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Desigualdades Sociais Contemporâneas

Book · January 2012

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Antonio Firmino Costa


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Desigualdades Sociais Contemporâneas
António Firmino da Costa

Desigualdades Sociais
Contemporâneas

LISBOA, 2012
© António Firmino da Costa, 2012

António Firmino da Costa


Desigualdades Sociais Contemporâneas

Primeira edição: Outubro de 2012


Tiragem: 400 exemplares

ISBN: 978-989-8536-15-0
Depósito legal:

Composição em carateres Palatino, corpo 10


Conceção gráfica e composição: Lina Cardoso
Capa: Nuno Fonseca
Revisão de texto: Manuel Coelho
Impressão e acabamentos: Publidisa, Espanha

Este livro foi objeto de avaliação científica

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa,


de acordo com a legislação em vigor, por Editora Mundos Sociais

Editora Mundos Sociais, CIES, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas,


1649-026 Lisboa
Tel.: (+351) 217 903 238
Fax: (+351) 217 940 074
E-mail: editora.cies@iscte.pt
Site: http://mundossociais.com
Índice

Introdução ................................................................................ 1

1 Perspetivas de análise e debates atuais sobre


desigualdades................................................................... 7
Que desigualdades no mundo contemporâneo? ........ 7
Perspetivas teóricas e controvérsias recentes .............. 9
Parâmetros cognitivos e valorativos ............................. 14
Informação empírica sobre desigualdades .................. 18

2 Desigualdades sociais em contexto de globalização:


um referencial teórico .................................................... 21
Pluralidade das desigualdades ...................................... 21
Sistemas de desigualdades ............................................. 24
Desigualdade categorial.................................................. 26
Fatores e processos........................................................... 28

3 Instrumentos metodológicos de análise


das desigualdades ........................................................... 33
Indicadores de desigualdades........................................ 33
Medidas de desigualdades ............................................. 40
Categorias sociais e análise das desigualdades .......... 41
Bases de dados em linha sobre desigualdades ........... 45

v
vi Desigualdades Sociais Contemporâneas

4 Desigualdades de recursos e oportunidades............. 47


Distribuições de rendimentos e desigualdades
económicas ........................................................................ 47
Segmentações e recomposições socioprofissionais .... 53
Educação e qualificações: desigualdades,
tendências e paradoxos ................................................... 55
Pobreza e exclusão social ................................................ 66

5 Desigualdades vitais e existenciais ............................. 69


Longevidade e saúde....................................................... 69
Cultura internacional e estilos de vida cosmopolitas 71
Espaços locais, estigmatização identitária
e marginalidade avançada.............................................. 74
Quotidiano e novas tecnologias..................................... 77

6 Interseções de desigualdades ....................................... 79


Da multidimensionalidade à interseção: classe,
género e etnicidade .......................................................... 79
Interseções de desigualdades nos percursos de vida 83
Capital social e interseções de desigualdades............. 86
Classes médias, mobilidade social e reconfiguração
das desigualdades ............................................................ 87

7 Desigualdades, justiça social e políticas públicas ... 93


Redistribuição, reconhecimento e representação
num mundo globalizado................................................. 93
Justiça como equidade (fairness) e perspetiva
das capacidades (capabilities) .......................................... 98
Igualdade de situações e igualdade
de oportunidades ............................................................. 102
Cidadania, movimentos sociais e políticas públicas
perante as desigualdades................................................ 107
Índice vii

8 Sociedade do conhecimento e desigualdades em


Portugal e na Europa ...................................................... 111
Estruturas transnacionais de classes e desigualdades
de recursos educativos .................................................... 111
Indicadores de desigualdades em perspetiva
comparativa europeia...................................................... 122
Literacia e perfis de desigualdades nacionais
e internacionais................................................................. 126
Estudantes do ensino superior: desigualdades
de acesso e de percurso ................................................... 128

9 Desigualdades no mundo, casos e comparações ...... 133


A “grande inflexão” das desigualdades nos EUA...... 133
Desigualdades elevadas e redução das
desigualdades no Brasil .................................................. 141
Crescimento económico e alargamento
das desigualdades na China........................................... 144
Desigualdades de género no Japão ............................... 147

10 Desenvolvimento humano e desigualdades


globais................................................................................ 151
Desigualdades de desenvolvimento humano ............. 151
Desigualdade mundial e mobilidade internacional ... 156
Novas classes globais....................................................... 159
Perceções, valores e crenças sobre desigualdades
no mundo atual ................................................................ 162

Conclusão: desigualdades e justiça global ....................... 169

Referências bibliográficas .................................................... 177


Introdução

As desigualdades são um aspeto estruturante e transversal das


sociedades. Por isso mesmo, elas são-nos de algum modo fami-
liares, fazem parte da experiência corrente de todos e cada um
de nós. Além disso, nos últimos anos, as desigualdades sociais
voltaram a estar presentes como tema destacado do debate
social e político e da comunicação mediática.
Nem sempre essa tematização tem emergido socialmente
com a mesma premência e visibilidade. Na atualidade, porém,
as desigualdades têm vindo a ser objeto de atenção recorrente
na esfera pública, e não será arriscar muito dizer que se tem vin-
do a instalar, no quotidiano, uma sensibilidade social crescente
face a elas.
Seja como for, a questão é vastíssima. As desigualdades so-
ciais são múltiplas e complexas. Muitas vezes são também con-
troversas, quer quanto à sua própria factualidade, quer nas
interpretações que se fazem a respeito delas, quer ainda nas
causas e consequências que se lhes atribuem. E estão sempre em
processo de mudança, extinguindo-se ou esbatendo-se umas,
surgindo ou acentuando-se outras, persistindo algumas longa-
mente, se bem que em novas circunstâncias, transformando-se
grande parte delas, nomeadamente em termos de intensidade,
escala e significado social. Mais: as desigualdades sociais não só
se interligam entre si, de modos variáveis, como se interligam
1
2 Desigualdades Sociais Contemporâneas

com muitos outros fenómenos sociais, de diversos tipos, níveis,


amplitudes e temporalidades.
Por tudo isto, as desigualdades constituem um dos focos
centrais de pesquisa e análise por parte das ciências sociais.
A sociologia, em particular, desenvolveu um acervo vastíssimo
de conhecimentos sobre o tema e tem permanentemente em es-
tudo as mais variadas facetas da questão. Os contributos de ou-
tras ciências sociais e áreas de estudos têm sido também muito
valiosos, da história à economia, da ciência política à geografia,
da antropologia à psicologia, dos estudos organizacionais às
análises de políticas públicas, entre outras.
Parte-se aqui do princípio de que, de uma maneira ou de
outra, os leitores deste livro já conhecem o assunto nele tratado.
Todos têm experiência pessoal de desigualdades sociais. Mui-
tos terão participado em discussões ou trocas de impressões so-
bre elas. Vários tê-las-ão estudado anteriormente, sob diversos
ângulos. É possível que já tenham abordado, em moldes espe-
cializados, algumas formas de desigualdade social, por exem-
plo acerca de classes, estratificação e mobilidade social, de
género, raça e etnia, de níveis de rendimentos e estilos de vida,
de pobreza e exclusão social, de movimentos sociais e ação cole-
tiva, de estado e políticas sociais. São conteúdos contemplados
em vários níveis de estudos e áreas de formação.
No entanto, a importância de que este problema se reveste
nas sociedades contemporâneas, o renovado destaque que
adquiriu e o extenso conjunto dos seus domínios de incidência
e das suas implicações, justifica retomá-lo numa perspetiva
abrangente, plural e atualizada.
O enfoque principal deste livro foi colocado em três caracte-
rísticas das desigualdades sociais contemporâneas: atualidade
(desigualdades significativas nos dias de hoje); multidimensio-
nalidade (desigualdades num leque alargado de vertentes e do-
mínios); globalidade (desigualdades num mundo fortemente
interdependente, onde as desigualdades globais têm repercus-
sões decisivas a todos os níveis).
Introdução 3

Em simultâneo, procura-se que esta análise tenha apoio


consistente em duas bases de fundamentação, as quais, aliás, só
em estreita combinação atingem plenamente os objetivos de co-
nhecimento pretendidos: teorias e conceitos pertinentes (selecio-
nando-se versões com potencialidades analíticas efetivas para o
tema em causa); informação empírica relevante (nomeadamente
indicadores de desigualdades de âmbito global, com requisitos
suficientes de rigor e comparabilidade).
Acontece que as disponibilidades nestes dois planos são hoje
em dia muito grandes. Por um lado, os avanços teóricos a este res-
peito têm sido significativos e variados, abrindo vias de entendi-
mento e explicação renovadas sobre as desigualdades sociais
contemporâneas. Por outro lado, têm vindo a ser constituídas im-
portantes bases de dados eletrónicas com indicadores estatísticos
sobre múltiplos domínios de desigualdades, abrangendo largos
segmentos da população mundial ou mesmo praticamente todos
os países, as quais são hoje facilmente acessíveis na internet.
As análises sobre desigualdades sociais contemporâneas
de que este livro se ocupa apoiam-se sistematicamente nestes
dois elementos-chave: teoria e informação empírica. Eles apare-
cem interligados nos sucessivos capítulos, integrando as análi-
ses dos principais tópicos abordados.
No que concerne à informação empírica, porém, consistin-
do muita dela em indicadores estatísticos, poderá o leitor ser
surpreendido por não se deparar neste volume com uma profu-
são de tabelas e gráficos. A razão é simples, mas requer um bre-
ve esclarecimento.
Com efeito, são muito numerosos e variados os dados, qua-
dros e gráficos suscetíveis de serem encontrados nos suportes
eletrónicos acima referidos, estando continuamente a ser publi-
cados na internet novos indicadores e tratamentos adicionais,
com informação sucessivamente mais recente e mais elaborada.
Não seria possível, como é óbvio, procurar inseri-los todos num
pequeno livro como este. Aliás, só uma ínfima parte caberia em
qualquer livro, e a curto prazo ficaria desatualizada.
4 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Sugere-se, assim, que a leitura deste livro seja intercalada


e complementada com a consulta desses sítios eletrónicos
(websites), selecionando-os consoante os assuntos em causa e
os interesses de cada leitor. Neles se poderá encontrar, com
muita facilidade, informação atualizada, diversificada e su-
gestiva, extremamente ampla, muitas vezes atraente do ponto
de vista gráfico, por vezes possibilitando utilização interativa
— sobre os temas que aqui vão sendo tratados, ao longo dos
capítulos.
No final dos capítulos 1 e 3, nos pontos intitulados “Informa-
ção empírica sobre desigualdades” e “Bases de dados em linha
sobre desigualdades”, o leitor pode encontrar um conjunto de
endereços eletrónicos selecionados, de alguns dos principais
portais ou sítios eletrónicos contendo ou dando acesso a conjun-
tos de indicadores diretos ou indiretos de desigualdades sociais
— não só relativos à sociedade portuguesa, mas igualmente a
grandes espaços de amplitude continental (designadamente, a
União Europeia), a conjuntos alargados de países (por exemplo,
a OCDE ou os chamados “países emergentes”) ou mesmo ao
mundo como um todo. Alguns deles, além dos indicadores em si,
disponibilizam também estudos e análises.
Para quem não tenha oportunidade ou interesse em se en-
volver nessa consulta de bases de dados on-line, este livro pode
ser perfeitamente lido sem mais, encontrando o leitor incorpo-
rado nele, em forma discursiva, o conteúdo teórico e empírico
essencial sobre o tema.
Mas, para quem quiser explorar as potencialidades de uma
“leitura hipertextual”, poderá resultar interessante consultar,
quando vier a propósito, alguma ou várias das referidas bases de
dados acessíveis na web. Nesse caso, o livro poderá proporcionar
um fio condutor de aproximação analítica às desigualdades
sociais contemporâneas, nas suas componentes fundamentais,
funcionando em simultâneo como guia para a descoberta e
interpretação de indicadores em permanente atualização. Mui-
tos dos argumentos de fundo poderão ir sendo deste modo
Introdução 5

complementados por novos dados, em correspondência com um


mundo em transformação social acentuada.
Do mesmo modo, na componente teórica, teve-se a preocu-
pação, não só de convocar ao longo da exposição contributos
decisivos neste domínio, mas também de registar, nas referên-
cias bibliográficas finais, um conjunto de obras que poderão
conduzir a consultas adicionais proveitosas. Também neste as-
peto o presente livro poderá servir de guia de leitura para apro-
fundamentos sobre o tema.
É objetivo deste livro proporcionar aos leitores — estudan-
tes e professores, investigadores e técnicos, decisores e inter-
ventores, estudiosos da sociedade e cidadãos interessados em
geral — um acesso abrangente, aprofundado e atualizado, se
bem que em formato condensado e em linguagem simples, a
teorias, dados e análises relevantes sobre desigualdades sociais
contemporâneas.
Uma versão inicial do texto que aqui se publica foi apre-
sentada pelo autor como relatório para provas de agregação
sobre uma unidade curricular de mestrado, justamente com a
designação de “Desigualdades Sociais Contemporâneas”, in-
tegrante do plano de estudos do mestrado em sociologia, e de
vários outros mestrados, do Instituto Universitário de Lisboa
(ISCTE-IUL). Alguns dos tópicos foram também já abordados,
de forma selecionada e sintética, no artigo “Desigualdades
globais” (Costa, 2012).
O conteúdo do presente livro responsabiliza apenas o au-
tor, designadamente pelos aspetos menos conseguidos, mas
deve muitos dos seus eventuais méritos ao diálogo com os alu-
nos da referida unidade curricular. Deve muito também — diria
que o essencial — a um conjunto de colegas de várias gerações,
professores do ISCTE-IUL e investigadores do Centro de Inves-
tigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) e do seu Observató-
rio das Desigualdades, cuja qualidade intelectual e pessoal me
tem suscitado sempre a maior admiração, com quem tenho tido
a oportunidade e o gosto de partilhar intensamente pesquisas,
6 Desigualdades Sociais Contemporâneas

debates e iniciativas, sobre problemas e desafios variados mas


envolvendo sempre a questão das desigualdades.
O livro está organizado em dez capítulos. Os três primeiros
introduzem pontos gerais e nucleares da análise das desigualda-
des sociais contemporâneas: problemática, teoria, metodologia.
Os três capítulos seguintes especializam o enfoque, abordando
conjuntos de dimensões salientes das desigualdades sociais (de-
sigualdades de recursos e oportunidades, desigualdades vitais e
existenciais) e suas interconexões (interseções de desigualda-
des). O sétimo capítulo aprofunda as relações entre desigualda-
des e justiça social no mundo globalizado atual. Os capítulos oito
e nove tratam das desigualdades sociais em diversas regiões do
planeta, nomeadamente em Portugal e na Europa, nos EUA e no
Japão, no Brasil e na China. O décimo capítulo apresenta e
discute algumas das vertentes atuais mais importantes das de-
sigualdades globais. Na conclusão recoloca-se a questão das
desigualdades sob a perspetiva da justiça global no mundo
contemporâneo.
Capítulo 1
Perspetivas de análise e debates atuais
sobre desigualdades

Que desigualdades no mundo contemporâneo?

