caracteriza nossa atual contemporaneidade.
Também trava a confluência de condutas e ações que precisam ser pensadas
e concebidas frente a toda vertiginosa mutação de referências de valores pelos
quais a vida tem passado. Nesse sentido, a educação está falhando por não
se saber heteroepistêmica nem heteropragmática, ao passo que, de modo
contraditório, ela possui uma heterogênese e uma heterossemiologia que não
são exploradas, justamente por conta dos reducionismos sedentários.
Ao escrever sobre A razão no século XX, Saint-Sernin (1998, p. 2)
observou de modo arguto que o “nosso destino atual é, ao que tudo indica, o
de aprendermos a viver no múltiplo, na incerteza, no arriscado e no precário”.
Esse destino, entretanto, não comporta o peso de um factum redutor ou de
uma teleologia incontornável. Ele apenas aponta, no âmbito de um diagnóstico,
para uma mutação incessante nas condições de referências e de suportes cujas
existências potencializam certos repertórios imanentes às próprias condições
dadas. Mais uma vez, tal destino diz respeito ao nosso umbral epistemológico.
Sob tal umbral, encontra-se uma nova hominescência. Expressão de
Michel Serres que assinala para as recentes situações históricas que emergem
configurando uma Erfindung [invenção] humana diferente das de antanho.
Ali o homem não é, ou seja, torna-se destituído de uma essência, de uma
ontologia circular. Todos nós, na condição hominescente,
não existimos como entes nem como seres, mas como modos. Nossa existência
flutua num quadrilátero de modalidades nas quais o possível, o impossível,
o necessário, o contingente povoa os quatro muros de nossas moradas
cultural e natural, corpo, técnica, artes e mundo, cabanas estreitas como as
de antigamente ou palácios imensos como os de hoje (SERRES, 2003, p. 62).
25
isoladas e distantes de como se constituem as relações ensinar- aprender
paralisam os fluxos de pensamento e de ações flutuantes, ou seja, barram as
potencialidades de confluências entre saber necessário, saber obrigatório e
saber demandado. O que temos é uma constante relação de autoengano. Os
saberes, as competências, as ações humanas, as técnicas para a aplicação do
conhecimento, aspectos urgentes à afirmação do sujeito constituinte de sua
própria trajetória e de sua relação idiossincrática com a história, tais como
são dispostos na Escola, entram à deriva. Isso ocorre pelo fato de vivermos
em uma realidade de constante movimento, ao passo que as estratégias de
formação na Escola, tais como se encontram, não dão conta de provisionar
as que por ela passam como novas fronteiras hominescentes.
A possibilidade hominescente antepõe-se a toda forma sedentária de
modo de ser pelo fato de operar no âmbito do movimento, da diferença, da
heterogeneidade e da correlação. Indica a ação de um pensamento nômade.
Por sua vez, “não recorre a um sujeito pensante universal, mas, ao contrário,
invoca uma raça singular; e não se funda numa totalidade englobante, mas,
ao contrário, desenrola-se num meio sem horizonte, como espaço liso, estepe,
deserto ou mar” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 49). Destarte, o pensamento
nômade é livre de fechamentos, estranho aos recolhimentos expressos em
formas interiorizadas a partir de significações dominantes. Nele não há
equivalências, porém, multiplicidades em devires não localizáveis.
Mas o sedentarismo a afligir o que aqui denominamos de Escola põe a
perder as manobras de experimentações possíveis de serem permitidas na
formação das pessoas. Por sua vez, e como consequência incontornável, há um
complexo embate entre o sujeito “formado” e o trânsito de suas competências
num contexto que acaba por se tornar para ele estranho. Diante de uma
mobilidade de fluxos contínuos, a formação tornar-se-ia transitória em seu
conteúdo, embora permaneça mais ou menos a mesma em suas formas. Ocorre,
entretanto, que a tradição escolar não constitui para si uma vocação mais
aberta com o intuito de se autoavaliar e avaliar o peso excedente de saberes
ultrapassados que ainda faz questão de carregar e de passar adiante.
A relação epocal com a formação, sob o diagnóstico preciso de Pierre
Lévy, há muito nos lançou para uma dimensão da superação da “aplicação de
saberes estáveis” que “prendia-se ao fundamento”, para se mostrar hoje “como
26
figura móvel”. Do saber que “tendia para a contemplação, para o imutável,
ei-lo agora transformado em fluxo, alimentando as operações eficazes, ele
próprio operação” (1996, p. 55). É preciso entendermos, então, a necessidade
que temos de dar um outro rosto às coisas.
Compreender que
a multiplicação contemporânea dos espaços faz de nós nômades de um novo
estilo: em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma
extensão dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de proximidade
ao seguinte. Os espaços se metamorfoseiam e se bifurcam a nossos pés,
forçando-nos à heterogênese” (LÉVY, 1996, p. 23)
O que nos força à heterogênese nos força, por conseguinte, à revisão das
maneiras pelas quais concebemos, lidamos e produzimos modos de ser nela e
com ela, o que faz do tema do nomadismo algo problematizador. Se é certo que
desde Rousseau somos confrontados a enxergar que “o hábito e a obediência
substituem nele [no aluno] a razão” (1992, p. 112), também é certo que devemos
entender a constituição do próprio hábito e a organização da obediência que
se instalaram nas máquinas educacionais de nosso tempo. É necessário, assim,
buscar certas intervenções para pensarmos e agirmos na educação de outros
modos. Numa ideia: é preciso despozzo-luckyanizar a educação.
27
CAPÍTULO 2
A memória longa do sedentarismo no campo da
educação: ainda somos e vivemos como nossos pais?
Jean-Jacques Rousseau
(Emílio ou da Educação – Livro II)
28
da educação. Para Deleuze e Guattari (1995), a memória longa diz respeito às
estruturas sedentárias da representação dominante e autorrefenciada que, como
em um jogo de espelho, desdobra o mesmo significado e atribuição de valor para
as coisas. É uma imagem que no lugar de obedecer à característica singular do
objeto que deve ser refletido, ao contrário, forja nele uma mutação constante
para o objeto obedecer ao padrão da imagem de antemão concebida. “A memória
longa (família, raça, sociedade ou civilização) decalca e traduz, mas o que ela
traduz continua a agir nela, à distância, a contratempo, ‘intempestivamente’,
não instantaneamente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 26).
Reproduzida a modo inconteste, a memória longa, com efeito, opera
sobrecodificando os sistemas de distribuição de significância e de subjetivação
arraigados em propósitos que ressoam numa espécie de déjà vu. Por isto
mesmo, “seus canais de transmissão são preestabelecidos: a arborescência
preexiste ao indivíduo que nela se integra num lugar preciso (significância e
subjetivação)” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 27). É dizer: de maneira quase
maciça, a tipologia das relações humanas possui um lastro condicionante
em torno do qual se reproduz a marcação de um compasso que é difícil
de ser desandado, pois a sua consecução está implicada às condições dadas
para a sua própria realização. Sendo assim, a repetição da memória longa
tanto é a superfície visível do hábito mais banal quanto à viscerotomia de um
fundamento-raiz: “a gneoseologia, a teologia, a ontologia, toda a filosofia...”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 29) e, por acréscimo, o fundamento da
educação, são exemplos mencionados por Deleuze e Guattari do enraizamento
desta longa memória.
Se há um decalque que permaneceu nas experiências com a educação,
retorno constante à sua memória longa, ele se encontrará na dinâmica das
relações hierárquicas de condução humana. Quem é capaz de ensinar algo a
alguém deve ser capaz, para tanto, de forjar um movimento de condução. Ora,
se soubermos que o verbo educar também se extrai do latim educere – latim
como vontade incansável da memória longa – algo de revelador se processa.
A forma infinitiva, o que já tem a nos dizer o bastante, significa conduzir
para fora, notadamente, conduzir para fora de si mesmo. A condição para
educere alguém implica em um movimento no qual o condutor da ação leva
o conduzido para outro estado.
29
A questão problemática da educação, desde então, encontra-se justamente
na forma das condições da condução e de suas finalidades. Foucault tratou de
nos mostrar tal dimensão ao evidenciar que, desde a Antiguidade, delineou-se
para nós ocidentais a necessidade de sermos dirigidos, ou melhor, educados
por uma relação de condução sob a qual nada se pode fazer sem o outro: “a
necessidade de ser dirigido não é simplesmente uma necessidade ocasional
ou para casos mais graves. Toda pessoa que quer, na vida, conduzir-se como
convém tem necessidade de um diretor” (FOUCAULT, 2004, p. 483). A despeito
da variação da figura desse “diretor”, ou seja, da pessoa responsável pelo
empreendimento de educere outrem, ou como Foucault (2004) sublinhava,
sujeito agente na busca de estrutura demandada pelo conduzido, um dos
substratos que permaneceram na memória longa da educação foi e continua a
ser a relação de conduzir e ser conduzido, espécie de movimento componível
do próprio ato de educar.
Tal dimensão, ao que supomos, tornou-se um decalque nas estratégias
empíricas do educar. E estruturando-se assim, as experiências com a educação
passaram a sobrecodificar, de modo geral, as possibilidades futuras do educar.
Implica dizer que a relação de condução forjou e fixou correspondências de
significâncias que se instalaram em suas próprias leis e instituições, ao mesmo
tempo em que as produziam. Aqui é possível identificar uma inversão: a referida
sobrecodificação permitiu uma ação de movimento em que o conduzir para
fora premente ao educere se tornasse um conduzir para dentro. Educar passou
a implicar em expandir as condições subjetivas de alguém para os limites de
sua própria subjetividade, ou seja, cristalizar o sujeito dentro das fronteiras de
um código, de uma lei, de uma instituição, de uma finalidade, de um currículo,
de uma cultura, de uma representação e de um significado.
O fora aqui equivale à condução para longe da diferença, e para dentro do
Mesmo; implica em um movimento de retirada das potencialidades capazes de
desequilibrar a harmonia da codificação: o aluno intempestivo, por exemplo, é
uma constante ameaçaàs correspondências de significado dominante acerca do
“bom” aluno. Ou deve ser conduzido para dentro da estrutura de codificação,
e nela ser pacificado, ou deve ser levado para fora da estrutura de codificação.
Em um caso, ele é educado com sucesso, pois foi interiorizado, territorializado
na correspondência da significância, o que dará ensejo à eficácia do sistema de
30
educação; na outra possibilidade, ele é compelido para fora da interiorização,
mas lançado em uma outra: àquela que indica que o problema é do sujeito que
não foi ou é capaz de se decalcar às regras, às leis, à instituição, à condução,
ao território autorreferenciador de valores.
A contundência dessa maquinaria binária serve para pacificar a ordem
criativa da multiplicidade, em que o caos deveria, em certa medida, estar
presente. Para os vigilantes de plantão, a simples menção ao caos, contudo,
já é suficiente para colocar em xeque uma possibilidade educativa. Como
cogitar um campo de ações educativas em meio ao caos? O caos, contudo, não
é uma desordem, um emaranhado de relações sem propósitos e distantes das
possibilidades criativas de se extrair dele conhecimento e de, sobretudo, com ele,
produzir conhecimento. O caos é uma transposição de umbral epistemológico,
ou seja, é uma mudança de registro nas concepções de possibilidade de relação
com o conhecimento, com o saber, com o ensino, com as formas que se ensina.
Com Bachelard, em sua A filosofia do não (1978), acabamos por aprender
o quanto o arraigamento ocidental ao que ele denomina de lógica aristotélica
tornou-se pernicioso ao avanço de produção de novas relações com o saber e
conhecimento, por conseguinte, no enfeixamento de um certo perspectivismo
de mundo reducionista. A relação da ciência com os microobjetos deveria ser
suficiente para “renovar os métodos pedagógicos” (BACHELARD, 1978, p. 64),
responsáveis por conduzir o conhecimento como acesso à compreensão, à ação
e à transformação da natureza, do espírito e do saber. Mas isso não é possível
enquanto não se processar uma reestruturação epistêmica por intermédio de uma
lógica não-aristotélica, ou seja, uma tensão na interface conhecimento de causa
e efeito independente de princípios tradicionais repousados nas modalidades
de formas, causas, efeitos e identidades já celebradas. O pensamento, neste
registro, deveria ser capaz de romper com as obrigações habituais da vida.
A intervenção na ordem da lógica nos obriga a concebermos, de igual
modo, uma intervenção na ordem das instituições por intermédio das quais a
lógica se reverbera. Como as instituições tendem a um estatismo, sugere, então,
cum grano salis Bachelard (1978, p. 68): “a lógica contemporânea necessita de
reforma psicológica”. Permitir uma modificação nos afectos e nos perceptos
que atuam na aquisição do conhecimento é transladá-los para uma outra
perspectiva de possibilidade de compreensão, ou seja, conceber aos canais
31
básicos do conhecimento empírico um tipo diferente de experiência. O caos,
assim, é algo totalmente longe dos imperativos ordenantes que reina na lógica
dos canais que intentam formar o ser humano. Ele encontra-se no mesmo
registro daquilo que Bachelard (1978, p. 68) designou de penumbra conceitual:
“os nossos hábitos de lógica aristotélica estão de tal forma enraizados que não
sabemos trabalhar nesta penumbra conceitual que reúne o corpuscular e o
ondulatório, o pontual e o infinito”.
Ora, a experiência com o caos abrange um conjunto de intensidades
em que os acontecimentos são possíveis na ordem múltipla do corpuscular,
ondulatório, pontual e infinito, quer dizer, nas instâncias não visíveis e não
compatíveis com uma ordenação exterior. Em termos mais simples. O caos
sempre esteve presente no campo da educação. É uma fantasia megalomaníaca
calcada na ideia de que é possível ter domínio sobre os instrumentos e os agentes
envolvidos em uma experiência educativa que nos cria a ilusão de ordem. Mas
qualquer mente de qualquer criança pode se recusar à administração externa
de seu comportamento simplesmente pensando em outra coisa, gerando,
para si, naquele momento, algo de maior valor subjetivo do que um quadro
expositivo pretenda. A rigor, o caos está totalmente compatível com o mundo do
microfísico e da aleatoriedade. Mas os planos de aula, os didatismos funcionais,
a grade curricular, a disposição linear de uma sala de aula, os fetiches teóricos,
as redundâncias pragmáticas, os engessamentos políticos – os parâmetros, as
leis, os orçamentos – o hábito cotidiano de cada um, a redundância disciplinar,
os anos de experiências que engessam o entendimento e os gestos, o discurso
de autoridade estão acima das mobilidades microfísicas em um contexto
educacional e de maneira oposta às potencialidades aleatórias.
“De uma maneira geral, o estudo da microfísica obriga-nos simultaneamente
a pensar de forma diferente do que sugeriria a instrução recolhida na experiência
usual e de forma diferente do que obrigaria uma estrutura invariável do
conhecimento” (BACHELARD, 1978, p. 38). Notemos a relação existente
entre o microfísico e a variância. Outrossim, quanto mais estável a ordem do
conhecimento menos plausível a relação com a diferença e, portanto, com
a multiplicidade. No final das contas, parece- nos que o temor ao caos se
associa ao medo de se perder o controle das instâncias e dos canais por onde
circulam a estrutura sedimentar do como se ensina, se aprende, como educar.
32
O “como” aliás já pressupõe um fechamento regrado disposto em anúncios
que indicarão caminhos sólidos para se acessar determinado objetivo. Como
indicou, porém, Guattari em Caosmose (1992, p. 78):
O caos é essencialmente dinâmico, de que é composto de entidades animadas
com velocidade infinita, que ora as precipita em um estado de dispersão
absoluta, ora reconstitui, a partir delas, composições hipercomplexas. Assim
o hipercomplexo pode coincidir, já que animado por velocidade infinita,
com o hipercaótico.
33
autoritário, instalados nas mais variáveis formas da Escola. Trata-se de agir
nas linhas de estruturação de toda sorte de hábito, inclusive os que engendram
uma espécie de bloqueio espistemológico, saberes que endossam os pivôs
de referenciais teóricos e de possibilidades empíricas distintos dos que são
recorrentes, dispostos, repostos e transpostos com aparente novidade.
Mas, apesar de cogitarmos a emersão de uma conjuntura criativa no
campo da educação, temos consciência de que a ordem e a organização fazem
parte dos agenciamentos do desejo de educar, e ainda falam mais alto como
componentes estruturantes da Escola. Ambos dizem respeito à profunda
relação de poder que orbita em torno dos sujeitos que são tocados direta ou
indiretamente pelo universo educacional, uma vez que ordem e organização
restringem inevitavelmente a mobilização dos sujeitos em torno de suas próprias
ações, atitudes, modos de ser, pensamento criativo, desejo, enfim, em torno
das condições potenciais de subjetivação.
Arraigados na herança disciplinar ocidental, como fartamente evidenciou
Foucault (2009), tanto ordem e organização tornaram-se coextensivos a toda
sorte de relações de poder disciplinar. A Escola não mais pode prescindir dessa
estruturação pelo fato de dosar as suas operações no objetivo de atingir, de
modo cada vez mais eficaz, maior número de indivíduos da mesma maneira.
Representa dizer que se “fixar é um dos principais objetivos da disciplina”
(FOUCAULT, 2009, p. 206), o ganho da fixação no ambiente escolar passou a
atingir amplas esferas da constituição dos sujeitos cujas experiências também
se dão no círculo escolar. Fixar, nessa acepção, é mais do que o sonho da
homogeneidade dos comportamentos e a padronização das energias somáticas
de cada indivíduo, cujo propósito dentro dos aparelhos pedagógicos, como
assinalou Foucault, compreendia “fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade
e a utilidade de todos os elementos do sistema” (FOUCAULT, 2009, p. 206).
Fixar tornou-se “um processo de antinomadismo” (FOUCAULT, 2009, p.206).
Com efeito, o antinomadismo se refere ao impedimento de qualquer
mobilidade e à criação de estratégias de contingência dos acontecimentos;
outrossim, diz respeito ao ordenamento do caos, quer dizer, ao exercício de
uma força reativa que cerceia, vigia e bloqueia os sinais mais ínfimos de
movimentos que se pretendem afirmar no âmbito da diferença. Numa ideia
geral, fixar é um processo de alisamento subjetivo. Nele as arestas singulares
34
que permitiriam os agentes individuais de se afirmarem numa multiplicidade
sem limite se tornam aplainadas, ou seja, normalizadas.
A norma vigora com extrema força no sedentarismo. Ela é um dos
procedimentos mais eficazes presente em todo tecido social com a finalidade
de se alcançar o padrão, o bom termo, a média pretendia. Foucault (2009)
deixa bem evidente o seu papel em todo dispositivo a partir do instante que
a norma compara, diferencia, busca hierarquizar, homogeneizar, excluir a fim
de estabelecer a figura do normal. A Escola, sob tal prisma, nunca deixou de
ser uma confluência normativa cuja visada são ações que buscam corrigir os
indivíduos globalmente. Agindo sobre seus pensamentos, seus conhecimentos,
seus valores, suas ações, seus desejos, de modo mais amplo em sua constituição
direta e indireta como sujeito, a norma busca extrair constantemente a figura
do Normal. Não é à toa, portanto, que “o Normal se estabelece como princípio
de coerção no ensino, com a instauração de uma educação estandardizada e
a criação das escolas normais” (FOUCAULT, 2009, p. 176).
Ao compreender as frentes definidoras da norma somos capazes de captar
o sentido da educação estandardizada e, de uma só vez, buscar um tipo de
elucidação sobre as razões pelas quais a Escola é tão refratária aos manejos
criativos e diferentes no âmbito do educar. Em um sentido, porque a norma
pode ser “entendida como regra de conduta, como lei informal, como princípio
de conformidade; a norma a que se opõem a irregularidade, a desordem, a
esquisitice, a excentricidade, o desnivelamento, a discrepância” (FOUCAULT,
2001, p. 204). Em outra dimensão, pelo fato de ser concebida como “regularidade
funcional, como princípio de funcionamento adaptado e ajustado; o ‘normal’
a que se oporá o patológico, o mórbido, o desorganizado, a disfunção”
(FOUCAULT, 2001, p. 204). Os procedimentos normativos engendram, assim,
graus de normalidades que sempre serão “sinais de filiação a um corpo social
homogêneo” (FOUCAULT, 2009, p. 177). É fácil entendermos do que se trata
quando presenciamos os discursos e as ações em torno das diferenças como
se fossem concessões afirmativas e benfazejas em relação ao anormal.
Questões como tolerância e inclusão servem como exemplos cabais. A
tolerância tende a ser uma disposição intersubjetiva que não se compromete
com a plena diferença em sua alteridade substancial. Quer dizer, ela tende
a transitar sem pretender afirmar a produção da própria diferença. Então
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ela opera colmatando qualquer tipo de elemento que seja virtualmente uma
potência para criar a diferença. Tolerar não é, consecutivamente, posicionar-
se a favor de uma produção pela diferença é assumir a não interferência e a
não passagem para uma linha de onde, quem tolera, não pretende sair. Do
mesmo mal padece a inclusão. Geralmente ela chama para dentro de uma
linha margeadora o estranho. Colocando o sujeito em um “dentro” a inclusão,
contraditoriamente, exclui. Isso ocorre pelo fato de deslocar o sujeito de seu
campo pertinente para um outro campo em que o aparelhamento normativo
o captura. Sendo assim, tanto a tolerância quanto a inclusão têm “um papel de
classificação, de hierarquização e de distribuição” (FOUCAULT, 2009, p. 177).
Tolerar outrem é classificá-lo pelo aval próprio de quem tolera. Ao mesmo
tempo é proceder-se por hierarquia: aceito-o dentro de minha benevolência.
Logo, é incorrer- se numa distribuição evidente em que se destaca cada gênero,
cada indivíduo, cada aberração, cada singularidade em suas devidas casas.
Curioso notar como pouco causa estranhamento em nós a proliferação
de ações normalizantes, cujas engrenagens atuam com o intuito de tornar a
figura do outro mais palatável, aceitável, sociável e até mesmo fácil de lidar.
As novas categorias que surgem com o intuito classificador acabam por atestar
tal ponto. É assim que, na Escola, o déficit de atenção torna-se uma dificuldade
inerente à condição psicofisiológica do indivíduo e, jamais, um sintoma das
falhas didáticas, pedagógicas, das estratégias maçantes de ensino, de relação
caducas no tratamento com a alteridade; também nunca será uma denúncia
não-discursiva da falência das estruturas arcaicas da Escola, nem um ponto
de contraste com relação aos mecanicismos do aparelho escolar. O déficit de
atenção tem de ser uma patologia corrigível. Uma vez medicado, o indivíduo
pode adequar-se à demanda normalizante. Nela ele foi conformado, nivelado.
A sua irregularidade tornar-se-á doravante funcional, pois foi tratada.
Ora, o mesmo não poderia ser dito da hiperatividade? As crianças não
são mais apenas traquinas, com energia abundante, componentes de uma
corporeidade ativa. Seus excessos dificilmente tornam-se energias aproveitáveis.
O hiperativo é um acontecimento na educação, é uma centelha de caos, é uma
produção de subjetividade em turbilhão a ser normalizado para viabilizar a
ordem das coisas. Qual o seu lugar na Escola? Não há lugar para ele, a não ser
que seja ajustado e adaptado dentro de certos princípios de funcionamento.
36
Então uma série de operações de captura entrará em cena para melhor regulá-lo.
É pouco provável, entretanto, que o hiperativo também sirva como diagnóstico
ou como sintoma de processos educativos que já não dizem mais respeito
a uma nova demanda ontogenética de indivíduos. A educação, parece-nos,
tem uma extrema dificuldade de acompanhar as demandas mutantes que
emergem de tempo em tempo, ou seja, de abandonar as sombras de umbrais
epistemológicos ultrapassados. Isso é histórico: ou cremos que pelo fato de
estarmos tão distantes do contexto da educação escolástica, na aurora da
Idade Média, que o discurso de autoridade não é mais utilizado no campo
da educação? Como então não indagarmos pela manutenção de ferramentas
e por procedimentos na educação que ainda aprisionam certas estratégias
possíveis de inovação em seu campo? Ainda “somos e vivemos como nossos
pais!”, dizia a velha canção, talvez mais atual do que nunca.
Semelhante aos que acabam de ganhar visão, nos apontamentos de Sakcs
(1995, p. 154), aprender a ver as possibilidades para além das linhas sedentárias,
“exige uma mudança radical no funcionamento psicológico, no eu [ou melhor, na
subjetividade], na identidade” de cada um. A estreita relação que os indivíduos
têm com as instituições é um impeditivo constante para os esforços criativos.
Geralmente, no caso do educador, ele acaba se enquadrando nas demandas
e nas exigências institucionais. O poder que isso exerce em seu caráter, em
sua subjetividade, em sua organização psíquica é imenso e incalculável. As
instituições são perversas, nesse caso, porque exigem um papel normalizador
de quem atua nelas. Com possibilidades parcas de movimentação, o hábito
acaba por naturalizar as tendências vigoradas como práticas usuais. É quase
infantil esperar algum tipo de ação modificadora nas estruturas institucionais
advinda da própria instituição. Tentar atuar em seu próprio sedentarismo exige
do educador um constante embate com o poder institucional e, ao mesmo
tempo, consigo mesmo.
37
CAPÍTULO 3
Embates com o poder institucional na educação: a
pastoral cristã como caso de phylum sedentário
Mas tenho outras ovelhas que não são deste redil; devo conduzi-las
também; elas ouvirão a minha voz; então haverá um só rebanho,
um só pastor.
Evangelho de São João, Capítulo 10, versículo 16 (BJ)
38
A memória longa se dispõe em uma diacronia temporal e espacial que
não necessariamente se equivalem. Ela reúne elementos exteriores de uma
especificidade manifesta, sobrepondo elementos distintos com o intuito de
“culturalizá-los” dentro de um propósito qualquer. Por exemplo, Foucault
(2004) demonstrará que a pastoral cristã não inaugurou as práticas de
confissão, de domínio sobre o corpo, de ascese controlada numa relação
guia e guiado. Mas importou e extorquiu esses elementos de multiplicidade
cultural antiga, distorcendo-os, aclimatando-os e doutrinando-os conforme
as suas necessidades. Nesse sentido, a memória longa nos situa dentro de
um “aquário”, valendo-nos de uma expressão de Paul Veyne (2008), a partir
de onde nossas referências se misturam em uma água cuja impressão nossa
é de ser de horizonte infinito, mas seus limites estão mais próximos do que
suponhamos. Aliás, a respeito da relação memória longa da pastoral com
o campo da educação, pode-se dizer o mesmo que Carvalho (2010, p. 37)
argumentou a respeito da forma preponderante em que as relações educacionais
vigoram: “são confluências de experiências que, dentro de um infindo jogo
de ligações, torções e distensões de forças, dominaram e ainda dominam o
cenário histórico das práticas pedagógicas que balizam e cortam, quase que
maciçamente, as possibilidades de ensino e de aprendizagem”.
Dito isso, fica patente que não se esgota o entendimento acerca de uma
memória longa. Ela possui uma série infinita de filamentos que se compõem
e se decompõem continuamente com o intuito de dar sustentação à sua
configuração. Ao seguirmos, contudo, um de seus quaisquer filamentos, além
de acessar as suas ramificações, também temos acesso ao seu núcleo, ou seja,
de onde se parte e se filia. Deleuze e Guattari denominaram de phylum essa
linhagem. Um phylum pode ser tão essencial e determinante – como um
“phylum genético” (GUATTARI, 1992, p. 52); de outro modo, uma referência
sedentária, raptora, fixante da qual se pretende escapar: “um movimento
artístico, ‘ideológico’, pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente
na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora,
um espaço liso de deslocamento, em relação com um phylum” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 109); mas também é possível criar um phylum a partir
de outro phylum: ou um filamento mais intenso em relação a um núcleo de
força – das panfletagens antissemitas dos anos de 1930 ao grande Shoah; do
39
ideário da Revolução Vermelha ao GULAG –; ou um filamento deslocado,
mutante, uma diferença marcante em função do ponto de referência inicial:
“a alteridade de phylum evolutivo” (GUATTARI, 1992, p. 58) – do centralismo
partidário de reclusão à queda do Muro de Berlim; da disciplina imposta em
uma sala de aula à desordem manifesta.
Seja como for, nesse instante, o que nos interessa na memória longa da
pastoral é remarcar certo phylum de intensidade de força redundante, a sua
mecânica automatizada cujas ramificações alcançaram e se instalaram na
instituição escolar. As suas características mais destacadas compreendem o
âmbito da obediência, a relação com a autoridade e a disciplina. O phylum
pastoral é uma vivência silenciosa, portanto, uma captura naturalizante2.
Foucault, ao escrever sobre a evolução das técnicas disciplinares, as mesmas
que fizerem emergir todas as séries individuais a partir de “técnicas de sujeição”
(2009, p. 155), chamou-nos a atenção para a relação que o exercício – “a
técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e
diferentes, mas sempre graduadas” (FOUCAULT, 2009, p. 155) – teve com a
disciplina. Acrescentou ainda que o exercício tem por função precípua dirigir
“o comportamento para um estado terminal, o exercício permite uma perpétua
caracterização do indivíduo seja em relação a esse termo, seja em relação aos
outros indivíduos, seja em relação a um tipo de percurso” (FOUCAULT, 2009,
p. 155). Mas nos vãos da demonstração dessa genealogia disciplinar nos interpôs
algo ainda mais revelador. Foucault evocou o phylum pastoral, conforme a
nossa hipótese, como a proveniência, a conhecida Herkunft genealógica, de
nossas relações disciplinares:
Sua organização linear [refere-se à disciplina], continuamente progressiva,
seu desenrolar genético ao longo do tempo têm, pelo menos no exercício e
na escola, introdução tardia. É sem dúvida de origem religiosa. Em todo
2 Para efeitos de método é importante dizer que nos apoiamos na perspectiva das interpretações
históricas tal como Paul Veyne empreende. Por exemplo, ao analisar em sua obra Quando nosso
mundo se tornou cristão [312-394] (2010), Veyne tratou de se posicionar de modo contrário a qualquer
tipo de determinismo, de teleologismo sócio-histórico e, mais do que isso, apontou para toda
uma série de injunções estocásticas na história que permitiu uma conjuntura de comportamento
conformista servindo como solo fértil para a massificação do cristianismo (cf. VEYNE, 2010,
p. 179ss). A essa conjuntura Veyne denomina de “vivência silenciosa”: “a história se explica por
uma vivência silenciosa” (Ibid, p. 204). Quanto à questão do acaso ou estocatismo na história
ver: VEYNE, P. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília: UNB, 1998.
40
caso, a ideia de um “programa” escolar que acompanharia a criança até o
termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em
exercícios de complexidade crescente, apareceu primeiro, parece, num grupo
religioso, os Irmãos da Vida Comum. (FOUCAULT, 2009, p. 155, grifos nossos)
Como sabemos, não há origem histórica como ponto inicial, marco zero.
Devemos entender o termo origem no âmbito genealógico. Isso quer dizer que
remontar a disciplina ao campo religioso é tomar alguns elementos cruciais que
fizerem a sustentação, a manutenção e o automatismo de certo ideário religioso
às expensas de uma série de práticas graças às quais deram consistência a um
plano milenar de organização subjetiva ao ponto de poder ser identificada
como um “tronco” de um “tipo social”3. Nesse caso, Foucault está assinalando
para uma proveniência e emersão de elementos que, advindos da experiência
religiosa ocidental, portanto cristã, funcionam como espécie de enraizamento
das práticas de condução humana que, com perdão da expressão, contaminaram
o que ele denominou de programa escolar. A origem religiosa da disciplina na
Escola, com efeito, tem a ver com uma herança potencialmente capaz de ter
criado um tipo padrão de estabelecer relações humanas para se formar alguém.
Parece-nos que a interpretação de Foucault coincide com a perspectiva
de Veyne. Por intermédio das análises deste historiador francês acerca da
cristianização de “nosso mundo”, podemos captar as incidências persistentes
que fizeram do cristianismo essa potente maquinaria binária de mando e de
obediência, de condução e de conduzidos, de disciplinadores e disciplinados,
de devoção e de devotados, de dogmatismos e de fundamentalistas, enfim,
de sujeição e de sujeitados. Segundo Veyne (2010, p. 65), ao longo de toda a
trajetória de cristianização massiva a que foi submetida o Ocidente, o gosto
pela autoridade foi destilado em todas as esferas da existência: da propaganda
oral através das homilias; de todas as coisas da vida submetidas à Igreja –
“uma vez que a vida toda está orientada para Deus e submetida à sua Lei”; da
relação com uma “autoridade sobre aqueles que dela compartilhavam, apoiada
sobre uma hierarquia, um clero superior em natureza ao laicato num quadro
geográfico” (VEYNE, 2010, p. 65), passando por um “conformismo ditado
3 Com respeito a uma profunda análise do procedimento genealógico tal como compreendemos
aqui e encontraremos empenhado em Foucault, ver: FOUCAULT, M. “Nietzsche, a genealogia e a
história”. In Microfísica do Poder. 12.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996, p.15-37.
41
por uma autoridade reconhecida” (VEYNE, 2010, p. 179); o cristianismo
torna-se, assim, uma invenção e uma criação na imagem e semelhança de
suas próprias práticas.
Por ser prática milenar, secularizada nas instâncias cotidianas, nas esferas
dos saberes proto-científicos, arraigada na semiótica artística, propulsora
de toda série de ethos, máquina expansionista de suas estruturas, regente de
relações de governamentalidade, como, então, poderiam as relações de formação
humana que passam pela Escola não serem afetadas por esse phylum? O mesmo
phylum que reinventou, ordenou, distribui e cotidianizou a obediência, a
disciplina, a sujeição? As próprias vivências silenciosas, no que se referem ao
campo da educação, não deveriam disso nos falar? E não seria curioso demais
notar que vivemos “em uma sociedade que se desligou da religião do dever,
mas não da convicção repressiva” (LIPOVETSKY, 2005, p. 86) e, a partir de
então, indagar-nos: por quê?
Eis nessas questões um interessante eco duradouro das condições de
tratamento com a obediência, a autoridade, a disciplina e, por que não
mencionarmos, com a verdade do sedentarismo, ainda a persistirem como
comunidade de expressão válida para fazer de tais substratos o vitalismo
recalcitrante de nossa educação de todos os instantes.
42
em sua organização, em seu modo de funcionamento, o poder pastoral que
se exerceu enquanto poder é sem dúvida alguma coisa da qual nós ainda não
nos libertamos” (FOUCAULT, 2004a, p. 152)4.
Ora, a confirmação da interpretação de Foucault ganha maior vigor quando
tratamos de seguir de perto o entendimento que ele dispensou aos traços
marcantes da pastoral como arte de conduzir os indivíduos e a coletividade.
E analisando os seus encadeamentos é possível notar como, de fato, é de uma
tipologia que se trata. Nesse caso, ademais, se tomarmos a educação como
fundo de relações pastoralizantes, sentimos latejar a nervura de um tecido
cujo lastro não deixa de recobrir as experiências de conduzir para fora – de
educar – a partir de uma conjuntura mais que coincidente de organização e
de operacionalização dessa arte de condução. Se não, vejamos.
Primeiro: a pastoral se organiza em torno da responsabilidade. “Na
concepção pastoral cristã, o pastor deve dar conta não apenas de cada ovelha,
mas de todas as suas ações, de todo bem e mal que elas são suscetíveis, de tudo
que lhes sucede” (FOUCAULT, 1994, p. 144). A responsabilidade do pastor
é omnes et singulatim, perpassa a individualidade e a coletividade dos seus.
Como Foucault ressaltou, tal dimensão coloca em risco a reputação das ações
do próprio pastor: o desvio de cada uma de suas ovelhas tanto imputa a ele
um fracasso e incompetência no zelo de suas conduções como põe em risco
a coletividade do rebanho.
Por decorrência, a responsabilidade do pastor sobre os seus conduzidos
deve ser pautada por uma estratégia do cumprimento das regras que assegurem
o zelo da condução. Donde o segundo traço da pastoral: obediência e submissão.
A dependência individual e completa por parte dos conduzidos faz-se necessária
como princípio organizador da codificação dos comportamentos a serem
objetivados pelo condutor. O pastor é quem centraliza o repertório possível de
movimentação dos conduzidos. Para a consecução de seu sucesso, obediência
4 É importante mencionar que esta temática não é original na filosofia. Só para exemplificar,
os Iluministas já haviam tratado de combater a herança pastoralizante da existência humana.
Rousseau, filósofo que não deixou de dispensar à educação lugar especial, sublinhava no último
livro de O contrato social que “o cristianismo prega unicamente servidão e dependência” (2006,
p.164). Sabemos o quanto Nietzsche se opôs à sacerdotalização da existência, ou seja, a todo tipo
de “conferidor de valor” estipulado por uma lei, uma autoridade, uma doutrina, uma verdade
metafísica, conforme O anticristo, §26. Mas não poderíamos deixar de mencionar que o próprio
Deleuze, como aponta Dosse (2009, p. 124) “denunciou o laço de continuidade histórica entre o
cristianismo e o capitalismo, prisioneiro no mesmo culto do engano da interioridade”.
43
e submissão colocam-se duplamente como meio e fim das próprias ações. Não
à toa, faz-nos lembrar Foucault (1984, p.145), a obediência tornou-se a virtude
benfazeja da condição humana cristianizada: “é um estado permanente; as
ovelhas devem se submeter permanentemente aos seus pastores: subditi”5. A
pastoral, com efeito, assinala para um longo processo de sedentarização das
ações humanas a partir de uma relação cujo conector, por onde se canaliza
os movimentos de cada um, dá fluxo à regulação permanente de mando e
obediência.
A especialização dessa dinâmica e o seu refinamento se catalisam na
proporção do avanço dos saberes que o pastor produz acerca de cada uma
de suas ovelhas e de seu próprio rebanho. Assim, a forma de conhecimento
sagra-se como terceira marca. E como o pastor conhece cada um dos seus?
Pela aplicação perpétua do exame de consciência e da direção da consciência.
São instrumentos eficazes para conhecer a particularidade de cada um e, ao
mesmo tempo, saber em que estado se encontra, do que necessita, o que lhe
falta. É preciso fazer falar o tempo para conectar consciência e ação de modo
regular e normativo, assim assegura-se a integridade de todo o rebanho. Os
desvios são contingenciados por um saber regulador. A confissão é utilizada
como forma signatária de um permanente déficit por parte do conduzido: falta-
lhe algo cujo conhecimento do pastor, ao direcioná-lo, proporcionar-lhe-á o
preenchimento de sua falta. Então, “a ovelha deixa-se conduzir a cada instante.”
(FOUCAULT, 1994, p. 146). Ser guiada é a sua destinação permanente: “estaria
fatalmente perdida se tentasse disso escapar” (FOUCAULT, 1994, p. 146).
No cômputo geral, os traços da responsabilidade, da obediência e da
submissão, além da forma de conhecimento, articulam-se dando azo à
finalização ulterior da pastoral. Eis a sua última marca: a renúncia do mundo
e de si mesmo. A renúncia do mundo representa o congestionamento de toda
potencialidade existencial capaz de transfundir a frágil temporalidade de uma
experiência como acontecimento imanente ao mundo em multiplicidade. É
5 Embora a obediência acompanhe também o campo da virtude na Antiguidade Grega, fato este
que o próprio Foucault ressaltou, sabemos que lá ela se dava como “meio provisório para se atingir
um fim”, enquanto no cristianismo tornou-se um “um fim em si” (FOUCAULT, 1994, p. 145). Se
tomarmos outra referência em relação ao cristianismo, como o estoicismo, encontraremos uma
inversão que se faz notar pela tinta de Cassirer (2005, p. 21): “A declarada independência absoluta
do homem, que na teoria estóica era considerada como a virtude fundamental do homem, na
teoria cristã torna-se o seu vício e erro fundamentais”.
44
reduzir os horizontes inexplorados, portanto desconhecidos, às circunscrições
do já explorado, da certeza conhecida e da significação dominante. É assentar-
se às verdades consagradas e fiar-se pela metafísica dos valores. É fechar-se
para a revolução copernicana: é buscar constantemente o centro. Par e passo,
implica o sujeito como objeto de si mesmo numa incapacidade de cuidar de
si. Por rejeitar o mundo processa-se a degradação das condições necessárias
para colocar-se como agente no mundo e agente de si mesmo, pertencente a
este mundo. A rejeição de si implica em assumir a incompetência para o seu
próprio cuidado. A salvação do sujeito, portanto, é estranha a si mesmo por
assumir-se como incompetente, um incapaz de suas próprias verdades. “[...]
Renúncia deste mundo e de si: uma espécie de mortificação cotidiana”, diria
Foucault (1994, p. 147).
Se tomarmos o conjunto destas características e, notadamente, a
coextensão de cada uma delas, algo de revelador se deixa mostrar. Para haver
responsabilidade tutorial com eficácia é preciso uma junção com a obediência e
a submissão dos tutelados, o que não ocorre sem a presença de uma autoridade
face a um saber, ao mesmo tempo produzido e producente. Esses princípios,
ademais, incorporam-se ao aspecto da renúncia do sujeito que é incapaz de
responsabilidade, de ascender ao saber sem o tutor e de formar o seu próprio
conhecimento. O que temos, assim, é o fato de que “em todo lugar no mundo,
o que é tomado por verdadeiro em um dispositivo tem o poder de se fazer
obedecer e formar os sujeitos humanos à obediência” (VEYNE, 2008, p. 135).
E se estendermos esta possibilidade de interpretação um pouco mais além,
perceberemos que “todo poder, toda autoridade prática ou espiritual, toda
moralidade se reivindica da verdade, a supõe e é respeitada como fundada
na verdade” (VEYNE, 2008, p.135).
Ao cogitarmos, então, que a educação é tocada por estratégias
pastoralizantes, tratamos de perceber o quão desafiador se torna qualquer tipo
de estratégia que queira intervir nos sedimentos de verdade depositados nas
estruturas mais arcaicas das instituições encarregadas da formação humana que,
dificilmente, enxergam que suas verdades são pressupostos produzidos numa
face de relação com o poder. E se chegaram a ser assim, podem, contudo, ser
de outro modo. Mas para tanto é imprescindível a afetação do próprio campo
de verdade, ou seja, um esforço para que se abra mão de todos os hábitos que
45
são reproduzidos, de todos os mecanismos automáticos de distribuição de
tarefas, de todos os engendramentos que distribuem os sujeitos em lugares
demarcados, quer dizer, temos de afetar todo o campo de verdade do que
vigora como prescrição inquestionável nas experiências com a educação e
nas estruturas da Escola.
Uma vez, entretanto, que a pastoral exige “a obrigação da regularidade, de
continuidade, de exaustividade” (FOUCAULT, 2001, p. 221) em torno de uma
série de exames e de procedimentos de sujeição, e se concebemos uma relação
dela com a educação, é preciso ter em mente que nenhum tipo de trânsito
operativo no sedentarismo escolar é possível sem se pensar intervenções na
regularidade, na continuidade e na exaustividade dos procedimentos que
têm caracterizado as possibilidades de educação atuais. Além disso, qualquer
dispositivo institucional e até mesmo as práticas informais de relação humana
que se predispõem ou já estão dispostas naqueles elementos atuam, de maneira
inequívoca, como maquinarias de produção de um tipo de subjetividade em
que se prepondera a obediência, a submissão, a renúncia e um dizer-verdadeiro
correspondente a uma demanda de significantes congelados. Grosso modo, e
por consequência, as estratégias de relações de poder sedentárias em torno
da formação humana não se apresentam dispostas a afetar o seu próprio
campo de verdade. Sendo mais claros: as experiências educativas não formam
sujeitos capazes de operar nas transformações e alterações ativas nos próprios
mecanismos, nas próprias instituições e, no limite, nas próprias sociedades
que estão educando-os. Uma subjetividade sujeitante é interessante neste caso,
porém, de modo algum uma subjetividade ativa.
A pastoral bem pode representar, nesse caso, “os velhos mitos” e as “figuras
preestabelecidas, antecipadoras”, como argumentaram Deleuze e Guattari
(1997, p. 84), das verdades responsáveis por gerar um apego arcaizante às
tradições, ou seja, a determinados modos e tipos de visadas tanto epistemológica
quanto empírica acerca de um objeto qualquer. Em nosso caso específico, se
imaginarmos que o objeto essencial da educação – se é que há um – seria o devir-
sujeito em todas as frentes potenciais de sua singularidade, quanto mais estreita
for a incidência dessa tradição na possibilidade de abertura de experiência
histórica para a de subjetividades, menor serão a produção e a afirmação
das diferenças, do campo de multiplicidade que, por definição, opõem-se a
46
qualquer essencialismo e a qualquer paralisia advinda de uma tradição. A
intrusão de qualquer referência antecipadora no campo da subjetividade barra
as possibilidades existenciais que implodiriam as relações que se estabelecem
e se perduram dentro das mesmas fronteiras sedentárias.
Sem muito esforço, com efeito, passamos a entender as razões pelas quais
Foucault (2004a) admitiu que nunca se empreendeu uma revolução antipastoral
no Ocidente e que, ao contrário disto, a prática pastoral nunca se dissolveu. A
pastoral assinala como uma possibilidade genealógica da tecnologia de poder.
Seus traços essenciais, responsabilidade, obediência e submissão, forma de
conhecimento e renúncia perpassam as relações humanas de modo geral. Da
dimensão familiar à racionalização do estado é possível enxergar a demanda
por aqueles procedimentos. Não seria diferente no campo da educação.
O controle de condições de constituição de subjetividade, isto é, a
objetivação dos sujeitos em nome de uma relação de responsabilidade de
quem conduz; a fixação de significações dominantes, ativação constante para
se justificar a obediência e a submissão a uma forma de saber; a regulação de
ações independentes como renúncia de si e da possibilidade de movimentação
no mundo, quer dizer, nas condições históricas que permitem a criação de
acontecimentos, estão acampadas nas experiências dos sujeitos que conduzem
e são conduzidos na e pela arte de educar.
Claro que não estamos falando de um monismo ou de uma monossignifação.
Não existe educação, arte de educar: há uma miríade de possibilidades que
não se reduzem mutuamente e, muitas vezes, nem se comunicam entre si.
Apesar disso, entretanto, à guisa de Foucault, pensamos existir uma dinâmica
pastoralizante que, de um modo ou de outro, atinge e sustenta a educação
dos seres humanos. A educação, de tal maneira, tenderia a reincidir, em suas
estratégias de educere, os vínculos com a responsabilidade, a obediência e a
submissão, o conhecimento controlado e a negação das subjetividades distintas
das que são firmadas pela expectativa de uma verdade posta por quem conduz.
Educador e pastor, com efeito, fundem-se numa tipologia desastrosa
fazendo circular um sedentarismo de expectativas, de capacidades, de atitudes,
de pensamentos, de extração e de produção de verdades, enfim, de subjetivações
cuja representação é sedentária. As relações pastoralizantes na educação dizem
respeito a tudo o que limita as combinações de cadeias significantes, tanto
47
válidas para o estofo teórico quanto para a vontade empírica que recobrem
as experiências com a educação. A pastorização move-se pelo combustível
da harmonia. Regular as ações, territorializá-las, produzir homogeneização
circunscêntrica de sentidos – forjar as condições ideais para a resposta certa
– atuar no controle do fluxo das falas e dos discursos subjetivos, restringir
os corpos desejantes, aparar o devir distinto da significação que impera: eis
uma educação pastoralizada; eis um aprisco; eis um sedentarismo. Assim,
podemos com muita clareza identificar a oposição que se estabelece entre
possibilidade de educação em espaço sedentário e em espaço móvel, nômade:
“o espaço sedentário é estriado, por muros, cercados e caminhos entre os
cercados, enquanto o espaço nômade, é liso, marcado apenas por ‘traços’ que
se apagam e se deslocam com o trajeto” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 52).
Não é essa a maquinaria presente no agenciamento da condução de Lucky
por Pozzo? Mas também não é ela uma maquinaria presente na condução do
aprendiz, do aluno, do guiado pelos caminhos preestabelecidos como condições
para – talvez como Lucky – aprender a pensar, aprender a agir no momento
certo, e tão somente? Ao que tudo indica, o sedentarismo implicado na pastoral
se redistribui na educação como campo de experiência de retenção do múltiplo:
nada pode fugir ou escapar do Mesmo interposto entre a organização das
condições para se guiar e ser guiado. Ele se redistribui, no entanto, apenas por
intensidade: educação como aprisco sobrecodificador da sociedade. Educação
como memória longa da dinâmica pastoral, ou seria o contrário, a pastoral
como memória longa da educação?
A essa altura, se as coisas podem se confundir é porque pastoral e educação
se decalcaram mutuamente, ao menos na cultura ocidental. Resistir à atuação
deste processo é interpor-se à educação como domesticação; é romper com uma
dinâmica que nos tem destinado à fixação de certos papéis que se reproduzem,
por hábito, ad multos annos. Em uma impressionante imagem criada por
Deleuze (1996, p. 40), ao argumentar a favor da potência nômade capaz de
desestabilizar o modelo de aparelho de Estado, trata-se de “sacudir o modelo, o
ídolo ou a imagem que pesa sobre o pensamento, monstro agachado sobre ele”.
48
3.2 Afrontar o sedentarismo para disparar o nomadismo na
educação: embates de relações de forças
Não é sem sentido que no final de Vigiar e Punir, Foucault (2009, p. 283)
leva às últimas consequências o elemento que designou de O carcerário a fim
de indicar que a organização carcerária é uma forma terminal de todos “os
dispositivos disciplinares, que funcionam disseminados na sociedade”. Na
composição desse dispositivo que reúne até as disciplinas mais “inocentes”
encontra-se, é claro o que já designamos de Escola com “e” maiúsculo. Foucault
(2009, p. 284), então, utiliza uma expressão muito interessante, para qual
queremos chamar a atenção, com o propósito de indicar as linhas de forças
que estão presentes nela: “é a sombra que povoa a escola”.
A sombra mencionada por Foucault evoca o jogo de luz que, desde as
invenções pastorais, passando pelo panóptico e reativando-se no cotidiano
silêncio das relações humanas, põe em evidência cada tipo distinto de indivíduo
que entra na relação de visibilidade e invisibilidade. Tal sombra, além disso,
diz respeito, no limite, aos jogos de forças que estão vivificados nas relações
escolares, notadamente, sob as suas formas políticas que aceitam ou não,
aprovam ou não, destacam positivamente ou não, reproduzem ação ou não,
enfim, concernentes a cada ação, prática e enunciado que têm suas maneiras
de operar na fala e postura de cada educador e educando. O que existe na
dimensão escolar é dependente de um jogo de forças territorializador.
As relações de forças ao redor da constituição do sujeito e de suas
experiências de subjetividades, tendo o seu início em situações estratégicas,
expressam tipos de ligações de dominação e de coação, numa multiplicidade
de poderes-saberes, que acabam por emergir um “ciclo do sujeito ao sujeito,
o ciclo do poder e dos poderes, o ciclo da legitimidade e da lei” (FOUCAULT,
2002, p. 50). Toda essa produção de ciclo encontra-se na cultura de hábitos. Já
sabemos que o hábito, não importa qual seja, despeja no cotidiano expressões
de forças condicionantes. Nelas estão acampadas as seguintes dimensões: ações
de sujeitos sobre sujeitos, relações de poder, parâmetros, pareceres, idéias, sem
nos referir à presença necessária da legitimidade e da lei.
Mas do ponto de vista de um afrontamento ao sedentarismo, é
preponderante a criação de tensões no cotidiano na tentativa de exercermos
novas estratégias e táticas no uso e aplicação de novas forças com o intuito de
49
reverter todo quadro de relação de sujeição que existe no campo educacional.
Faria muito bem, nessas proporções, também pensarmos que a educação é
um campo de guerra perpétua no sentido de que não se deve permitir que
se equilibre e se estabeleça um só tipo de força. Pois é em toda estabilidade
que uma ordem discursiva ganha mais o seu vigor como perpetuação de
força, perspectiva e discurso balizadores. “Todo cálculo monótono estreita o
espírito”, disse Schiller em A educação estética do homem (1995, p. 43). Então,
supomos que o universo educacional haveria de ser confrontado, ao menos
para nele provocarmos certo tipo de mal-estar, sobretudo naqueles que se
fiam na tentativa de se pensar uma realidade escolar ubiquamente perfeita
ou creditada de tranquilidade, sem impasses ou distensões de forças, onde
todos pudessem fazer as mesmas coisas, andar no mesmo passo, seguir a
mesma cartilha. Aqui são importantes os termos de Foucault (2002, p. 51-52,
grifos nossos):
Concretamente, podemos, é claro, descrever o aparelho escolar ou o conjunto
dos aparelhos de aprendizagem em dada sociedade, mas eu creio que só
podemos analisá-los eficazmente se não os tornamos como uma unidade
global, se não tentarmos derivá-los diretamente de alguma coisa que seria
a unidade estatal de soberania, mas se tentarmos ver como atuam, como se
apóiam, como esse aparelho define certo número de estratégias globais, a
partir de uma multiplicidade de sujeições (a da criança ao adulto, da prole
aos pais, do ignorante ao erudito, do aprendizado ao mestre, da família
à administração pública, etc.). São todos esses mecanismos e todos esses
aparelhos de dominação que constituem o pedestal efetivo do aparelho global
constituído pelo aparelho escolar. Portanto, se vocês quiserem, encarar as
estruturas de poder como estratégias globais que perpassam e utilizam
táticas locais de dominação.
50
multiplicidade de sujeições implicadas nos aparelhos de aprendizagem. Ora,
levando em consideração o diagnóstico que até o momento elaboramos acerca
do sedentarismo na educação, é de pensarmos o quanto somos incitados a
instar visadas epistêmicas e práticas contrárias a essas multiplicidades de
sujeições. Chamamos especificamente a atenção para a precariedade de toda
forma prescritiva nessa direção: não há receitas prontas, pois cada escola, seus
gestores, educadores, alunos, pais, vizinhos, bairros, cidades, enfim, situam-se
em táticas distintas de relações de sujeição-subjetividade. Por isso mesmo não
podemos abrir mão de uma mobilidade geral, crítica e permanente mutação
que sejam verdadeiros revides aos phylums sedentários.
Mas como há um jogo de relações de forças em nossa constituição
histórica, a pastoral é apenas um exemplo, devemos tentar procurar nos munir
contra as tendências sujeitantes que existem e pairam – é a sombra que povoa
a escola – nas relações de educação. Desse modo, há aqui um convite para que
todos os esforços ao redor de tipos diferentes de funções, de experiências, de
concepção de pensamento e de relações humana sejam criados com o intuito
de se interpor à verdade cristalizadora e às ações que se sedentarizam. Todos
os desvios, incorreções, ações questionadoras das disciplinas (forma)lizantes,
os incidentes, para ater-nos a alguns pontos, podem ser vistos dentro de uma
perspectiva diferente para a construção de formas distintas para se referenciar
e se dirigir à construção de relação de ensino-aprendizagem. Quando Foucault
argumentou que “é o que somos – os conflitos, as tensões, as angústias que
nos atravessam – que é, finalmente, o solo, não ouso dizer sólido, pois por
definição ele é minado, perigoso, o solo sobre o qual eu me descolo” (1977, p.
405), a nosso ver, ele trouxe à tona essas mobilidades para as quais todas as
experiências com a educação são convidadas a se defrontar.
A seguinte situação nos serve como um bom exemplo de problematização
que nos incita a um outro nível de mobilização na e com a educação:
Uma criança, sentada no fundo da classe, está de saco cheio e começa a jogar
chicletes ou bolotas na cabeça dos outros. Diante dessa situação, geralmente
o que fazemos é colocar a criança que está perturbando para fora da sala de
aula, ou tentar fazer com que ela faça o menos bagunça possível, ou ainda, se
estivermos em sistemas mais sofisticados, encaminhá-la para um psicólogo.
É muito raro nos perguntarmos se esse fato de singularidade não estaria
51
dizendo respeito ao conjunto da classe. Nesse caso teríamos que questionar
nossa posição na situação e desconfiar que talvez as outras crianças também
estivessem de saco cheio, sem manifestá-lo do mesmo modo (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 60)
52
instituições e de todos os dispositivos disciplinares”. Ainda segundo indicou
Foucault (2003), na função-psi estão englobadas: a psicopatologia no interior
da disciplina psiquiátrica e asilar; a criminologia no interior da disciplina da
prisão, o psiquiatra forense, a psicologia do trabalho no interior da disciplina
do ateliê, da usina; e, enfim, a psicopedagogia no interior da disciplina
escolar. Em todas função-psi, destaca-se o fato de elas serem ou confluírem
para “o discurso e a colocação de todos os esquemas de individualização,
de normalização, de assujeitamento de indivíduos no interior dos sistemas
disciplinares” (FOUCAULT, 2003, p. 87).
Ora, é curioso notar a facilidade com que o educador, mais do que nunca
nos dias atuais, também balizado por uma psicopedagogia, pode se tornar
aquele conhecido “juiz-professor”, também responsável por fazer reinar a
universalidade do normativo e, cada um a seu modo, submetendo o corpo, os
gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos conforme
seu julgamento. Tentar operar de modo distinto da força onicirculante da
norma, das engrenagens de normação e normalização é buscar se reposicionar
diante de todas as sentenças arregimentadas para a destinação do sujeito:
incompetente, ineficaz, hiperativo, desatento, indisciplinado, anormal, difícil,
impossível, incorrigível, enfim, diferente.
A tomada de posição-ação-efeito a que somos chamados, entretanto, deve
levar em consideração as linhas móveis possíveis de serem criadas em um jogo
de relações de forças para incitar outros caminhos, sendas e veredas, para o
pretenso “destino do sujeito verdadeiro no Ocidente” (GROS, 2001, p. 492).
Em outros termos, como cada sujeito foi levado a se fixar, desde longa data,
procurando a sua verdade íntima pelo constante sujeitamento a um outro.
Relação, em maior ou menor grau, sempre presente na educação, já que ela
pode ser entendida como
o processo pelo qual os outros são trazidos ou conduzidos para a nossa
cultura, sejam eles os recém-chegados – crianças e estrangeiros de todo
tipo –sejam eles os “inclusives” – anormais e estranhos. Ao educar o outro,
nós o aproximamos da nossa morada, de nosso domínio, graças a variadas
formas de dominação que estabelecemos com ele e, muitas vezes, sobre ele.
(VEIGA-NETO, 2006, p. 29-30)
53
Sob tal cenário, é de se notar a prevalência de uma das marcas mais
relevantes nos processos de subjetividade estudados por Foucault, como estamos
tentando demonstrar, que é o da pastorização da existência. Mas a história
dos conjuntos de práticas que serviram de suporte para o sujeito se constituir
não se fecha, pois ainda se trata de “uma sujeição que nunca terminou de se
completar” (FOUCAULT, 2009, p. 156).
Essas evidências, ao que nos parece, não devem servir como um tipo
de “pessimismo pedagógico”, na expressão de Manacorda (2006, p. 203); ao
contrário, são úteis para um incitamento a tipos diferentes de relações que
não sejam as da sujeição. Dentre as muitas possibilidades de pensarmos nessa
direção, cremos que a tentativa de empreendermos uma despastoralização
da educação seja uma delas. Uma vez que a pastoral cristã serviu como fio
transversal de relações omnes et singulatim – para todos e para um –, em que
toda trama política voltada para a constituição de sujeitos veio intercruzar-se
com a trama do cotidiano, é preciso tornar consciente o quanto que as relações
existentes nos aparelhos educacionais recriam, desdobram e transformam a
prática pedagógica numa conduta pastoralizante. Pois, salvo o contrário, elas
estão perpassadas e imbricadas nas instâncias a) de domínio e obediência; b)
de reconhecimento de um não-saber: o dependente; c) produção perpétua de
exames: extrair e produzir verdades – séries de procedimentos para analisar,
reconhecer, guiar e transformar os indivíduos.