Antes de uma abordagem mais sistemática do tema, que será


desenvolvida nos capítulos seguintes, importa colocar um con-
junto de questões iniciais. Em parte, são tópicos correntes de
questionamento e controvérsia sobre desigualdades, que sur-
gem com frequência, quer no debate público quer nas ciências
sociais.
Cada vez mais, com efeito, se colocam e debatem questões
como as seguintes. Estamos hoje a assistir a um aumento ou
a uma redução das desigualdades? Quais são as tendências
atuais a este respeito?
É comum lerem-se ou ouvirem-se opiniões contraditórias so-
bre o assunto. Por outro lado, pode muito bem ser que aspetos
diferentes da sociedade contemporânea apontem em sentidos
opostos, pelo menos em primeira aproximação. Por exemplo, as
situações persistentemente mais desfavoráveis das mulheres rela-
tivamente aos homens no que concerne a níveis salariais ou ao pre-
enchimento de cargos dirigentes (apesar das mudanças ocorridas
ao longo das últimas décadas no sentido de uma certa atenuação
destas desigualdades, designadamente no contexto europeu) po-
dem ser contrastadas com as atuais taxas de escolarização femini-
na, claramente superiores às masculinas, em especial no ensino
7
8 Desigualdades Sociais Contemporâneas

superior (não só em Portugal, mas também em muitos outros


países).
Questões como estas apontam, pois, no sentido da necessi-
dade de reflexão crítica e precisão concetual, assim como para a
necessidade de fundamentação empírica suficiente, adequada
e fiável. A indispensabilidade de contextualização sociológica
fica também posta em evidência. Em que contextos sociais ocor-
rem as desigualdades consideradas? Que continuidades e mu-
danças se observam? Que comparações são pertinentes?
Outro exemplo é o das desigualdades económicas no mun-
do atual. Perante as informações mediáticas dispersas e as con-
trovérsias públicas cruzadas, o que é que se sabe com alguma
segurança sobre desigualdades económicas a nível mundial?
Têm estado a aumentar, como sugere, por exemplo, o alarga-
mento dos leques de rendimentos ou a concentração da riqueza,
observados nas últimas décadas na maior parte dos países?
Têm estado a diminuir, considerando o mundo como um todo,
atendendo ao rapidíssimo desenvolvimento económico recente
de países como a China, a Índia ou o Brasil, abrangendo popula-
ções muito vastas e recolocando-as, comparativamente, em ní-
veis menos desfavorecidos do que há pouco tempo? Estarão as
desigualdades a nível mundial a mudar de configuração? Em
que sentido ou sentidos?
Exemplos como estes suscitam dúvidas metódicas. Algu-
mas destas perguntas iniciais parecem poder ter respostas dife-
rentes consoante as dimensões de desigualdade consideradas,
consoante as categorias sociais ou unidades de referência que
são objeto de comparação, consoante as escalas espaciais e tem-
porais de análise. Fazem emergir um conjunto de pontos funda-
mentais — de caráter concetual, metodológico, informativo e
axiológico — cuja elucidação prévia se revela indispensável
para se poder enfrentar, de maneira pertinente e fundamenta-
da, perguntas como as formuladas acima.
Desde logo, conduzem a novas questões, de contornos mais
específicos e mais precisos. Que desigualdades estão em causa?
Perspetivas de análise e debates atuais sobre desigualdades 9

Desigualdades de quê? Remete-se, deste modo, para a questão


das (múltiplas) dimensões das desigualdades.
Surgem, com estas, outras questões relevantes. Desigualda-
des entre quem? A referência, agora, é às unidades de análise (in-
divíduos, grupos, países, etc.), assim como às segmentações e
categorias sociais. Desigualdades a que escalas? É uma questão a
requerer especificação dos níveis espaciais (locais, regionais,
nacionais, supranacionais, globais) e dos horizontes temporais
(desde a atualidade imediata aos horizontes históricos de séculos
ou milénios, passando por periodizações intermédias, habituais
nas análises sociológicas das desigualdades — por exemplo, “ao
longo do século XX”, “desde a Segunda Guerra Mundial”, “a
partir dos anos 70”, ”no início do século XXI”).
A reflexão sobre estas interrogações leva por sua vez a ou-
tras, mais complexas ainda. Que consequências têm as desigual-
dades? Como é que influenciam outros aspetos das sociedades e
da existência social? É um tópico que permite salientar a relevân-
cia e a transversalidade das desigualdades nas sociedades atuais
(e anteriores).
Em sentido inverso, surgem as interrogações sobre as cau-
sas. Por exemplo, quais são as incidências da globalização e das
novas tecnologias nas desigualdades sociais contemporâneas?
Para além do problema geral das causas sociais das desigualda-
des, pode colocar-se em particular, deste modo, o questiona-
mento sobre alguns dos processos sociais cujos impactos nas
desigualdades contemporâneas têm vindo a ser reiteradamente
discutidos e examinados.

Perspetivas teóricas e controvérsias recentes

Para a abordagem de problemas como os enunciados acima, há


que procurar referências teóricas que permitam analisá-los de
maneira fundamentada e aprofundada, aproveitando o conhe-
cimento desenvolvido pelas ciências sociais sobre o tema.
10 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Impõe-se destacar, desde logo, o vasto património teórico


acumulado pela sociologia a este respeito, constituído tanto por
uma pluralidade de perspetivas distintas como por um conjun-
to muito significativo de conceções convergentes e resultados
partilhados, e ainda por uma intensa dinâmica de debate entre
especialistas.
Refira-se, em particular, o núcleo de teorização e análise so-
ciológica das desigualdades contido na sociologia das classes soci-
ais e da estratificação. Remete-se, a este respeito, se bem que de
maneira apenas enumerativa, para os paradigmas fundadores:
a teoria marxista (modo de produção capitalista, classes sociais,
lutas de classes); a sociologia weberiana (classe, status e parti-
do); a teoria das elites (poder, elites, circulação das elites); a
sociologia estrutural-funcionalista (estratificação social, hierar-
quias de status, mobilidade social). Uma seleção de textos clás-
sicos e uma boa sistematização teórica podem encontrar-se em
Grusky e Szelényi (2006) e em Crompton (2008).
No mesmo registo sintético, podem referenciar-se alguns
dos contributos fundamentais dos “clássicos recentes” da soci-
ologia das classes sociais e da estratificação: C. Wright Mills
(1976 [1951]; 1981 [1956]) (elite do poder, empregados de “cola-
rinho-branco”); Ralf Dahrendorf (1982 [1957]) (conflito institu-
cionalizado, quase-grupos e grupos de interesse); Anthony
Giddens (1975 [1973]) (dupla estruturação das classes sociais,
mediata e imediata); Nicos Poulantzas (1974) (multidimensio-
nalidade da estrutura de classes, nova pequena burguesia);
Pierre Bourdieu (1979) (espaço social das classes, capitais eco-
nómicos, culturais e sociais, habitus de classe, estilos de vida);
Frank Parkin (1979) (classes e fechamento social); Robert Erik-
son e John H. Goldthorpe (1993) (classes e fluxos de mobilidade
social); Erik Olin Wright (1997) (lugares contraditórios de clas-
se, combinações multidimensionais de recursos de proprieda-
de, autoridade e qualificação).
Algumas controvérsias recentes, sobretudo dos anos 80 e 90
do século XX, polarizaram-se numa alegada “morte das classes”
Perspetivas de análise e debates atuais sobre desigualdades 11

(p. ex., Pakulski e Waters, 1996), ou na emergência de “novas


desigualdades” (p. ex., Fitoussi e Ronsavallon, 1997 [1996]), ou
ainda na “exclusão social” (p. ex., Paugam, 1996). Essas contro-
vérsias tiveram uma certa importância, designadamente para a
colocação de novos problemas teóricos e para a evidenciação de
novas dimensões de análise, no contexto das mudanças sociais
ocorridas nas sociedades avançadas nas últimas décadas do
século XX.
No entanto, as teorizações sobre um suposto desapare-
cimento das desigualdades de classe nas sociedades contem-
porâneas assentaram em geral sobre pressupostos frágeis,
recorrendo a argumentos pouco consistentes e não apresen-
tando base empírica convincente. Foram, por isso, objeto de
balanços críticos, envolvendo desmontagem teórica e desmen-
tido empírico (Atkinson, 2010a, 2010b; Chauvel, 2006a; Costa,
Machado e Almeida, 2007; Silva, 2009).
Com este conjunto de análises e debates diversificados con-
verge uma constatação empírica transversal: o facto de as dinâ-
micas sociais atuais terem voltado a dar grande visibilidade às
fortes desigualdades socioeconómicas e socioculturais e a reco-
locar sob intensa atenção analítica o seu caráter estrutural, a sua
transversalidade e as suas interligações com uma variedade de
outras facetas das desigualdades sociais. Nesse contexto, parte
significativa das análises sociológicas sobre classes sociais tem
caminhado para formulações renovadas, privilegiando aborda-
gens multidimensionais e integradoras (Chauvel, 2006b; Costa,
2008 [1999]; Lareau e Conley, 2008).
No presente livro, não descurando estes aspetos reno-
vados da sociologia das classes sociais e da estratificação,
procura-se ampliar o leque dimensional, assumindo central-
mente o exame analítico de múltiplas dimensões relevantes
das desigualdades sociais contemporâneas. No capítulo se-
guinte ficarão mais explícitas quer a amplitude das desigual-
dades consideradas, quer a sistematização concetual que se
adotará para as englobar. De momento, impõe-se salientar
12 Desigualdades Sociais Contemporâneas

que, a par dessa multidimensionalidade alargada, se privile-


gia aqui um enfoque analítico nas desigualdades globais, em
sentido amplo, quer dizer, nas desigualdades que se constitu-
em especificamente à escala global e nas desigualdades que,
de modo mais ou menos direto, dependem do atual contexto
social globalizado ou com ele se interligam.
Uma abordagem de referência a este respeito, elaborada
por Charles Tilly (2005), proporciona uma excelente colocação
introdutória do tema, no sentido mencionado. O autor faz uma
apresentação da problemática das desigualdades em perspeti-
va histórica e mundial, embora incidindo mais em pormenor na
atualidade, nas tendências presentes e nos cenários possíveis
para o futuro próximo. Recorre a um quadro analítico em que
figuram múltiplas bases das desigualdades sociais e as suas di-
nâmicas de mudança. Realça a importância da desigualdade
categorial, isto é, das desigualdades ligadas aos processos de
constituição e atribuição de categorias sociais. Examina meca-
nismos sociais explicativos das desigualdades.
Concretamente quanto às bases sociais da desigualdade, Tilly
chama a atenção para a importância histórica das distribuições
desiguais de recursos ou do controle desigual de meios de ação,
tais como o trabalho (especialmente, o trabalho qualificado e or-
ganizado), os animais (usados na alimentação e na produção), a
terra (incluindo os recursos naturais nela localizados) e as má-
quinas (usadas na conversão de matérias-primas, na produção
de bens e serviços e nos transportes), mas também como os mei-
os de coerção (armas, especialistas da violência) e as instituições
de vinculação social (desde as redes de parentesco às seitas reli-
giosas, passando pelas diásporas comerciais, entre outras).
Para além destas bases sociais das desigualdades, cujo peso
e modalidades vão variando historicamente, Tilly destaca a im-
portância especial que, na atualidade, assumem a posse, o
acesso e o controle desiguais do capital financeiro, da informa-
ção, dos média e do conhecimento científico-tecnológico. Não
só estes quatro fatores se revelam particularmente decisivos
Perspetivas de análise e debates atuais sobre desigualdades 13

enquanto bases sociais das desigualdades no mundo contem-


porâneo à escala global, como a sua importância parece tender a
prefigurar-se como provavelmente crescente no futuro imediato.
Quanto aos mecanismos sociais explicativos das desigualdades,
o autor debruça-se sobretudo sobre os “mecanismos de explo-
ração” (relação de interligação entre agentes sociais, com apro-
priação assimétrica dos resultados dos esforços produtivos), os
“mecanismos de fechamento de oportunidades” (com exclusão
de conjuntos mais ou menos vastos de pessoas por parte de ou-
tras, e consequente reprodução de barreiras sociais) e os “meca-
nismos de seleção-distribuição”.
Tilly detém-se em particular nestes últimos, atendendo ao
facto de estes terem vindo a ser tomados como referência prin-
cipal no modelo explicativo e avaliativo das desigualdades
mais usual nos dias de hoje, tanto na cultura do quotidiano
como em boa parte das análises especializadas. Os elementos
constitutivos desse modelo são, basicamente: um conjunto dife-
renciado de lugares sociais; um conjunto de recompensas desi-
guais associadas a esses lugares; um conjunto de indivíduos
com características diversificadas; algum tipo de mecanismo
social que seleciona e distribui os indivíduos pelos diversos lu-
gares sociais.
Este modelo (que corresponde muito de perto ao proposto
pelas teorias clássicas da estratificação social) não só é identifi-
cado por Tilly como atuante em variados domínios sociais
(desportivos, artísticos, políticos, económicos, etc.), como tem
um interesse teórico particular pelo facto de ser usado, em ge-
ral, tanto por críticos como por apologistas das desigualdades
sociais existentes.
Os primeiros (críticos) tendem a focar, sobretudo, a in-
tromissão indevida de desigualdades categoriais (de género,
idade, raça, etnia, nacionalidade, origem social, etc.) nos meca-
nismos de seleção-distribuição, com as consequências que daí
advêm em termos de injustiça e disfuncionalidade. Os segun-
dos (apologistas) tendem a salientar certas diferenças entre
14 Desigualdades Sociais Contemporâneas

indivíduos (diferenças de energia, inteligência, conhecimentos,


capacidades, ação, etc.), concluindo que aqueles mecanismos
são os que melhor podem proporcionar distribuições eficientes
e justas — ou, pelo menos, aproximações razoáveis a estas.
No fundo — poder-se-ia acrescentar — uns e outros pare-
cem aderir, de algum modo, ao mesmo modelo. Os segundos
defendem o modelo, secundarizando as eventuais entorses à
sua concretização. Os primeiros acabam também por criticar,
não tanto o modelo, mas o facto de ele não ser efetivamente apli-
cado, devido à interferência de outros fatores (não intrínsecos
ao modelo, em princípio).
Na crítica habitual às desigualdades sociais existentes, é
muito comum ver-se confundida a oposição a um modelo como
o acima referido com a denúncia da sua não concretização (de-
vido à interferência de outros fatores). Mas — poder-se-ia per-
guntar — um posicionamento crítico deste último tipo não
implicará, logicamente, uma adesão implícita a esse modelo de
seleção-distribuição, em si mesmo? Com efeito, o que assim se
questiona não é, afinal, o facto de o modelo vigorar, mas, pelo
contrário, o facto de ele não ter vigência efetiva ou suficiente.
Como é bom de ver, a crítica ao modelo em si, por um lado, e
a crítica à sua não concretização, por outro, remetem para duas
conceções distintas sobre a natureza das desigualdades sociais
e para dois juízos de valor diferentes acerca da desejabilidade
ou da aceitabilidade dessas desigualdades.