Ora, quando Foucault constatou que, no Ocidente, o homem tornou-se
uma ovelha dentre as ovelhas, vemos referida perspectiva ecoar em Coménio ao
intentar fazer da educação um projeto de constante amansamento do homem,
claro, para melhor conduzi-lo. São suas as seguintes palavras: “o homem é um
animal cheio de mansidão e de essência divina, se é tornado manso por meio
de uma verdadeira educação; se, pelo contrário, não recebe nenhuma ou a
recebe falsa, torna-se o mais feroz de todos os animais que a terra produz”
(COMÉNIO, 1985, p. 123). O paroxismo da contundência pastoral, além disso,
pode ficar constatado no cuidado individualizado que é invocado, em nome da
eficácia, pelo próprio Coménio (1985, p. 232): “que, para um mesmo aluno e na
mesma matéria, não haja senão um só professor”. Assim, podemos enxergar a
pressuposição de uma educação verdadeira em contraposição à falsa, sempre
54
bem aplicada pelo condutor que visa individualmente o aluno. A prefiguração
da instância disciplinar salta aos olhos.
Além disso, supomos ser possível acolher a relação domínio e obediência,
como Foucault fez à guisa da pastoral cristã, atinente à educação e, notadamente,
às práticas educativas materializadas por ela. Não é à toa que Michael Apple
nos chama a atenção para o sistema educacional como um “elemento
excepcionalmente importante na manutenção das relações existentes de
dominação e exploração” (1989, p.26) presentes nas sociedades atuais. Na
prática, o que temos pela frente é o desafio de produzirmos instrumentos
para a construção de relações humanas cuja força não seja proveniente dos
feixes de dominação e de obediência. E nesse âmbito, educador não pode ser
um tipo de homo homini rex cuja lógica assentada na autoridade e obediência
trabalha no sentido de minorar o outro.
Nunca é demais, aliás, relembrarmos da herança precipuamente pastoral
que se instalou na cultura brasileira. Herança que instilou uma série de práticas
e de relações humanas preponderantemente de submissão, sujeição e aceitação
da condução do outro. Desde a presença da Companhia de Jesus, com a
chegada de Tomé de Sousa em 1549 no Brasil, a tarefa dos jesuítas-educadores
foi a de “aculturar e converter ‘ignorantes’ e ‘ingênuos’, como os nativos, e
criar uma atmosfera civilizada e religiosa para os degredados e aventureiros
que viessem” (XAVIER et al, 1994, p. 40) para depois, enfim, florescer toda
condição para se doutrinar e formar “elites condutoras para manter cativa a
alma da Colônia” (XAVIER et al, 1994, p. 46). A pedagogia pastoralizante,
por assim dizer, reproduz a relação de mando e obediência com o intuito de
manter também colonizado o pensamento, as práticas e condutas humanas,
as ilusões cíclicas e as condenações irreversíveis na história. Ela sonha com a
classe disciplinada, o silêncio franciscano, e toda sorte de ladainhas repetitivas.
Mas o que seria dessa força sem a sua capacidade de criar uma relação
cujo reconhecimento do outro é notoriamente daquele que se põe no lugar do
humilde, do desviante, do que necessita ser corrigido. A pastoral pressupõe o
não-saber absoluto para conduzir. O educador-pastor é o que pretende “dar
conta não somente de cada uma de suas ovelhas”, ou alunos-ovelhas, “mas de
todas as suas ações, de todo bem e mal que eles são suscetíveis de fazer, de
tudo o que acontece” (FOUCAULT, 1981, p. 144). É a totalização da existência
55
transpassada pelo olhar de quem determina o que deve ou não deve, o que
vale à pena ou não vale ser sabido, vivido, experimentado. O educador-pastor
é o que capacita, pois o outro é incapaz. Assim, ele ignora toda e qualquer
tipo de mediação que não seja o da sua verdade6.
É para isso que toda sorte de produção e extração de verdade vingam-se
na esfera da arte dos exames. Esses procedimentos reconhecem o outro como
o gerador do que é válido para ser identificado como verdadeiro e rechaçado
como falso. Está presente nos sistemas de avaliação, nas formas perversas de
exclusão de saber, de marginalização de conhecimentos e práticas socioculturais
a vestibulizar a existência prefigurada nos gabaritos a serem distribuídos,
de antemão, conforme a finalização que se pretende chegar – a pletora de
fórmulas mágicas abunda.
Essas questões, a nosso ver, situam diretamente o campo da educação na
dimensão de uma anatomia política, pois evidencia toda sorte de assimetria que
paira sobre a própria educação. Mas, por outro lado, evidencia também uma
nova perspectiva que deve ser tomada como uma instância de luta, ou melhor,
de embates cuja persistência no âmbito da transformação nos convida a sairmos
do que, por vezes, acabamos por crer como nosso destino. Se pela anatomia
política Foucault demonstrou que toda realidade é uma criação artificial, pois
subsume-se a certas relações de forças, logo, é possível pensarmos em outra
concepção de realidade. Tão necessária às formas de governamentalidade, a
educação pode também ser uma forma de mitigar e interverter as formas de
dominação que colocam as experiências de subjetividade, modos de ser, nos
canais da dominação e, portanto, do sedentarismo. O desafio, doravante, será
o de pensar como isso é possível na perspectiva contrária à do sedentarismo,
ou seja, na perspectiva do nomadismo.
56
CAPÍTULO 4
Explorações em torno de nomadismos na educação
57
Como anunciado antes, queremos aqui delinear os contornos de uma
resistência possível à pastorização da educação. Se a imagem do pastor, do
pastoreio, corresponde ao que se tem feito no campo da educação, pensamos
que uma imagem muito diferente daquela do pastor pode nos ajudar a pensar e
a agir diferentemente no campo educativo: a imagem do nômade, daquele que
erra por terras desconhecidas, sem fixar-se, sem “esquentar lugar”, sem mover-
se com um rumo preestabelecido. Alguém que se move sem ter aonde chegar.
Move-se por mover-se; move-se por compreender que a vida é movimento.
A imagem do nômade foi trabalhada por Deleuze e Guattari em várias
oportunidades, mas especialmente em Mille Plateaux, obra na qual ganhou
centralidade, especialmente no platô 1227 – Tratado de Nomadologia: a máquina
de guerra7. Retomando o tema do fora, os filósofos partem da afirmação que “a
máquina de guerra é exterior ao aparelho do Estado” (1997, p. 11). Desenvolvendo
a ideia de que a máquina de guerra é a forma de luta exercitada pelos povos
nômades, à diferença do rigor estrutural e hierárquico do exército adotado
pelos Estados, eles vão mostrar que vários saberes e atividades se produzem
e se exercem à margem do Estado, do lado de fora. Assim, se há uma ciência
produzida no e pelo Estado, segundo as normas e protocolos rigidamente
definidos e controlados, há também uma ciência marginal, nômade, que é
produzida fora do Estado. Do mesmo modo, há filosofias nômades, artes
nômades e, por que não, educações nômades. Nessa oposição – que não é
dialética – entre Estado e máquina de guerra, entre dentro e fora, entre régio e
nômade, entre oficial e marginal, Deleuze e Guattari falam também em maior
e menor, retomando o conceito de menor que apareceu pela primeira vez na
obra que publicaram sobre Kafka alguns anos antes8. O menor aqui significa
ser produzido fora das normas, dos cânones, do poder controlador dos poderes
instituídos. O saber menor e a prática menor não pretendem ser um modelo,
um paradigma, não pretendem ditar normas de conduta, de produção, de
criação. São frutos de experimentações e assim querem permanecer: singulares.
7 A edição original francesa é de 1980. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora 34 em cinco
volumes, entre 1995 e 1997, sendo que o platô citado se encontra no volume 5.
8 Kafka, por uma literatura menor foi publicado em francês em 1975, três anos depois de O Anti-
Édipo e cinco anos antes de Mil Platôs (a primeira edição brasileira é de 1977). Ali, não falam em
literatura nômade, mas certamente o termo poderia ser tomado como uma espécie de sinônimo
de literatura menor, quando lemos as considerações sobre o nomadismo em Mil Platôs.
58
Do lado de fora, saberes menores, singulares; do lado de dentro, saberes
maiores, que clamam por paradigmas. Os saberes produzidos sob as bênçãos
do Estado querem ser modelares, querem controlar o que pode e o que não
pode ser pensado:
Enfim, a axiomática não constitui uma ponta da ciência, mas muito mais
um ponto de parada, um restabelecimento da ordem a impedir que os fluxos
semióticos descodificados, matemáticos e físicos, fujam por todos os lados.
Os grandes axiomatistas são homens de Estado da ciência, que colmatam as
linhas de fuga tão freqüentes em matemática, que pretendem impor um novo
nexum, mesmo que provisório, e fazem uma política oficial da ciência. São os
herdeiros da concepção teoremática da geometria. (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 162)
59
Se na educação pastoral o pensamento é fruto da condução, da disciplina,
da imposição de regras, como nos indicam, por exemplo, as “regras para a
condução do espírito”, que já preocupavam a Descartes no século XVII, em uma
educação nômade o pensamento é de uma outra espécie e sua experimentação
não obedece aos mesmos protocolos.
Em Diferença e Repetição, obra já citada aqui, Deleuze pensa o pensamento
para além da representação e afirma que o pensamento não é natural no homem,
mas é focado. O pensamento é sempre resultado de uma violência, de uma
força exterior que nos força a pensar. Este fora que faz pensar é o problema
(Deleuze, 2006, p. 203). O que nos leva a pensar é um acontecimento: um
encontro com um problema. Sem um problema, não pensamos, não importa
o quanto conduzidos sejamos. E se o encontro é da ordem do acontecimento,
coloca-se para fora do plano daquilo que podemos controlar, planejar e fazer
se passar. Apenas por essas palavras, já podemos apreender que, no âmbito de
uma educação pastoral, não se pensa, de fato. Quando muito, pensa-se como
pensava o Lucky de Beckett. Mas não se pensa singularmente, autonomamente,
com seu próprio problema.
Não nos alongaremos, mas é importante dizer que, para Deleuze,
o problema não é algo pensado, não é produto do intelecto; antes, ele é a
própria origem do pensamento, aquilo que lhe faz emergir. Sendo anterior
ao pensamento, o problema é do âmbito do sensível. Um problema, fruto de
um encontro qualquer, é sentido. Quando um problema chega a ser pensado,
ele já deixou de ser problema, pois ao ser enunciado pelo pensamento ele
já traz em si sua solução. Por outro lado, o problema que experimentamos,
sentimos, não possui qualquer solução prévia; ela precisa ser inventada, e isso
só é possível pelo pensamento.
Percebe-se, assim, que qualquer “pedagogia do problema” que queira
fazer do problema seu método, está fadada ao fracasso, a perder o problema
e, consequentemente, perder o pensamento. Deleuze (2006, p. 227-229)
afirma a necessidade de “termos direito aos próprios problemas”, uma vez
que continuaremos escravos enquanto formos obrigados a “pensar” problemas
alheios e faz a crítica às tentativas de pedagogizar o problema. Apontaremos
aqui apenas dois elementos desta crítica: primeiro, que ao propor (ou impor) um
problema a um grupo de estudantes, não há como garantir que, efetivamente,
60
todos e cada um deles se encontrem com o problema, e ele acaba por não
se constituir, de fato, em problema como motor do pensamento. Segundo
elemento: quando se propõe um problema aos estudantes, ele já foi organizado
intelectualmente pelo professor, possuindo uma solução que poderá ser
posteriormente avaliada, e, portanto, perdeu sua característica básica, sua
potência de encontro acontecimental e motivador do pensamento.
Mas o problema é, no dizer de Deleuze (2006, p. 232), o “elemento
diferencial no pensamento” e este – o pensamento – é criação. Criação virgem,
sem pressupostos, recém-nascida e sem soluções a apontar por sobre os ombros.
Criação que só pode ser experimentada, que não se presta a reproduções e
a recognições, como se faz no modelo da recognição da pastoral educativa.
Se pode haver um “aprendizado do pensamento”, um aprendizado do ato de
pensar como criação, sem pressupostos, ele não pode ser feito segundo o
modelo da condução representado por Pozzo e Lucky (BECKETT, 2005) e
plasmado na pastorização da educação.
Inspirados em Stengers (2015, p. 15), poderíamos dizer que a criação, na
experimentação nômade, é uma tentativa de nos desintoxicar das narrativas
que confiscam “uma vida que explora conexões com novas potências de agir,
sentir, imaginar e pensar”. Face ao nomadismo criativo, o sedentarismo se arma
com suas estacas delimitadoras a fim de estabelecer o curral do pensamento,
o aprisco onde o pastor controla e apascenta suas ovelhas. Portanto,
qualquer criação deve incorporar o saber de que ela não vive em um mundo
amigo, e sim em um mundo doentio, de que ela terá de lidar com protagonistas
– o Estado, o capitalismo, os profissionais, etc. – que se aproveitarão de
qualquer fraqueza e que acionarão todos os procedimentos possíveis de
envenená-la (STENGERS, 2015, p. 99).
61
além da pastoral. Primeiro, porque o aprendizado é um encontro. Encontro
com signos, encontro com problemas, que mobilizam em cada um de nós
o pensamento, a relação com esses signos e seu consequente aprendizado.
Segundo, porque não se aprende reproduzindo, repetindo o mesmo, mas
fazendo junto e inventando caminhos outros, singulares. Em outras palavras,
na condução pastoral não há aprendizado: há decalque e recognição. O
aprendizado está aquém e além de qualquer condução, pois o aprendizado
deve ser nômade.
No nomadismo não há guia soberano, a velha figura do pastor responsável,
ao mesmo tempo, por cada um e por todos. No nomadismo, cada sujeito
participa ativamente de sua jornada, de seu trajeto, de sua composição com a
passagem pela qual se desliza e se compõe. Aprender no nomadismo é errar.
Errar como incorrer-se no erro, enganar-se, permitindo-se um ir e vir que
ensaia o aprender por quem cria, uma vez que também criar demanda tentativas
constantes. Mas errar também como andar sem rumo certo, deambular
explorando, para além de qualquer cercania, a paisagem que apenas é vista
por quem ousa ir até o outro lado: o lado ainda não explorado ou descrito nas
palavras e nas escrituras dos imóveis já conhecidos; o lado de um oriente ainda
não colonizado e reduzido ao senso equivalente das mesmas compreensões,
dos mesmos modos de afetar e se afetado, dos mesmos standards.
O aprendizado, no nomadismo, incita-nos igualmente a nos despojar
da linguagem viciada a se valer das mesmas vestes a potência do signo que
nos permitiria perdermo-nos na surpresa do encontro com o que ainda
não ousamos anunciar. Para tanto, bastaria a nós nos enveredarmos pela
perspectiva contrária àquela que Sloterdijk (2012, p. 35) bem diagnosticou
para o sedentarismo:
Pois assim que os seres humanos falantes começam a viver juntos em grupos
maiores e se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas
construídas, eles ingressam no campo de força do modo de vida sedentário.
Daí em diante, eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas
também domesticados por suas habitações.
62
aprendizado. Critica a noção platônica de aprendizado, que é uma recognição,
um reconhecimento de algo que já estava impresso na alma, mas que fora
esquecido, para apostar no aprendizado como experiência original e como
criação no âmbito do pensamento. Sendo o aprendizado um acontecimento,
“nunca se sabe antemão como alguém vai aprender” e, embora possamos
inventar métodos e mais métodos para ensinar, “não há método para encontrar
tesouros nem para aprender” (DELEUZE, 2006, p. 237).
O que intenta Deleuze é desfazer o vínculo criado pela pedagogia moderna
entre ensino e aprendizagem, que levou à ideia de ensino-aprendizagem,
afirmação de que sempre que alguém ensina, outro aprende; e que sempre que
alguém aprende, o faz porque um outro ensinou. O filósofo nos faz pensar que
se aprende, apesar do ensino. Ou não se aprende, apesar do ensino. Aprende-
se pelos encontros, ao ser mobilizado problematicamente por signos que
nos mobilizam sensivelmente e nos fazem pensar. Em outras palavras, não
aprendemos porque somos conduzidos; podemos até aprender quando somos
conduzidos, mas não é a condução que nos faz aprender, mas os encontros
que eventualmente podem ocorrer no processo. Ou não.
Indo uma vez mais a Mil Platôs e ao Tratado de nomadologia, podemos
ler ali as quatro características de uma “ciência menor” ou “nômade” (Deleuze;
Guattari, 1997, p. 25, passim):
1. ela se preocupa com os fluxos; em lugar de uma teoria dos sólidos, opera
com um “modelo hidráulico”;
2. ela se opõe ao estável, ao idêntico, ao eterno, constituindo-se em um modelo
de devir e de heterogeneidade;
3. estando os fluxos afeitos à formação de espirais, ela funciona segundo um
“modelo turbilhonar”;
4. por fim, à diferença da ciência régia, maior, que opera um modelo
teoremático, uma ciência nômade procede segundo um “modelo problemático”,
no qual as afecções desempenham importante papel.
63
da condução, ela se coloca na ordem do heterogêneo, do múltiplo, do devir,
para aquém e para além de métodos e de teorias totalizantes. Ela se coloca na
ordem do acontecimento, do inconsciente, no fluxo dos problemas que fazem
nascer o pensamento como criação, não como recognição.
Em tal contexto, como ficaria o educere, o “tirar para fora” tão caro à
pastorização, na medida em que implica em uma necessária condução, mas
também caro à noção socrático-platônica de educação, na medida em que
também remete a parto? A condução resistiria em uma educação nômade?
Como conduzir, se o nomadismo significa abrir-se aos acontecimentos, deixar-
se mover ao sabor dos ventos, sem preocupar-se em apontar a proa para um
ponto fixo?
Encontramos, porém, no livro Oculto nas Palavras a afirmação de uma
outra raiz para o vocábulo educação:
O termo ‘educar’ provém do latim educare, que tem o sentido básico de
‘criar’, ‘alimentar’, não só crianças, mas também animais. A partir daí se
desenvolve o sentido abstrato, espiritual e intelectual de ‘formar’, ‘instruir’.
Educare guarda também o sentido de ‘produzir’, especialmente aplicado à terra
em expressões como quod terra educat, ‘o que a terra produz’. (CASTELLO;
MÁRSICO, 2007, p. 35).
64
“Era a sombra da monocultura projetando-se por léguas e léguas em volta das
fábricas de açúcar e a tudo esterilizando ou sufocando” (FREYRE, 2002, p. 103,
grifos nossos). Impossível, assim, dissociar monocultura do poder colonizador,
supondo, com todas as suas mazelas e crueldades, suas esterilizações e os seus
sufocamentos, que colonizar é interromper o ciclo experimental do nomadismo.
Assim, o educere no nomadismo é um estridente “abaixo à monocultura do
saber!”; um “abaixo à esterilização e ao sufocamento da multiplicidade, da
diferença e do imprevisível!”; um “abaixo à aprendizagem conformada, em
nome do dogma, do servilismo, da colônia e da obediência!”.
Para finalizar, lembremos que Deleuze não afirmou o aprendizado como
um ato isolado, solitário. Aquele que aprende não o faz sozinho, em absoluta
independência. Aquele que aprende não faz como, mas faz com alguém, alguém
que o alimenta e possibilita a ele que cresça, pense e aja. Mas pensemos esse
com alguém como aqueles e aquelas que, em caravana, aventuram-se na
cumplicidade de pertencimento a um grupo que lhes permite a afirmação
de suas próprias singularidades, a disposição de suas próprias trajetividades,
ou seja, a maneira diferente e múltipla que cada um deseja se ocupar de si
mesmo e de seus lugares, fazendo-se trajeto vivo. Trata-se ainda da afirmação
de cada singular estrangeiridade como recusa a captura da identidade em um
espaço que foge da localização. Na caravana nômade, o aprendizado recusa a
miséria monocórdica de toda monocultura que confere a todo fruto tratamento
antecipado por especialização sedentária.
Com isso, o aprendizado nômade pensado por Deleuze não implica o
desaparecimento do professor, daquele que educa. Ao contrário, ele pressupõe
que haja alguém que possibilite o fazer com, o fazer junto, para fazer por si
mesmo, mas em caravana. Em suma, uma outra educação é possível, muitas
outras educações são possíveis, para além da condução da pastoral educativa
da modernidade ocidental. Cansados, deixemos de esperar Godot.
65
CAPÍTULO 5
Nomadismo 1 – A caravana do grupo-sujeito: alunos
e alunas produzem uma política de subjetividade
nômade
Questões iniciais
Neste capítulo, problematizaremos as distintas possibilidades da emersão
dos grupos-sujeitos como tentativa de produzir um novo tipo de confiança a partir
de suas próprias relações: relações singularizadas, diferentes, múltiplas. Nas
experiências nômades a coletividade se organiza em grupo-sujeito. No entanto,
o índice de confiança na relação sujeito-sujeito precisa ser considerado. Ao
mesmo tempo, apontaremos para o limite existente nas relações de grupos
assujeitados quando estes são confrontados por uma outra política da verdade.
Política esta capaz de afrontar as consistências de subjetividades sedentárias,
em que confiar implica produzir potências para novas formas de existir, novas
formas de pensar e de agir uns com os outros.
Para tanto, investigaremos uma série de episódios que marcaram a
ocupação das escolas públicas no Estado de São Paulo, no ano de 2015. Tal
66
acontecimento, a nosso ver, revela dois pontos dignos de serem analisados com
mais vagar, vislumbrando um campo maior de suas problematizações. De um
lado, trata-se da assunção desses múltiplos grupos que, agindo sincronicamente,
apesar de suas características singulares, compuseram um tipo de coletivo capaz
de questionar o destino sedentário a eles imposto. O coletivo de alunos e de
alunas foi capaz de sair da posição grupo assujeitado para se afirmar grupo-
sujeito, nos termos de Guattari (1974, 2011). Quais as consequências políticas
para as consistências subjetivas aí envolvidas? O que, do ponto de vista da
educação, é colocado em xeque neste cenário e com tais acontecimentos?
Mas em segundo lugar, e aqui os pontos são inextricavelmente relacionados,
investigaremos os sinais da perda de confiança nas formas de ser conduzido,
de ser tratado como grupo-sujeito as consequências que daí emergem. O que
uma descontinuidade nas estratégias de pacificação política pode revelar?
Quais dimensões assumem as estratégias de rompimento no manejo da ordem
social quando não se confia mais naqueles que, pretensamente, conduzem a
própria ordem social?
67
por avaliações de larga escala, no caso o Saresp9 e a Prova Brasil10. Em seguida,
argumentava-se que as alterações demográficas, numa espécie de inversão
piramidal, acenam para uma retração da população jovem em idade escolar
no Estado de São Paulo. Em termos gerais, entre os anos de 1998 e 2015, a
rede estadual de ensino teria deixado de atender cerca de 2 milhões de alunos.
Em ambas as perspectivas, a questão de fundo a respaldar a reestruturação
foi o argumento da eficácia da gestão administrativa. Excluídas as estratégias
de redução da res publica em nome da racionalização político-econômica,
em uma terceira dimensão, a SEE-SP se empenhou a sustentar que escolas
menores “são mais fáceis de administrar, pois a divisão permite que a equipe
gestora, diretores e coordenação, tracem estratégias pedagógicas focadas nas
necessidades de aprendizado do público atendido. A medida facilita também
o planejamento das aulas pelos professores”.11
O cenário desenhado pela proposta oficial indicava o fechamento de 93
escolas. Com essa ação, um número considerável de estudantes seria remanejado
para outras escolas, afetando diretamente a vida de 311 mil alunos e de 74
mil professores. Ademais, não se podia ignorar o montante de funcionários
administrativos envolvidos nas mais distintas tarefas do cotidiano escolar aí
envolvidos. Não menos importante, significaria toda uma modificação na
ordem da vida social de famílias inteiras. Apenas a Região Metropolitana de
São Paulo possui ao redor de 20 milhões de habitantes. Os deslocamentos
dos estudantes para as escolas demandam um tipo de logística no transporte
público que, a bem da verdade, nem sempre oferece qualidade e eficiência para
todos. Como se vê, as mudanças propostas e apostas lançadas no tabuleiro
da gestão pública da educação paulista afetariam de maneira incontornável
um cenário já em demasia complexo e com implicações impossíveis de serem
avaliadas em um presente imediato.
68
Ora, tal como foi conduzida, a proposta up to down deflagrou imediatamente
questionamentos por parte dos sujeitos alvos na reorganização escolar. Com
uma postura intransigente, o Governo do Estado de São Paulo não se abriu
ao diálogo com o intuito de rever as propostas comunicadas à sociedade.
Vale salientar a perspectiva unilateral dessa conjuntura, uma vez que em
momento algum da confecção da reforma educacional intentada a comunidade
educacional fora convidada a participar. Escolas, professores, alunos e seus pais,
gestores e funcionários, Universidades e um conjunto amplo de pesquisadores,
bem como o Sindicato dos Professores, foram alienados da tessitura de tais
propostas.
A imediata percepção dos sujeitos envolvidos diretamente nas reformas
emergentes, somada à alienação de suas participações em todo processo,
permitiu a eles uma mobilização visando a reflexão em torno das consequências
então delineadas. Dessa maneira, os estudantes começaram a se posicionar
como sujeitos ativos, juntamente com professores e gestores, e o conjunto maior
da comunidade educacional do Estado de São Paulo, rejeitando as manobras
políticas a eles impostas. Para além de manifestos escritos pelo Sindicado
dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOSP), por
distintos Colegiados de Universidades Públicas do Estado de São Paulo, de
Universidades Federais do Brasil e de reuniões de alunos, todos contrários ao
que se deflagrava, um acontecimento digno da história crítica do pensamento,
para nos valermos de um termo de Foucault, emergiu com forte vigor. Várias
escolas foram ocupadas pelos alunos, como forma de reivindicação ao diálogo,
como apelo à inflexibilidade governamental, como estratégia de dar visibilidade
ao problema já de ordem social-democrática, e como, ao que nos parece,
manifestação clara no rompimento da confiança na condução política do bem
público assentado em direito universal: a educação.
No dia 9 de novembro de 2015, a Escola Estadual Diadema, na cidade
de Diadema, Grande São Paulo, passa a ser ocupada por seus estudantes.
Este acontecimento produziu um efeito cascata. Em pouco tempo, mais ou
menos uma semana após aquela primeira ocupação, 216 escolas haveriam de
ser ocupadas por estudantes. A saída do “prático-inerte”12 por aqueles jovens
12 Conceito introduzido por Jean-Paul Sartre na obra Critique de la raison dialectique (1960),
enunciando o caráter amorfo de formações histórico-sociais que se vão cristalizando como efeito
do movimento dialético. Cabe lutar contra a inércia, que impera nos grupos assujeitados, buscando
69
passava a evidenciar, em outros termos, a tomada de posição ativa frente às
imposições políticas capazes de afetar as suas vidas.
Destarte, um coeficiente nômade, por conseguinte, passou a ser produzido,
afrontando a ordem sedentária de obediência linear e reativa. Cedeu-se, assim,
passagem a um tipo de organização que, apesar de incipiente, mobilizou-se
como uma caravana de grupo-sujeito, inventando suas próprias experiências,
produzindo uma narrativa independente e livre daquela nucleada pelo poder
oficial. Catalisou-se, com efeito, aquilo que Guattari (2013) denominou de
efeito bola de neve para o desbloqueio de ações criativas e assumidamente
múltiplas e singulares dentro das escolas.
Não se tratava apenas de estar na escola, mas de redimensionar o que
se pode fazer quando se está ocupando politicamente a escola. Tanto é que
professores, pais de alunos, gestores e grande parcela da sociedade vizinha às
escolas, com algumas exceções de manifestação de subserviência ao poder
estatal, subsidiaram as ocupações dos estudantes. Havia participação nas rodas
de conversas, na produção de refeições para os estudantes, na propagação de
suas vozes e demandas e, sobretudo, na proteção contra o uso da violência
física impetrada pelo Estado policial. 13
Amparado no discurso jurídico de reintegração de posse, o Governo do
Estado de São Paulo valeu-se do uso da polícia para retirar, à força, os alunos
das escolas ocupadas. Não foram raros os episódios de uso de bombas de gás
lacrimogêneo, tiros de borracha contra estudantes, além de intimações verbo-
morais travestidas em preconceitos sexistas, racistas, classistas e indignos à
condição humana e às garantias de direitos universais dos adolescentes e dos
jovens.
a ação dos grupos- sujeitos. O conceito de prático-inerte foi inspirador para Guattari pensar o
grupo-sujeito.
13 A Polícia Militar do Estado de São Paulo é considerada violenta. Segundo dados fornecidos
pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo praticou mais
mortes em confrontos entre 2005 e 2009 do que todas as forças policiais norte-americanas somadas.
Foram registradas 2045 mortes praticadas por policiais naquele período. Consultar: IBCCRIM.
Em cinco anos, PM de São Paulo mata mais que todas as polícias dos EUA. Disponível em: http://
www.ibccrim.org.br/noticia/13905-Em-cinco-anos,-PM-de-Sao-Paulo-mata-mais-que-todas-as-
policias-dos-EUA-. Acesso em 22 de abril de 2016. As manifestações dos estudantes em 2015 foram
fortemente reprimidas pela polícia, com agressões físicas e muitas prisões de jovens e adolescentes.