Parâmetros cognitivos e valorativos

A última consideração acima apresentada introduz um novo


problema: o das relações entre a vertente cognitiva/analítica e a
vertente valorativa/normativa da problemática das desigualdades
sociais.
Não se trata apenas da questão geral, omnipresente nas
ciências sociais, das relações entre conhecimento e valores —
Perspetivas de análise e debates atuais sobre desigualdades 15

questão que, como se sabe, já é por si só suficientemente


complexa e controversa. Mas, para além de partilhar esta
questão geral, a problemática das desigualdades sociais entre-
cruza dimensões cognitivas e valorativas de maneira que lhe é
particularmente intrínseca. O tema é retomado e desenvolvi-
do adiante, em particular no capítulo 7. Convém, contudo, não
deixar de o situar logo de início, embora em termos sucintos e,
tal como nos pontos anteriores, de forma predominantemente
interrogativa e problematizadora.
Colocam-se aqui perguntas como as seguintes. Que dife-
renças se constituem socialmente como desigualdades? Que
desigualdades são consideradas socialmente como justas ou in-
justas? Onde? Quando? Por quem?
Retomando exemplos anteriores, suscitam-se agora novos
questionamentos. Algumas diferenças sociais parecem tradu-
zir-se de maneira óbvia em desigualdades. Por exemplo, as dife-
renças de rendimentos podem ser facilmente consideradas como
desigualdades de rendimentos — desde logo, na medida em que
são descritas por escalas ou hierarquias.
Pode ser útil generalizar um pouco. Com muita frequência,
na vida social, são atribuídas conotações de desigualdade a fe-
nómenos sociais caracterizados em termos de escalas de “mais”
e “menos” ou de hierarquias de “superior” e “inferior”. Mas o
mesmo será assim tão evidente para grande parte de outras di-
ferenças que se podem encontrar em sociedade? Poderá apli-
car-se-lhes? O que dizer, por exemplo, de diferenças de crenças,
de gostos ou de comportamentos?
Por outro lado, as desigualdades de rendimentos serão
justas ou injustas? Ou algumas poderão ser consideradas
como justas e outras como injustas? Depende de quê? Dos ca-
sos? Dos contextos? Dos critérios? Da posição social de quem
julga? Interrogações semelhantes colocam-se acerca de ou-
tras desigualdades.
Outro exemplo: as diferenças de classificações escolares ob-
tidas pelos alunos constituem desigualdades? Se sim, serão
16 Desigualdades Sociais Contemporâneas

desigualdades justas ou injustas? Deixando de lado circunstân-


cias particulares (potencialmente geradoras de injustiças, mas
de caráter extrínseco), será justo ou injusto, em si mesmo, que
tais desigualdades façam institucionalmente parte do sistema
de ensino? E, pelo contrário, a não existirem tais desigualdades
de classificações escolares, isso seria justo ou injusto?
É normal, no debate de questões como estas, não se chegar a
consenso. A intenção não é conduzir aqui a conclusões fecha-
das. Visa-se, sim, chamar a atenção para este tópico essencial:
sempre que se analisam desigualdades sociais, não só se descre-
vem situações como se convocam valorizações (mesmo que de
maneira implícita ou inadvertida).
Mais ainda, o problema desdobra-se em dois planos de
abordagem complementares. Um tem a ver com as orientações
de valor de quem empreende análises sociológicas das desi-
gualdades sociais; outro com os sistemas de valores das socie-
dades acerca das quais se analisam as desigualdades.
Do ponto de vista ético, cada um de nós transporta consigo
pressupostos valorativos acerca de desigualdades sociais, mais
assumidos ou mais implícitos. Essas orientações valorativas
pessoais remetem, por sua vez, para parâmetros socioculturais,
relacionais e biográficos. Tais orientações de valor são, elas pró-
prias, objeto de pluralidade e confronto, de caráter cultural e
político, e, como tal, revelam-se irredutíveis, em última instân-
cia, a parâmetros estritamente cognitivos.
Do ponto de vista cognitivo, as orientações de valor parti-
lhadas por quem analisa desigualdades sociais tanto podem
suscitar a atenção e a acuidade analítica sobre certos problemas
de desigualdades, como podem dificultar a visibilidade de
outras desigualdades ou a análise esclarecida a esse respeito.
Deste ponto de vista, importa procurar não deixar que essas
orientações de valor constituam obstáculo à lucidez analítica e à
procura de objetividade cognitiva. Daí a necessidade de recor-
rer, de forma conhecedora e rigorosa, aos instrumentos teóricos
e metodológicos disponíveis nas ciências sociais para a análise
Perspetivas de análise e debates atuais sobre desigualdades 17

das desigualdades, e a vantagem em assentar essa análise em


informação empírica pertinente, adotando em todo o processo
analítico uma atitude epistemológica de autorreflexividade crí-
tica, nomeadamente sobre os nossos próprios pressupostos
valorativos.
O outro plano de abordagem da questão reporta-se às
sociedades em estudo. Nessas sociedades circulam posições
valorativas acerca de desigualdades. Convém, pois, procurar
identificar esses padrões de valores e não deixar de os tomar em
conta na análise. Em alguns aspetos, eles remetem para as confi-
gurações culturais mais amplas das sociedades atuais — as
quais estão longe de ser homogéneas ou estáticas.
Os valores culturais relativos a desigualdades sociais po-
dem, em certos contextos, ser amplamente partilhados, mas
raramente são consensuais. Coexistem socialmente versões di-
versas, com frequência contrapostas ou mesmo abertamente
conflituais. Emergem com facilidade do modo implícito para a
manifestação explícita, muitas vezes de formas ambivalentes
ou mesmo internamente contraditórias — o que ocorre, aliás,
tanto nos mais variados episódios do quotidiano como nas ma-
nifestações de opinião e formas de ação de caráter mais institu-
cional ou coletivo.
Não se trata de desenvolver muito mais o assunto nesta al-
tura, mas de o tornar presente desde início — tanto mais quanto
alguns dos conceitos e temas fundamentais na análise das desi-
gualdades sociais são nuclearmente atravessados por esta rela-
ção entre parâmetros cognitivos e valorativos.
É o caso da distinção concetual, já referida, entre diferen-
ças sociais e desigualdades sociais. É também o que se passa rela-
tivamente à questão da justiça social — ela mesma inerente, de
maneira mais direta ou mais indireta, à própria conceção de
desigualdades sociais. Os vários entendimentos e critérios de
justiça social e as controvérsias a este respeito, nomeada-
mente quanto a temas recorrentes como “igualdade versus
equidade” ou “igualdade de situações versus igualdade de
18 Desigualdades Sociais Contemporâneas

oportunidades”, implicam centralmente essa relação. Ela ma-


nifesta-se ainda de maneira crucial nas diversas tomadas de
posição e formas de ação perante as desigualdades, por exem-
plo nos movimentos sociais ou nas políticas públicas, e, especi-
ficamente, nas posições atuais em confronto acerca do estado
social.

Informação empírica sobre desigualdades

A análise das desigualdades sociais, sendo particularmente


sensível às condições sociais de existência e às orientações de
valor, requer por isso mesmo um cuidado também muito parti-
cular de problematização teórica e elucidação concetual, como
se discutiu atrás. Requer, igualmente, um não menor cuidado
de sustentação dessas análises em informação empírica perti-
nente, tão rigorosa e esclarecedora quanto possível.
Acontece que, hoje em dia, existem muitos indicadores
empíricos de desigualdades sociais, relevantes e facilmente
acessíveis, com qualidade variável mas em geral razoável, pro-
duzidos, armazenados e difundidos por organismos diversos:
institutos de estatística, organizações internacionais, observa-
tórios, programas de investigação, etc.
Já não se justifica, pois, a respeito de uma variedade de as-
petos das desigualdades sociais contemporâneas (muitos deles
de grande abrangência e envolvendo escalas alargadas), ficar-
mo-nos pelas opiniões apriorísticas ou pelas impressões vagas,
nem já se justifica aceitar, acerca deles, uma qualquer asserção
superficial, insuficientemente assente em informação factual
metodologicamente controlada.
Um dos desenvolvimentos recentes mais interessantes que
se têm vindo a verificar neste domínio é a crescente disponibili-
zação pública, na internet, de bases de dados com uma gama
vastíssima de indicadores sobre desigualdades sociais, de âm-
bito nacional, supranacional e global. Várias destas bases de
Perspetivas de análise e debates atuais sobre desigualdades 19

dados proporcionam atualizações periódicas de indicadores.


Entre os exemplos mais conhecidos podem referir-se os Relató-
rios do Desenvolvimento Humano, publicados todos os anos
pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(http://www.undp.org).
Faz sentido, pois, que o estudioso da problemática das desi-
gualdades sociais contemporâneas, ou o simples interessado
numa ou noutra manifestação delas, adquira alguma familiari-
dade com essas plataformas eletrónicas e com os indicadores
nelas contidos.
Um ponto de partida possível é o sítio eletrónico do
Observatório das Desigualdades (http://observatorio-das-
desigualdades.cies.iscte.pt), no qual se encontram, em
permanente atualização, indicadores de desigualdades, as-
sim como estudos, referências e ligações a outros websites,
nomeadamente ao da rede internacional Inequality Watch
(http://inequalitywatch.eu).
É claro que há muitas outras fontes de informação e formas
de pesquisa empírica suscetíveis de serem usadas, com o maior
proveito analítico, no estudo das desigualdades sociais contem-
porâneas. Pode-se proceder, designadamente, à recolha direta
de informação no terreno, usando métodos de caráter quantita-
tivo (como os inquéritos por questionário a populações alarga-
das) ou de caráter qualitativo (como a observação direta e a
observação participante em determinados contextos sociais, as
entrevistas pessoais e os grupos focais, as análises documentais
e os registos audiovisuais).
Vários dos estudos mencionados ao longo deste livro recor-
rem a estes processos de levantamento e análise de informação
sobre desigualdades, não se pretendendo aqui, de modo algum,
desvalorizá-los.
Aliás, os indicadores fornecidos pelas referidas bases de da-
dos institucionais decorrem, eles próprios, de operações como as
referidas, sobretudo inquéritos de âmbito nacional ou internaci-
onal, efetuados por equipas de especialistas.
20 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Porém, o ponto aqui a sublinhar é que um enfoque substan-


tivo nas desigualdades prevalecentes no atual contexto social
globalizado não pode deixar de fazer apelo com muita frequên-
cia, ou mesmo prioritariamente, a informação empírica de cará-
ter extensivo e alcance transnacional.
A maior parte dos leitores não terá condições de realizar
pesquisas de recolha direta de informação empírica sobre desi-
gualdades sociais de amplitude muito alargada. Muito menos
poderá, obviamente, fazê-lo a todo o momento e sobre as mais
diversas vertentes das desigualdades sociais contemporâneas.
Pode aceder, no entanto, sempre que o pretenda, à muita in-
formação pertinente que vai sendo produzida, atualizada e dis-
ponibilizada, em permanência, nas referidas bases de dados em
linha contendo indicadores de desigualdades sociais. No capí-
tulo 3 são fornecidas indicações específicas sobre alguns dos
portais ou sítios eletrónicos mais úteis e mais frequentemente
utilizados neste domínio.
Capítulo 2
Desigualdades sociais em contexto
de globalização: um referencial teórico

Pluralidade das desigualdades

Na análise das desigualdades sociais contemporâneas, o recurso


à teoria é da maior importância. Com efeito, sem quadros teóri-
cos elaborados não se consegue aprofundamento cognitivo nem
rigor analítico, sobre este ou qualquer outro assunto, ficando-se
muito vulnerável à superficialidade e à imprecisão. E sem atuali-
zação informada acerca das referências teóricas disponíveis des-
perdiça-se o conhecimento já alcançado e ignora-se os termos das
questões em aberto e das controvérsias em curso. Além disso,
sem perspetiva teórica e enquadramento concetual, não se con-
segue interpretar adequadamente os dados empíricos, desig-
nadamente os indicadores de desigualdade; muito menos se
consegue produzir análises esclarecedoras a partir deles.
As disponibilidades teóricas a respeito das desigualdades
sociais, existentes na sociologia, na economia, na história e nou-
tras ciências sociais ou áreas de estudo específicas, são vastíssi-
mas. No capítulo anterior, aliás, fez-se uma passagem rápida
por algumas delas e procedeu-se a um balanço sumário de algu-
mas abordagens e problematizações importantes na análise das
desigualdades sociais e de um conjunto de debates a esse res-
peito que perpassaram as ciências sociais, nomeadamente nas
décadas mais recentes.
21
22 Desigualdades Sociais Contemporâneas

É possível, pois, concentrar agora a atenção em propostas


teóricas abrangentes e sistematizadoras, consistentes e atuali-
zadas, em particular nas que sublinham o caráter globalizado
das relações sociais contemporâneas. No decurso deste volume
são examinadas desigualdades sociais a diversas escalas: locais,
nacionais, supranacionais, globais. Mas as perspetivas teóricas
atuais que mais importa aqui destacar e utilizar são as que dão
relevo concetual e analítico ao facto de as desigualdades sociais
contemporâneas se inscreverem num contexto social em pro-
cesso de globalização acentuada.
Um primeiro tópico decisivo, do ponto de vista teórico e
analítico, é o da pluralidade das desigualdades sociais contemporâ-
neas. De um ponto de vista analítico, a questão que se coloca é a
das diferentes dimensões da desigualdade social. Procura-se,
pois, antes de mais, identificar, concetualizar e sistematizar os
principais aspetos em que, hoje em dia, se manifestam as desi-
gualdades sociais mais relevantes.
Nos trabalhos de Charles Tilly (2005) mencionados no capí-
tulo anterior encontraram-se já contributos importantes a este
propósito. Uma sistematização particularmente útil, pelo seu
caráter ao mesmo tempo abrangente e compacto, e pela integra-
ção que efetua dos principais contributos clássicos e recentes
sobre o tema, é a desenvolvida por Göran Therborn (2006). O so-
ciólogo sueco propõe uma perspetiva teórica multidimensional
das desigualdades sociais contemporâneas, identificando três
dimensões principais de desigualdade, que designa por “desi-
gualdades vitais”, “desigualdades existenciais” e “desigualda-
des de recursos”.
De acordo com este quadro teórico, o conceito de desigualda-
des vitais engloba as desigualdades perante a vida, a morte e a
saúde. Indicadores como a esperança de vida à nascença ou a
taxa de mortalidade infantil são alguns dos mais utilizados, no-
meadamente para analisar comparativamente desigualdades
entre populações (por exemplo, de diferentes países) ou para
analisar evoluções no tempo destas desigualdades vitais.
Desigualdades sociais em contexto de globalização: um referencial teórico 23

Para além de aspetos como a longevidade, a natalidade e a


mortalidade, também se incluem, neste conjunto, desigualda-
des como as relativas à prevalência de certas doenças, ou à vul-
nerabilidade a elas, e aos recursos de saúde disponíveis para as
prevenir e enfrentar, ou as relativas à ocorrência de certas defi-
ciências e às respostas sociais que lhe são dadas.
Estas dimensões da vida humana em sociedade, apesar de
muito diretamente ligadas à constituição biológica dos seres hu-
manos, não são socialmente homogéneas nem estáticas. Apre-
sentam variabilidade considerável entre indivíduos, grupos e
sociedades, constituindo dimensões possíveis e frequentes de
desigualdade social, e são também dimensões nas quais podem
ocorrer longas persistências históricas ou surgir rápidas mudan-
ças sociais. Basta pensar no aumento extraordinário da esperan-
ça de vida ao longo do último século, em que praticamente
duplicou (em termos médios, a nível mundial, passou da ordem
dos 30 a 40 anos para a dos 60 a 70 anos). Por outro lado, verifi-
cam-se desigualdades gritantes de esperança de vida entre di-
versas populações do mundo atual. Recorrendo aos Relatórios
do Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, é revelado-
ra a comparação entre, por exemplo, as médias de esperança de
vida à nascença dos países da África Subsariana (53 anos) e dos
países da OCDE (80 anos) (PNUD, 2010).
As desigualdades existenciais reportam-se ao “desigual re-
conhecimento dos indivíduos humanos enquanto pessoas”
(Therborn, 2006: 7). Mais concretamente, focam desigualda-
des de liberdade, direitos, reconhecimento e respeito de que os
indivíduos e grupos podem usufruir em sociedade — por opo-
sição às opressões e restrições de liberdade, às discriminações,
estigmatizações e humilhações. Fenómenos como o patriarca-
do, a escravatura ou o racismo são algumas das manifestações
mais conhecidas das desigualdades existenciais na história
das sociedades.
Existem hoje múltiplas versões dessas e doutras desigual-
dades existenciais, umas mais institucionalizadas, outras mais
24 Desigualdades Sociais Contemporâneas

difusas socialmente. Algumas das mais importantes envolvem


categorizações e interações inigualitárias entre indivíduos ori-
undos de diferentes partes do mundo (designadamente em
percursos migratórios), entre conjuntos sociais direta ou indire-
tamente inter-relacionados no contexto societal planetário (en-
volvendo, nomeadamente, preconceitos e discriminações de
caráter nacionalista, religioso ou culturalista) ou entre grupos
que se constituem à escala global (como as elites internacionais
ou as classes globais de que se fala adiante, nomeadamente nos
capítulos 5 e 10).
Pelo seu lado, as desigualdades de recursos têm sido, ainda
com mais frequência do que as anteriores, objeto de análise
por parte da sociologia e de outras ciências sociais. Em senti-
do lato, incluem dimensões como as desigualdades de ren-
dimentos e de riqueza, de escolaridade e de qualificação
profissional, de competências cognitivas e culturais, de posi-
ção hierárquica nas organizações e de acesso a redes sociais.
Como também refere Therborn, uma das concetualizações
sociológicas mais conhecidas a este respeito é a de Pierre
Bourdieu (1979), formalizada em termos das distribuições
desiguais de capitais (económicos, culturais, sociais e outros)
que estruturam o espaço social.

Sistemas de desigualdades

Importa, pois, atender à pluralidade das desigualdades e às es-


pecificidades de cada uma delas, ou mesmo às tendências, por
vezes divergentes, que se observam entre diferentes tipos de
desigualdades sociais no mundo atual. Mas importa, também,
não descurar as articulações e interdependências que se estabe-
lecem entre as diversas dimensões das desigualdades, ou mes-
mo o caráter sistémico que essas desigualdades sociais podem
assumir: o sistema de desigualdades, na expressão de Alain Bihr e
Roland Pfefferkorn (2008).
Desigualdades sociais em contexto de globalização: um referencial teórico 25

Este ponto é muito relevante, mas convém não assumir


uma posição excessivamente apriorística sobre o assunto.
As teorias sociológicas clássicas, por exemplo, de Karl Marx
(Marx e Engels, 2010 [1848]), Max Weber (1978 [1922, 1956]) ou
Talcott Parsons (1970), apontavam já para essas determinações
ou influências recíprocas, mas em registos teóricos diferentes.
O primeiro acentuava a inter-relação entre as principais desi-
gualdades, mas sob a determinação de uma instância principal
— a das desigualdades económicas estruturais — sobre as
outras, e previa a possibilidade histórica de alteração drástica
dessas relações estruturais. O segundo preferia sublinhar a au-
tonomia de princípio de cada uma das diversas ordens de desi-
gualdades principais (económica, de status, política), mas não
deixava de analisar finamente as influências concretas de umas
sobre as outras, ou as situações de não influência, em cada cir-
cunstância específica. O terceiro, destacando o caráter sistémico
das relações sociais, reconhecia tanto as inter-relações do sistema
de estratificação com outros subsistemas sociais como as autono-
mias específicas de cada um (manifestando-se, por exemplo, nas
relações ambivalentes entre família e estratificação).
Em abordagens mais recentes, o caráter sistémico das de-
sigualdades é também em geral salientado, mas com ênfase e
sentido um tanto variáveis. Os autores acima mencionados,
Bihr e Pfefferkorn (2008), destacam sobretudo a influência
recíproca e a conexão estrutural entre as principais desigual-
dades sociais do mundo atual. Outros autores também já refe-
ridos, como Charles Tilly (2005) ou Göran Therborn (2006),
embora sublinhem também as interconexões, não deixam de
chamar a atenção para que a multiplicidade de dimensões,
agentes e processos relativos às desigualdades sociais contem-
porâneas suscita um quadro complexo de dinâmicas, umas
confluentes, outras divergentes.
Essas dinâmicas de interconexão entre diferentes dimensões
das desigualdades podem conduzir, consoante os casos, quer à
acentuação, quer à atenuação, quer ainda à reconfiguração das
26 Desigualdades Sociais Contemporâneas

desigualdades, importando analisar teórica e empiricamente


cada uma dessas dimensões na sua especificidade, tanto quanto
na sua articulação. Nos capítulos seguintes esta importante ques-
tão é retomada por várias vezes, tanto no plano da elaboração
concetual como no das ilustrações empíricas.

Desigualdade categorial

Outro aspeto fundamental do ponto de vista teórico na análise


das desigualdades no presente contexto de globalização, subli-
nhado por autores como Charles Tilly (2005) ou Douglas Mas-
sey (2007), diz respeito às desigualdades categoriais.
Algumas das formas mais frequentes dessas desigualdades
envolvem categorias de género e de idade, de raça e de etnicida-
de, de classe social e de nível educacional, de nacionalidade e de
identidade cultural, entre muitas outras que se podem manifes-
tar na interação social e sedimentar institucionalmente e/ou cul-
turalmente, de modo mais ou menos duradouro.
Como refere Tilly (2005), as categorias sociais estão sempre
associadas a diferenças, mas não necessariamente a desigual-
dades. Muitas vezes, porém, geram desigualdades sociais,
dentro de um conjunto de circunstâncias e através de proces-
sos especificáveis. Segundo o autor, a formação de desigual-
dades categoriais está associada, em geral, a processos como
os de “encontro” (entre grupos sociais antes separados que,
quando entram em contacto, desenvolvem formas simbólicas
de categorização recíproca), de “imposição” (por exemplo, de
categorias discriminatórias, a conjuntos de indivíduos, por
parte de outros grupos sociais), de “negociação” (de fron-
teiras, designações, práticas e interpretações, entre indivíduos
e grupos em interação) ou de “transferência” (dessas cate-
gorias, fronteiras e relacionamentos, de certos contextos e
grupos para outros). Nas diferentes sociedades que se foram
constituindo historicamente, as desigualdades categoriais
Desigualdades sociais em contexto de globalização: um referencial teórico 27

têm tido presença forte, formas variáveis e efeitos muito


significativos.
Para Massey (2007), na análise das desigualdades catego-
riais importa tomar sobretudo em conta as relações entre dois
tipos de processos teoricamente identificáveis: os processos
cognitivos de categorização e estereotipização e os processos
sociais de competição, exploração e fechamento de oportunida-
des. Na interação social, estes processos conduzem com fre-
quência à delimitação de fronteiras, à constituição de grupos e à
formação de identidades coletivas, muitas vezes associadas a
distribuições desiguais de recursos e oportunidades, em termos
mais ou menos acentuados e persistentes.
Em termos analíticos abstratos, é possível concetualizar os
processos de constituição de desigualdades categoriais segun-
do dois sentidos. Esquematicamente: o dos processos que co-
meçam por se gerar na interação social, através do exercício de
poderes interpessoais assimétricos e de atribuições categoriais
hierarquizantes, agregando-se em seguida a nível grupal e aca-
bando por se generalizar e consolidar, a nível institucional e es-
trutural, em sistemas sociais de categorias estratificadas; e o dos
processos que, partindo de distribuições desiguais de recursos
e assimetrias institucionais de poderes (normativos e organiza-
cionais) constitutivas de categorias sociais desigualmente posi-
cionadas nos sistemas sociais, se repercutem no relacionamento
intergrupal e acabam por influir, a nível interpessoal, em múlti-
plos episódios de interação social inigualitária configurada
categorialmente.
Apesar de este esquema heurístico poder ajudar a compre-
ender a génese de certos fenómenos de desigualdade concreta-
mente identificáveis, na maior parte dos casos importa ainda ter
em conta que, em geral, a ordem social se encontra constituída
(de certo modo, “pré-constituída”) a estes três níveis de relações
sociais (Pires, 2012: 40-43). Por conseguinte, a desigualdade ca-
tegorial, tal como ela é empiricamente observável, estabelece-se
de facto em conjugações recíprocas desses três níveis entre si.
28 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Especialistas na análise das desigualdades como os que te-


mos vindo a referir neste capítulo, designadamente Therborn,
Tilly ou Massey — entre muitos outros, aliás —, destacam a im-
portância social das desigualdades categoriais, na sua multipli-
cidade potencial. Torna-se por isso relevante analisar quais
permanecem, desaparecem ou emergem no quadro social glo-
balizado atual, e quais acentuam, reduzem ou alteram a sua
presença e os seus efeitos nesse contexto.
Os capítulos seguintes ocupam-se, justamente, em boa parte,
da análise de diversas vertentes das desigualdades categoriais e
de múltiplos exemplos dessas desigualdades na sociedade globa-
lizada atual.