Dados mais recentes indicam que sob a gestão do governo PSDB o número de mortos por policiais,
em 22 anos, duplicou no Estado de São Paulo. Consultar: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/
ultimas-noticias/2018/02/01/numero-de-mortos-por-policiais-dobra-na-gestao-alckmin-e-e-o-
maior-em-22-anos.htm
70
Àquela altura, a escola tinha saído para as ruas. Em distintas cidades
do Estado de São Paulo, uma miríade de manifestações se formou: piquetes,
passeatas, reuniões em praças públicas, intervenções culturais. Um grupo
assujeitado havia se constituído em grupo-sujeito. Tratava-se de dar visibilidade
a um tema sensível, insistentemente negando aos seus sujeitos o direito de
voz, de participação e de escolha político-existencial.
71
São Paulo se organizaram em grupo-sujeito. Em questão estava “uma recusa
de se dobrar às exigências dos grupos assujeitados e um acesso possível ao
desejo” (Guattari, 1974, p. 45). Desejo assumido como a força vital criadora
que se reapropria de todas as potências da vida buscando uma afirmação de
valores que não são negociáveis no mercado de apostas dos poderes dominantes.
O novo acesso possível ao desejo ocorreu com a produção de estratégias de
enfrentamento aos grupos assujeitados de políticos, de burocratas, de gestores
que apenas representam o Estado. Diante deles, o grupo-sujeito de estudantes
puseram em evidência que não é inútil se rebelar, pois
Ao contrário, a partir do momento em que se consegue afetar, explodir,
o caráter de totalização de uma instituição (de Estado ou de um partido),
no lugar de se voltar para ela como estrutura, a instituição pode ganhar
uma consistência subjetiva e instaurar todos os tipos de modificações e de
questionamentos. (Guattari, 1974, p. 47).
72
grupos-sujeitos que a cristalização daquelas estruturas de poder é resvalada e
convocada a se mobilizar, no mínimo, como resposta às demandas produzidas
em favor da dessujeição do desejo de seus sujeitos e da afirmação de suas
produções de acontecimento com novas marcas de desvios na história que
se recusa a ser a vala comum de todo serialismo e obediência assujeitantes.
Os estudantes paulistas parecem ter respondido à questão lançada por
Foucault (1994, p. 793) em 1979, face à revolução fundamentalista no Irã:
é inútil revoltar-se? Cabe sempre insurgir-se contra os poderes instituídos
que oprimem. Isso faz parte, ressaltou o filósofo, da própria constituição das
subjetividades.
73
ordem vigente reacionária, heterocentrista e perversa, invertendo os valores
atinentes à liberdade e à afirmação de singularidades. Perversa, enfim, porque
também passou a atuar na captura das pulsões nômades com o intuito de
cercear os grupos-sujeitos, estigmatizando modos de existências destoantes.
Entretanto, se recepcionarmos tal conjuntura sob o conceito foucaultiano
de governamentalidade, alcançamos certo conjunto de problematização.
As políticas públicas para a educação no Brasil contemporâneo podem ser
compreendidas como produtos de uma “governamentalidade democrática”,14
orientada para a construção de práticas políticas nas quais os cidadãos
participem efetivamente dos processos de construção de sua comunidade e
do país. O outro lado da participação política, do exercício da cidadania, é
o fato de se ser governado. Somos subjetivados como cidadãos para sermos
governados pelo Estado. Fora da cidadania não há governo, num Estado
democrático. A construção de uma “confiança cidadã” no Estado passa, pois,
por processos de constituição subjetiva nos quais a educação escolarizada
desempenha importante papel.
É neste quadro que pensamos que o movimento de ocupação de escolas
no Estado de São Paulo se configurou como uma ruptura da confiança política
no Estado, mas também como um choque de efeito prático na máquina
de subjetivação capitalística que tem operado uma governamentalidade
democrática que nos subjetiva como cidadãos. Ainda que o Estado produza
cidadãos governáveis, o desgoverno é sempre uma possibilidade aberta e
nômade; daí o exercício do poder, para impedir ações que fujam ao controle,
que se desloquem das estratégias da gestão de relações de poder sedentários.
Abalar, assim, a confiança resignada da governamentalidade sedentária é
ativar o sinal de alerta na ordem vigente, o que pode provocar um efeito bola
de neve nos sistemas de organização social sedentários.
No caso da reorganização das escolas, o governo do Estado de São Paulo
tratou os estudantes e a população de forma geral como grupo assujeitado.
Considerou que suas ações estavam corretas e atendiam aos interesses da
14 No quadro conceitual de Foucault, a expressão “governamentalidade democrática” poderia ser
considerada um pleonasmo, visto que a governamentalidade é a maquinaria de ação própria dos
Estados democráticos modernos. Em alguns textos Sílvio Gallo (2012, 2015) tem tratado do tema
e insistido em seu uso no contexto brasileiro, justamente para reforçar a ideia da reconstituição
de um Estado que coloca na democracia seu valor fundamental, após duas décadas de um regime
de exceção. Na atualidade, tal perspectiva mais do que nunca precisa ser considerada.
74
população, sem fazer qualquer consulta. Parcelas importantes dos estudantes,
porém, constituíram-se como grupos-sujeitos e tomaram, em primeiro lugar,
o direito à palavra, buscando negociar com a Secretaria de Educação. Frente à
não resposta às demandas de negociação e de diálogo, seja porque os estudantes
não foram reconhecidos como interlocutores legítimos, seja porque o Estado
não tinha qualquer intenção em abrir mão de seu projeto, a confiança dos
estudantes no governo foi rompida.
Na medida em que o Estado reduziu sua ação política à prática policial,
como administração do social (Rancière, 1995), os estudantes produziram
um acontecimento político (Rancière, 2007) introduzindo uma ruptura na
própria ordem da distribuição. E apenas para sublinhar, as linhas de ações
nômades tendem mesmo a afetar a equação política das estabilidades, não
somente territoriais, no sentido físico ou geográfico, mas também dos territórios
existenciais, isto é, nos modos de ser constituído das pessoas.
A questão central que despertou a desconfiança dos estudantes em relação
ao governo diz respeito aos motivos da reorganização do sistema de escolas
públicas. Mas também diz respeito à reorganização de suas localizações,
distribuições e funções no coeficiente nômade dos grupos-sujeito, ou seja,
concerne à multiplicidade de potências subjetivas dispostas a se transmutarem
em singularidades históricas. Enquanto o governo argumentava que a filosofia
subjacente à proposta apostava na existência de escolas com menor número de
estudantes e de administração otimizada, visto que atenderiam a estudantes
de faixas etárias definidas, os estudantes retrucavam que com o fechamento
de escolas a tendência seria a de se ter muito mais alunos por escola e maior
quantidade de estudantes por sala de aula, o que precarizariam os processos
de aprendizagem. Ademais, argumentavam os estudantes que o projeto do
governo seria privatista, visando diminuir os recursos investidos na escola
pública, abrindo mais espaços para a iniciativa privada.15 Os estudantes exigiriam
do governo uma atitude parresiástica (Foucault, 2009), de falar francamente,
de dizer a verdade; o não reconhecimento desta fala franca implicou uma
desconfiança que minou o sentido das relações políticas.
15 Depoimentos dos estudantes nestas direções podem ser vistos no documentário: “Acabou a
paz. Isto aqui vai virar o Chile” (direção de Carlos Pronzato. Brasil, 2016, 60 min).
75
Porém, o mais interessante a ser destacado no processo foi uma recuperação
do sentido público e comunitário da escola. À desconfiança política no
governo opôs-se a construção de uma confiança política na comunidade, uma
recuperação do sentido do espaço público e a convicção de que vale a pena
lutar por ele. Na articulação, outros sentidos do político foram construídos.
Ainda que não façam referência direta a eles, os estudantes que ocuparam as
escolas e produziram ali novas relações, estabelecendo novos elos de confiança
entre si e em relação ao espaço público, parecem recuperar reflexões e projetos
anarquistas do final do século dezenove e primeira metade do século vinte. Os
libertários, ao fazer a crítica à educação mediada pelo Estado, manifestaram
a desconfiança em um sistema de ensino criado e gerido por esta instituição
política, uma vez que trataria de educar os trabalhadores e seus filhos segundo
seus interesses políticos e econômicos, não segundo os interesses dos próprios
trabalhadores. A via escolhida pelos anarquistas foi a da construção de suas
próprias escolas, segundo seus próprios princípios, criadas, financiadas e geridas
por eles mesmos, dando azo à própria perspectiva de grupo-sujeito. Apenas
assim se poderia garantir a confiança no sistema educativo e na formação
por ele implementada. Da mesma forma, são a autogestão das escolas e dos
processos educativos a garantia da formação de uma confiança comunitária, isto
é, uma confiança nas relações interpessoais, entre os membros da comunidade,
bem como uma confiança de cada um no coletivo que é a comunidade. Nesta
perspectiva, é uma política da verdade, do falar franco, que funda a possibilidade
da confiança e sua manutenção, fortalecendo os laços e relações comunitários.
No Brasil, o público costuma ser pensado como sendo o estatal, isto é,
uma propriedade e um domínio do Estado. A população sente-se afastada do
público, que não reconhece como seu. Isto se passa também em relação aos
sistemas públicos de ensino. Um responsável pela educação de uma criança
sente-se à vontade e no direito de cobrar qualidade de uma escola privada,
à qual ele paga para educar seu filho; mas não se sente no mesmo direito de
cobrar qualidade do sistema público de ensino, em relação ao qual não tem
qualquer compromisso. O resultado é que o Estado administra os sistemas
públicos de ensino como bem entende, sem participação da população, ou com
uma participação mínima. De modo que a ruptura de confiança no Estado na
gestão das escolas não necessariamente implicaria numa assunção do espaço
público da escola pela comunidade, pelos estudantes.
76
Daí a surpresa que despertou o movimento de ocupação das escolas.
Incomodados, sentindo-se traídos pelo Estado com a notícia do fechamento
das escolas, os estudantes recuperaram seu sentimento de pertença a uma
comunidade e a um espaço público. Recusaram-se a aceitar passivamente uma
mudança de escola e o desconhecimento em relação ao futuro daquele espaço
público habitado por eles. Na ausência de diálogo por parte do governo, sua
resposta foi a ocupação do espaço público. Eram comuns cartazes nas escolas
ocupadas com afirmações como: “Ocupamos o que é nosso”.
Tal atitude refletiu-se nas ações realizadas nas escolas durante um mês de
ocupação: para não permitir a reintegração de posse pelo Estado, os estudantes
passaram a viver nas escolas, o que implicou a necessidade de organizar espaços
para dormir, para tomar banho, para comer. Implicou em cozinhar e em fazer
refeições coletivas. Vivendo intensamente o espaço público como seu espaço, os
estudantes puseram-se a consertar portas quebradas, consertar chuveiros que
não funcionavam, pintar paredes, trocar vidros.16 Enquanto o governo do Estado
de São Paulo acusava na mídia os estudantes de estarem depredando prédios
públicos, os estudantes estavam, efetivamente, trabalhando no melhoramento
da estrutura física de suas escolas. Esta atuação dos estudantes despertou a
solidariedade das respectivas famílias, de professores, da comunidade local,
de comerciantes estabelecidos nas proximidades das escolas. Os estudantes
receberam doações de alimentos, de produtos de limpeza e de manutenção,
por exemplo. Também receberam nas escolas voluntários que ajudaram
com a limpeza, com a cozinha e com outras atividades. Atrás desta caravana
nômade seguiam os que desejavam novos fluxos pulsionais e novos territórios
existências.
Mas os estudantes também realizaram atividades didático-pedagógicas:
convidaram pessoas para fazer palestras e para dar aulas públicas, organizaram
debates sobre temas atuais de seus interesses. Receberam estudantes
universitários e professores que se dispuseram a dar aulas e palestras, outra
forma de solidariedade manifestada. Tais atividades aconteceram algumas
vezes na rua, em frente à escola, reunindo não apenas os estudantes daquela
escola, mas também de outras escolas e demais pessoas das comunidades
16 É importante salientar que a manutenção dos prédios escolares pelo governo não é feita de
modo regular, especialmente nas regiões periféricas das cidades. Se há escolas em bom estado de
conservação, há outras em situação muito precária.
77
interessadas. Em seus relatos, a constatação de que aprenderam em um mês
mais do que durante muito tempo é frequente. Manifestam um aprendizado
político, um despertar do interesse pelo espaço público e o desenvolvimento
de sentimento comunitário de confiança no coletivo muito forte.
Produziu-se uma outra subjetivação como cidadãos, não como pertencentes
a um Estado como ente abstrato, mas como pertencentes a uma comunidade
e a um espaço público com a qual e no qual convivem em seu cotidiano, com
os quais se sentem comprometidos e responsáveis, nos quais confiam e através
dos quais aprendem a confiar em si mesmos e nos seus companheiros. O
desgoverno, a perda de controle por parte do Estado pela perda de confiança
neste, possibilitou a emergência de uma cidadania de fato, para além de
qualquer simples determinação legal. Efeito biopolítico interessante, este
que é mobilizador de resistências e constituidor de novos jogos políticos, de
novas relações de confiança e novos modos de se nomadizar.
17 Em várias escolas a energia e a água foram cortadas para desmantelar a força política desses
grupos-sujeitos.
78
capazes de criar novos trajetos ao longo do tecido social, vitaliza todo ir
e vir incessante, sem fixação ou teleologia mapeada de ações, a máquina
sedentária apenas autoriza trajetos fechados entre os muros de suas regras, de
seus controles e de seus limites (CARVALHO, 2018). Ora, foi precisamente para
expandir os limites das possibilidades com a educação que a ocupação veio
à luz, fazendo do território escolar um território sem fim para a composição
de grupos-sujeitos.
Em suma, poderíamos dizer que a experiência dos estudantes das ocupações
na esfera dos grupos-sujeitos armou uma série de armadilhas de pegar grupos
assujeitados e o manejo assujeitante do próprio Estado. A questão passou a
ser a seguinte: é preciso conceber a vida e as relações sociais em nome de uma
outra política de subjetividade, em nome de uma outra confiança. Afinal de
contas, como não deixava de sublinhar Guattari (2011, p. 95), “tudo o que evoca
um desejo não assujeitado à rostidade dominante é estranho, ameaçador, para
uma ordem fundida sob a preservação dos limites, o status quo, o bloqueio de
tudo o que poderia se desenvolver fora das normas do sistema”.
79
CAPÍTULO 6
Nomadismo 2 – Confiar e dizer-verdadeiro:
comunidade política nômade e vínculos éticos na
relação pedagógica
80
que gostaríamos de explorar adiante, contudo, é a perspectiva da confiança
como conexão de vínculo ético entre os sujeitos que se mobilizam visando a
deflagrar uma comunidade política nômade.
Em tempos de descrédito da função social da política, refletir a respeito
da confiança mútua necessária no próprio coexistir político, sem o qual não se
vive nem se convive em sociedade, também nos inclina a pensar na urgência
de nos dispormos a fiar modos políticos em que a vida social se renove no
sentido da confiança ajuizada pelo fato de que estamos juntos neste mundo
– queiramos ou não.
18 Ver Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2ª ed., 10ª reimp.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 355.
19 Em tradução livre: “Melhor viver a dois do que sozinho, pois assim aproveita-se melhor o
trabalho. Caso um caia, ou outro o levanta; pobre do isolado que cai, sem ninguém que o levante!
Se deitamos a dois, aquecemo-nos; sozinho, como aquecer-se? Se uma pessoa isolada é derrubada,
a dois, resistem, e o fio triplo não rompe com facilidade”.
81
também para o estabelecimento de uma comunidade política. No preciso
diagnóstico de Lipovetsky (1989; 2016), tanto a era do vazio quanto a
contemporaneidade eivada pela obsessão da leveza, ou seja, por tudo o que é
passageiro, efêmero e destituído de terreno tradicional, do ponto de vista de
uma ligação com a cultura, tem acentuado o vazio de projetos coletivos de
vida e a descrença na política, como forma de se pensar os vínculos sociais.
Os indivíduos, assim, vêm-se deslocados e desamparados de uma comunidade
política outrora capaz de lhes oferecer pertença e finalidade social. O que
emerge, com efeito, é uma sociedade individualista, autocentrada nos interesses
individuais em detrimento da convivência social, coletiva, tecida com laços
de convivência minimamente sustentável. Sob tal cenário, pensar a confiança,
portanto, é investigar as suas implicações com os universos da ética e da
política, constituindo-se em importante problema a ser considerado no campo
da filosofia da educação.
Qual é o papel que desempenha a confiança nas relações pedagógicas?
Seria o de aprender a confiar em si mesmo, no processo de constituição de si?
Ou seria o de confiar nos outros, no mestre ou no professor, com o intuito de
aprender bem os conteúdos? Ou ainda, poderíamos pensar nas duas coisas
ao mesmo tempo: confiar em si e nos outros? E quais seriam as implicações
políticas para o campo da educação quando se passa a considerar o aprender
em um plano coletivo, ético, logo, sociopolítico, mas sem perder de vista o
comprometimento de uma política da subjetividade nômade?
A fim de problematizar estas questões, exploraremos a noção de parresia
que Michel Foucault recuperou de antigos textos gregos em seu trabalho
tardio. Se esta noção antiga diz respeito à fala franca, à coragem de dizer a
verdade e de se viver conforme as suas consequências, quais implicações ela
teria na produção de confiança nas relações pedagógicas? Em um segundo
instante, problematizaremos três consequências em torno da parresia. Em
primeiro lugar, trata-se de pensar o lugar do franco falar como possibilidade
experimental de se construir novas estratégias de relações sociais, a fim de
se sair do que Guattari (2011) denominava de império do significado. Em
segundo lugar, trata-se de pensar o lugar da militância no campo da educação
como forma de produção de laços de confiança, visando a constituição de
uma comunidade política tecida por vínculos éticos. Finalmente, o capítulo
82
avança na hipótese de que a parresia pode se tornar uma estratégia contra os
processos de produção de subjetividade sedentárias, fiadas nos consensos da
sociedade de controle, uma vez que a coragem da verdade é forçosamente da
ordem do acontecimento, do imprevisto, do incontrolável, do rompimento,
portanto, do âmbito do deslizamento nômade, a fim de fortalecer a verdade
ignorada, maldita, passada ao largo da teatralização social.
Maurizio Lazzarato (2014a, p. 200) destaca um importante vínculo que é
gerado na relação entre aquele que diz a verdade e aquele que a escuta:
Entre a pessoa que fala e o que ela diz, entre aquele que diz a verdade e aquele
que acolhe a fala, é estabelecido um vínculo afetivo e subjetivo, a “crença”,
que, como nos lembra William James, é uma “disposição a agir”. A relação
a si, a relação com os outros e a crença que os vincula não está contida nem
na igualdade nem no direito.
83
Percebemos que a noção está ligada a uma problemática muito cara aos
epicuristas, a amizade. No contexto, trata-se de ser franco falar um com o
outro, condição incontornável da amizade. Poderíamos pensar de maneira
similar as relações pedagógicas contemporâneas? Pensamos que não, ao menos
de modo direto. As relações entre mestre e estudante, entre professor e aluno
não são forçosamente relações de amizade. Contudo, mesmo fora da amizade,
seria a relação pedagógica uma relação “parresiástica”? Em qual medida? E
de que modo? Seriam os professores impelidos a uma “veridicção” com os
alunos e os estudantes? Por quê?
Avançando no mesmo curso, Foucault trabalha um pouco mais a noção de
parresia, mas no contexto dos estoicos. Trata-se de um tipo de comportamento
verbal nas relações estoicas, sobretudo no quadro daquelas relacionadas à
direção da consciência. O discípulo deve dizer a verdade ao mestre para que
ele possa se ocupar de si mesmo, para que ele possa tomar cuidado de si. Este
tipo de perspectiva, evidenciou Foucault, ira se converter, no cristianismo, na
técnica da confissão. Mas, de outra parte, o mestre também deve dizer a verdade
ao discípulo, para que o ato da direção da consciência seja possível e eficaz.
A parrésia, traduzida em geral por “franqueza”, é uma regra de jogo, um
princípio de comportamento verbal que devemos ter para com o outro na
prática da direção da consciência (FOUCAULT, 2004b, p. 202)
84
199) faz avançar a questão, tratando diretamente da performatividade política
em oposição à parresia:
Para Foucault, a parrêsia, para tomar emprestada uma fórmula de Guattari,
“sai da língua”, mas da pragmática, tal como a filosofia analítica a define.
Não há racionalidade ou lógica discursiva, porque a enunciação não está
indexada às regras da língua ou da pragmática, mas ao risco de uma tomada
de posição, a autoafirmação “existencial” e política. Não há uma lógica da
língua; há uma estética da enunciação, no sentido de que a enunciação não
verifica o que já existe (igualdade), mas se abre a algo novo, que surge pela
primeira vez através do próprio ato de falar.
A parrêsia é uma forma de enunciação muito diferente do que a pragmática
do discurso de performativos colocou [...]
A irrupção da parrêsia cria uma fratura, um intervalo numa dada situação
e “torna possível um certo número de efeitos” que não são conhecidos com
antecedência. Os efeitos da enunciação não são apenas sempre singulares,
mas afetam e engajam, antes de tudo, o sujeito enunciador.
85
a sua vida em perigo. É por isso que Foucault fala em “coragem da verdade”:
devemos ser corajosos para dizer a verdade, uma vez que a nossa posição
não é confortável.
Na aula de 1° de fevereiro de 1984 (2014, p. 24) argumentou que “[t]odo
mundo sabe, e eu em primeiro lugar, que ninguém precisa ser corajoso para
ensinar”. Devemos interrogar então: haveria lugar para a parresia na dimensão
do ensinar? Ou, ao contrário, não seria a parresia do estudante/aluno o que
conta nas relações educativas? Se pensarmos, por exemplo, no filme Entre os
muros da escola20, ou ainda nos episódios de indisciplina dos estudantes em
escolas no Brasil, não se trataria de experiência com a parresia, de resistir a
um sistema hierárquico e controlador? Neste caso, teria Foucault razão ao
afirmar que não se precisa de coragem para ensinar? Como, então, pensar a
confiança em tal situação21?
O que nos interessa mais diretamente são as análises feitas por Foucault no
curso de 1983, pois tais análises nos remetem à questão de pensar e de intervir
no presente. A primeira lição do curso foi consagrada ao estudo do texto de
Kant: O que são as Luzes?. Ali, Foucault problematiza a análise do presente
ao redor das noções de minoridade/maioridade e emancipação. Isto dá o tom
do trabalho exploratório do filósofo quando busca nos textos gregos antigos
a problemática da parresia: através dela interrogar nosso presente, produzir
ferramentas conceituais que nos permitam pensar o que fazemos conosco
e que mecanismos de luta contra o que somos (enquanto subjetivados por
técnicas de sujeição) podemos construir. Uma vez mais, trata-se de questão
incontornável para o contexto educativo.
Segundo Foucault, a parresia introduz algo novo, uma diferenciação ética
e, como destaca Lazzarato (2014a, p. 196-197), “é nesse sentido que Foucault fala
de uma diferenciação ética, de um processo de singularização, desencadeado
e aberto pela enunciação parresiástica”. E tal diferenciação implica também
uma novidade política, posto que esta já não pode ser pensada estritamente
no campo da constituição e da lei, mas passa a implicar também os processos
de constituição subjetiva. Sobre isso nos debruçaremos a seguir.
20 Entre os muros da escola (Entre les murs). Direção de Laurent Cantet (França, 2008, 128min.).
21 Não ignoramos o trabalho de Foucault ao redor da “vida cínica”, desenvolvida também no
curso de 1984. Mas nesta oportunidade não abordaremos tais elementos.
86
6.2. Confiar para manifestar outra verdade: comunidade política e
vínculo ético na relação pedagógica
Embora de modo muito rápido, Lazzarato (2014a) foi preciso ao apontar a
sensível ligação das análises de Foucault acerca da parresia com o pensamento
de Nietzsche. Não que o filósofo alemão tenha elaborado alguma investigação
histórica acerca do franco falar. Mas, minimamente, desde Nietzsche o
valor atribuído às verdades passou a sofrer um tríplice questionamento:
questionamento acerca da origem das verdades; questionamento dos valores
das manifestações das verdades; e, não menos importante, o questionamento
acerca de como as verdades se reduplicam nos esquemas de sua socialização.
Ora, quando Nietzsche nos deu condições filosóficas para testar o valor
das verdades fixadas no destino de nossas crenças acerca de nós mesmos, ao
mesmo tempo deslocou o jogo dramático das tradições, das práticas sociais
e dos princípios morais com os quais estávamos engajados. Podemos dizer,
neste sentido, que a transvaloração dos valores é a marca incontornável de
uma sucessão de operações de demolição das evidências depositadas no fundo
de nossas verdades e de nossas crenças. Transvalorar é uma operação de
destruição das verdades que teatralizaram a origem conveniente do que se
faz crer. Mostrar que na face turva do que se acredita há uma falsificação de
certos valores é fazer da verdade não aquilo pelo qual se acredita, mas aquilo
para o qual não se morre: “O indivíduo apenas acomoda-se a regra de que,
enquanto ser racional, precisa ter razões para ser a favor ou contra, razões
apresentáveis e aceitáveis” (Nietzsche, 2004, p. 35).
Uma vez que a parresia é uma experiência contra a acomodação à regra,
não nos demoramos a enxergar que não se trata, com ela, de forjar algum tipo
de invocação linguística, ato bajulador ou refinamento de jogo oratório, capaz
de dar razões para que os sujeitos implicados na verdade possam ser “a favor ou
contra”, aceitar ou não aceitar o que se apresenta. Associada à transvaloração
dos valores, a parresia pretende forjar um jogo de confiança pela própria força
do rompimento da verdade. Sendo assim, o que podemos alcançar não é uma
transição de uma experiência original para o seu desdobramento lógico-formal
ou para o seu desenvolvimento histórico. A parresia, aqui, é sempre ponto de
emersão de algo que tensiona a tendência da “moral de rebanho” a socializar
as mesmas convenções e os mesmos índices humanos, demasiados humanos,
87
de formas de se relacionar. Assim, não se espera da verdade uma cumplicidade
de regras que podem ser sistematicamente repetidas, pois o que se repete é
a diferença da manifestação da parresia, bem como as suas consequências.
Com efeito, em cada ponto de manifestação da parresia, o seu sujeito ali
constituído também se conjuga com a extensão da transvaloração do valor da
própria verdade. Em primeiro lugar, porque se trata de uma manifestação ética,
pois o franco falar é uma atitude, um modo de ser, levando em consideração
a dimensão de rompimento subjetivo emergente nas regras das verdades,
em seu jogo ritual e em suas tendências normalizadoras. Em segundo lugar,
e por efeito, porque se trata de um ponto de subjetivação, isto é, inflexão na
trajetória de uma verdade. E por ser assim, “na transvaloração, a igualdade
se conjuga com a diferença, a igualdade política com a diferenciação ética”
(Lazzarato, 2014a, p. 35).
Não seria surpresa, contudo, se víssemos em tal conjuntura indícios de
contradição ou de impossível empenho na constituição de uma comunidade
de vínculos político-éticos em torno da confiança e da verdade. Se na parrésia
a verdade está urdindo o novo, o acontecimento, os pontos incessantes
de subjetivação, como conciliar constituição comunitária e rompimentos
sucessivos? Se cada um pode ser portador da verdade cortante, de um franco
falar que o tempo todo anuncia que o “rei está nu”, como a confiança pode ser
tecida mutuamente? E mais, se as experiências formativas supõem confiar
no desnível geracional necessário para preparar aqueles que estão “entrando
no mundo”, como destacou Arendt (2007), como conciliar transvaloração das
verdades com o estado necessário das verdades que precisam ser aprendidas?
Enfrentar tais questões demanda levar em consideração que a dificuldade
não se encontra do lado das respostas, mas das razões pelas quais somos
levados a formular tais questões. Sob a influência nietzschiana em Foucault,
ao considerarmos tais questões já pressupomos a manutenção de um tipo de
ordem social em que o dissenso, as diferenças de valoração, de abordagem, de
experiência com os valores existenciais e com a produção de distintos territórios
existenciais são barrados. Acomodados às regras de como concebemos a
manifestação da verdade, acabamos por nos interpor, por precipitação ou
por preconceito, às mesmas convenções relacionais da moral de rebanho em
que igualdade se reduz aos termos identitários da conveniência estabelecida
88
em torno das homonomias. Toda e qualquer heteronomia, assim, está dada
ao fracasso; toda e qualquer diferença, por extensão, será considerada uma
ameaça à estabilidade político-social.
Se é correto que em “cada conhecimento tropeçamos em palavras
eternizadas, duras como pedras, e é mais fácil quebrarmos uma perna do
que uma palavra” (Nietzsche, 2004, p. 43), não hesitamos em enxergar porque
a parresia é um martelo demolidor dos formalismos dos jogos de verdade.
Em torno de cada experiência do franco falar havia um tipo específico de
manifestação da verdade que confrontava, com precisão, as palavras eternizadas,
além, é claro, dos formalismos pelos quais ela se manifestava. Ao denominar
de aleturgia “o ato pelo qual a verdade se manifesta”, Foucault (2009c, p. 4)
sublinhava que o conteúdo da palavra cortante da parrésia era indissociável
da forma de sua manifestação. Assim, o que temos é a ligação entre forma e
conteúdo da manifestação da verdade.
89
falidas, funcionam como cimento social cuja confiança acaba por repetir os
mesmos padrões de manifestação de verdade. Do ponto de vista da relação
pedagógica, uma comunidade política que queira produzir para si mesma um
vínculo ético para engendrar outro nível de confiança, portanto, outras formas
de manifestar a verdade na formação de seus sujeitos, o lugar da diferença
assinalada pela parresia, deve ser levando em consideração.
Nesta direção, pensamos ser os termos de Lazzarato (2014a, p. 213) um
importante termômetro:
O que acontece quando se toma a palavra? Como esse ato de diferenciação
se volta, não somente sobre aquele que enuncia, mas também sobre aquele
que o escuta e o aceita? Ou seja, como se forma uma comunidade ligada pela
enunciação e o artifício, que não esteja encerrada em sua própria identificação,
mas aberta à diferenciação ética?
90
suma, indagamos: é o temor da desordem que vem ao caso, ou é a nossa
impotência em causar experimentalismos?
Se, de um lado, assumir a parresia é dar lugar à diferença como vínculo
ético em nossas relações, de outro lado, é forjar com ela a potência do que é
experimental. E é todo um fazer político comunitário que aqui está envolvido.
Aquele que é capaz de romper com os ciclos indiferentes da estrutura de poder,
por exemplo, fazer uma indagação aparentemente sem sentido numa sala de
aula, precisa confiar em si mesmo com a intensidade de quem aufere a sua
singularidade independentemente do jogo social estabelecido: se será motivo
de escárnio, de riso; se farão de sua indagação um jogo desqualificador; se
será tomado por importuno; etc. O importante, nesta situação, é o fato de que
quem confia em si mesmo poder suscitar nos outros um elemento intercessor
para que também experimentem a confiança em si.
Uma sala de aula pode muito bem ser um laboratório para tal nível de
experimentação. Sob tal aposta, a confiança pode circular livremente não
porque se estabeleceu uma regra para a sua emergência, mas simplesmente
porque os seus sujeitos se verão livres para manifestar a palavra livre, o ponto
de subjetivação fora dos jogos ordenadores e do reconhecimento dos valores
prefigurados nas verdades estabelecidas. O experimental aqui não é um ato
destinado a ser julgado em termos do consenso, do fracasso, do sucesso, do
acerto ou do erro advindos das hierarquias de valores do sedentarismo e do
gregarismo. O experimental, e isto é assustador, é um ato cujo resultado, tal
como na parrésia, não podemos controlar, conhecer, pressentir ou teologizar,
justamente porque se está comprometido com uma política subjetiva nômade.
Não é sem sentido que na filosofia de Nietzsche o termo “experimentador”
também tem o sentido de “tentador”. Se há um fundo nietzschiano na seara das
investigações foucaultianas em torno da parresia, ele se encontra justamente
no fato de que o franco falar não apenas cria algo novo como também é
um tentador, um provocador, nas convenções arregimentadas para manter a
ordem. São esclarecedores os comentários de Klossowksi (2000, p. 148-149):
O termo de “Versucher” que aparece, às vezes, nos textos de Nietzsche, tem
o duplo sentido de experimentador e de tentador. Todo criador é, ao mesmo
tempo, aquele que tenta o outro e que experimenta (tenta) em si mesmo e no
91
outro alguma coisa para criar aquilo que ainda não existe: um conjunto de
forças capaz de agir e de modificar aquilo que existe.
92
p. 198), pensamos que a escola pode se tornar em um lugar privilegiado para
potencializar a formação pelo dissenso. Os consensos operam pelo império
do significado, ou seja, colocando sobre o tabuleiro dos valores sociais o
que se espera de seus sujeitos. É desta maneira, por exemplo, que caímos na
armadilha do “respeito” à diferença do outro, sem darmos conta de quão vazia
pode ser tal postura, uma vez que ela não nos engaja a nada.
Se partirmos, contudo, de que cada sujeito em sua singularidade é um tipo
de experiência aletúrgica, pois somos impelidos a conceber que a divergência
entre cada um de nós, divergência precipuamente subjetiva, não pertence a
uma pessoa, mas é marca incontornável de nossa condição humana. Assim,
cada sujeito, em sua singularidade, pode se tornar a prova de uma ontologia
histórica de sua parresia acerca de si mesmo. Contando com tal perspectiva, é
possível nos contrapor à lógica habitual, ou melhor, às regras de acomodação
social em que se presume, desde a escola, o suposto ignorante que não sabe
falar, que não sabe o que fala, que não sabe se comunicar ou contribuir na
dimensão política da sociedade. A escola, assim, precisa aprender a não repetir
as situações escolares que operam esta mesma lógica. Lógica em que “se
necessita aprender antes de ser autorizado a pensar, mas sempre dependendo
daqueles que sabem ‘ainda mais’” (Stengers, 2015, p. 131-132).
Sob tal horizonte, produzir a confiança entre os sujeitos implica permitir
a afirmação de suas singularidades tais como são. A confiança não deve ser um
dispositivo de poder que faça com que, entre os sujeitos, as ações aceitas sejam
aquelas instauradas pelas provas e pelas armadilhas do consenso previsível.
A confiança emerge do dissenso como elemento incontornável da própria
diferença imanente à singularidade de cada sujeito. Assim, o âmbito coletivo,
o conjunto de seus sujeitos, nos termos de Stengers (2015, p. 137), “não deve
pressupor uma igualdade postulada, mas traduzir operações de produção de
igualdade entre participantes”, claro está, pela igualdade da própria diferença.
Com efeito, conceberíamos, assim, que a própria composição das
relações humanas na esfera de qualquer comunidade educativa passa a ser
coextensiva à concepção nômade de vínculos. Em outros termos, afirmamos
que a singularidade de cada sujeito é um experimentalismo nômade. As
singularidades que se somam como composição coletiva, portanto, não
podem anular a potência particular de cada nomadismo subjetivo. O desafio
93
dos vínculos éticos, portanto, encontra-se na confiança mútua de como é
possível criar sentidos e formas de dizer-verdadeiro. Assim, ao longo das
ações produzidas e praticadas, por exemplo, em uma escola, que não sejam
reivindicadas as estratégias sedentárias que paralisam as potencialidades
do experimentar e do conviver com a confiança e com o dizer-verdadeiro
igualmente nômades.
Supomos, em uma segunda frente, ser a experiência da militância a situação
laboratorial mais propícia para se sair do império do significado. A militância,
nesta direção, é uma situação questionadora em que uma causa comum investe
os seus sujeitos de uma dunasteía, colocando-os em pé de igualdade. O que
importa, nesta situação, é a supressão de qualquer objetificação de seus sujeitos,
uma vez que o vínculo que os mobiliza é o de uma causa manifesta, isto é, de
uma aleturgia pela qual e com a qual todos se fazem sujeito.
Talvez o que nos falta seja uma sensibilidade para poder enxergar no
cotidiano escolar a múltipla dimensão militante que mobiliza o alunado.
Entretanto, quando o corpo diretor da escola, os seus docentes e os seus
funcionários tomam distância da realidade que mobiliza os alunos, o que
temos é um bloqueio da potência experimental de vínculos éticos. Forja-se,
também assim, um corte nas possibilidades aletúrgicas de uma outra política
de convivência, como vimos no capítulo anterior.
Se o diagnóstico de Lazzarato (2014b), de Stengers (2015) e de Lipovetsky
(2016) estiver minimamente correto acerca do desmoronamento de nosso
mundo, expressão de uma crise acerca de nossos modos de vida, talvez seja o
momento de as relações pedagógicas experimentarem a formação de seus sujeitos
por um viés militante que extrapole a conjuntura tradicional dos conteúdos
escolares. Não podemos mais ignorar o limite ao qual chegamos em termos de
ameaça às condições ambientais de sobrevivência (Guattari, 2013); ignorar a
vertiginosa desigualdade e injustiça social, bem como a alienação maximizada
pelo solipsismo consumista e pelo endividamento existencial (Lazzarato, 2014b).
Também não podemos passar longe da degradação existencial a qual chegamos,
uma vez que a escassez do trabalho tem multiplicado a impossibilidade de
nossa sociedade se afirmar como via plausível de socialização entre pares,
com igualdade e fraternidade (Stengers, 2015).
94
Ora, é visível que o conjunto destas questões afeta a todos, independentemente
do lugar que o sujeito ocupa na escola. As relações pedagógicas, por conseguinte,
devem fazer girar a produção não de desnível entre os seus sujeitos, mas
aproximá-los pela urgência das ações aletúrgica que aí devem ocorrer. A
educação, com efeito, é convocada a militar pela divergência, pelo dissenso,
isto é, por aquilo pelo qual temos de lutar para garantir um lugar no mundo
coabitável e não conforme à relação da regra geral: lucros, ganhos, destruição
das condições ambientais, meritocracia, competição, conhecimento aplicado,
expropriação existencial etc.
Ao colocarmos lado a lado o experimentalismo de novos sentidos com
a mobilização dos seus sujeitos perante seus envolvimentos com o que se
engajam, suspeitamos ver emergir possíveis comunidades de praticantes cujo
foco de experiência torna-se a causa de poder manifestarem-se livremente, além
de poderem pensar, imaginar e objetar a partir das diferenças que assumem
para eles mesmos.
Suspeitamos que tal conjuntura, numa terceira e última frente, é um
importante mecanismo de luta contra a sociedade de controle. A manifestação
da parresia, por ser um acontecimento e uma dunasteía da experimentação,
interpõe-se aos componentes de autosservidão social. Os amplos códigos sociais
distribuídos nas prescrições de como viver, sentir, falar, experimentar o corpo,
habitar o mundo, relacionar-se com os outros são postos à prova enquanto o
lugar do dissenso ganha terreno e a manifestação de outras verdades atuam
contra o jogo teatral que distribui, contra a vontade de seus sujeitos, os seus
papéis e os seus lugares na sociedade.
Sabemos que o ambiente escolar é estritamente controlado. Temporalidade
e espacialidade são cada vez mais investidos por parcelas do controle da
atividade fim. Não haveria de ser diferente na sociedade de controle, que
necessita de sujeitos formados para a conformação conveniente, quer dizer,
sujeitos que deliberadamente se insiram nas regras dos controles de dados
virtuais, de geolocalização, de trânsito social referenciados por marcadores de
redes sociais, de filtragens grupais por afinidades excludentes e por cumplicidade
informativa consolidada em bolhas midiáticas etc.
Importante lembrar que a sociedade de controle nos situa, o tempo todo,
em atividades mecânicas de repetição de nossas apetências subjetivas. O que
95
Guattari (2011) denominou de “alisamento subjetivo” tem a ver com o fato de
que a dimensão singular de cada sujeito passa a ser controlada em etapas de
inserção social cada vez mais regradas e codificadas por índices virtuais capazes
de estipular comportamentos, atitudes e ações almejadas. Ora, permitir que
as relações pedagógicas saiam do controle equivale a extrapolar as finalidades
estabelecidas na formação de seus sujeitos e alcançar, em nome da criatividade
e da experimentação, a não prescrição dos vínculos políticos e éticos possíveis
de serem engendrados entre nós: educadores e educandos.
Poderíamos, no limite, pensar o cenário acima como um convite para nos
dispor a certos “engajamentos produtores de ‘possíveis’” (Stengers, 2015, p. 88),
uma vez que o panorama em relação ao que somos convidados a nos situar
encontra-se no “repovoamento de um mundo hoje devastado pelo confisco
ou pela destruição das capacidades coletivas e sempre estabelecida de pensar,
imaginar e criar” (Stengers, 2015, p. 88). A produção de novas possibilidades
reside no dissenso que pode ser gerado por atos parresiásticos no contexto
escolar, na produção de outra confiança política, fazendo de nós partícipes e
cúmplices de uma comunidade nômade de vínculos éticos comprometidos
com a produção de novos possíveis.
96
CAPÍTULO 7
Defender a escola do dispositivo pedagógico: o lugar
do experimentum scholae nômade como outro
equipamento coletivo
Questões iniciais
É preciso defender a escola. De quê? De quem? Neste capítulo, partiremos
da noção de “dispositivo pedagógico”, elaborada pelo filósofo René Schérer, para
fazer da escola o principal combatente contra a forma que ela mesma assumiu
institucionalmente na modernidade, catalisada por este dispositivo sedentário.
Em obra de 1974, Schérer afirmava que não basta a crítica à escola, não bastam
os projetos de “desescolarizar a sociedade”, conforme Illich propunha em 1982,
uma vez que aquilo que funciona em nosso tempo é uma intrincada “ideologia
pedagógica”. Ela sim é que deve ser combatida. Após os trabalhos de Foucault
que introduziram o conceito de dispositivo, Schérer passou a tratar a questão
em termos de um “dispositivo pedagógico” que coloniza nossa sociedade
segundo a forma de uma pedagogização integral, na direção daquilo que
Rancière (2002) denominou uma “sociedade pedagogizada”.
O combate, então, direciona-se contra este dispositivo que pedagogiza,
impedindo os processos de autoformação. Após elucidar o conceito de
dispositivo pedagógico, buscaremos na noção guattariana de “equipamentos
coletivos” possibilidades de repensar a escola como máquina de guerra em
ação contra o dispositivo pedagógico. Ainda que a própria escola enredada
97
pelo dispositivo pedagógico seja um equipamento coletivo, o equipamento
coletivo pode ser pensado de outra maneira, visando a defender a escola do
dispositivo pedagógico e de suas estratégias sedentárias. Ao cabo, trata-se
de defender a escola como experiência de um outro equipamento coletivo,
como um experimentum scholae, sob a consistência do nomadismo como
máquina de guerra.
Hilsdorf (2006) apresenta como uma espécie de “certidão de nascimento”
da escola moderna o aparecimento dos “colégios de humanidades” no século
XVI, herdeiros da tradição dos mestres humanistas dos séculos XIV e XV.
Tais instituições foram as primeiras a romper com as perspectivas teocêntricas
medievais e com o currículo praticado nas universidades, baseado no trivium e
no quadrivium, inaugurando um ensino orientado pelo movimento humanista e
centrado no estudo das letras clássicas, com grande ênfase no latim. Começaram
aí a organização das etapas do ensino e o agrupamento de alunos que estudavam
os mesmos conteúdos. A autora chega a traçar uma linha genealógica que
liga os colégios de humanidades às instituições escolares dos calvinistas e dos
jesuítas (2006, p. 72).
Não é nosso objetivo aqui fazer a genealogia da escola moderna, mas apenas
assinalar que a instituição escolar vai sendo constituída pouco a pouco, com
o encontro de diferentes fluxos e experiências, de distintas proveniências, que
vão dando forma a esta maquinaria escolar que hoje conhecemos. A escola
que hoje habitamos não é certamente a mesma dos séculos anteriores, mas
ela foi sendo forjada nestes fluxos. Um deles, importante de ser destacado, foi
analisado em intensidade por Foucault (1991) em Vigiar e Punir, no empenho
em destacar os elementos constitutivos do poder disciplinar. A escola foi lugar
de experimentação e de consolidação da disciplina, apresentando efeitos
positivos e muito produtivos. Na perspectiva de Foucault, sabemos, a disciplina
é a base do capitalismo. Não foi pouco o que ela produziu, portanto. Mas
também produziu uma conformação subjetiva do ser humano moderno,
desempenhando a escola papel fundamental no processo.
A partir do século XIX, no reboque das revoluções burguesas na Europa
e na América, os sistemas públicos de ensino vão sendo constituídos,
consolidando uma forma-escola que perdura até este início de século XXI.
Transformações ocorreram, obviamente, mas, em boa medida, a instituição
98
escolar está consolidada e todos conhecemos bem seus rostos e seus efeitos,
suas produções materiais e suas produções subjetivas.
Masschelein e Simons (2013) afirmaram a necessidade de “defender a
escola” como uma questão pública. Mas defendê-la de quê? Das forças sociais e
políticas contemporâneas que corroem cada vez mais seu sentido originário, de
uma interrupção no tempo produtivo, que possibilita experiências formativas.
Fora do seio da família e ainda não totalmente inseridas no âmbito social
da produção, crianças e jovens podem experimentar o mundo e formarem-
se. Mas, quando os processos formativos são direcionados pelos interesses
estritos do Estado, como, por exemplo, uma formação como preparação para
o trabalho, conjugada com uma formação para a cidadania,23 para ficarmos
no caso brasileiro, que nos toca diretamente, perde-se o sentido da escola
como “tempo livre”, um tempo do qual o sujeito pode dispor conforme
seus interesses próprios, absolutamente necessário para sua constituição
subjetiva. Pior ainda quando a escola é contaminada por forças reacionárias
e conservadoras, transformando-a em uma gaiola agenciada por receituário
dogmático subjetivante e uma máquina de encantoar a potência do desejo.
O curioso, precisamos ressaltar, é que tudo isso se coloca num tempo
e num mundo em que a escola nunca foi tão central. Uma sociedade que
Rancière (2002) não hesitou em chamar de “sociedade pedagogizada”, visto
que nela parte-se do princípio de que alguém só aprende quando um outro
(o mestre) ensina, gerando uma hierarquização na aquisição e na relação com
os saberes que impossibilitam uma efetiva emancipação intelectual. Impõe-
se então a pergunta: numa sociedade pedagogizada, por que a escola precisa
ser defendida, posto que ela parece ser uma instituição central aos processos
de sedentarização? E, mais do que isso: se a escola precisa ser defendida,
defendida de quem e do quê?
Pensemos na seguinte hipótese, na companhia do filósofo René Schérer:
para além da escola, constitui-se na modernidade um “dispositivo pedagógico”
que primeiro “pedagogizou” a escola e depois estendeu seus tentáculos,
23 Interessante destacar que ainda em 1874, quando publicou Schopenhauer Educador, Nietzsche
fez a crítica de uma educação voltada a um fim específico, que ele chamou de “egoísmo”, destacando,
por exemplo, o “egoísmo dos negociantes”, que visam uma formação voltada para o comércio e o
“egoísmo do Estado, que visa uma educação para formar os quadros para o funcionalismo público.
Ver: Nietzsche, 2003, p. 185 e ss.
99
“pedagogizando” a teia social, ao menos, desde o século XVIII. A força de
tal dispositivo é tamanha, que não importa o que façamos com a escola, o
dispositivo segue atuando. Mesmo frente a uma “desescolarização” da sociedade,
seguindo a proposta de Illich (1982), o dispositivo pedagógico se entranharia
em outras instituições, mantendo a pedagogização operante. Nossa hipótese,
pois, é que a escola precisa ser defendida de um tal dispositivo; para isso,
pensaremos com Félix Guattari a escola como um outro equipamento coletivo,
na contramão do dispositivo pedagógico, para tentar alcançar o que Masschelein
e Simons (2013) pensam acerca do experimentum scholae.
100
Pedagogia e utopia, pois, como exercícios de poder que se materializam
no jogo social, produzindo uma determinada sociedade, segundo princípios
julgados estruturantes.
Tanto as pedagogias oficiais, institucionalizadas em escolas, como as
diferentes utopias pedagógicas, que planejam uma nova institucionalização em
uma nova escola, estão marcadas por uma perversão pedagógica: educamos para
conformar as crianças a um dado padrão social. Inventamos uma infância e
enquadramos a criança nesta categoria, de modo que ela precisa ser conduzida
(eis aí o papel da pedagogia) à vida adulta.
Em 1974 Schérer publicou aquela que seria, a nosso ver, uma das mais duras
críticas à educação moderna: Émile Perverti (numa tradução literal, o título em
português seria “Emílio Pervertido”). Não por acaso, Schérer toma por ícone
o personagem criado por Rousseau para retratar o processo educativo e de
formação subjetiva de uma criança, do nascimento à idade adulta. Se com seu
Emílio o filósofo genebrino lançou as bases de muito do que seria a educação
nos séculos seguintes, é sobre ele que Schérer se volta para fazer a crítica do
que se tornou essa educação no mundo contemporâneo. Em breves palavras –
visto que este não é o centro de nossas preocupações aqui – o filósofo francês
mostra que o “mundo natural” no qual Rousseau educa Emílio é, de fato, um
panorama artificial, criado pelo pedagogo para controlar o desenvolvimento da
criança. Não se trata, pois, de um desenvolvimento “em liberdade” e “de acordo
com a natureza”, mas de um experimento controlado, e muito bem controlado,
que conduz a uma formação desejada. Em uma imagem, poderíamos dizer
que Rousseau sedentariza a própria natureza, capturando-a. Segundo Schérer,
Rousseau antecipa a noção de panóptico proposta depois por Bentham e que
Foucault analisa em Vigiar e Punir, como tecnologia de controle visual, uma
vez que todo o processo educativo se dá “sob o olhar do mestre”, que controla
o percurso e mesmo os possíveis desvios.
Um elemento central na obra de Schérer é a afirmação de que a perversão
pedagógica da infância diz respeito a uma negação da sexualidade infantil,
ou sob os auspícios da psicanálise, seu reconhecimento e confinamento no
familialismo através da afirmação do complexo de Édipo. A perversão, pois,
não é educar sexualmente a criança, é simplesmente fingir que a criança é um
ser assexuado, que não é um ser de desejo.
101
Postas estas questões de fundo do pensamento do autor, que não
desenvolveremos aqui, chegamos àquele que é nosso ponto de interesse: na obra
de 1974, Schérer afirma a existência de uma “ideologia pedagógica”, que está para
além da escola e dos sistemas educativos. Seria tal “ideologia pedagógica” que
maquinaria os processos educativos modernos e contemporâneos, conformando
a instituição escolar segundo seus princípios. De forma que não adianta criticar
a escola ou mesmo revoltar-se contra ela, reivindicando sua destruição, seu
desaparecimento: a “ideologia pedagógica” permaneceria em ação, talvez
ainda mais forte, ao diluir-se pela malha social.
Não é apenas a escola contemporânea, com seu imenso aparelho administrativo,
que está em jogo [...] A luta contra a escola-instituição é boa, mas é necessário
retornar, através dela, ao cerne do discurso inaugural no qual ela se justifica
que, não sendo estritamente escolar, é muito mais pedagógico. Através da
escola, é a ideologia pedagógica no seu conjunto que precisa ser visada, ainda
que os ridículos retardados da instituição façam com que talvez os pedagogos
se rebelem contra ela em nome de um ideal que ela apenas traiu. (SCHÉRER,
2006, p. 21-22).
A questão que Schérer faz descortinar aos nossos olhos, pois, é: quando
criticamos a educação moderna, nosso alvo não deve ser a escola. Esta
instituição é uma importante peça nesta maquinaria, mas não é a peça decisiva,
não é seu “coração”; não basta destruirmos a escola, a maquinaria seguiria
em funcionamento, pois a “ideologia pedagógica” reorganizaria os elementos
que a compõem para seguir funcionando normalmente.24 Mas uma ressalva
é importante. Ainda que utilize a expressão “ideologia pedagógica”, é de
uma materialidade que Schérer está tratando; nada mais equivocado do que
compreender essa ideologia no sentido “clássico” marxista, como falseamento
do real. O filósofo está falando de um real, de uma organização material dos
processos pedagógicos permeando as instituições e as relações. Uma concepção
24 Parece-nos importante ressaltar que essa perspectiva teórica de Schérer aproxima-se de modo
interessante daquela que Rancière apresentaria pouco mais de uma década depois em Le Maître
Ignorant, cuja publicação original é de 1987, ao fazer a crítica da sociedade pedagogizada. Ainda que
a perspectiva de Rancière diga respeito ao método de explicação – este é o foco de sua crítica – ele
ressalta que tal método fundamenta o processo de pedagogização de toda a sociedade moderna.
Chamamos a atenção do leitor para o fato de que a análise de Rancière não fala em “ideologia”,
ainda que ele tenha sido discípulo de Althusser. Sua análise destaca, ao contrário, a materialidade
da sociedade pedagogizada.
102
de mundo, em sentido amplo, mas que só faz sentido quando “se faz carne”,
só faz sentido porque é o mundo, não a sua representação.
Percebemos, assim, que a expressão “ideologia pedagógica” não faz jus
à complexidade pensada por Schérer. Quando, em 1976, Foucault publicou o
primeiro volume de sua História da Sexualidade – a vontade de saber, apresentou
o conceito de dispositivo de sexualidade, uma trama complexa de materialidades
e de relações que fazem da sexualidade um dispositivo de saber-poder. Para
melhor compreender essa noção de dispositivo, fiquemos com uma exposição
condensada feita pelo próprio Foucault:
O que eu tento descobrir sob esse nome é, primeiramente, um conjunto
decididamente heterogêneo, que comporta discursos, instituições, arranjos
arquitetônicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em
resumo: do dito, tanto quanto do não dito, eis os elementos do dispositivo. O
dispositivo propriamente é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.
103
A colocação em funcionamento de um observatório, o estabelecimento de
um terreno artificial de observação dos fatos e dos gestos da criança na sua
integralidade. É a descrição das relações, em Rousseau, entre Emílio e o
preceptor, que parece-me ser o esquema mais claro. Pois Emílio exemplifica
o dispositivo da “educação negativa”, que consiste em deixar a criança livre
para se desenvolver, mas nas condições de um meio previamente reservado
pelo pedagogo. Rousseau insiste: o perigo vem sempre de fora. Por isso
intitulei meu primeiro livro sobre a infância Emílio pervertido. (SCHÉRER;
LAGASNERIE, 2007, p. 149-150)
104
transforma a criança na viva expressão de um conceito inventado pelos adultos.
E, além disso, seria inútil defender, por exemplo, uma “desescolarização”26; o
dispositivo pedagógico está de tal modo espalhado pelo sistema social, que
a pedagogização integral não deixaria de atuar, entranhando-se em outras
instituições que não a escola, para continuar desempenhando seu papel de
infantilização.
No enfrentamento destas questões, recorreremos a Guattari, que nos
incita a pensar a escola como equipamento coletivo. Neste caso, aciona-se
um tipo de experiência que faz do equipamento coletivo uma extensão do
nomadismo. Veremos por quê. Mas para tanto, é preciso partir da concepção
de que a própria escola é um equipamento coletivo conformado ao dispositivo
pedagógico, gerando perversões na educação. Colocar tal dimensão em xeque
é, ao mesmo tempo, defender a escola do dispositivo pedagógico, a fim de
alcançarmos, a partir da própria escola, um outro tipo de experiência tanto
escolar como de formação.
105
a força pregnante de certas instituições, tais como a família nuclear que
é requisitada, essencialmente, em razão da escola, para vigiar a criança,
responsabilizando-se por seu sustento e sua assiduidade na aprendizagem.
(SCHÉRER, 2009, p. 29).
Não é para aprender que se vai à escola como causa primeira. Mas para
cumprir o ritual inicial, incessante litania de passagens, junto com as regras
familiares, visando a inserção de seus sujeitos na máquina de poder. Visibilidade
tão escandalosa que insiste a ser negada, afinal de contas, quem haveria de se
lançar contrário à escola e aos seus preciosos passes de inserção civilizatória?
Uma vez, porém, que o dispositivo pedagógico se faz um com a máquina de
poder, não é apenas o conjunto todo montado da escola, espécie de grande
máquina, que passa a ser questionada. Questionar a escola é forçosamente
colocar em questão o seu dispositivo pedagógico e, claro está, todo o seu
alcance social, com o intuito de defendê-la deste dispositivo.
Sendo assim, podemos argumentar que a escola é uma máquina de poder
que coloca em operação o dispositivo pedagógico. E é precisamente isto que
a escola, de modo mágico, insiste em “ocultar”. Com efeito, convém-nos
também olhar para as pequenas correias de transmissão de poder presentes no
dispositivo pedagógico, para os seus pequenos fios de conexões que o mantêm
no mesmo enérgico funcionamento, e para uma miríade de engrenagens a dar
sentido aos seus fluxos de formação perversos. Colocado deste modo, defender
a escola também seria defendê-la de um tipo de máquina de poder, ou seja, da
máquina produtora do dispositivo pedagógico perverso. Se tratamos, porém,
de defender a escola das operações desta máquina de poder, não podemos nos
furtar a pensar algum tipo de ação que se volte para o desmonte de tal máquina,
peça por peça, engrenagem por engrenagem. Assim, tentaríamos abrir novos
espaços de dentro de sua maquinaria para que a escola possa, por meio de outra
configuração, operar fluxos de relações distintos aos quais estamos habituados
nela a convi(ver). Tratar-se-iam de fluxos capazes de potencializar para os seus
sujeitos uma produção de experiências criativas, originais, destronadas dos
controles da hierarquia sórdida e, por vezes, sádica; fluxos de relações de um
poder anti-produtivo no que diz respeito às regras estanques da burocracia
curricular, conteudista e cínica, a ponto de ignorar o terreno fértil dos afetos
como lugar possível da aprendizagem, do conhecimento e do saber.
106
Uma dupla localização desta máquina de poder, contudo, deve ser
empreendida. Em um nível, o dispositivo pedagógico encontra-se conectado
aos fios das engrenagens de uma espécie de extensa conveniência de coerência
fundante, grosso modo disseminada na formação geral da escola moderna.
De outro lado, o dispositivo pedagógico, como máquina de poder, também
se especializa nas minúcias dos particularismos de cada escola, justamente
pelo fato de que a máquina de poder não existe e não pode funcionar sem um
equipamento coletivo. Analisemos melhor tais aspectos.
No primeiro caso, isto é, atinente à grande extensão da máquina de poder
da escola, sabemos que o século XVIII configura o período histórico das grandes
fundamentações teóricas e dos arranjos empíricos ao redor da escolarização
da infância (ENGUITA, 1989; GÉLIS, 2009; SCHÉRER, 2009). Menos ainda
que a disseminação do confisco da infância marginal por intermédio dos
orfanatos, das workhouses e das oficinas preparatórias de uma educação que
se tornasse um “meio de adquirir ou instilar o hábito da laboriosidade”, como
sustentava William Powell em 1772, conforme analisa Enguita (1989, p.114), o
século XVIII foi lugar da emersão da engrenagem vital do funcionamento da
máquina escolar moderna, pelo fato de que o Estado passou a tomar o encargo
do sistema educativo. Em tal conjuntura e deste então, na interpretação de Gélis
(2009), dissolveu-se o espaço da afetividade parar ceder lugar à integração
social da criança, cujas aptidões deveriam ser consoantes à uma ordem pública
de interesses sob os quais o afeto não poderia mais ser um obstáculo para a
sua realização.