Fatores e processos

A análise das desigualdades sociais no mundo atual requer, ain-


da, a caracterização dos principais fatores e processos em jogo.
Segundo Göran Therborn (2006), é possível identificar
um conjunto de processos sociais tipicamente geradores de
desigualdades. Nesses mecanismos de desigualdade incluem-se
os de “distanciamento” (geração de desigualdades como
resultado de processos de competição ou concorrência em
sistemas de interdependência, nomeadamente mercados ou
quase-mercados), de “exclusão” (geração de desigualdades por
efeito de restrições seletivas que certos grupos colocam ao acesso
de outros a recursos e oportunidades), de “hierarquização” (gera-
ção de desigualdades por efeitos de institucionalização de posi-
ções de superioridade ou inferioridade nas organizações formais)
e de “exploração” (geração de desigualdades por efeito da apro-
priação assimétrica por uns de bens e valores em larga medida
produzidos por outros).
Não menos importante é a identificação e caracterização
de processos sociais que reduzem ou eliminam desigualda-
des. Entre esses mecanismos de igualdade contam-se tipicamente
Desigualdades sociais em contexto de globalização: um referencial teórico 29

os de “convergência” [catching-up] (abrangendo processos de


mudança sistémica, igualização de oportunidades, políticas
compensatórias e ações afirmativas), de “inclusão” (estado de
direito, cidadania, serviços públicos, possibilidades de migra-
ção, direitos humanos), de “compressão” (ou encurtamento,
das hierarquias institucionais e organizacionais, envolvendo
processos de capacitação, empoderamento [empowerment],
democratização organizacional ou associativismo) e de “redis-
tribuição” (estado-providência, fiscalidade progressiva, po-
líticas sociais, mutualismo).
Importa ainda destacar, entre as principais componentes da
perspetiva teórica proposta por Therborn, a identificação de al-
guns fatores explicativos fundamentais, a tomar em conta na aná-
lise das atuais situações e dinâmicas de desigualdade à escala
mundial: a “história global” (com destaque para as interações
internacionais e para as sedimentações, institucionalizações e
efeitos de percurso [path-dependency] por elas legados), as “im-
bricações globais” (entre estados e nações, por um lado, e movi-
mentos e organizações transnacionais, por outro) e os “fluxos
globais” (de pessoas, capitais, mercadorias e informação).
O autor não se limita a propor a teorização referida. Ilustra-a
também com estudos de diversos investigadores que analisam
dimensões, mecanismos e fatores específicos das desigualdades
sociais contemporâneas — contemplando, designadamente,
desigualdades relativas à saúde, ao trabalho, à economia, ao
conhecimento e à mobilidade social, e tomando por referência
contextos variados do panorama mundial (Therborn, 2006).
Numa outra obra recente, apresenta uma análise sociológica, ao
mesmo tempo ampla e sintética, dos principais componentes, fa-
tores e atores do mundo globalizado atual e das desigualdades
nele prevalecentes (Therborn, 2011).
As teorizações a este respeito são diversas. Por exemplo,
Boaventura de Sousa Santos (2001) relaciona as desigualdades
contemporâneas com os processos de globalização, no âmbito
de uma perspetiva de caráter multidimensional (globalização
30 Desigualdades Sociais Contemporâneas

económica, social, política, cultural), incidindo sobre uma plu-


ralidade de constelações de práticas (“interestatais”, “capi-
talistas globais”, “sociais e culturais transnacionais”), atenta a
dinâmicas de diferentes intensidades (“globalização de alta
intensidade”, “globalização de baixa intensidade”) e, funda-
mentalmente, polarizada (entre “globalização hegemónica” e
“globalização contra-hegemónica”).
Apesar da variedade de perspetivas, os resultados analíti-
cos de diferentes abordagens podem com frequência ser usados
de maneira complementar. Ficando de momento apenas por
mais algumas das principais obras recentes sobre desigualda-
des em contexto de globalização, para além das que temos vin-
do a referir, não se poderia deixar de assinalar as seguintes.
Desde logo, as análises de Branko Milanovic (2011a) que,
centrando-se nas desigualdades de rendimentos, identifica os
parâmetros que hoje em dia caracterizam essas desigualdades à
escala global, os fatores principais que lhes subjazem e os meca-
nismos que articulam as desigualdades nacionais, internacio-
nais e globais de rendimentos no mundo atual.
Pelo seu lado, Anne-Catherine Wagner (2007), ao debru-
çar-se sobre algumas das principais vertentes, categorias e di-
nâmicas das desigualdades contemporâneas, evidencia não
apenas dimensões socioeconómicas mas também sociocultu-
rais dessas desigualdades e relaciona as estruturas de classes
atuais com os processos de mobilidade internacional em con-
texto de globalização.
Quanto a Richard Wilkinson e Kate Pickett (2009), o seu estu-
do — que rapidamente se tornou referência obrigatória — mostra
como as desigualdades de rendimentos nas sociedades de hoje,
designadamente nas áreas do globo mais desenvolvidas, são fator
decisivo de agravamento de múltiplos problemas sociais.
No mesmo sentido vai também Daniel Dorling (2010), colo-
cando o enfoque principal na importância que determinados fa-
tores culturais (valores, crenças) têm na geração, persistência e
acentuação das desigualdades sociais contemporâneas.
Desigualdades sociais em contexto de globalização: um referencial teórico 31

Todas estas análises relacionam as desigualdades sociais


contemporâneas com os atuais processos de globalização. Vári-
os dos seus tópicos são retomados com mais pormenor em capí-
tulos seguintes.
Capítulo 3
Instrumentos metodológicos de análise
das desigualdades

Indicadores de desigualdades

Depois de uma abordagem geral de teorias atuais sobre o tema


das desigualdades sociais em contexto de globalização, o pre-
sente capítulo tem um objetivo diretamente complementar: fo-
car, também em termos gerais, alguns aspetos metodológicos
centrais nas análises das desigualdades.
O primeiro ponto a tratar é o dos indicadores de desigualdades.
A captação empírica das diversas desigualdades sociais (as
múltiplas dimensões das desigualdades) requer a utilização de
indicadores de desigualdades. Muito dos indicadores de carac-
terização social habituais podem ser usados também como indi-
cadores de desigualdades — na medida em que as dimensões
de constituição das sociedades cuja análise esses indicadores
operacionalizam envolvem com frequência situações de desi-
gualdade social.
É o caso de dois indicadores fundamentais das desigualda-
des sociais contemporâneas: os indicadores de rendimento e os in-
dicadores de escolaridade. Eles foram, aliás, mencionados como
ilustração logo desde início, precisamente por constituírem
indicadores de duas das mais importantes dimensões das desi-
gualdades sociais na sociedade de hoje: as desigualdades eco-
nómicas e as desigualdades educativas.
33
34 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Pode ser útil, de passagem, salientar a importância que os


rendimentos monetários e as qualificações escolares atualmen-
te têm, tanto na vida das pessoas como na estrutura das socieda-
des. Convém, no entanto, não deixar de chamar a atenção para
que as condições sociais contemporâneas apresentam vincadas
especificidades a este respeito. Nem sempre, nem em todas as
sociedades, os recursos económicos e culturais mais difundidos
tomaram a forma de rendimentos monetários e qualificações
escolares.
Estas considerações ajudam a colocar a questão no plano
metodológico. O que é que significam os indicadores de rendi-
mento e de escolaridade que se encontram nas fontes estatísti-
cas e nos estudos a esse respeito? Para o captar de maneira
esclarecida e rigorosa, é necessário conhecer bem os fundamen-
tos concetuais e os procedimentos metodológicos da constru-
ção desses indicadores. No mínimo convém, ao contactar com
as bases de dados estatísticos on-line sobre rendimentos e esco-
laridades, examinar com cuidado as fichas metodológicas em
regra nelas incluídas, relativas a esses indicadores, de modo a
poder-se interpretá-los e usá-los criteriosamente.
Em termos gerais, importa fazer um breve inventário de
aspetos metodológicos fundamentais que se colocam a respeito
destes indicadores. Começa-se pelos indicadores de rendimen-
tos, mas vários dos pontos metodológicos abordados aplicam-se
igualmente a outros indicadores.
Desde logo, que conteúdo concetual têm os indicadores de
rendimentos? Nos principais sistemas de indicadores hoje em
dia disponíveis, e nas análises que neles se apoiam, são conside-
rados sobretudo os “rendimentos monetários”. Mas também
podem ser incluídos rendimentos com outra forma económica
— por exemplo, os rendimentos em géneros ou os rendimentos
implícitos no autoconsumo. Outro aspeto a considerar é o das
“fontes de rendimento”. Os rendimentos da maioria das pes-
soas nas sociedades atuais tendem a ser rendimentos de tra-
balho — de trabalho assalariado (o mais generalizado) e de
Instrumentos metodológicos de análise das desigualdades 35

trabalho por conta própria. Mas os indivíduos e as famílias


podem também auferir rendimentos de capitais (ou de proprie-
dades) e rendimentos de transferências sociais (pensões, sub-
sídios, etc.). Por outro lado, se se quiser que o indicador se
reporte aos “rendimentos disponíveis” para as pessoas e famí-
lias, ter-se-á de deduzir os impostos e outras contribuições.
Nestes, como noutros pontos de caráter metodológico re-
feridos adiante, colocam-se questões de interpretação e de
comparação. Importa saber com rigor para que aspetos das so-
ciedades analisadas os indicadores efetivamente remetem.
E importa, igualmente, só comparar o comparável; ou, pondo
o problema de outra maneira, ter presentes os graus de perti-
nência e os limites das comparações.
Ainda do ponto de vista do conteúdo concetual, o conceito
de “rendimentos” distingue-se do de “riqueza” (conjunto de
bens e valores possuídos) e do de “despesas” (realizadas pelas
pessoas ou pelas famílias). Na caracterização das desigualda-
des económicas, são por vezes usados indicadores de despesas
(ou consumos) em vez de indicadores de rendimentos. Pode ha-
ver várias razões para isso, nomeadamente de ordem metodo-
lógica, respeitantes a uma possível maior credibilidade das
declarações obtidas nos inquéritos que recolhem a informação
de base a este respeito. Com efeito, a recolha de informação so-
bre rendimentos é particularmente melindrosa socialmente, re-
velando-se objeto potencial de alguma distorção declarativa.
Simplificando: possível subdeclaração, por receio de atuação
fiscal; ou possível sobredeclaração, por receio de desconsidera-
ção social.
Porém, a inquirição, a medição e a interpretação dos indica-
dores de despesa não se revestem de menos problemas ou me-
nores dificuldades (semelhantes, em alguns aspetos; diferentes,
noutros). Para além disso, os dois indicadores (de rendimentos
e de despesas) não são diretamente indicadores da mesma
dimensão da existência social, mas sim de dimensões diferen-
tes, embora claramente conectadas entre si. Os modos de vida
36 Desigualdades Sociais Contemporâneas

contemporâneos são largamente estruturados tanto pela anga-


riação de rendimentos como pela efetuação de despesas com re-
curso a esses rendimentos — processo social que está na base
das conexões encontradas entre as distribuições empíricas dos
dois indicadores. Mais do que alternativas metodológicas (que,
em parte, também são), eles podem ser usados com vantagem
como complementares, cada um deles permitindo, relativa-
mente ao outro, fazer luz adicional sobre as desigualdades eco-
nómicas e sociais.
Assinale-se, ainda, de passagem, que a decifração do signi-
ficado das relações entre as distribuições de rendimentos e as
distribuições de despesas é complexificada pelo facto de, nas
diversas populações, se encontrarem diferentes estruturas das
despesas (variação do peso proporcional de alguns tipos de
despesas no conjunto das despesas dos indivíduos ou das famí-
lias; por exemplo, despesas com a alimentação e o alojamento,
por um lado, e despesas com a cultura e o lazer, por outro). Estas
diferentes estruturas de despesas não decorrem apenas dos ní-
veis de rendimentos disponíveis, mas também de outros aspe-
tos relativos aos estilos de vida e de consumo.
Outro problema metodológico fulcral é o das unidades de
análise. No caso dos rendimentos, muitas das análises de desi-
gualdades referem-se a distribuições dos rendimentos dos
indivíduos em determinado país ou então a comparações en-
tre diversos países quanto aos respetivos rendimentos médios
individuais e/ou quanto aos graus de desigualdade nas distri-
buições nacionais de rendimentos individuais. Os indivíduos
constituem uma unidade de recolha e análise de informação
aparentemente bastante simples e direta. Mas esta opção não
deixa de conter um conjunto de dificuldades. Uma delas de-
corre do facto de nem todas as pessoas nas sociedades atuais
auferirem diretamente rendimentos — por exemplo, as crian-
ças (na maioria dos casos).
Nas sociedades contemporâneas, por um lado, os rendimen-
tos tendem a ser partilhados, de algum modo, pelos membros
Instrumentos metodológicos de análise das desigualdades 37

dos grupos domésticos ou agregados familiares com residência


comum. Mas, por outro lado, a variabilidade de situações a este
respeito é muito grande, com situações familiares e residenciais
muito diversas, incluindo um maior ou menor número de pesso-
as corresidentes e um maior ou menor grau de colocação em co-
mum dos rendimentos individuais dos membros dos grupos
domésticos — situações estas que também vão variando ao lon-
go dos ciclos de vida.
Em alguns casos, o indivíduo é tomado como unidade de
análise; noutros casos, a unidade de análise considerada é o
agregado familiar. Mas esta segunda opção coloca também pro-
blemas de comparação, uma vez que o número variável de pes-
soas constitutivas do agregado familiar e a diversa capacidade
de captação de rendimentos de cada uma, assim como a maior
ou menor partilha de custos na vida em comum, podem dar sig-
nificado económico e social bastante diferente a níveis iguais de
rendimentos.
A solução hoje em dia mais utilizada para os indicadores de
rendimento, designadamente na União Europeia e na OCDE, é
a do “rendimento monetário anual líquido por adulto equiva-
lente”. Em termos gerais, a informação é recolhida a partir dos
agregados familiares, mas é tratada por indivíduo, recorren-
do-se a um “rendimento ajustado” por “adulto equivalente”.
A “escala de equivalência da OCDE modificada”, utilizada em
diversos estudos recentes, atribui as ponderações de 1, de 0,5 e
de 0,3, respetivamente, ao primeiro adulto do grupo doméstico,
a cada um dos outros adultos e aos menores de 14 anos (Rodri-
gues, 2007).
Entre diversas outras possibilidades, refira-se a que é usada
num importante relatório da OCDE (Growing Unequal? Income
Distribution and Poverty in OECD Countries, 2008), em que o ren-
dimento é ajustado usando como ponderação a raiz quadrada
do número de membros do grupo doméstico.
Na análise das desigualdades sociais contemporâneas são
também fundamentais os indicadores de escolaridade ou indicadores
38 Desigualdades Sociais Contemporâneas

de qualificação escolar. A sua importância atual é decisiva e, por


isso, voltar-se-á com frequência adiante aos indicadores e às aná-
lises a esse respeito. De momento, importa sobretudo chamar a
atenção para alguns aspetos metodológicos.
Neste domínio, os dois indicadores mais habituais são o nú-
mero de anos de estudos e o nível de escolaridade atingido. Do ponto
de vista das suas propriedades formais, têm características dife-
rentes. O primeiro — o número de anos de estudos — é uma es-
cala de intervalos ou uma variável de proporções, e pode ser
trabalhado de forma aproximativamente semelhante ao indica-
dor de rendimento. O segundo — o nível de escolaridade — é
um indicador ordinal (pelo menos, em primeira aproximação),
em que os níveis de ensino se sucedem hierarquicamente, mas
não constitui uma variável de proporções.
Em termos gerais, as propriedades formais dos indicadores
mais usados nas ciências sociais são diferentes consoante assu-
mam o caráter de variáveis contínuas ou discretas, ou conforme
constituam variáveis de proporções, ordinais ou categoriais. As
suas potencialidades e limites são diferenciados nas análises
das desigualdades sociais, em termos de recolha, tratamento e
comparabilidade da informação empírica.
Em particular, importa aqui chamar a atenção para os
problemas de comparabilidade relativos ao indicador “nível de
escolaridade”. Como ele se baseia nos sistemas de ensino insti-
tucionalizados em cada país e em cada época, as comparações
internacionais e as séries temporais requerem o conhecimento
prévio de cada um desses sistemas e o estabelecimento de equi-
valências apropriadas, o que nem sempre é fácil, atendendo aos
múltiplos particularismos dos sistemas nacionais de ensino, às
suas mudanças frequentes e à variabilidade dos percursos de
escolarização possíveis em muitos deles. Um instrumento que
ajuda a ultrapassar algumas dessas dificuldades comparativas
é a classificação ISCED (International Standard Classification of
Education), elaborada pela UNESCO nos anos 1970 e sujeita a
posteriores atualizações.
Instrumentos metodológicos de análise das desigualdades 39

Há mais questões metodológicas habituais na utilização


dos indicadores de nível de escolaridade como, por exemplo, o
facto de eles se referirem, em geral, a níveis de ensino concluí-
dos ou completados, embora por vezes também seja usado o in-
dicador do nível de ensino mais elevado que se frequentou.
Outro problema metodológico deste indicador tem a ver
com as unidades de análise. O nível de escolaridade obtido é,
intrinsecamente, um indicador individual. São os indivíduos
que frequentam a escola e que obtêm qualificações e certifica-
dos escolares. É nessa medida que entram diretamente, em
geral, nas bases de dados estatísticos e nas análises de desigual-
dades, designadamente das distribuições desiguais de recursos
educativos.
Contudo, em certas análises de desigualdades, pode fazer
sentido reportar os níveis de escolaridade a unidades plu-
ri-individuais. Por exemplo, ao procurar-se verificar até que
ponto os recursos escolares dos pais condicionam ou influenci-
am os trajetos escolares dos filhos, pode atribuir-se um valor de
escolaridade ao grupo doméstico de origem, ou ao seu núcleo
conjugal principal. Para isso, tem de combinar-se as escolarida-
des de várias pessoas, segundo algum critério. Podem ser toma-
das, por exemplo, as escolaridades do pai e da mãe de cada
indivíduo, combinando-as segundo o critério da “escolaridade
mais elevada”.
Tal como em qualquer outro indicador, trata-se de uma
aproximação à realidade, construída através de um conjunto de
operações cujas especificidades e implicações importa ter cui-
dadosamente em conta na interpretação. Neste caso, a par das
potencialidades do indicador, ele apresenta também grandes li-
mitações, como o facto de deixar de fora a “estrutura das escola-
ridades” no grupo doméstico de origem, nomeadamente as
simetrias ou assimetrias de escolaridade entre pai e mãe — algo
que, para algumas análises, pode ser bastante relevante.
40 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Medidas de desigualdades

Em ligação direta com os “indicadores de desigualdades”, im-


porta referir alguns instrumentos metodológicos de grande
importância enquanto “medidas de desigualdades”, designa-
damente os coeficientes de Gini e os rácios de quantis.
Estes instrumentos analíticos são particularmente adequa-
dos à medição do grau de desigualdade que caracteriza a distri-
buição de um certo atributo (rendimento, escolaridade, etc.)
numa dada população, assim como à comparação dos graus
de desigualdade que se verificam entre populações (por exem-
plo, nacionais) a respeito desse atributo — desde que os indica-
dores usados para caracterizar as distribuições dos atributos
em causa sejam operacionalizáveis como variáveis de propor-
ções. É o caso das distribuições de rendimentos, ou das distri-
buições de anos de escolaridade, ou ainda, por exemplo, das
distribuições de longevidade (ou da esperança de vida), entre
várias outras muito relevantes nas análises das desigualdades
sociais contemporâneas.
As curvas de Lorenz relativas à distribuição de um determi-
nado atributo numa população, e os coeficientes de Gini (ou ín-
dices de Gini) calculados a partir delas, são de interpretação
bastante intuitiva. Uma curva de Lorenz representa a distribui-
ção numa população de um determinado atributo (por exem-
plo, o rendimento), projetada num referencial de dois eixos
ortogonais: o da população acumulada (eixo das abcissas) e o
dos valores acumulados do atributo em causa (eixo das ordena-
das). O coeficiente de Gini indica sinteticamente o grau de desi-
gualdade de tal atributo nessa população.
Graficamente, o coeficiente de Gini (G) corresponde ao rá-
cio entre duas áreas: G = A/B, sendo A a área definida entre a li-
nha de igualdade perfeita (diagonal entre os dois eixos) e a linha
da distribuição observada (curva de Lorenz), e B toda a área
abaixo da linha de igualdade perfeita. Assim, o coeficiente de
Gini pode assumir valores que variam entre 0 (igualdade total)
Instrumentos metodológicos de análise das desigualdades 41

e 1 (máxima desigualdade). Quanto mais se aproximar de 0, me-


nor é a desigualdade da distribuição desse atributo na popula-
ção em estudo; quanto mais se aproximar de 1, maior é a
desigualdade.
Outras medidas de desigualdade muito usadas na análise
de distribuições de atributos traduzíveis em indicadores quan-
titativos de proporções são os rácios de quantis (Piketty, 2001
[1997]). Por exemplo, nas análises das desigualdades de rendi-
mentos, é frequente calcular o rácio P80/P20 (percentil oitenta
sobre percentil vinte) ou o rácio S80/S20, isto é, o rácio entre o
rendimento dos 20% da população com rendimentos mais ele-
vados e o rendimento dos 20% da população com rendimentos
mais baixos. Mas também são habituais os rácios P90/P10 ou
S90/S10, e outros.
Se se quiser focar a análise no que se passa, em termos de
desigualdade, na parte superior da distribuição, pode calcu-
lar-se o rácio S90/S50, ou algo semelhante; o mesmo para a parte
inferior (S50/S10). A comparação entre rácios como estes últi-
mos pode elucidar sobre se, numa dada distribuição, as desi-
gualdades são maiores no topo ou na base.

Categorias sociais e análise das desigualdades

Uma vertente da maior importância nas análises das desigualda-


des tem a ver com categorias sociais. Referiu-se já, nos capítulos
anteriores, como grande parte das desigualdades são categoriais:
envolvem categorias sociais e desigualdades entre elas.
Do ponto de vista metodológico, a análise das desigualdades
categoriais implica, por um lado, analisar as distribuições de de-
terminados atributos (rendimento, riqueza, escolaridade, longe-
vidade e muitos outros) por categorias sociais. Torna-se possível,
assim, verificar até que ponto aqueles atributos estão igual ou
desigualmente distribuídos entre as categorias sociais conside-
radas. Pode tratar-se, por exemplo, das desigualdades entre
42 Desigualdades Sociais Contemporâneas

homens e mulheres (categorias sociais de sexo/género) relativa-


mente a rendimentos ou a escolaridades. Ou pode tratar-se das
desigualdades a respeito destas variáveis, ou de outras, entre jo-
vens, adultos e idosos (categorias sociais etárias / de fase do ciclo
de vida), ou entre indivíduos pertencentes a diferentes classes
sociais (categorias sociais de classe), ou entre pessoas de diversos
grupos étnicos (categorias sociais étnicas), ou entre residentes de
variados territórios (categorias sociais geográficas), etc.
Voltam a colocar-se, deste modo, os mesmos requisitos me-
todológicos atrás mencionados, relativos a indicadores e medi-
das de desigualdades, mas acrescidos de um novo requisito, o
de especificar os sistemas de categorias sociais em causa. Esta é
uma questão que se pode revelar bastante complexa.
Abreviando argumentos, e numa perspetiva predominan-
temente metodológica, tais sistemas de categorias podem ter
uma feição mais nominalista ou mais substantiva. Quando,
para dar um exemplo simples, se procura analisar se há desi-
gualdades significativas de níveis de escolaridade entre catego-
rias etárias, e, em caso afirmativo, como se configuram, pode
usar-se um sistema categorial simplesmente nominalista, divi-
dindo a população em categorias que representam intervalos
de 10 anos de idade (ou quaisquer outros intervalos).
Mas pode também usar-se um sistema classificatório de
outro tipo, tal como: jovens, adultos e idosos. Neste caso, o siste-
ma categorial pode pretender traduzir uma perspetiva teórica
(uma teoria das fases do ciclo de vida na sociedade contemporâ-
nea), ou uma perspetiva social corrente (quer dizer, corrente na
sociedade estudada — nos seus padrões culturais, nos seus
quadros institucionais, nos mapas mentais dos atores sociais
que dela fazem parte), ou ambas as coisas (nos casos em que as
teorias incluem e retrabalham as perspetivas sociais correntes).
Neste segundo tipo de abordagem metodológica às catego-
rias sociais, as potencialidades interpretativas e explicativas
podem muitas vezes ser maiores, mas, em contrapartida, os
problemas de operacionalização são também, em geral, mais
Instrumentos metodológicos de análise das desigualdades 43

complexos. Onde estabelecer as fronteiras categoriais? Terão as


categorias estabilidade e precisão suficientes para uma análise
rigorosa? Estes são alguns dos problemas habituais.
Entre os sistemas categoriais mais usados nas análises de
desigualdades encontram-se os sistemas de categorias de clas-
ses sociais. Estes, por sua vez, são com frequência operacionali-
zados, pelo menos no que respeita a uma parte importante
do seu conteúdo concetual, e sobretudo para análises exten-
sivas de caráter quantitativo, por sistemas de indicadores socio-
profissionais (por vezes, recorre-se igualmente a indicadores
socioeducacionais).
Alguns destes sistemas categoriais são bastante usados
na análise sociológica, nomeadamente a tipologia G (Gold-
thorpe) ou EGP (Erikson-Goldthorpe-Portocarrero) (Erikson
e Goldthorpe, 1993), de que a tipologia ESeC (European
Socio-economic Classification), proposta por Rose e Harri-
son (2010), constitui uma nova versão; a tipologia W (Wright,
1997); a tipologia E-A (Esping-Andersen, 1993); a tipologia
PCS (sistema francês de profissões e categorias socioprofissi-
onais) (Desrosières e Thévenot, 1988); e a tipologia ACM
(Almeida, Costa e Machado, 1994).
A tipologia ACM consiste, em termos operatórios, num indi-
cador socioprofissional de lugares de classe, construído com
base em duas variáveis principais, a “situação na profissão” e a
“profissão”. A variável “profissão” é ela própria operaciona-
lizada segundo um sistema classificatório bastante complexo e
exaustivo, a ISCO (International Standard Classification of Occu-
pations), da responsabilidade da OIT — Organização Internacio-
nal do Trabalho (adaptada em Portugal com a designação de CPP
— Classificação Portuguesa de Profissões). A variável situação
na profissão tem como categorias principais a de “trabalhador
por conta de outrem” (TPCO) e a de “trabalhador por conta
própria” (TPCP), decompondo-se esta última em “TPCP sem
empregados” (ou “trabalhador independente”) e “TPCP com
empregados” (ou “patrão”).
44 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Um indicador socioprofissional não esgota todo o conteúdo


do conceito de classe social, devendo ser complementado com
outras fontes informativas e outras vertentes de análise, de
acordo com os quadros teóricos de referência utilizados. Mas
nem por isso deixa de ser um instrumento analítico de grande
utilidade.
Na sua versão principal, a tipologia ACM inclui cinco
categorias socioprofissionais: “empresários, dirigentes e pro-
fissionais liberais” (EDL), “profissionais técnicos e de enqua-
dramento” (PTE), “trabalhadores independentes” (TI), “em-
pregados executantes” (EE) e “operários” (O). Mas pode ser
decomposta ou agregada noutras versões, consoante os objetos
de estudo, as fontes informativas disponíveis, as unidades de
análise (indivíduo ou agregado familiar), a abrangência (só
ativos ou também outros componentes da população) e a consi-
deração ou não de situações de pluriatividade (Costa, 2008
[1999]).
Algumas das vantagens comparativas da tipologia ACM,
comparativamente com outras referidas, são as seguintes: (a) dá
tradução operatória a um conjunto alargado de dimensões teó-
ricas centrais nas análises de classes; (b) é sensível a uma grande
variedade de situações empíricas encontradas nas sociedades
atuais; (c) é muito compacta, apesar das duas propriedades an-
teriores, o que facilita os tratamentos estatísticos e propicia
análises sociológicas integradoras; (d) é compatível tanto com
fontes estatísticas oficiais como com operações de recolha de in-
formação específicas da investigação sociológica; (e) permite
múltiplas desagregações e agregações, consoante os objetos de
estudo e as disponibilidades informativas; (f) usa uma termino-
logia facilmente reconhecível na atualidade, procurando evitar
conotações anacrónicas.
Instrumentos metodológicos de análise das desigualdades 45

Bases de dados em linha sobre desigualdades

As ciências sociais têm vindo a desenvolver e utilizar um con-


junto numeroso e variado de dispositivos metodológicos de
análise das desigualdades.
Seria excessivo prolongar aqui o assunto, até porque alguns
dos mais importantes desses instrumentos analíticos (indicado-
res, medidas, classificações) foram já abordados, relativamente
a algumas das principais dimensões das desigualdades (de ren-
dimentos, educativas, socioeconómicas).
Mas o leitor interessado poderá encontrar muito mais
exemplos de indicadores, medidas e classificações de desi-
gualdades, e muito mais indicações metodológicas a este
respeito, em obras como The Handbook of Inequality and Socioe-
conomic Position (Shaw et al., 2007) ou em glossários me-
todológicos como o do Observatório das Desigualdades
(http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt).
Como se referiu logo no primeiro capítulo, pode ser extre-
mamente interessante e reveladora a consulta e exploração das
principais bases de dados em linha, nacionais e internacionais,
com informação estatística relevante sobre desigualdades soci-
ais. Essas bases de dados são acessíveis através de sítios eletró-
nicos (websites) como os listados a seguir. Na sua consulta,
importa prestar atenção não só aos dados mas também à estru-
tura dos indicadores e às notas metodológicas (à metainforma-
ção, em geral).
O website Gapminder (http://www.gapminder.org) é parti-
cularmente interessante. Nele é possível trabalhar séries tempo-
rais e dados comparativos internacionais sobre desigualdades
económicas, educativas, de saúde, etc., construindo gráficos es-
táticos ou animados muito informativos e heurísticos. Grande
parte da informação aí contida tem por base, precisamente, indi-
cadores do PNUD (Programa das Nações Unidas para o De-
senvolvimento), responsável pelos já referidos Relatórios do
Desenvolvimento Humano, os quais constituem, eles próprios
46 Desigualdades Sociais Contemporâneas

(http://www.undp.org), como se teve já oportunidade de assina-


lar, instrumento valiosíssimo para a análise das desigualdades
numa perspetiva global.
Listam-se de seguida alguns dos mais relevantes sítios ele-
trónicos com bases de dados (indicadores e análises) sobre
desigualdades.