Remarcar tais aspectos, embora de amplo conhecimento no campo da
educação, é de todo modo importante porque, conforme expõe Schérer (2009),
o dispositivo pedagógico garantiu a sua universalização com o espírito do
século XVIII. Poderíamos até argumentar que a escola, como a conhecemos e
se articula para ser máquina de poder, ainda não se desconectou das grandes
representações idealizadas para ela a partir século XVIII. Para Schérer, Rousseau,
Kant e Bentham coadunam a força de reatualização do dispositivo pedagógico,
forjado para se vingar universalmente.
No caso de Rousseau, apesar de toda crítica que o filósofo iluminista fez
aos “estabelecimentos ridículos a que chamam colégio” (ROUSSEAU, 1992,
p. 14), foi a representação de homem natural, sempre destinado aos arranjos
107
artificiais de uma formação a ser controlada em todos os seus aspectos, como
vemos na proposta de Emílio, que passou a configurar uma das correias de
transmissão necessárias ao dispositivo pedagógico. A suposição de que “na
ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado
de homem” (ROUSSEAU, 1992, p. 15), fez do dispositivo pedagógico uma
arma de fazer encaixar idealização natural com concepção de homem. Dito
de outro modo, Rousseau precisou forjar uma concepção universal de homem
para maquinar formas e estratégias de modelagem da infância visando à
extração de um homem dotado de signos reprodutíveis ad infinitum. Quer
dizer que, a despeito de ser para Rousseau (1992) a educação menos preceitos
do que exercícios, na realidade, ele não abriu mão do preceito da existência
de uma ordem natural que deveria ser mantida em cativeiro no próprio
homem. A sua extração, contudo, não ocorreria senão por exercícios, isto é,
por experiências artificiais ao próprio homem, cujo Emílio não deixaria de ser
um manual prático a ser observado. É desta maneira que a infância passou a
ser capturada pelo dispositivo pedagógico. Este, por sua vez, foi reduplicado
em progressão geométrica, já que é desde a infância que o homem passou a
ser evocado: homem universal, essencializado ex pueris excessit, duplamente
vinculado ao dispositivo da pedagogia perversa, ou seja, na criança há de se
prever o homem a ser alcançado, e no homem a criança que ele jamais deverá
abandonar, voltando-se sempre à sua ordem natural adâmica. Com efeito, e
a partir de então, “a criança só é o objeto predileto do pedagogo por ser o
homem, finalmente, tornado visível. Mas essa compulsão ao ver é também o
que sustenta o projeto infinito de uma dominação estatal sobre toda a vida,
inclusive, intelectual” (SCHÉRER, 2009, p. 33).
Ora, foi em Kant e em Bentham, entretanto, que as regras da visibilidade
pedagógica alcançaram uma dupla especialização. Em uma via, com Kant,
a especialização da visibilidade de regras claras para a composição de uma
pedagogia especializada em fundamentos assentados em princípios racionais.
Com Bentham, a via da especialização tecnocrática dos espaços aplicados à
ordem escolar, para melhor fazer funcionar a sua máquina de poder.
A partir de 1776, com as conferências de Kant Sobre a pedagogia (2011),
temos um marcador histórico-filosófico interessante, responsável por conceber
a educação como a tríplice tarefa de cuidado da infância, de sua disciplina e
108
de sua instrução. Para tanto, foi necessário definir a pedagogia como a arte
da educação raciocinada. As dimensões moral, estética e racional deveriam
estar presentes na composição de tal campo pedagógico. Kant levava em
consideração o seu projeto idealista de sociedade perfeita, cujo esboço seria
assumido por indivíduos capazes de se adequarem à ordem privada da razão
do Estado, não ultrapassando os limites de suas funções e das margens do uso
de suas liberdades afinadas ao consenso mútuo cujo fiel da balança haveria
de ser o constante equilíbrio entre o uso privado e o uso público da razão.
Tal ambição, contudo, tornou-se universal, já que o objetivo ulterior da
educação passou a ser o de ensinar aos homens, desde a infância disciplinada
e instruída, a formarem por si mesmos os projetos de suas condutas. Por
isto mesmo, Kant não abria mão de seu preceito: “Quanto tempo deve durar
a educação? Até o momento em que a natureza determinou que o homem
governe a si mesmo” (2011, p. 32). Mas qual seria o indicativo desta natureza que
clama pela imposição do autodomínio do homem, no sentido de um projeto
civilizatório? Kant (2011, p. 32) responde: “[...] até que nele [no homem] se
desenvolva o instinto sexual; até que ele possa tornar-se pai e seja obrigado,
por sua vez, a educar”.
Kant inventou a abertura de um ciclo que se fecha em si mesmo. A
infância é manejada sob o efeito de uma pedagogia raciocinada porque deve
ser previsível, calculada, visando a eficiência qualificada sob as demandas
repetíveis do Estado, ou seja, conforme a sua burocracia. Podemos pensar que
Kant efetivamente institucionalizou o dispositivo pedagógico no âmbito da
demanda estatal. Em outros termos, a partir do estabelecimento de princípios
operativos básicos para conceituar a educação, Kant também forjou as linhas
de transmissão de tais princípios em nome de uma pedagogia raciocionada.
Eis o nascimento moderno da utopia pedagógica vaticinada em sua “ambição
desmesurada de subjugar o mundo diverso”, nos termos de Schérer (2009, p. 25).
Ora, mas nem o idealismo essencial rousseauniano e tampouco o idealismo
pedagógico racional kantiano circularam livremente no espaço histórico-social
do século XVIII. Com a publicação de O Panóptico, do filósofo utilitarista inglês
Bentham, em 1791, as demandas pela aplicação de princípios arquitetônicos
funcionais à economia do Estado passaram a ser tomados como dispositivo-
chave na composição de edifícios a favorecer condições de vigilância, de
109
circulação, de controle e de submissão de seus indivíduos, a fim de extrair
deles o máximo de produtividade e de eficiência. Poderíamos dizer que o
panóptico foi um marco na especialização do sedentarismo racional aplicado.
Estamos às vésperas das condições históricas da explosão da educação em
massa (CARVALHO, 2016; ENGUITA, 1989). Na utopia de Bentham, colocar
os indivíduos nos seus devidos lugares implica uma economia de ação sobre
eles. Vigiá-los sem saber que são vigiados; produzir neles e com eles um
comportamento previsível e automatizado; registrar tudo e manter a ordem dos
registros; fracionar tempo e espaço para racionalizar as ações e as expectativas
de comportamentos individuais; extrair o máximo de energia dos corpos
com o mínimo de dispêndio possível (BENTHAM, 2008; FOUCAULT, 1991).
Tais elementos efetivaram-se com força incontornável na máquina escolar,
melhor ainda, no dispositivo pedagógico. Da prisão à fábrica, do hospital à
escola, do quartel às organizações dos fluxos pulsantes das cidades, “a utopia
pedagógica é e permanece, no seu fundo, ‘panóptica’” (SCHÉRER, 2009 p.
34). O Panóptico de Bentham pode ser tomado como o ponto de partida da
inventividade moderna pela do desejo de tecnocracia presente no dispositivo
pedagógico, isto é, na máquina de poder da escola.
Todo este cenário nos auxilia a compreender a proveniência de um tríplice
fundamento filosófico do dispositivo pedagógico, cuja força se faz ver na escola
contemporânea e como, aos poucos, ela se fixou como aparelho coletivo de
formação perversa. Em primeiro lugar, implica dizer que toda uma série de
representações, ainda eivadas por certos essencialismos, tal como inaugurou
Rousseau, permanece no dispositivo escolar. Ainda se busca a essência da
educação, a idealização de uma “boa” formação, capaz de contemplar todos
os aspectos do indivíduo a ser formado. Este, por sua vez, é a representação
máxima de uma natureza congelada na reprodução de um corpo social
arredio às diferenças e às multiplicidades capazes de se afirmarem para além
da estatização da subjetividade.
Todavia, em segundo lugar, todo jogo de representação idealista do
dispositivo pedagógico se amplifica pelos processos de racionalização escolar.
Kant lançou os seus pressupostos básicos: é preciso ter controle das atividades
pedagógicas que visem a instrução de modelagem suficientemente capaz
de fazer o Estado funcionar bem. Não é qualquer conteúdo que pode ser
110
abordado nas intenções conjugadas entre escola e burocracia estatal, pois a
máquina de poder não pode estar à deriva: merece todo o tipo de controle, a
começar pelos princípios racionais que devem se tornar válidos para a educação
universalmente. Afinal de contas, não era inconsequente a utopia kantiana:
“um projeto educativo deve ser executado de modo cosmopolita” (KANT,
2011, p. 22), isto é, sob a égide de uma racionalização omnes et singulatim
voltada para o governo geral dos homens, a partir de suas individualidades.
Desde então, qualquer tipo de experiência possível com a educação fora das
estratégias de captura racionalizadas pelo Estado torna-se uma ameaça a ser
combatida pelas próprias regras do Estado.
Finalmente, a coincidência da máquina de poder com o dispositivo
pedagógico desvela-se na lógica do próprio ambiente escolar. Ambiente
de múltiplo controle tempo-espacial pensado por Bentham e reduplicado
nas inúmeras estratégias tecnocráticas da escola. A educação moderna,
com efeito, é uma arquitetura complexa de modelagem social no sentido de
saber direcionar os fluxos potentes de seus sujeitos à demanda conceitual
pressuposta em representações dadas e em racionalizações aplicadas. Mau
encontro da escola, historicamente, com os essencialismos, os racionalismos
e as tecnocracias organizadores de seu dispositivo escolar. Mau encontro
inexplicável, como argumentou Clastres (2014), porque a história da escola,
de frágil e de contingente contornos, bem que poderia ser outra. Mas a escola,
com tais características de sua máquina de poder não assumiu outra face
e, para além de bem e de mal, também foi “esse irracional acontecimento”
(CLASTRES, 2014, p. 149) atrelado à especialização do Estado como máquina
representacional, racionalizada e tecnocrática27.
Ora, enquanto a reduplicação do que poderíamos chamar de condições
universais da máquina de poder da escola ocidental se unificava com a própria
representação, racionalização e tecnocracia do Estado, consolidando “a” escola
como grande instituição de modelagem social, a propagação e a disseminação de
27 Eis o contexto da expressão de Clastres: “Mais que qualquer outro clarividente, ele [La Boétie]
afirma em primeiro lugar que foi sem necessidade essa passagem da liberdade à servidão, ele afirma
acidental – e que trabalho a partir de então para pensar o impensável mau encontro! – a divisão
da sociedade entre os que mandam e os que obedecem. O que é aqui designado é exatamente
esse momento histórico do nascimento da História, essa ruptura fatal que jamais deveria ter
se produzido, esse irracional acontecimento ao qual nós, modernos, chamamos, de maneira
semelhante, de nascimento do Estado”. (CLASTRES, 2014, p. 148-149).
111
seus propósitos passaram também a serem aferidos de maneira particularizada
em cada experiência de escola. Do todo ao particular, ou seja, da ideia da
escola, dos princípios universais de formação do homem, das condições de
um ambiente controlado, cada escola passou a atuar numa espécie de célula
responsável pela constituição do grande tecido escolar, duplamente lócus e
modus operandi do dispositivo pedagógico. A noção de equipamento coletivo,
extraída do pensamento de Guattari (2005, 2011, 2013), auxilia-nos nesta
compreensão.
112
coercitiva”, haveria de mencionar Schérer (2009, p. 25). E como ocorre em
toda coerção, é a divisão binária entre obedientes e desobedientes que passa
a remarcar os “equipamentos coletivos que esperam uma certa adaptação
normalizadora” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 336) de seus sujeitos, a fim
de desempenhar a sua função precípua: a territorialização da modelagem
social, como argumenta Guattari (2011, p. 58-59),
empreendendo a possessão dos indivíduos até nas suas intimidades, tendo
por missão expropriar o desejo de suas territorialidades ‘de origem’, digamos
de suas territorialidades ainda não assujeitadas pelos fluxos capitalísticos,
para fazer falar em seu lugar, fixar para o desejo novos alvos, colocá-lo para
trabalhar, adaptando-o às hierarquias e aos sistemas de trocas [...]. Por isto
mesmo, os equipamentos coletivos conduzem à alienação irreversível da
economia do desejo.
113
escola, a fim de assegurar a autorrealização de sua passagem perfeitamente
normal para a sociedade interposta à criança.
Se a impregnação aos modelos imaginários, perceptivos, sociais, culturais,
etc... não é bem sucedido em fases precoces, ter-se-á enorme dificuldade
para modelar os indivíduos às tarefas que lhes serão confiadas nos sistemas
altamente diferenciados da produção. Não se enviam as crianças, pelo menos
na França, para as manufaturas, na idade de 6 ou 8 anos, além do que se
tem a impressão de ter humanizado a escola e as relações familiares. Mas
simplesmente trocou-se a roupa da velha crueldade da iniciação que consiste
em extirpar da criança, o mais cedo possível, sua capacidade específica de
expressão e em adaptá-la, o mais cedo possível, aos valores, significações e
comportamentos dominantes (GUATTARI, 1985, p. 53).
114
caso da escola, produzir um nomadismo recorrente, contrário ao dispositivo
pedagógico e à sanha sedentária. Em suma, o equipamento coletivo poderia,
assim, alcançar o patamar de um novo experimentum scholae.
115
ser contestado historicamente, ou seja, por sujeitos ativos e concretos, capazes
de observar a escola e de nela agir de modo distinto e franco.
Em tal direção, julgamos potente a ideia de experimentum scholae
apresentada Masschelein e Simons (2013) em Em defesa da escola. Experimentar
a escola e fazer da escola um experimento são relações indissociáveis na
produção de um outro equipamento coletivo. A cultura do cotidiano escolar,
padecida pelos afetos de pseudo-eternidade, mina lentamente as ações que
poderiam mobilizar os seus sujeitos a pensarem de modo diferente, a quererem
se relacionar pelos fluxos de afetos sensíveis mais próximos às singularidades
e às multiplicidades humanas, a indagar o conhecimento fora do eixo das
verdades meramente aplicadas e lucrativas, e, não menos importante, a produzir
condições para que a vida pudesse se afirmar pela via do desejo ou de outros
quereres.
Neste caso, implicaria conceber, de fato, que “nenhuma sociedade pode
suportar uma posição de desejo verdadeiro sem que suas estruturas de
exploração, de sujeição e de hierarquia sejam comprometidas” (DELEUZE;
GUATTARI, 2010, p. 158). Assim, fazer da escola um campo histórico de
experimentum scholae consiste em considerá-la como um laboratório, lugar de
constante ensaio e experimentação, no qual processos de criação e de produção
de novos manejos com o saber, o conhecimento, as relações subjetivas e inter-
subjetivas de seus sujeitos encontrem sentido na explosão das estruturas de
exploração, de sujeição e de hierarquia tão presentes nos confiscos operados
pelos equipamentos coletivos.
A angústia deve fazer parte deste processo. Angústia como território
existencial, capaz de nos convocar a sentir a iminência de um devir para o
qual precisamos decidir, agir, produzir e nos mobilizar. Mas que também
aponta para a abertura possível das ações, para tudo que ainda está por ser
feito e realizado, precisamente porque nada está completo e acabado. Sob tal
ponto de vista, a função do equipamento coletivo pode ser outra, distinta das
finalidades de modelização social e dos sequestros dos afetos e dos desejos.
Para tanto, o equipamento coletivo tem de passar a coincidir com a intensidade
de tudo que ousa se firmar como experimentum scholae.
Como vimos no capítulo cinco, a livre mobilização dos estudantes diante
dos determinismos político-sedentário do Estado é expressão possível e
116
realizável de outro equipamento coletivo. Ou como aponta Carvalho (2014,
p. 145), a própria função-educador pode catalisar novas formas de equipamento
coletivo quando a experiência de quem educa se abre “como um operador
voltado para os processos de dessujeição na constitução de subjetividades
ativas”, ou quando “as formas e os modos pelos quais o educador se coloca
como sujeito, diante de outros sujeitos, afetando e sendo afetado, subjetivando
e sendo subjetivado, formando e sendo formado”, consideram os gradientes de
singularidade que estão em jogo na dimensão de ações e de atitudes contrárias
ao dispositivo escolar.
Ora, desde o século XVIII um acúmulo de suposições acerca da escola nos
conduziu a reproduzir as condições de manutenção de sua pseudo-eternidade.
Defender a escola, neste sentido, é defendê-la dela mesma, ou seja, da condição
vital que tem feito da escola o que não desejamos para a escola: o dispositivo
pedagógico perverso. Entre a sua composição como equipamento coletivo e a
possibilidade de fazer da escola um experimentum scholae reside um axioma
político que nada mais é do que a nossa opção pelos valores que desejamos
destinar às condições próprias para que a escola experimente a si mesma de
outra maneira, com outras condições, com outras relações subjetivas, com
conexões estranhas à maquinaria de poder de neutralização e de impotência
dos afetos e dos desejos28.
Se em larga escala o dispositivo pedagógico fez da escola uma máquina
de poder capaz de produzir todo tipo de perversão com relação a infância, aos
afetos, ao campo do desejo e da criação, defender a escola deste dispositivo
nos convida a todo um conjunto de criação que está por ser feita. A nossa
angústia, neste sentido, é o descompasso entre a nossa suposição na pseudo-
eternidade da escola – nas coisas como estão e são – e a potência de nosso
desejo em querer romper com esta pseudo-eternidade, cientes de que não existe
nem receita, nem fórmulas e nem seguranças, apenas, porém, experimentum
scholae. Para tanto, interessa não perder de vista que o jogo vital é: “produzir
algo que não exista, produzir uma singularidade própria na existência das
coisas, dos pensamentos e das sensibilidades” (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
117
p. 213). Não para replicar máquinas de poder, não para decalcar sobre a escola
uma essência da escola, uma razão escolar ou uma configuração espaço-
temporal idêntica para a escola. O manejo do devir-outra-escola não deve
perder de vista a regra concreta da própria singularidade escolar: “não existe
duas instituições semelhantes e que a mesma instituição não cessa de evoluir
ao longo do tempo” (GUATTARI, 2012, p. 84).
No lugar de um dispositivo pedagógico, um fazer pedagógico
experimentado na singularidade de cada escola. No lugar de um equipamento
coletivo modelador e reprodutor da hierarquia, da sujeição, do controle,
um equipamento coletivo de desejo. No lugar de uma escola congelada em
representações pseudo-eternas, um experimentum scholae.
118
CAPÍTULO 8
Biopolítica e governamentalidade educativa no Brasil:
a precarização da educação inclusiva
119
Fiscais da Educação no Brasil, emitido pelo Tesouro Nacional em 2018, oferece
farta prova de tal perspectiva.
Ao assumir o Governo Federal em janeiro de 2019, a administração,
imediatamente, suprimiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão – SECADI. No dia 9 de outubro do mesmo ano, o
Governo Federal vetou o projeto de lei nº. 3.688/2000 que dispunha sobre a
prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de
educação básica. Tal projeto definia:
Art. 1º. As redes públicas de educação básica contarão com serviços de
psicologia e de serviço social para atender às necessidades e prioridades
definidas pelas políticas de educação, por meio de multiprofissionais.
§ 1º. As equipes multiprofissionais deverão desenvolver ações para a melhoria
da qualidade do processo de ensino-aprendizagem, com a participação da
comunidade escolar, atuando na mediação das relações sociais e institucionais.
§ 2º. O trabalho da equipe multiprofissional deverá considerar o projeto
político-pedagógico das redes públicas de educação básica e dos seus
estabelecimentos de ensino. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000)
120
diferenças, devidamente incluídas na ordem de uma política democrática,
para depois se passar a uma precarização de tais estratégias.
121
Vivemos na era da “governamentalidade”, aquela que foi descoberta no século
XVIII. Governamentalização do Estado que é um fenômeno particularmente
tortuoso, pois, embora efetivamente os problemas da governamentalidade,
as técnicas de governo tenham se tornado de fato o único intuito político e o
único espaço real da luta e dos embates políticos, essa governamentalização do
Estado foi, apesar de tudo, o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver. E
é possível que, se o Estado existe tal como ele existe agora, seja precisamente
graças a essa governamentalidade que é ao mesmo tempo exterior e interior ao
Estado, já que são as táticas do governo que, a cada instante, permitem definir
o que deve ser do âmbito do Estado e o que não deve, o que é público e o que
é privado, o que é estatal e o que é não-estatal. Portanto, se quiserem, o Estado
em sua sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos
a partir das táticas gerais da governamentalidade. (FOUCAULT, 2008a, p. 145).
122
de uma pedagogia); pais e mães de família conduzem as condutas de seus
membros, de modo a garantir o bem-estar de todos (governo familiar, no
âmbito de uma economia), e assim por diante. São práticas dessa natureza
que levarão a um processo de se pensar e praticar o Estado como uma arte
de governar, como uma prática de condução da conduta de seus cidadãos.
É essa “continuidade ascendente” que produz o Estado governamentalizado,
ainda que possamos também identificar uma “continuidade descendente”,
que parte da vida política do Estado e chega à vida cotidiana dos indivíduos.
A governamentalidade caracteriza, pois, uma certa forma de ação do
Estado no exercício do poder sobre os indivíduos, consistindo, especialmente,
na construção de formas de conduzir, a partir de seu âmbito, as condutas
dos indivíduos, seja em sociedade, seja nas particularidades da vida de cada
um. O Estado, porém, não se dirige a cada um dos indivíduos, mas a seu
agrupamento numa população. Através do conjunto populacional, o Estado
chega a cada indivíduo, atingindo, segundo Foucault (2003), omnes et singulatim.
As estratégias de governo pelo Estado só puderam se desenhar a partir da
emergência de uma biopolítica, de um poder que se exerce massivamente
sobre a vida das populações, visando a controlar sua progressão. Como
exemplos, podemos citar os sistemas de controle de natalidade, os sistemas
de previdência social, as políticas públicas nos campos da saúde e da educação,
e mais recentemente, toda forma de controle e filtragem sociais em torno
do COVID-19, compreendendo imposição de circulação humana, regras de
higiene e de contato social, priorização na hospitalização, fechamentos de
escolas, e sucessivamente.
Segundo Foucault, o governo articula aquilo que Habermas denominou
“técnicas de dominação”29 com o que ele próprio denominou “técnicas de si”:
O ponto de contato, que produz a articulação entre a forma pela qual os
indivíduos são dirigidos por outrem e forma pela qual eles se dirigem a si
mesmos é aquilo que, penso, podemos denominar “governo”. Governar as
pessoas, no sentido largo da palavra, não é uma maneira de forçá-las a fazer
aquilo que quer aquele que governa; há sempre um equilíbrio instável, com
29 Em Conhecimento e Interesse Jurgen Habermas (1982) definiu três técnicas que, articuladas,
configuram a ação humana: técnicas de produção (os sistemas produtivos de trabalho); técnicas de
significação (as linguagens); e técnicas de dominação (o exercício do poder sobre outrem). Foucault
(2013) se apropria da noção de técnica, muito cara a ele, por implicar numa prática, e acrescenta
um quarto tipo, as técnicas de si, através das quais o sujeito age sobre si mesmo, transformando-se.
123
complementaridade e conflitos, entre as técnicas que asseguram a coerção
e os processos pelos quais o si é construído e modificado por si mesmo.
(FOUCAULT, 2013: p. 38-39)
30 Está para ser feita uma história da governamentalização do Estado no Brasil; não teríamos
condições de fazê-lo aqui, apenas esboçamos algumas ideias gerais para centrar nossa análise nas
últimas décadas do Estado republicano brasileiro.
31 O tema foi explorado por Gallo em diferentes artigos. Ver: GALLO, 2012; GALLO, 2015;
GALLO, 2017a; GALLO, 2017b.
124
Por que essa denominação? Ora, porque neste período histórico tivemos
um processo de redemocratização no país, sendo a afirmação da cidadania
e da participação política nas decisões a lógica dominante na forma pela
qual fomos governados. Após duas décadas de ditadura, estando o povo
alijado da efetiva participação, urgia fazer com que todos e cada um fossem
subjetivados como cidadãos, como sujeitos de direitos políticos e sociais,
partícipes nas tomadas de decisão sobre os rumos da sociedade brasileira.
Governamentalidade democrática: uma prática de governo dos cidadãos,
na qual eles são livres para tomar suas decisões e chamados a participar da
sociedade nas mais variadas esferas e instâncias.
A Constituição Federal de 1988, saudada por Ulysses Guimarães, Presidente
da Assembleia Nacional Constituinte como “a Constituição cidadã”, teve na
cidadania e na afirmação dos direitos dos cidadãos um de seus pilares centrais.
A afirmação da cidadania presidiria também a Lei nº 9394/96, Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional, que define em seu artigo segundo: “A educação,
dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais
de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho” (grifos nossos). São duas as finalidades da educação brasileira
desde aquela data: qualificar para o exercício profissional, de modo que o
educando possa se inserir no mundo do trabalho e preparar para o exercício da
cidadania, de modo que sua participação social e política estejam asseguradas.
Se acompanharmos a extensa produção de políticas públicas no campo da
educação brasileira desde então, veremos que nenhuma delas destoa da lógica
a afirmação da cidadania, da função de subjetivar os estudantes como cidadãos
sujeitos de direitos.32
Aqui nos detemos no âmbito de como uma educação das diferenças e
para as diferenças. Na lógica de uma educação democrática e republicana,
necessariamente para todos, o princípio da inclusão é fundamental. Aqueles
que eventualmente fiquem de fora, não fazendo parte do conjunto dos cidadãos,
não podem ser governados; fora da cidadania não há governo democrático
32 Nos artigos de Gallo citados anteriormente diferentes aspectos desta produção biopolítica são
tratados através do operador conceitual governamentalidade democrática.
125
possível. A perspectiva de uma educação inclusiva, portanto, é uma aliada
direta e necessária de uma educação democrática.
No âmbito de uma governamentalidade democrática que opera pelo
governo dos cidadãos, todos devem estar incluídos nesta categoria e ter acesso
à escola republicana, sem distinções de sexo, etnia, pessoas como dificuldades
motoras, com dificuldades de aprendizagem e assim por diante. No ano de
2013 foi publicado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação um documento norteador,
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica: Diversidade e
Inclusão. Este documento tem o mérito de sistematizar e sintetizar um conjunto
extensivo de políticas públicas inclusivas produzidas ao longo dos anos por
aquele órgão de governo.
Destacamos uma longa passagem da introdução destas Diretrizes, na qual
ficam evidentes os princípios da lógica da inclusão educativa no âmbito de
uma governamentalidade democrática:
Um dos desafios posto pela contemporaneidade às políticas educacionais
é o de garantir, contextualizadamente, o direito humano universal, social
inalienável à educação. O direito universal deve ser analisado isoladamente
em estreita relação com outros direitos, especialmente, dos direitos civis e
políticos e dos direitos de caráter subjetivo, sobre os quais a educação incide
decisivamente.
Nessa perspectiva, torna-se inadiável trazer para o debate os princípios e as
práticas de um processo de inclusão social, que garanta o acesso à educação
e considere a diversidade humana, social, cultural, econômica dos grupos
historicamente excluídos. Trata-se das questões de classe, gênero, raça, etnia,
geração, constituídas por categorias que se entrelaçam na vida social, mulheres,
afrodescendentes, indígenas, pessoas com deficiência, populações do campo,
de diferentes orientações sexuais, sujeitos albergados, em situação de rua, em
privação de liberdade, de todos que compõem a diversidade que é a sociedade
brasileira e que começam a ser contemplados pelas políticas públicas.
Para que se conquiste a inclusão social, a educação escolar deve fundamentar-
se na ética e nos valores da liberdade, na justiça social, na pluralidade, na
solidariedade e na sustentabilidade, cuja finalidade é o pleno desenvolvimento
de seus sujeitos, nas dimensões individual e social de cidadãos conscientes
126
de seus direitos e deveres, compromissados com a transformação social.
(CRAVERIO; MEDEIROS, 2013: p. 7)
127
política marcada pela governamentalidade democrática e iniciou outra ordem
política, sobre a qual podemos somente, por ora, tatear. É claro que o governo
Temer, ao longo de 2017 e 2018, iniciou o desmonte das políticas afirmativas
e inclusivas produzidas e consolidadas ao longo das três décadas anteriores
e que o governo iniciado em 2019 acelerou ao limite este desmonte, levando
a uma intensa precarização das diferenças e dos diferentes. Disso trataremos
em seguida.
128
aprendizado, da escola como investimento na preparação humana para a
socialização, a compreensão e a modificação das complexas relações sócio-
histórico-naturais. Mas, além disso, encontra-se em franca expansão a dissolução
da riqueza subjetiva. Para haver a precarização do trabalho, concomitantemente,
processou-se a precarização da existência humana como gradiente múltiplo,
diferente e singular de modos de ser. O padrão meritocrático, nesse caso, é
um moedor humano que pasteuriza as dissenções da norma em favor dos
mesmos circuitos existenciais.
Aqui passamos a viver em um paradoxo. Pensando o governo das diferenças
e aqueles que escapam ao governo, os corpos ingovernáveis são os que se
recusam a se submeter a qualquer tipo de precarização existencial, ou que
nela não se encaixam por falta de capital humano – que pode ser as próprias
normatizações corporais, estéticas, mentais etc. Mas também ao lhes ser
negado o direito de uma educação capaz de potencializar a singularidade
de suas existências, ao mesmo tempo, denunciam que a escola está sendo
entregue à manipulação da racionalidade rasteira das mesmas demandas de
eficiência e de previsibilidade dos corpos. O desmonte da educação inclusiva é
precursor do mesmo desmonte da educação pública, pois reduzida à demanda
da precariedade, o rolo compressor do Estado pavimenta as condições de
formação de um exército de reserva, de um “lumpemprecariado”, desde
as balizas crônicas da rejeição da ontologia do deficiente ou de qualquer
singularidade carente de abordagem não padronizada.