Education for All Global Monitoring Report:


http://www.unesco.org/new/en/education/themes/leading-
the-international-agenda/efareport/
European Social Survey: www.europeansocialsurvey.org
Eurostat: http://epp.eurostat.ec.europa.eu
Gapminder: for a fact-based world view:
http://www.gapminder.org
Google Public Data Explorer:
http://www.google.com/publicdata/home
Inequality Around the World: http://web.worldbank.org
Inequality Watch: http://inequalitywatch.eu/
Instituto Nacional de Estatística: http://www.ine.pt
International Labour Organisation: http://www.ilo.org
Luxembourg Income Study: http://www.lisdatacenter.org
Observatoire des inégalités: http://www.inegalites.fr
Observatório das Desigualdades:
http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt
OECD — Organisation for Economic Co-operation and
Development: http://www.oecd.org
The Equality Trust: http://www.equalitytrust.org.uk/
UNDP — United Nations Development Programme / Human
Development Reports: http://www.undp.org
Worldmapper: http://www.worldmapper.org
Capítulo 4
Desigualdades de recursos e oportunidades

Distribuições de rendimentos e desigualdades


económicas

Com o capítulo 4 entra-se numa segunda parte do conteúdo


deste livro. Os três primeiros capítulos tiveram como objetivo
proceder a uma colocação inicial, em termos gerais, de um con-
junto de questões fundamentais relativas à problemática, à teo-
rização e à metodologia de análise das desigualdades sociais
contemporâneas. Nesta segunda parte, composta pelos sete ca-
pítulos subsequentes, especializam-se os temas, embora reen-
quadrando-os sempre naquelas três vertentes.
Assim, o presente capítulo incide mais especificamente
sobre as desigualdades de recursos e oportunidades. Reto-
ma-se, deste modo, a sistematização de Göran Therborn apre-
sentada no capítulo 2: desigualdades “de recursos”, “vitais” e
“existenciais”. Não se pretende, no entanto, assumir rigida-
mente tal sistematização. Ela constitui um ponto de partida
teórico inegavelmente heurístico, embora apenas a traços lar-
gos e em primeira aproximação. Com efeito, mal se começa a
especificar a análise, a distinção entre aquelas dimensões ten-
de a perder nitidez e as vertentes das desigualdades surgem
muito mais interligadas do que à primeira vista poderia pare-
cer. Um mesmo traço específico de desigualdade social pode
47
48 Desigualdades Sociais Contemporâneas

remeter para mais do que uma dessas grandes dimensões das


desigualdades.
Por exemplo, Therborn inclui um conjunto de aspetos relati-
vos às desigualdades de oportunidades no tópico das “desi-
gualdades existenciais”. É uma concetualização pertinente, sem
dúvida, para fenómenos de desigualdade de oportunidades li-
gados ao desigual reconhecimento de direitos e identidades, o
qual gera com frequência fenómenos de discriminação, estigma-
tização e segregação (abordados de maneira mais desenvolvida
em capítulos seguintes).
Mas não são menos importantes as desigualdades de
oportunidades geradas, de modo mais ou menos direto, pe-
las desigualdades de recursos (rendimentos, qualificações,
etc.); e, vice-versa, as desigualdades de recursos geradas por
desigualdades de oportunidades (no acesso à escolaridade,
ao emprego, etc.). Esse é frequentemente, com efeito, o caso
de desigualdades económicas e educativas como as examina-
das de seguida. Estas relações entre desigualdades de recur-
sos e desigualdades de oportunidades tendem a assumir um
caráter estrutural e socialmente transversal, razão porque
importa tratá-las em estreita articulação.
Pondo a questão em moldes um tanto diferentes, este capí-
tulo 4 reporta-se às dimensões de caráter mais diretamente
“distributivo” e “estrutural” das desigualdades (distribuições
estruturais de recursos e oportunidades).
Antes de mais, importa recolocar a questão fundamental
das tendências atuais quanto ao crescimento ou diminuição das
desigualdades económicas (ou, mais especificamente, das desi-
gualdades de rendimentos) a nível mundial. Um conhecido es-
pecialista neste tipo de análises, Branko Milanovic (2007), tem
vindo a mostrar como, consoante os conceitos de desigualdade
utilizados, e as correspondentes formas de operacionalização,
as ilações sobre as referidas tendências resultam diferentes.
Milanovic distingue entre um “conceito 1” de desigualda-
de, ou desigualdade internacional não ponderada, um ”conceito 2”
Desigualdades de recursos e oportunidades 49

de desigualdade, ou desigualdade internacional ponderada (pelo


volume populacional dos países) e um “conceito 3” de desi-
gualdade, ou desigualdade global. Os dois primeiros referem-se a
desigualdades entre países; as fontes de informação são as esta-
tísticas nacionais. O terceiro refere-se diretamente a desigual-
dades entre indivíduos, à escala mundial, e recorre, como fonte
de informação, a inquéritos diretos às populações (indivíduos e
grupos domésticos).
Usando o conceito 1, operacionalizado basicamente pelo
PNB per capita de cada país, e recorrendo a medidas de desigual-
dade como o coeficiente de Gini, os dados disponíveis para
séries de longo prazo permitem verificar que as desigualdades
económicas internacionais — isto é, entre países — tenderam a
registar um aumento contínuo e significativo ao longo de toda a
segunda metade do século XX (entre os anos 1950 e a primeira
década dos anos 2000, o coeficiente de Gini passou da ordem
dos 0,45 à ordem dos 0,55, o que é significativo).
No entanto, se se usar o conceito 2, ponderando os valores do
conceito 1 pela população de cada país, as desigualdades econó-
micas internacionais revelam uma tendência continuada de di-
minuição, ao longo do mesmo período de meio século (nesta
perspetiva, o coeficiente de Gini passou de perto de 0,58 para cer-
ca de 0,50). Examinando com mais pormenor, verifica-se que
quase todo este efeito decorre do forte crescimento económico da
China nas últimas décadas e do peso que esse país tem na po-
pulação mundial. Sem a China, a desigualdade internacional
ponderada manter-se-ia, nesse período, aproximadamente cons-
tante (coeficiente de Gini um pouco superior a 0,50).
Usando o conceito 3, os dados disponíveis mostram um grau
de desigualdade económica na população mundial muito mais
elevado do que o obtido com os conceitos 1 e 2. Foi possível calcu-
lar, para esta desigualdade de rendimentos global, em meados da
primeira década do século XXI, um coeficiente de Gini de 0,70 (Mi-
lanovic, 2011a). O grau mais elevado de desigualdade registado
segundo o conceito 3 decorre, em parte, de as fontes serem de tipo
50 Desigualdades Sociais Contemporâneas

diferente (neste último caso, são inquéritos diretos às populações),


mas corresponde, também, fundamentalmente, ao facto de abar-
car não só as desigualdades entre países mas também as desigualdades
dentro dos países. Por outro lado, o facto de as séries temporais com-
paráveis serem ainda curtas torna mais difícil, para já, determinar
tendências nítidas a este respeito, embora as indicações disponí-
veis apontem para um aumento destas desigualdades de rendi-
mentos globais.
Cada um destes três conceitos incide, afinal, sobre três as-
petos diferentes e complementares das desigualdades nas dis-
tribuições de recursos económicos no mundo atual.
Numa perspetiva de longo prazo, é também muito reve-
ladora a análise realizada por Thomas Piketty e Emmanuel
Saez (2007) sobre os rendimentos de topo nos Estados Unidos
da América ao longo de todo o século XX. O estudo mostra
claramente como, nesse país, a população situada no decil de
topo da distribuição de rendimentos captava cerca de 45%
dos rendimentos nacionais, desde o início do século XX até
à Segunda Guerra Mundial. A partir dessa altura, com a
Grande Depressão, a economia de guerra, as alterações das
relações laborais e as políticas públicas do New Deal (desig-
nadamente, com as políticas de redistribuição fiscal), essa
proporção desceu drasticamente para pouco mais de 30%.
A situação manteve-se estável por várias décadas, até que,
em meados dos anos 70, e mais intensamente a partir dos
anos 80, a referida fração dos rendimentos começou a aumen-
tar rapidamente, encontrando-se de novo, no início dos anos
2000, perto dos 45%.
Os fatores na base desta segunda inflexão são objeto de con-
trovérsia, mas aponta-se, em geral, quer a redução dos impos-
tos para os rendimentos mais elevados e o forte crescimento das
remunerações de altos dirigentes empresariais, quer as trans-
formações nas relações laborais associadas às transformações
tecnológicas, organizacionais e profissionais da sociedade da
informação e do conhecimento, aos processos de globalização e
Desigualdades de recursos e oportunidades 51

às mudanças de clima político — processos que podem, aliás,


estar interligados, pelo menos em parte.
De notar que, examinando mais de perto, se verifica que es-
tas oscilações de longo prazo ocorrem, afinal, sobretudo no
percentil de topo (1% da população com rendimentos mais ele-
vados), o que mostra a importância da concentração de rendi-
mentos, e das políticas públicas a esse respeito, na manutenção
ou na alteração das desigualdades económicas.
Pelo seu lado, um importante estudo da OCDE, Growing
Unequal? Income Distribution and Poverty in OECD Countries
(2008), evidencia que, entre meados dos anos 1980 e meados da
primeira décade de 2000, as desigualdades de rendimentos das
famílias aumentaram em quase todos os países da OCDE. O es-
tudo permite conhecer com pormenor muitos outros aspetos
estruturais e de tendência das desigualdades atuais de recursos
económicos nos países mais desenvolvidos.
Do ponto de vista das relações entre desigualdades de re-
cursos e desigualdades de oportunidades, nomeadamente, o
referido estudo fornece indicações muito elucidativas. Mobili-
zando um conjunto de dados empíricos e análises sofisticadas,
mostra como as desigualdades de rendimentos dos países em
causa (os mais desenvolvidos do globo) estão fortemente rela-
cionadas, em sentido negativo, com as taxas de mobilidade
intergeracional entre níveis de rendimentos das populações
desses países. Isto é, quanto mais desigual é a distribuição dos
rendimentos de um país, maior tende a ser a transmissão das
posições desiguais de pais para filhos, ou seja, menor a igualda-
de de oportunidades, em termos de possibilidades de mobilida-
de social ascendente entre gerações sucessivas relativamente
aos níveis de rendimentos.
Por exemplo, os EUA e o Reino Unido apresentam dos mais
elevados coeficientes de Gini nas distribuições de rendimentos
dos países da OCDE (maiores desigualdades de rendimentos nas
respetivas populações) e, em simultâneo, das mais elevadas taxas
de transmissão intergeracional (reprodução) das desigualdades
52 Desigualdades Sociais Contemporâneas

de rendimentos. No extremo oposto, com menores desigualdades


de rendimentos e maiores mobilidades intergeracionais de rendi-
mentos, encontram-se os países nórdicos da Europa (Dinamarca,
Suécia, Noruega e Finlândia).
Outro estudo da OCDE, ainda mais recente, Divided We
Stand. Why Inequality Keeps Rising (2011b), mostra que, nos últi-
mos 20 anos, as desigualdades de rendimentos tenderam a
acentuar-se, tendo-se os rendimentos dos 10% mais ricos da po-
pulação tornado, em média, para o conjunto dos países da área,
nove vezes superiores aos dos 10% mais pobres. No entanto, a
situação é muito variável de país para país. Por exemplo, nos
EUA, o coeficiente de Gini das distribuições de rendimentos su-
biu, entre 1975 e 2008, da ordem dos 0,32 para a dos 0,38. Na
Alemanha a tendência também foi de subida, mas da ordem dos
0,25, nos anos 80, para cerca de 0,30, em 2008.
Já na França, a situação ficou basicamente estacionária
até 2008, um pouco abaixo dos 0,30. Nos países nórdicos, a
tendência tem sido para algum aumento das desigualdades,
mas os coeficientes de Gini não ultrapassam a ordem dos
0,25. Na Turquia, em Portugal, na Espanha e na Grécia, as de-
sigualdades de rendimentos diminuíram na primeira década
deste milénio, para coeficientes de Gini da ordem dos 0,40 e
0,35, nos dois primeiros, e pouco superiores a 0,30, nos dois
últimos. Mais especificamente, essa redução das desigualda-
des ocorreu até 2008; daí para cá, tudo indica que a crise fi-
nanceira, as dinâmicas económicas recessivas e as políticas
prevalecentes nesse quadro estejam a conduzir ao agrava-
mento das desigualdades.
Por outro lado, atendendo ao contexto globalizado contem-
porâneo, o referido relatório da OCDE não deixa de examinar a
evolução das desigualdades de rendimentos nos principais
“países emergentes”, evidenciando como, na generalidade de-
les, essas desigualdades têm também aumentado na última dé-
cada e meia. Por exemplo, os coeficientes de Gini da China e da
Índia subiram, nesse período, de cerca de 0,35 para cerca de
Desigualdades de recursos e oportunidades 53

0,40. Uma das poucas exceções é o Brasil, em que o Gini desceu


de cerca de 0, 60 para cerca de 0,55.
As desigualdades de rendimentos estão ainda fortemente
relacionadas com um vasto conjunto de outras desigualdades.
O livro de Richard Wilkinson e Kate Pickett (2009), The Spirit Le-
vel. Why More Equal Societies Almost Always Do Better, ilustra de
maneira muito clara esta associação, tendo-se tornado rapida-
mente referência obrigatória a respeito do tema.
Os autores demonstram de maneira convincente, recorren-
do a uma panóplia alargada de indicadores, que a gravidade re-
lativa de todo um conjunto de problemas sociais tende a estar
relacionada, não tanto com os diferentes níveis de rendimentos
desses países (desde que a comparação seja entre países situa-
dos, todos eles, na área da OCDE, ou seja, no patamar de maior
desenvolvimento em termos mundiais), mas sobretudo com os
diferentes graus de desigualdade nas distribuições de rendimen-
tos prevalecentes em cada um deles (medidos pelos rácios
S80/S20 ou pelos índices de Gini das distribuições de rendimen-
tos de cada um desses países).
Essas consequências das desigualdades encontram-se em
domínios tão diversos como os da esperança de vida, da morta-
lidade infantil, da obesidade, das doenças mentais, da toxicode-
pendência e do alcoolismo, da gravidez na adolescência, do
desempenho educativo das crianças, dos homicídios, das taxas
de encarceramento, da mobilidade social ou dos níveis de confi-
ança manifestados pelas populações — sempre no sentido de
que os países com menores graus de desigualdade económica
evidenciam melhores situações nessas diversas vertentes da
vida social.

Segmentações e recomposições socioprofissionais

Outro aspeto fundamental das desigualdades de recursos e


oportunidades diz respeito à esfera do trabalho e do emprego,
54 Desigualdades Sociais Contemporâneas

abordável de forma integrada do ponto de vista das segmenta-


ções socioprofissionais das sociedades contemporâneas e dos
processos de recomposição socioprofissional que nelas estão a
ocorrer.
Convém relembrar, antes de mais, as desigualdades estru-
turais associadas ao tipo de divisão social do trabalho (indus-
trial, capitalista) que se constituiu com a modernidade, bem
como as desigualdades mais especificamente ligadas a tendên-
cias contemporâneas de recomposição socioprofissional — no-
meadamente, as ligadas à terciarização da economia, ao peso
crescente das qualificações (expansão social da escolaridade,
forte incorporação económica da inovação tecnológica), à glo-
balização dos mercados e dos investimentos e à instabilidade
nos mercados de trabalho.
O conhecido sociólogo britânico Anthony Giddens retoma,
em Europe in the Global Age (2007), temas pelos quais se tinha in-
teressado em início de carreira (Giddens, 1975 [1973]), mas ago-
ra num contexto social já muito diferente. Apresenta, assim,
uma análise da estrutura de classes nas sociedades desenvolvi-
das atuais.
Algumas das principais categorias socioprofissionais identi-
ficadas por Giddens estão fortemente implicadas na atual econo-
mia do conhecimento e dos serviços, nomeadamente as “elites
cosmopolitas” (políticas, empresariais, intelectuais), os “profis-
sionais e gestores” (de nível superior), os “especialistas em tecno-
logias da informação” (IT/high-tech specialists), os “trabalhadores
administrativos conectados” (wired workers, including clerical wor-
kers) e os “trabalhadores de serviços massificados” (‘Big Mac’
workers) — para além dos remanescentes “pequenos empresári-
os”, “operários industriais” e “trabalhadores agrícolas”.
Nesse sentido, Anthony Giddens coloca-se no prolonga-
mento de outras análises marcantes das últimas décadas, desde
a de Robert Reich (1993 [1991]), sobre a segmentação sociopro-
fissional contemporânea entre “analistas simbólicos”, “presta-
dores de serviços interpessoais” e “trabalhadores da produção
Desigualdades de recursos e oportunidades 55

massificada”, a de Manuel Castells (2002-2003 [1996-1998]), so-


bre as categorias socioprofissionais da “sociedade em rede”, ou
a de Richard Florida (2002), sobre a expansão e importância atu-
ais da “classe criativa”.
Além disso, Giddens chama a atenção para um conjunto de
processos muito relevantes nos dias de hoje: (a) a associação es-
trutural destas segmentações socioprofissionais com oportuni-
dades de vida desiguais; (b) a importância das desigualdades
associadas às “transições”, as quais (transições e desigualda-
des) tendem atualmente a multiplicar-se no mercado de traba-
lho e ao longo dos percursos de vida; (c) as interligações que se
verificam, nesse contexto, entre as desigualdades de classe e as
desigualdades de género; (d) a nova configuração dos riscos de
pobreza; (e) a renovação das políticas sociais em consonância
com as mudanças estruturais referidas.

Educação e qualificações: desigualdades, tendências


e paradoxos

Como já foi várias vezes referido, outra dimensão decisiva das


desigualdades de recursos e oportunidades na sociedade atual
é a da escolaridade e das qualificações.
A chamada “sociedade do conhecimento” — com, por um
lado, o alargamento da escolaridade ao conjunto das populações
e o prolongamento crescente dos anos e níveis de formação esco-
lar, e, por outro lado, a incorporação intensa dos saberes formais
no cerne da atividade económica — constituiu as qualificações
escolares em recursos centrais nos quadros de existência social
atuais e em vetores fundamentais das oportunidades de vida.
Do mesmo passo, tornou também as qualificações em ele-
mentos nuclearmente estruturantes das desigualdades sociais
contemporâneas. Delas dependem, em grande medida, os
processos de intensificação, redução ou reconfiguração dessas
desigualdades.
56 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Os processos de alargamento e prolongamento da escolari-


zação têm vindo a acentuar-se um pouco por todo o mundo,
embora partindo de situações muito desiguais e prosseguindo a
ritmos também bastante variáveis. Um relatório do programa
da UNESCO de monitorização da escolarização a nível mundial
(Education for All Global Monitoring Report 2010), mostra
pormenorizadamente um conjunto de situações e tendências a
este respeito, observáveis já na primeira década do presente
milénio.
Por exemplo, o acesso das crianças com idades de 3 a 5 anos
à educação pré-primária permanece muito desigual entre as
grandes regiões do mundo: 79% das crianças desta faixa etária
na América do Norte e Europa Ocidental, em 2005, comparati-
vamente com 62% na América Latina e Caribe, 59% na Europa
Central e Oriental, 43% na Ásia Oriental e Pacífico, 37% na Ásia
do Sul e Ocidental, 28% na Ásia Central, 17% nos Países Árabes
e 14% na África Subsariana. Contudo, entre 1999 e 2005, as vari-
ações mais positivas registaram-se na Ásia do Sul e Ocidental
(acréscimo de 66%) e na África Subsariana (acréscimo de 43%),
enquanto os menores aumentos se verificaram na América do
Norte e Europa Ocidental (acréscimo de 4,3%), onde os níveis
de acesso eram já muito mais elevados.
No que respeita à escolarização primária, a situação evolu-
iu de forma bastante positiva, em termos gerais, entre o final do
século XX e a primeira década do século XXI. A escolarização
primária universal ainda não foi atingida na África Subsariana,
nos Países Árabes e na Ásia do Sul e Ocidental (com taxas líqui-
das de escolarização primária na ordem dos 70%, dos 83% e dos
86%, respetivamente). Todas as outras grandes regiões mun-
diais estão acima dos 90%. Nesse período, registaram-se signifi-
cativas melhorias a este respeito nas regiões mais carenciadas,
nomeadamente na África Subsariana e na Ásia do Sul e Ociden-
tal. Porém, internamente às regiões e a alguns países, as desi-
gualdades são ainda muito grandes, em desfavor, por exemplo,
de áreas rurais, bairros pobres ou certas etnias.
Desigualdades de recursos e oportunidades 57

Quanto à educação básica pós-primária (lower secondary) e


secundária (upper secondary), a evolução mundial é de expansão
significativa. Em muitos países do mundo, a educação básica
pós-primária tornou-se obrigatória e os níveis de participação
da faixa etária correspondente são relativamente elevados (aci-
ma dos 90%). No entanto, em grande parte da Ásia do Sul e Oci-
dental e da África Subsariana, essa obrigatoriedade ainda não
existe e as taxas de participação são bastante menores. Os Países
Árabes estão numa situação intermédia.
No ensino secundário (upper secondary), as desigualdades a
nível mundial são maiores, variando entre taxas brutas de parti-
cipação de quase 100% na América do Norte e Europa Ociden-
tal, perto de 90% na Europa Central e Oriental, e mais de 70% na
América Latina e Caraíbas e na Ásia Central, passando por cer-
ca de 55% na Ásia Oriental e Pacífico, assim como nos Países
Árabes, até cerca de 40% na Ásia do Sul e Ocidental e de 25% na
África Subsariana.
Mais contrastantes, ainda, são as desigualdades mundiais
relativas ao ensino superior (tertiary), com taxas brutas de parti-
cipação de 70% na América do Norte e Europa Ocidental, e de
quase 60% na Europa Central e Oriental, mas variando entre
apenas 20% e 30% nas restantes grandes regiões mundiais, ex-
ceto na África Subsariana onde essa taxa se fica pelos 5%.
Para mencionar apenas mais um aspeto das desigualdades
educativas, analisado em pormenor no referido relatório, é de re-
gistar que as desigualdades de género a este respeito evidenciam
múltiplas facetas. Para o ensino primário, as desigualdades ainda
são acentuadas na Ásia do Sul e Ocidental, nos Países Árabes e na
África Subsariana, com índices de paridade de género (IPG) em
torno de 0,9 (em desfavor do género feminino), embora nessas re-
giões se tenham registado melhorias muito significativas na últi-
ma década e meia. Para o ensino secundário, as disparidades de
género correspondem a um IPG da ordem de 0,8 na África Subsa-
riana e na Ásia do Sul e Ocidental, e da ordem de 0,9 nos Países
Árabes, estando as outras regiões aproximadamente em paridade
58 Desigualdades Sociais Contemporâneas

e a América Latina e Caraíbas na disparidade inversa (IPG de 1,1).


Para o terciário, as disparidades são a norma, nos dois sentidos, si-
tuando-se num dos extremos a África Subsariana e a Ásia do Sul e
Ocidental (IPG de 0,6) e no outro extremo a América do Norte e
Europa Ocidental (IPG de 1,3).
Quais as relações dos níveis de qualificação educacional
com outros aspetos decisivos das desigualdades de recursos e
oportunidades na sociedade atual, como o acesso ao emprego
ou os níveis de rendimentos?
Os relatórios anuais da OCDE sobre educação fornecem um
conjunto de dados e análises a este respeito. Recorrendo ao Edu-
cation at a Glance 2011 (OECD, 2011a) verifica-se, por exemplo,
que os detentores de qualificações escolares mais elevadas ten-
dem a ter maiores taxas de emprego e menores taxas de desem-
prego, resistindo também melhor às flutuações do mercado de
trabalho. No conjunto da OCDE (dados de 2009), as taxas de
emprego das pessoas na faixa etária de 25 a 64 anos eram de
56,0% para os que não tinham ensino secundário (bellow upper
secondary), de 74,2% para os que tinham o ensino secundário
(ou, mais rigorosamente, upper secondary and post-secondary
non-tertiary) e de 83,6% para os que tinham o ensino superior
(tertiary). Pelo seu lado, as taxas de desemprego eram, respeti-
vamente, de 11,5% de 6,8% e de 4,4%.
Os níveis de remuneração médios tendem igualmente a au-
mentar com os níveis de escolaridade, de maneira significativa
e consistente. Aumentam do básico para o secundário e, mais
ainda, do secundário para o superior. Usando um índice con-
vencional para efeitos de comparação, assumindo como refe-
rência o valor 100 para os detentores do ensino secundário
(upper secondary), as remunerações médias na população entre
os 25 e os 64 anos da área da OCDE, em 2009, situavam-se perto
do valor 80 para as pessoas com qualificações escolares abaixo
do ensino secundário, enquanto as remunerações médias dos
que tinham qualificações escolares de nível superior atingiam,
nesse índice, um valor na ordem dos 150.
Desigualdades de recursos e oportunidades 59

Estas tendências são gerais nos países da OCDE, se bem que


a magnitude das diferenças entre níveis de escolaridade varie
de país para país. Em Portugal, a empregabilidade segue gene-
ricamente os padrões da OCDE. Em 2009 havia 69,0% de empre-
gados entre a população de 25 a 64 anos com escolaridade
abaixo do ensino secundário, 80,1% entre os que tinham o ensi-
no secundário e 86,7% entre os que tinham feito o ensino supe-
rior. Quanto às taxas de desemprego, elas eram de 10,1%, 8,2% e
5,6%, respetivamente. Após a crise financeira de 2008, os valo-
res do desemprego aumentaram, mas as vantagens da escolari-
dade para a empregabilidade continuavam a manter-se.
Além disso, Portugal é um dos países da OCDE em que o
“prémio remuneratório” de ter o ensino superior é maior. Os
valores do índice de remunerações acima referido eram em
média de 68 para os situados em níveis escolaridade inferiores
ao ensino secundário e de 169 para os detentores de qualifica-
ção superior (sendo 100 o valor de referência, correspondente
à média de remunerações dos possuidores de ensino secundá-
rio). São desigualdades consideráveis, que não deixarão certa-
mente de estar relacionadas com o facto de, na população
portuguesa em idade ativa, serem ainda relativamente escas-
sos os portadores de qualificações escolares de nível secundá-
rio e superior, por comparação com o conjunto da população
na área da OCDE.
Com efeito, segundo a mesma fonte, os segmentos da popu-
lação entre 25 e 64 anos da OCDE, no seu conjunto, distribu-
íam-se, em 2009, da seguinte maneira: 27% com escolaridade
inferior ao ensino secundário, 44% com ensino secundário e
30% com ensino superior; em Portugal, os segmentos equiva-
lentes representavam 70%, 16% e 14% da população dessa faixa
etária. As implicações destas grandes diferenças (apesar do
crescimento, em anos recentes, das percentagens da população
adulta com níveis de ensino secundário e superior) não podem
deixar de ser significativas em termos de produtividade, desen-
volvimento e bem-estar, assim como em termos de níveis de
60 Desigualdades Sociais Contemporâneas

desigualdade, não só internos ao país mas também face às po-


pulações da maioria dos países da OCDE.
No conjunto, os dados disponíveis mostram que, nas
sociedades contemporâneas, a escolaridade é efetivamente um
recurso, que esse recurso está desigualmente distribuído (embora
seja cada vez mais abrangente) e que tem efeitos de grande alcance
nas distribuições desiguais de outros recursos e oportunidades.
Casos particularmente problemáticos de “transições incer-
tas” encontram-se cada vez mais entre os jovens que, nesta soci-
edade do conhecimento, se veem na contingência de enfrentar o
mercado de trabalho e os percursos de vida apenas com baixas
qualificações — como mostram várias investigações recentes
(Guerreiro e Abrantes, 2007; Guerreiro, Cantante e Barroso,
2010; Alves et al., 2