Assim, não seria exagero afirmar que o capitalismo neoliberal, ao sequestrar
o Estado, passou a subjugá-lo conforme o fetiche rentista do sistema. Como
argumentava Milton Friedman (1955) em O papel do governo na Educação, o
único papel do Estado é a garantia de um nível mínimo para que os indivíduos
sejam capazes de entender as regras da livre competição e nelas se inserir.
Ora, a regra atual, fora da educação elitista, essa, sim, ainda preservando
certo refinamento humanista a ser utilizado como distinção ou capital social
da elite, tem sido a aprendizagem mínima para o autoinvestimento em si
mesmo como ser precariado.
Ora, o precariado se refere a uma figura condizente com a aceleração
das fragmentações dos apoios solidários e comunitários, catalisados pela
deterioração de relações sociais pautadas na confiança mútua. Conforme
propõe Standing (2017: 30),
129
o precariado não é o nível de salários em dinheiro ou de rendas auferidas
em qualquer momento específico, mas a falta de apoio da comunidade em
momentos de necessidade, a falta de benefícios assegurados da empresa ou
do Estado e a falta de benefícios privados para completar ganhos em dinheiro.
130
econômica regida pelo rentismo. As consequências podem ser percebidas na
análise impecável de Standing (2017: 48):
O precariado não é uma classe organizada que busca ativamente seus interesses,
em parte porque está em guerra consigo mesmo. Um grupo dentro dele pode
responsabilizar outro por sua vulnerabilidade e indignidade. Um trabalhador
temporário com baixo salário pode ser induzido a ver o ‘parasita de benefícios
sociais’ como alguém que obtém mais, de forma injusta e às suas custas. As
tensões dentro do precariado estão colocando as pessoas umas contra as
outras, impedindo-as de reconhecer que a estrutura social e econômica está
produzindo seu conjunto comum de vulnerabilidades. Muitos serão atraídos
por políticos populistas e mensagens neofascitas.
131
Impedir ou dificultar a inclusão de tais corpos na escola é estratégia biopolítica
de exclusão da vida, por ajuntamento das tecnologias do biopoder, que tipifica o
ineficiente, lançando-o fora de qualquer condição existencial. Afinal de contas,
Gary Becker (1993) deixou bem claro em Capital humano – análise teórica
e empírica com especial ênfase na educação: sem habilidades e performances
adequadas, o indivíduo é o único culpado de sua própria condição, tornando-
se mero trabalhador sem habilidade (unskilled), donde, segundo ele, o fato
de enorme massa de afrodescentes, imigrantes, pobres etc. continuarem na
pobreza.
132
corpos ingovernáveis na educação escolar, pois o racismo de Estado está em
colisão com o indivíduo insuportável que precisa ser aniquilado, executado,
sequestrado, exilado, perseguido, deixado à mingua para morrer ou devolvido
à morte, pois ele simplesmente não merece a vida, a partir do momento que
seu capital humano não é digno de sua capacidade adaptativa à precariedade.
Finalmente, temos de lutar pela defesa da escola pública, pois como res
publica, a escola reassume o papel estatal do Estado e não mais o seu papel
empresarial. Assim, a luta por uma educação democrática e com qualidade
é, ao mesmo tempo, uma luta contra toda biopolitização da precarização
da existência e contra o chamamento excludente da educação. No próximo
capítulo, procuraremos ir mais fundo nesta questão das necessárias lutas
democráticas no campo educativo em nossos dias.
Com efeito, as lutas presentificadas na educação inclusiva seriam ainda
mais marcantes, pois elas colocam em relevo a necessidade da defesa da inclusão
da própria diferença humana em um mundo que passou a normopatologizar a
exclusão de toda espécie, fato que, por si mesmo, vem justificando o precariado
e o aprofundamento da precarização.
133
CAPÍTULO 9
Lutas democráticas na educação
134
presença do Estado de direito no tecido social, assegurador da justiça e da
inclusão, do funcionamento das instituições de garantia de direitos sociais
e de maximização da liberdade e da segurança humana em todas as suas
frentes. Essa vertente é entendida sob o registro do neoliberalismo econômico,
combatido e contestado em todas aquelas análises.
Em segundo lugar, há um consórcio da perspectiva anterior com a extrema-
direita, alastrada desde os Estados Unidos com assunção da Alt-right (MAYER,
2017), perpassando por diversos países europeus tais como Alemanha, Áustria,
Espanha, França, Hungria, Itália, Polônia, República Tcheca, dentre outros,
até ecoar na América Latina, especialmente no Brasil.
Afeta-se, assim, a ampla arquitetura constitucional consagrada, o equilíbrio
de separação entre poderes e os seus sistemas de pesos e contrapesos; também
refreia-se a participação de todos os cidadãos em assuntos públicos, quer
seja controlando a formação da opinião pública, inclusive por censura, quer
atacando a liberdade de pensamento articulada nas instituições públicas:
escolas, universidades, partidos políticos de esquerda, por exemplo, ou ainda,
pode ser se valendo do direito do uso de forças jurídico-policiais para impedir
manifestações públicas contrárias às tendências autocráticas ou greves de
trabalhadores, mas também para perseguir e prender políticos avessos aos
ditames pavimentados entre o interesse das oligarquias, ao mesmo tempo,
parturiente e casada com a extrema-direita.
Finalmente, as investigações se aproximam ao destacar, nas expressões de
Céfaï (2005, p. 764), o perigo de “um seguidismo e de um conformismo sem
precedentes” que perpassam os sujeitos sociais, imantando-os de um acriticismo
perigoso, mormente como consequência da fácil adesão ao embrutecimento
pretensamente justificante lastreado nas bolhas de entretenimento midiático,
responsáveis por promover uma “bestialização cotidiana das pessoas”
(SLOTERDIJK, 2012, p. 17), facilmente inclinadas a um populismo desinibido.
Em tal cenário, promovem-se a solidificação do consenso neoliberal e a
impermeabilização da solidariedade democrática, fundada no respeito e na
promoção dos direitos humanos e de todas as diferenças possíveis de existência e
de serem produzidas entre os seus cidadãos. Entretanto, ali também se arrimam
fanatismos e arcaísmos distintos: de um lado, a fé em um chamado metafísico
que pode ser em nome de um credo, de um moralismo, de um mito político, de
135
uma mística genocida, racista, sexista, xenofóbica, ginofóbica, transfóbica. De
outro lado, há um saudosismo retrógrado em busca da repetição da história,
da recolonização religiosa, da superação do medo da realidade em nome da
supremacia do imaginário, do fazer habitável porões repugnantes da tortura
e da morte das ditaduras civis-militares.
Por conseguinte, vem à luz um consenso nas análises sobre a necessidade de
algum tipo de ação urgente por parte daqueles que se situam, ou podem vir a se
situar, do outro lado da margem de tais tendências. Há um consistente chamado
para se pensar e se viver de modos a recusar os circuitos de produção social
antidemocráticas, bem como o de assumir novas proposições e ações voltadas
para a reafirmação de tudo que é açambarcado pelo espírito democrático, o
que não se faz sem lutas, solidariedade, confiança e estratégias de formação
para tanto.
Nos atos de lutas democráticas na educação, a seguir, produziremos um
campo problematizador e analítico que se pretende somar às proposições
insurgentes, contestatórias e de destituição do que poderíamos denominar
de conluios de fascínios antidemocráticos.
A hipótese que enfeixa os atos é a de que precisamos recalibrar na
atualidade o sentido e o alcance das lutas democráticas. Também é urgente nos
amotinar contra as forças do individualismo e do isolacionismo doutrinador do
neoliberalismo econômico, considerados forças que bloqueiam a solidariedade
capaz de agenciar coletivos contra as injeções paralisantes do desejo que ousa
afirmar um modo de se viver fora das demandas negociadas nas bolsas de
valores dos moralismos consagrados e dos consensos sedantes.
Com efeito, assumimos que a educação é um dos campos fundamentais
para se conceber tal empreitada, e é isso que queremos pensar: o que a educação
pode fazer para ser um contrapeso no Zeitgeist atual, esse espírito de época
que não deve nos furtar de educar para outras e novas ondas democráticas.
No próximo ato, sustentaremos que as formas antidemocráticas atuais não
passam da atualização do Urstaat, tal como Guattari (2012a, 2012b) e Deleuze
e Guattari (2010) conceberam. Com isso, será necessário compreender o que
é o Urstaat, suas feições e dinamismo. A questão a ser alcançada aqui diz
respeito à paradoxal tendência dos estados democráticos de permitirem a
sabotagem da própria potência da democracia em sua concretude. Isso ocorre
136
pois a função do Urstaat é de continuamente reativar os fluxos despóticos
de governamento, em nosso caso, retraduzidos nas estratégias capitalistas
neoliberais de parasitagem no Estado, na consagração da extrema direita e
no despotismo atualizado a sufocar todas as liberdade possíveis e desejáveis.
Em seguida, produziremos outro ato de lutas democráticas na educação.
Nele, contraporemos ao cenário contemporâneo do Urstaat a perspectiva
das lutas democráticas moleculares e a urgência de a educação assumir lugar
como estratégia de formações subjetivas contra-hegemônicas, levando-nos a
agir de alguma maneira contra o Urstaat.
Para tanto, tomaremos o pensamento político de Rancière (1996, 2005,
2007), visando a compreender o registro singular da democracia face a política
universalista do Urstaat, o que nos prepara para um ato problematizador final.
137
histórica e não apenas o prefixo Ur do alemão para se compor com Staat, que
quer dizer Estado; e por que a sobreposição coincidente entre cidade e prefixo
Ur? Qual o alcance da afirmação: o Estado é o Urstaat original? Finalmente,
o que é o Urstaat no sentido de modelo de tudo o que o Estado quer ser e
deseja? Responder a tais questões torna-se fundamental não apenas para se
obter um esclarecimento exegético do conceito, muito mais, porém, para poder
atingir o seu núcleo operador com o que queremos sustentar: o Urstaat é uma
megamáquina de produção de despotismo antidemocrático.
De forma mais evidente, porque mais enunciada, o Urstaat é um conceito
conjugado pelo prefixo alemão Ur mais o substantivo Staat. Se para este último
o sentido é menos invariável, pois quer dizer Estado, para o prefixo a opção de
tradução pode ser determinante. Em alemão, Ur pode designar o que é primeiro,
originário e original, primitivo, primevo; mas também agencia o sentido de o
mais antigo, os primeiros tempos, aquilo que é principal, bem como proto. O
problema se dá no uso do prefixo, o que faz mudar completamente o campo
semântico de seu propósito.
Para se ter uma ideia, Foucault (1996) fez uma longa análise da complexidade
da recepção de Ursprung em Nietzsche. Se Sprung é salto, no entanto, ao
somar-se a Ur pode denotar sentidos variáveis. Ursprung é origem, mas uma
origem que pode ser concebia como o salto arcaico, o salto originário, uma
descontinuidade assumida porque dá origem a algo. Ao se valer de tal empreita
para combater a história original, desde Nietzsche, Foucault faz operar um
conceito que interessa às suas concepções crítica, mas que, do ponto de vista
do pensamento de Nietzsche, segundo a pesquisa de Pizer (1990), Foucault
estaria equivocado. Assim, na ordem dos conceitos palavras não são meras
palavras. Há toda uma geografia de pensamento em jogo e de concepção de
entendimento. Urphänomen, por exemplo, não é uma simples tradução de
fenômeno originário, se pensarmos em Goethe; Urwelt, tomado como mundo
originário, embora correto, estaria equivocado se fôssemos falar do mundo
originário desde a fenomenologia de Husserl, pois tratar-se-ia aí de Lebenswelt34.
138
Concernente ao Urstaat assumiremos a ideia de Estado primordial.
Nesse caso, além de sugerir o contexto de originário, original ou primitivo,
Ur também nos remeteria ao arcaico como algo que é contemporâneo de si
mesmo, espécie de princípio básico e incontornável que, a partir de sua forma
primeira, faz desdobrar as formas ulteriores sem jamais deixar de voltar-se ao
que lhe é fundamento. O Urstaat remete-se a si mesmo sob uma dupla hélice:
ao mesmo tempo que é diacrônico, pois cada etapa de suas formas ulteriores
converge para a própria maturação do “todo armado” disruptivo do Estado,
simultaneamente, há em cada uma de suas formas uma sincronicidade que não
abre mão do seu princípio primordial, isto é, o Urstaat tem de ser despótico
ou imperialista. A sua diacronia está expressa na ideia de que “é a formação de
base que está no horizonte de toda história”, (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.
288), ou seja, formação de base do Estado. Da base ao seu desenvolvimento,
há o fio sincrônico de seu propósito sempre primordial, quer dizer, o de ser
um “Império primordial”, conforme concebeu Guattari (2012a, p. 235), para
quem “os místicos, coptas, sírios e outros, exprimem um desejo de retorno às
fontes do Império primordial: Ur-Estado (Ur-État)”, donde podemos alcançar
o sentido proposto por Deleuze e Guattari (2010, p. 288) ao afirmarem que
“cada forma mais ‘evoluída’ é como um palimpsesto: ela recobre uma inscrição
despótica, um manuscrito micênico. Sob cada negro e cada judeu, um egípcio;
um micênico sob os gregos; um etrusco sob os romanos”, e por que não dizer,
um português explorador, violento, dizimador e senhorial sob cada brasileiro.
Em suma, na acepção inicialmente germânica, o Urstaat é o Estado
primordial do despotismo na aparição do próprio Estado. Aparição abrupta,
e, por isso mesmo, uma Ursprung reatualizada em todas as suas formas:
encontro da primazia despótica de toda forma anterior e posterior do Urstaat.
Sendo assim, apesar da variação da formação do Estado, o desdobramento
de suas formas permanece cristalizado e projetado no que lhe é primordial: o
despotismo. Mas por que se trata de uma inscrição despótica no e do Estado?
Em seus Écrits pour L’anti-Œdipe, texto laboratorial de Guattari (2012a)
para a produção, junto a Deleuze, de O Anti-Édipo, descobrimos que o caráter
despótico do Estado primordial se dá em função de sua produção estrutural
de disjunções de significantes. Guattari (2012a, p. 466), ao argumentar que
“o despotismo é sinônimo de biunivocização”, está nos preparando para a
139
concepção tardia de síntese disjuntiva de registro, ou seja, a perspectiva de
inscrição de todo tipo de representação dualista em que ou se está a favor dela ou
se está contra ela. No quinto platô de Mil Platôs (DELEUZE; GUATTARI, 2002),
acerca do Estado, deparamo-nos com a sua condição estrutural sedentária
como princípio operador de normalidade do Estado: ele administra por fixação,
identificação, cálculo, controle, ameaça, a ponto de expulsar e aniquilar aqueles
e aquilo que insurgem contra a normalidade de sua autorrepetição35.
Eis, então, o “Estado como lugar de conversão geral de todos os sistemas
de valores econômicos, simbólicos, significantes e de desejo, mas se trata
também do rizoma tentacular das formações de poder” (GUATTARI, 2012b,
p. 468), justamente porque ele é invasivo de modo capilar, com o seu poder
disjuntivo. Por outro lado, os nômades ou o nomadismo seria uma ameaça
constante à estabilidade do Estado, fato pelo qual o Estado se faz avançar diante
de tudo que se lhe escapa. Assim, ou há uma filiação ao sedentarismo ou há
uma filiação ao nomadismo; ou se está dentro ou fora do sistema.
O que o Urstaat sempre faz com o imperialismo da biunivocidade é inovar
com as suas estratégias perversões excludentes. Conforme cogitamos, os termos
de Guattari (2012a, p. 281) vão em tal direção: “O Urstaat é reconstituído
a partir de sua explosão em milhares de estilhaços. E recola-se o espelho
disjuntivo”. É toda uma legião operadora do imperialismo da biunivocidade
significante que está aí representada, necrosando, com seus sedentarismos e
suas molaridades, todo poliformismo possível de ser manifestado na vida que
escapa aos significantes dominadores. Poderíamos, assim, pensar em uma longa
iconografia imperialista de significantes cujo campo gravitacional, com suas
pequenas engrenagens de demanda cotidiana, sedimenta camadas necrosantes,
portanto, mortíferas, na megamáquina do Estado com os seus pequenos
35 Não desenvolveremos aqui esta linha de exploração, mas cabe lembrar que Deleuze &
Guattari, sobretudo em Mil Platôs, chamaram a atenção para sociedades que “conjuraram o
Estado”, pressentiram sua presença e evitaram sua eclosão, optando por uma sociedade sem Estado,
colocando-se ao lado do nomadismo. Para a argumentação deles, foi fundamental o trabalho do
antropólogo Pierre Clastres (1995, 2009) sobre os povos guarani e guayaki da América do Sul, na
linha de uma sociedade contra o Estado. Mais recentemente, um antropólogo estadunidense, James
C. Scott, desenvolve pesquisas sobre povos orientais antigos que também evitaram o surgimento
do Estado em suas sociedades; em Scott (2017) argumenta que determinadas sociedades evitaram a
articulação do Estado ao não plantar grãos, visto que o Estado se baseia na acumulação e os grãos
se prestam a este sistema. Ao cultivar outros produtos agrícolas, que precisavam se consumidos
rapidamente, evitaram ter produtos que pudessem ser acumulados e ensejassem uma organização
estatal.
140
difusores de ou...ou. Eis, com efeito, o destino final de tantos conformados
ao despotismo do Estado: seguir, obedecer, reverenciar, submeter-se ao
Líder, ao Falo, à Nação, à Raça, ao Capital, ao Mercado, ao Chefe, ao Édipo,
à Família, a Deus, à Igreja, à Pátria, à Verdade, à Vontade da Maioria, ao
Gênero-Branco-Heteronormativo-Machista, aos Novos Tempos, ao Capitão e
ao General. Em termos da potência de vida, o Estado é despótico por ser uma
experiência tóxica de anti-produção de desejo nômade, molecular, afeito à
vontade de se produzir experiências dissonantes aos seus imperativos sempre
incluso-excludentes. Por conseguinte, “as alianças desejantes moleculares são
assombradas por uma aliança urstática, por uma finalidade mortífera molar
(GUATTARI, 2012a, p. 134). Assim ele avança, pois o Estado despótico não se
contenta em sobrecodificar elementos significantes já codificados, portanto,
ele inventa novos códigos imperiais específicos para todo fluxo de vida que
tende a escapar de seu Império, reinsuflando em todas novas possibilidades de
experiências de vida o Urstaat. Se há algo de mais primordial no Urstaat, ele se
encontra na consistência de suas ressonâncias planificadoras, homogeneizantes
e cristalizadoras das formas de expressão dominantes:
Todo mundo, os camponeses livres ou dependentes, os burocratas, a
aristocracia, o exército, encontra-se na mesma filiação: aquela do déspota
supremo. Assim está constituída uma, e somente uma, máquina, deixando
talvez subsistir uma vaga ‘democracia’ interiorana (villageoise). Trata-se de uma
máquina que concentrou toda sua produção sobre uma superfície de sentido,
uma superfície de gozo único, aquele do déspota e o de sua corte (GUATTARI,
2012a, p. 238, grifos originais).
141
Estado por intermédio de estratégias de sujeição constante. Trata-se de um
incansável estatuto atualizador do Estado primordial. Mas como e por que Ur36?
A partir das pesquisas de Bright (1980) e Mumford (1967), compreendemos
que a terceira dinastia de Ur tornou-se uma megamáquina política porque,
entre miríades de guerras nômades na Mesopotâmia, entre os anos de 2060 e
1950 a.C., Ur-nammu conseguiu “pacificar” a região, instaurando a renascença
sumeriana de modo unificador e imperial, após dizimar as dinastias rivais. A
megamáquina diz respeito à produção de bens e de formas burocráticas de
administração em massa padronizada e extremamente controlada (MUMFORD,
1967, p. 189), visando integrar “todos componentes políticos e econômicos,
militares, burocráticos e reais”. A interpretação dispensada por Deleuze e
Guattari (2010) é justamente a de que a máquina capitalista atual não passa
do espelhamento da megamáquina urstática. Assim, a referência aos cortes
que o capitalismo é capaz de fazer concerne ao sentido da desterritorialização
avançada da megamáquina, aniquilando, como já veremos, todas as dissonâncias
de códigos de vida, de modos de produção alternativos, de riquezas simbólicas
e de relações humanas estrangeiras aos seus determinismos. Por isso mesmo,
O Estado já não pode se contentar em sobrecodificar elementos territoriais já
codificados; ele deve inventar códigos específicos para fluxos cada vez mais
desterritorializados: pôr o despotismo a serviço da nova relação de classe;
integrar as relações de riqueza e de pobreza, de mercadoria e de trabalho;
conciliar o dinheiro mercantil com o dinheiro fiscal; reinsuflar em toda parte
o Urstaat no novo estado de coisas (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 289).
36 Apesar de não ser objetivo do artigo, vale esclarecer que foi a partir da obra de Lacarrière (1961)
que Guattari encontrou o jogo de palavras Ur-Estado (Ur-État). Assim, a ideia original pertence
a Lacarrière e foi desenvolvida por Guattari no sentido que estamos analisando e apresentada a
Deleuze, que acampou a ideia como conceito. Guattari assume isso nos Écrits pour l’anti-Oedipe
(2012a, p. 235). A nota 72 de O Anti-Édipo traz uma menção a Lacarrière. A leitura de Mumford
(1967), por parte de Guattari, também foi essencial para a consolidação da noção de Urstaat. Há
várias menções a Mumford em O Anti-Édipo e nos Mil Platôs.
142
concomitantemente, balizada com a especialização do aumento de demanda
de poder de Ur e especialização de técnicas produtivas na agricultura, no
pastoreio, no militarismo, na administração e sucessivamente. A domesticação
e a sedentarização passaram a ser características dominantes do Império,
chanceladas por um tipo de poder irrecusável: pois “foi durante a Terceira
Dinastia de Ur que todos os reis passaram a ser aclamados divindades”
(MUMFORD, 1967, p. 174). A irrecusável aceitação do poder despótico, com
efeito, é indissociável da crença que as próprias relações de poder são capazes
de produzir em seus súditos. Ur prefigura Egito, Roma, a Idade Média, o in
God we trust do dólar, o Deus seja louvado do plano real, a argamassa do poder
simbólico de Pátria acima de tudo e Deus acima de todos, assim por diante.
Referido horizonte, entretanto, foi unificado pelo estabelecimento de
códigos legais válidos para todo o Império. A lei de aspiração universal está
desde os primórdios (Ur) inscrita em Ur e, como não deixa de notar Bright
(1980, p. 44), o Império de Ur estabeleceu o código de leis “mais antigo que se
conhece até hoje”. Nesse aspecto, não é sem sentido, portanto, a percepção de
Deleuze e de Guattari (2010, p. 281, grifos originais): “É que a lei, digamos uma
vez mais, antes de ser uma fingida garantia contra o despotismo, é a invenção
do próprio déspota: ela é a forma jurídica tomada pela dívida infinita”. A dívida
infinita é a nossa reclusão no calabouço da autoconsciência instaurada pela
obrigação do reconhecimento do erro, ou seja, de que deixamos de refletir algum
tipo de fragmento espelhado do Urstaat, o que demanda a correção infinita
dos gestos, dos comportamentos, das atitudes, dos pensamentos, dos gozos,
das maneiras de nos relacionar, das opções subjetivas. Dívida infinita dilatada
pelo avanço da própria vontade de lei unificadora do Urstaat, este Império de
produção de subjetivação hegemônico-despótico: Ur como megamáquina de
nova engenharia de dominação.
O que decorre daí é decalque da estrutura urstática. Ur também era
monoteísta: apenas se permitia o culto à deusa Lua (BRIGHT, 1980; MUMFORD,
1967). O relato de Abraão deixando Ur é uma inscrição de um texto Javista37.
37 A crítica literária do Antigo Testamento identificou tipos literários distintos no Pentateuco:
Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronômio. Cada um possui viés teológico e ênfase distintos. Sem
entrar no mérito de cada um deles, é preciso ressaltar, contudo, o deslize que a nota do tradutor
de O Anti-Édipo comete ao afirmar que a Abraão, “este outro lugar, a terra prometida, ter-lhe-ia
sido indicado por um certo deus, que, então, não se apresenta como único, um deus dito Jeová,
Javé ou IHVH (este tetragrama divino) (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 287). Ocorre que são
143
Na pretensa promessa de Iahweh libertá-lo do domínio de Ur, já que Abraão
era nômade e, assim, não convinha a Ur, pois ou a Ur serviria ou de lá fugiria
ou ali seria punido, sempre na obstinação da disjunção excludente, contudo,
Abraão acaba sendo salvo. Mas, paradoxalmente, a sua salvação é uma tensa
destinação à servidão, como a própria história da antiga Israel atesta (Bright,
1980). Abraão sai de Ur, mas ele não sai do Urstaat, ao contrário, celebra
um novo pacto servil, obediente e de uma promessa infinita, para todas as
gerações, sob uma nova aliança urstática. Abraão é a primeiro desdobramento
da colonização imperial de Ur, a aceitação subserviente ao destino da servidão
voluntária.
A essa altura podemos anunciar as razões pelas quais a democracia, tomada
como experiência múltipla de participação no destino do poder, é uma ameaça
ao Urstaat, pois o Estado primordial não permite outra forma de Estado a não
ser a dele. Aceitar a democracia instituída, ou seja, oficial, é assumir a nossa
herança como filhos de Abraão. Indagar por qual Estado poderíamos desejar
já se torna uma ameaça às estruturas do Urstaat, donde a importância de ele
controlar como cada um deve se informar e se formar para o Estado. Informar
e formar são estratégias de produção de desejo fundamental para o Urstaat:
O Estado é desejo que passa pela cabeça do déspota ao coração dos súditos,
e da lei intelectual a todo o sistema físico que dela se desprende ou se liberta.
Desejo do Estado, a mais fantástica máquina de repressão é ainda desejo,
sujeito que deseja o objeto de desejo (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 294)
transliterações distintas para o mesmo nome: Iahweh, pertencente a mesma tradição Javista.
Só há nomes distintos para deus em outras tradições literárias: Elohim, El, El Shadai, etc. Isso é
importante, pois IAHWEH é o impronunciável, o deus que determina a história, ele é o mesmo
ontem, hoje e amanhã, controla o destino de tudo e de todos, mas também é o deus salvador e da
promessa, além de ser o deus dos dez mandamentos, o que diz: Eu sou o que sou. Ele “salva” Abraão
de Ur, mas Abraão, ao aceitar cegamente a promessa, aceita toda uma estrutura de poder que o
decalca a outra sujeição: Abraão é passivo, obediente, servil, crente obstinado, não partícipe de
sua própria história, Abraão é urstático. Para maiores detalhes ver: (BRIGHT, 1980; SCHREINER,
1978; SOUZA; 1990).
144
dos privilegiados e poderosos” (CHOMSKY, 2017, p. 13), não nos demora a
ver por que vivemos um momento de ruptura democrática.
A megamáquina urstática é atualização de todos os conluios dos interesses
dos privilegiados e dos poderosos ao redor do planeta e, claro está, no Brasil
(KLEIN, 2007; LEVITSKY; ZIBLATT, 2018; GALLEGO, 2018). O ódio como
política, na expressão de Gallego (2018), é fénix da biuninocidade do Urstaat.
As minorias dissonantes, as sexualidades contrastantes ao império hetero-
machista-branco, os pretos, os quilombolas, os ribeirinhos, os indígenas,
resquícios de uma memória viva nômade, aqueles que pensam contra a
dominação vocacionada da política ungida por qualquer metafísica que cumpre
o seu destino manifesto, passam a ser ameaçados, uma vez que produzem
justamente tensões democráticas no sistema. Consequentemente, o Urstaat é
Estado de extrema-direita, pois ele não suporta consistências, existências fora
dos circuitos do desejo que ele produz como roteiro histórico: é o chamado
de Abraão renovado à enésima potência.
A referida globalização do capitalismo, nesse caso, não passa de
consequência das estratégias de dominação e de subjugação da democracia.
Como espelhamento, o neoliberalismo é uma forma extremada de capitalismo
que, como projeto de unificação de opinião entre as elites mundiais, conforme
indica Klein (2017), “despreza a esfera pública e qualquer outa coisa que não
seja o funcionamento do mercado ou as decisões dos consumidores”.
Como Império, Ur caiu em função de sucessivas invasões nômades
(BRIGHT, 1980). Se o nomadismo é uma máquina de guerra contra a
megamáquina do Urstaat, talvez precisemos assumir a dimensão necessária
de aprender a nos preparar também para invadir o Urstaat para dele
produzirmos uma democracia. Eis, assim, o diagnóstico preciso de Guattari
e Negri (1999, p. 65): “somente a subjetividade comprometida com os processos
de produção singular pode romper os códigos e as normas de produção de
subjetividade do Capitalismo Mundial Integrado. A democracia pode ser
refundada somente nesta direção”. E é justamente em tal perspectiva que a
educação pode ser pensada como lutas democráticas contra o Urstaat, pois, na
argumentação de Guattari e Negri (1999, p. 68), “a multiplicidade rizomática
dos processos de singularidade, cada um dentro de seus lugares de produção
145
que os transformam, recompõem, multiplicam”, é indispensável para a própria
experiência democrática como luta contra o Estado primordial.
146
que dizem respeito à administração da vida social. A palavra política deve,
diz ele, ser reservada para aquilo que perturba essa ordem instituída. Em O
desentendimento ele advoga que a política e a democracia não estão centradas
no consenso, no entendimento que leva à construção de um comum, mas
justamente no não entendimento, no desacordo, no dissenso. A política é,
sempre, da ordem do litígio, da disputa. E não do acordo.
O litígio em torno da contagem dos pobres como povo, e do povo como
comunidade, é o litígio em torno da existência da política, devido ao qual
há política. A política é a esfera de atividade de um comum que só pode ser
litigioso, a relação entre as partes que não passam de partidos e títulos cuja
soma é sempre diferente do todo. (RANCIÈRE, 1996, p. 29).
147
aqueles que não eram contados, não faziam parte da comunidade. No léxico
do próprio filósofo, o demos era composto por aqueles que não faziam parte
da partilha do sensível. Por aí vemos, pois, que a democracia, o exercício do
poder por aqueles que não contam, significa a própria irrupção da política:
um acontecimento que perturba uma ordem estabelecida, que provoca uma
quebra, uma ruptura. Por isso ele não vê a democracia como um regime
político, mas é “a instituição mesma da política, a instituição de seu sujeito e
de sua forma de relação” (RANCIÈRE, 2007, p. 232).
A democracia é o próprio regime da política, na medida em que ela opera
uma ruptura com a lógica da arkhé, aquela que busca legitimar o exercício do
poder político numa ancestralidade.38 Interessante aqui destacar o paralelismo
– e mesmo uma certa complementaridade – entre essa análise de Rancière e
aquela operada por Deleuze e Guattari: se há apenas um único Estado, o Urstaat,
Estado primordial, há apenas uma única democracia, a ruptura com essa ordem
arquetípica, que funda o Estado, portanto, precisa ser considerada. Nesta linha
de pensamento, não pode haver um Estado democrático: a democracia é a
necessária luta contra o Estado, contra todo e qualquer Estado.
A democracia introduz o sujeito da política: o povo. Assim Rancière o
caracteriza:
O povo, que é o sujeito da democracia, logo o sujeito matricial da política,
não é uma coleção de membros da comunidade ou a classe trabalhadora da
população. Ele é a parte suplementar em relação a toda conta das partes da
população, que permite identificar ao todo da comunidade a conta dos não
contados.
O povo (demos) existe apenas como ruptura da lógica da arkhé, ruptura da
lógica do começo/comando. Ele não saberia se identificar nem com a raça
38 A noção de arkhé foi fundamental no pensamento grego antigo. Para os filósofos pré-socráticos,
ela significava o “princípio universal de todas as coisas”, o elemento original do qual provém tudo o
que existe. No pensamento político, ela significava aquilo que fundamentava o exercício do poder,
que tornava legítimas as ações de um soberano. Uma vez mais não desenvolveremos esta linha,
mas é importante assinalar se a democracia e a política são uma ruptura com a lógica da arkhé,
do princípio e fundamento, elas são estritamente “anárquicas”. Esta análise é desenvolvida em
livro recém-publicado da filósofa Catherine Malabou (2022), Au voleur! Anarchisme et philosophie,
no qual ela analisa filósofos contemporâneos (Levinas, Derrida, Foucault, Agamben e Rancière)
que desenvolvem um pensamento estritamente anarquista sem, porém, relacioná-lo com a teoria
política anarquista – daí o título, que indica uma filosofia ladra do anarquismo.
148
daqueles que se reconhecem pelo fato de que eles possuem um começo [uma
origem], um nascimento, nem com uma parte ou com a soma das partes
da população. Povo é o suplemento que disjunta a população dela mesma,
suspendendo as lógicas da dominação legítima. (RANCIÈRE, 2007, p. 233-234).
39 Em tradução literal: Em que tempo vivemos?. Essa obra ainda não tem tradução no Brasil.
149
seu outro: o povo substancial e que sofre desprezado pelas elites, que encontra
sua expressão numa força que o representa autenticamente e num dirigente
que a encarna. Tal forma de antagonismo permanece confinada no jogo de
equilíbrio entre a representação e encarnação que é, definitivamente, um
jogo de equilíbrio entre duas forças da desigualdade. Ora, o problema não é
o colocar em oposição grupos, mas mundos: um mundo da igualdade e um
mundo da desigualdade. Se há uma lógica de distanciamento em relação
ao mundo organizado pelas potências financeiras e estatais, esta deve ser
capaz de, sejam quais forem as vias pelas quais ela passe, ter seus modos
de agir, seus instrumentos de ação, suas agendas autônomas em relação
àqueles da ordem estabelecida, mesmo que ela seja levada a interagir com
eles. (RANCIÈRE, 2017, p. 67)
150
Estado sempre procurou enraizar nos seres humanos uma ordem do mundo,
colonizando o pensamento; para conjurar o Estado, advogam a necessidade
de uma máquina de guerra em relação com o fora, que “torna o próprio
pensamento nômade” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36), não sendo outro
modelo, mas um novo agenciamento.
É, pois, a chave da multiplicidade e da máquina de guerra que elegemos
para pensar as lutas democráticas contemporâneas, reforçando o mundo
múltiplo da igualdade contra o mundo uno e universalista da desigualdade,
interposto a nós com o Urstaat. Ainda antes da publicação de Mil Platôs, numa
entrevista a ativistas italianos em 1977, Guattari afirmou:
Sim, creio que existe um povo múltiplo, um povo de mutantes, um povo de
potencialidades, que aparece e desaparece, que se encarna em fatos sociais, em
fatos literários, em fatos musicais. É comum me acusarem de ser exagerado,
bestial, estupidamente otimista, de não ver a miséria dos povos. Posso vê-la,
mas... não sei, talvez seja delirante, mas penso que estamos em um período de
proliferação, de criação, de revoluções absolutamente fabulosas do ponto de
vista da emergência de um povo. É a revolução molecular: não é uma palavra
de ordem, um programa, é algo que sinto, que vivo, em alguns encontros,
em algumas instituições, nos afetos e também através de algumas reflexões.
(GUATTARI, s/d, p. 6).
Pode parecer ao leitor que passamos todas as páginas anteriores sem tratar
de Educação. Foi sobre este campo problemático, porém, que construímos toda
a argumentação, tendo em vista os problemas que nós, professores e educadores,
enfrentamos na realidade escolar. A onda neoconservadora no Brasil parece ter
151
sido capaz de, molecularmente, fazer uso dos equipamentos sociais, dentre eles
a escola, para estabelecer um novo regime de relações, pautado na moralização
dos costumes. Não nos enganemos: suas táticas foram de máquina de guerra,
atuando nas beiradas dos equipamentos estatais, pouco a pouco tomando o
controle de múltiplos espaços. Mas, embora usando táticas moleculares, seus
objetivos sempre foram molares: tomar o Estado e universalizar seus princípios.
No âmbito da Educação, talvez o mais sintomático desta agenda seja o Projeto
Escola Sem Partido, um nítido movimento no sentido de educar segundo uma
moralidade de cunho moral-religioso e universalista, sem qualquer abertura
para diferenças e criminalizando qualquer tentativa de uma educação aberta,
pluralista40. O Ministério da Educação do governo federal do período 2019-
2022, quando empossado, não tardou em afirmar seus princípios, desmontando
secretarias e programas de políticas afirmativas da diferença e dando conta de
um programa de governo centrado no “combate à ideologia”, voltado para uma
“educação de qualidade”. Nitidamente, um programa da unidade, reforçando
o Estado, a face indelével do Urstaat.
Como agir, no campo educativo, enfrentando esta realidade? Será efetivo
retomarmos antigas bandeiras de luta, como, por exemplo, a de uma escola
democrática universal?
Como procuramos mostrar conceitualmente ao longo deste capítulo, o
Estado, centrado em sua forma arquetípica, o Urstaat, opera no registro do
universal. A democracia, por sua vez, opera no registro do acontecimental, do
efêmero, do múltiplo. Se quisermos utilizar a terminologia deleuzo-guattariana,
o Estado opera principalmente no âmbito molar, enquanto as lutas democráticas
são majoritariamente moleculares. A defesa de uma democracia universalizada
é uma armadilha histórica, visto que universalizar a democracia significaria
matar seu potencial transformador, por ser produtor de desequilíbrio nos
jogos de força e de poder instituído. Uma democracia universal seria um novo
Estado policial, baseado num equilíbrio forçado e imposto, evitando a irrupção
de diferenças. Neste contexto, também a defesa de uma universalização da
152
escola democrática seria “fazer o jogo do inimigo”. Ora, o inimigo já fez o
“nosso jogo”, operou molecularmente para tomar conta do Estado; cabe aos
movimentos que se pretendem democráticos, agora, assumir a molecularidade
das ações, não visando reconquistar o Estado, mas democraticamente produzir
rupturas, fazer tomar a palavra aqueles que estão sendo excluídos do jogo.
De maneira prática, podemos enxergar no programa de “incentivo”
de formação dos Grêmios Estudantis da Secretaria da Educação do Estado
de São Paulo uma estratégia de captura da espontaneidade democrática de
manifestação dos alunos das escolas públicas. A iniciativa se deu como estratégia
molar de monitorar e de conduzir a organização legitimada pelo Estado dos
estudantes na dinâmica das escolas. Sela-se, assim, as regras de um jogo que
visa a impedir ações moleculares e, portanto, incontroláveis, capazes de colocar
em xeque a própria estrutura educacional do Estado41.
Ora, um trabalho democrático na escola precisaria estar ligado à
potencialização das diferenças, do múltiplo, uma abertura ao potencial
disruptor. A produção de um povo que falta, um povo múltiplo, um “povo
de mutantes”, como citado anteriormente por Guattari. Voltamos, pois, a ele,
no ensaio político que escreveu com Negri em 1985, procurando compreender
aquilo que, no contexto europeu da época, denominaram de “novos espaços
de liberdade”. Ali, encontramos:
Nessas condições, a organização de novos agenciamentos proletários
não saberia concernir senão uma pluralidade de relações no seio de uma
multiplicidade de singularidades – pluralidade focada nas funções e nos objetivos
coletivos, escapando dos controles e sobrecodificações burocráticos, na medida
em que ela se desenvolve precisamente no sentido de uma otimização dos
processos das singularidades concernidas. O que está em questão, aqui, é
um multicentralismo funcional, capaz, de um lado, de se articular com as
dimensões diversas de intelecção social e, de outro, de neutralizar ativamente
a potência destrutiva dos agenciamentos capitalistas. (GUATTARI; NEGRI,
1985, p. 69-70).
153
Se ali Guattari e Negri refletiam tomando por centralidade o proletariado,
podemos abstrair essa questão, pensando de forma mais ampla esta
contemporaneidade tão mais complexa, mas guardando as armas que são
apresentadas: organizar novos agenciamentos a partir de uma pluralidade de
relações advindas de uma multiplicidade de singularidades. Singularidades que
se agenciam e produzem coletivos – produzem um comum que, no entanto, não
é universalizável, mas sempre local, variável, multicentrado, acontecimental.
E, aí, encontramos talvez nossa resposta para as ações possíveis no campo
educativo para reforçar as lutas democráticas contra o Urstaat: o investimento
na produção de subjetividades múltiplas, capazes de agir na pluralidade,
reafirmando e valorizando as diferenças, o convívio das diferenças nas
diferenças, buscando (molecularmente e ao modo de máquina de guerra)
a produção de linhas de fuga às sobrecodificações arquetípicas. Em poucas
palavras: o investimento na produção de subjetividades contra-hegemônicas,
por sua vez, capazes de prenunciar uma nova Ursprung.
154
EPÍLOGO
Por uma educação que ousa desejar – um manifesto
155
As nossas mãos estão trêmulas porque elas anseiam soltar as correntes
das âncoras que, durante muito tempo, têm nos acostado no litoral das regras
instituídas e pensadas para manter a ordem dos discursos e das práticas
educacionais a meio palmo de profundidade, quando o que desejamos são
águas mais profundas, como profundo e imperscrutável é o desejo.
Assim, convidamos a leitora e o leitor deste manifesto a juntar as suas
mãos às nossas. Se um manifestus, na acepção latina, sugere o que é palpável,
o que pode ser tocado pelas mãos, porque se revela, dá-se a ver, afirma-se
de jeito incontestável, ou simplesmente se manifesta como aparição, então,
este manifesto será o surgimento de uma enunciação a nós endereçada como
convite: demo-nos as mãos para afirmar uma educação que ousa desejar.
É por intermédio das mãos que não se furtam a produzir novas experiências
com o pensamento e com as ações educativas que o desejo há de anunciar sinais
que ainda não foram transcritos no presente, porque carecem ser desejados
e inventados. E se procedem os termos de Nietzsche (1983, p. 90) para quem
“é o futuro que dita a regra sobre o nosso hoje”, será, portanto, manifestando
o desejo em devir, lugar e forma indomáveis de nossas experiências, que
buscaremos nos situar em nosso próprio presente.
Assim, fazemos este manifesto para dar abertura a uma iniciativa
experimental, intentando fazer aparecer o que desejamos para a educação. E o
mais visceral, a partir de nossas mãos, é poder conceber uma educação que ousa
desejar. Desejar porque “o desejo não ‘quer’ a revolução, ele é revolucionário
por si mesmo, e como que involuntariamente, só por querer aquilo que quer”
(Deleuze; Guattari, 2010, p. 159).
E o que desejamos? O que desejamos manifestamos como querido. O que
desejamos manifestamos como desejo que revoluciona porque ousa. O que
desejamos não está escrito em pedras – espécie de lei trans-histórica, espécie
de assombro de fé cega. O que desejamos está no futuro que dita a regra sobre
o nosso hoje: inventividade sem fronteiras, grades, vigilância e punição, porém,
desejando estar em todos os lugares: inventividade de desejo heterotópico.
Contra a fé cega das pedras da lei, bradadas pelos neoconservadores, levantamos
a faca amolada do desejo e da produção desejante.
Não é para modificar o presente que desejamos como incidência do futuro.
É para modificar o futuro que desejamos como imanência do presente. Se
156
formos capazes de desejar outros modos de educar, outras maneiras de nos
relacionar com e na educação; se formos capazes de rascunhar intenções que
se movem para arriscar a fazer o novo, a fazer-se de novo; se formos capazes
de imaginar como remover o peso paquidérmico da burocracia de nossas
instituições, então, grávidas e grávidos deste desejo futuro, acabamos sendo
interpelados por um presente que não aceitamos mais.
Já nos vimos desamparados e órfãos da Utopia, quando o ideário de
uma sociedade mais justa e equilibrada, então sonhada em 1516 por Thomas
More, não passou de letra cansada, embora fascinante. Não à toa, Utopia
designa não lugar em tempo algum, motivada pela esperança na perfeição
individual e social dos seres humanos. Há mais de quinhentos anos, sob um
incansável moinho de triturar sonhos e esperanças, vemo-nos frente a frente
com ideários de dias melhores, pejorativamente denominados de utópicos.
Toda utopia, assim, soa um pouco como um sentimento de potência a ser
realizada, no entanto, sabotada na potência de sua própria realização como
algo impossível de ocorrer.
Mas não nos custou muito a ver a nossa distância da Utopia ao passo que
nos enveredávamos mais para um mundo distópico. O prefixo “dis”, alastrado
no grego dys, exprime a ideia de mau estado, anomalia, mau funcionamento,
disfunção. A distopia, assim, é o lugar de habitação que funciona de modo
disfuncional ou tendencioso, mau, regrado por uma potência baixa.
A distopia é o inferno; a distopia é a condenação de Sísifo: mover-se sem
sair do lugar, realizar um trabalho imposto e não desejado. Assim, fomos
acostumados a viver como herdeiros condenados de um século de guerras
de destruição em massas, de misérias produzidas pela sanha econômica, de
assunção de formas políticas totalitárias, de alienação desumanizadora em
nome do “time is money” – tempo é dinheiro –, de colapso do equilíbrio dos
ecossistemas. E também passamos a viver como herdeiros primogênitos de
um século inoculado por formas de controle dos comportamentos humanos
através das programações calculadas de nossas temporalidades, espacialidades,
forças psíquicas, além de nossas maneiras de nos relacionar.
Poderíamos dizer que o nosso desejo se tornou distópico: desejo em mal
funcionamento, uma experiência disfuncional porque reduzia às demandas de
funcionalidades prescritivas para se realizar. Da distopia de Jack London, O
157
tacão de ferro, reproduzimos o mau funcionamento da violência econômica,
gerando o “povo do abismo”:
A condição do povo do abismo dava dó. A educação em escolas comuns,
quando isso era possível, deixou de existir. Eles viviam como animais em
grandes e esquálidos guetos operários, exasperados em meio à miséria e à
degradação (LONDON, 2015, p. 226).
158
de distopia, “a todo momento todo mundo sentia medo, um medo inominável
e onipresente” (LEWIS, 2017, p. 238).
De nossa parte, não nos somamos à congregação idealista dos utopistas,
pois o nosso mundo é real e nele vivemos, com ele queremos compor, a partir
dele existimos e desejamos existir. Também, por mais realistas que sejam, não
nos inclinamos às distopias. O que almejamos é enfrentar o medo que pode
nos paralisar e nos subjugar.
Com efeito, erguemos as lâminas de nosso desejo contra qualquer
dominação ideológica, psíquica, física; contra a polícia das ideias, a pax
romana da normalização violenta, as lobotomias dos afetos, as catequeses
dos dogmatismos e das ortodoxias, as câmaras de gás dos preconceitos, os
campos de concentração da criatividade e as inquisições sem fogueiras.
Este manifesto quer afirmar infinitos lugares, possíveis lugares de encontro
com a produção do desejo como fluxo de uma vida inventiva. Desejo: nome
dado a “todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade
de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do
mundo, outros sistemas de valores” (Guattari; Rolnik, 2005, p. 261). Por isso,
o que desejamos, e sobretudo para a educação, é uma heterotopia.
Assim como a Utopia e as distopias não se concretizam sem que seus
sujeitos sejam preparados para aceitarem a apostar seus modos de ser visando
a untar a engrenagem de um sistema social, também pensamos que certos
preparos precisam ser forjados para a heterotopia. A heterotopia é uma ação
no presente e no lugar, a produção da diferença no espaço do mesmo. Para
isso, é necessário preparar-se, estar a postos, mas também com as habilidades
e ferramentas para tanto. No curso A hermenêutica do sujeito, Foucault (2001a)
encontrou dentre os exercícios espirituais gregos a paraskheué, uma espécie
de armadura que construímos com o corpo, a par com a instructio, armadura
do saber. A paraskheué é uma longa preparação de si mesmo para enfrentar
o mundo; o sujeito pode – e precisa – transformar-se, mas também precisa
resguardar-se de certos ataques, de modo a não se perder de si mesmo.
Neste manifesto, o desejo é nossa “armadura”. Ele nos prepara para produzir
heterotopias, nos arma para uma ação transformadora de nós e do mundo.
No Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade (1928) afirmou: “só não há
determinismo onde há o mistério”. Ainda que os porquês e para quês de nosso
159
manifesto sejam aqui anunciados, eles não passam de cúmplices com o que
não podemos, e nem queremos, controlar: a força da presença do desejo em
uma educação que ousa desejar. Cada um de nós é um fio na tessitura desse
mistério. E aqui, embora cúmplices de toda heterotopia do desejo na educação
e da educação no desejo, fazemos questão de sublinhar o mistério como lance
de uma aposta sempre inacabada, criativa e experimental: rompamos com as
guarnições dos determinismos, ensaiemos sempre o mistério, desejemos o
mistério. Entreguemo-nos ao risco. Não nos furtemos, contudo, em manifestar:
isso não desejamos para a educação; isso desejamos e afirmamos para a
educação. Consequências? Mistério.
Os tópicos são e estão abertos, convidam a cada um de vocês a colocar
novos blocos, apostando na potência do e, e, e... infinitamente em construção,
fazendo o múltiplo. Porque o desejo é sempre múltiplo e aberto, agenciamento,
assemblage, mistura e mestiçagem. Venham...
160
Também não desejamos comportamentos e atitudes entubadas, paralisando
os gestos inventivos, necrosando as resistências contra as diferentes formas
de afirmar a existência e de sair dos desejos enfileirados.
Toda múmia é um arcaísmo, pois é uma vida que se entregou à conformação.
Múmia deriva do persa M’UM, que quer dizer cera. A cera é moldável, aderente
a qualquer corpo, a qualquer forma. A cera é promíscua: pode estar rígida,
líquida, espessa, pois ela se conforma às demandas. O arcaísmo é uma forma do
desejo se redimir frente ao novo que se anuncia, ao inusitado, ao desabrochar
de valores ainda não confiscados pela gramática de poder que a tudo iguala.
O arcaísmo é reclusão do medo diante da vida que se mumificou. Muitos
chegam a gritar, vendo as projeções de arcaísmos em suar cavernas mentais:
mito! mito! mito!
Em tempos de arcaísmos, são as múmias que rondam a força do desejo
para mitigar a sua potência de romper com os sepulcros e as tumbas dos
conhecimentos, dos saberes, dos afetos, das formas de se relacionar. Arcaicos
são os discursos do ódio e da violência; arcaica é a vontade de aniquilar o
diferente, o dissonante, o intubável, o inclassificável, o que não confessa a
mesma ordem e o mesmo progresso; arcaica é a redução da escola a um
braço funcional do servilismo ao mercado; arcaico é o index punitivo para
quem ousa experimentar o conhecimento e o pensamento não predestinado e
incondicionado. Os arcaísmos são experiências de empobrecimento psíquico,
afetivo, corporal e cognitivo, pois os arcaísmos são mumificadores. Isso não
desejamos.
Por isso mesmo, não podemos continuar afirmando tudo que empobrece
a potencialidade subjetiva e cristaliza o desejo. As experiências educativas
são convidadas a saírem das dinastias das mercadorias mentais e subjetivas.
Mas como? Deixando de desejar essa mesma dinastia.
O desejo nos permite afirmar que podemos muita mais do que nos
fazem acreditar que podemos. Quem nos dá voz? Quem abre o tabuleiro a
nossa frente e anuncia o jogo e as regras? Quem reduz as dissonâncias a uma
afinação monocórdica? Quem é o gato que nos espreita? A quem interessa a
nossa mumificação? “Que as vozes opositoras não sejam temidas, degradas
ou rejeitadas, mas valorizadas pelo incentivo de uma democracia sensata que
elas ocasionalmente performam” (BUTLER, 2019, p. 182).
161
É preciso que nos voltemos à prática fundamental da filosofia: fazer
indagações. Começamos a renunciar à pobreza de nossa condição subjetiva
quando indagamos pelas conexões que nos fizeram chegar até aqui, sendo o
que somos, pensando o que pensamos, querendo o que queremos, fazendo o
que fazemos. Calar a força da indagação, isso não desejamos.
Os sujeitos distópicos de Admirável mundo novo aprendiam por hipnopedia.
A hipnopedia era um método de ensino, ou melhor, método de despejo de
conteúdos programados, que alcançava a mente de seus sujeitos tatuando
competências e apetências conforme um padrão instituído a ser observado e
atingido. O automatismo tecnolinguístico na educação também pode ser uma
hipnopedia. Trata-se de uma regulação do tráfego comunicativo, cognitivo; da
regulação das ações e dos movimentos que envolver o educar. Trata-se também
de vetar o afeto como alegria e sabor nos saberes. Isso não desejamos, pois
para nós educar é festa, folia, estandarte da fala do povo, criação de horizontes
de desejo, experiment(ação), ensaio, atos abertos com atos-afetos. De novo,
Oswald de Andrade: “a alegria é a prova dos nove”.
Aprendemos desde cedo a escolher nomeando. E se cada vez mais a
nossa capacidade nominativa fosse reduzida a meros termos funcionais? A
educação precisa dissolver as fronteiras de sua hipnopedia, convocando para
si a linguagem não funcional, porque experimental, para ir além de seus
tubos mumificadores. Essa linguagem se encontra nas artes plásticas, nas
literaturas, nos afetos, nas percepções estrangeiras às prateleiras do consumo;
essa linguagem encontra-se no desejo. Aqui, educar é inventar língua-sejares:
linguagens que desejam em vários lugares – questão também de heterotopia.
Na distopia Nós, de Zamiátin, espécie de origem das distopias literárias,
todos vivem sob a égide do Estado Único (Urstaat?) que priva a todos e a cada
um de individualidade, liberdade, possibilidade de expressão, de imaginação,
de amor, em nome da plenitude de uma felicidade produzida e garantida pelo
Estado. A felicidade da mediocridade, da mesmidade. Hoje, o Grande Estado
Único se desenha em nosso horizonte, sendo a infância o grande alvo e a escola
e o grande instrumento de sua construção. Isso, não desejamos.
Não desejamos o fascismo de Estado que se nutre dos microfascismos
cotidianos, a interrupção dos feixes e dos fluxos desejantes, produzindo a
gangrena. Não desejamos a morte, o sedentarismo, que é uma “morte em
162
vida”, produzido pela gramática do poder que impõe sacrifícios no presente
em nome de um futuro sempre adiado. Não desejamos escolas cívico-militares,
que apostam numa disciplina eivada de autoritarismo. Não desejamos...
[...]
163
vem por essa dinâmica, não pelos jogos do desejo e da paixão. Afirmamos
uma escola que recupere a ginga, as alegorias carnavalescas, a articulação
através de blocos que possibilitem a alegria da folia. Porque só a alegria da
vida pode combater os esforços de morte fascistas. Festa contra a violência;
pensamento alegre contra a opinião generalizada.
Como vimos neste livro, a educação (educere) está marcada pelo signo
da condução, do levar para fora; o mesmo se dá com a pedagogia e seus
agentes, a pedagoga e o pedagogo, que são os “condutores de crianças”. Na
esteira de Fourier e Schérer, na companhia de Deleuze e Guattari, desejamos
uma educação que se faça junto, um “co-ir”, um andar junto, para usar a
expressão utilizada por Schérer. Uma educação que seja um ir junto de crianças
e adultos, agenciando-se mutuamente, através das atrações passionais (Fourier)
ou dos agenciamentos de desejo (Deleuze e Guattari); não uma condução,
mas um deixar-se ir, no coletivo, formando blocos, agenciando possibilidades,
experimentando horizontes... um nomadismo educativo. Afirmamos uma
escola que esteja mais ocupada com os processos, com o caminhar, do que
preocupada com os pontos de chegada, objetivos e metas estabelecidas e
verificadas por avaliações de larga escala.
Para uma tal escola, pensamos o educador, o pedagogo, como um
“dinoscrático”, palavra que cunhamos jogando com as expressões gregas
dynamis, que é a força, a capacidade, o poder, a potência; e kratikós, que se
relaciona a governo, poder, autoridade. O dinoscrático seria, pois, aquele que
agencia a democracia da potência criativa. Agencia em cada um o exercício
de si sobre si; se conduz alguma coisa, conduz potências, induz possibilidades,
abre horizontes. O educador que agencia a potência dos atos educativos,
conduzindo sem conduzir, sem levar a lugar algum, mas caminhando
nomadicamente com seu “bando”, com o coletivo de estudantes, aprendendo
juntos, inventando juntos. Afirmamos uma escola que seja o lugar heterotópico
destes agenciamentos de potências criativas.
A educação e a escola estão colonizadas; elas próprias andaram par a
par com o projeto colonizador europeu, sendo um de seus braços, talvez um
dos mais potentes. Contra essa escola sedentária que coloniza, estratifica,
enrijece fluxos, desejamos uma escola que promova as potências criativas,
uma escola nômade, que descolonize, investindo nas diferenças e produzindo
164
singularidades. A escola heterotópica é sempre coletiva, produzida por grupos,
por bandos. É preciso saber escolher seu bando, com quem você quer andar
junto, com quem você quer agenciar-se, fazer junto, viver junto. Em bando,
mas cada um como singularidade; essa é a educação que desejamos, em
que as diferenças singulares se agenciem e sejam capazes de produzir um
comum, que não é uno nem universal, mas que está em movimento, sempre
em transformação. Que não colonize o diferente transformando-o no mesmo,
mas que exerça uma potência descolonizadora, que produz sempre mais
multiplicidades. Afirmamos uma escola que seja essa potência de existir e
de afirmar a vida.
Com Oswald de Andrade, reafirmamos: “a alegria é a prova dos nove”; a
única prova que queremos nesta heterotopia escolar é a afirmação da alegria,
do desejo, da vida.
E você, o que deseja? O que afirma?
[...]
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Brasil e no exterior que foram retomados para a
composição deste livro
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Sobre os autores
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Sílvio Gallo é licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
de Campinas (1986), com mestrado em Educação (1990), doutorado em
Educação (1993) e livre docência em Filosofia da Educação (2009), todos pela
Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professor Titular (MS-6)
da Universidade Estadual de Campinas e desde 2007 é bolsista produtividade
do CNPq. Membro de diversas associações científicas do campo da Filosofia
da Educação no Brasil e no exterior, foi Presidente da SOFIE - Sociedade
Brasileira de Filosofia da Educação entre 2014 e 2018 e atualmente preside a
SOFELP - Sociedade de Filosofia da Educação dos Países de Língua Portuguesa.
É co-editor da Revista Fermentario, publicada pela Facultad de Filosofía y
Humanidades da Universidad de la República (Uruguai) e pela FE-Unicamp e
Editor Chefe da Revista Pro-Posições, da Faculdade de Educação da Unicamp.
Ocupa também o cargo de Editor responsável pela Editora FE-Unicamp.
Suas pesquisas estão no campo da filosofia francesa contemporânea e do
anarquismo, sempre nas confluências com a Educação. Dedica-se também
aos temas do ensino de filosofia e à filosofia da infância. Tem atuado como
professor visitante em diferentes instituições: Universidad Nacional de La
Plata (Argentina); Universidad de la República (Uruguai); Universidad de
Chile; Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia; Université de
Nantes (França).
179
Coordenação editorial: Betânia G. Figueiredo
Diagramação e capa: Marcela Paim do Carmo
Revisão: Cláudia Rajão
Tipologias: Minion Pro e Myriad Pro.
Revisora de prortuguês: Maria Thereza S. Lucínio
Imagem da Capa:
Gorup de Besanez, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons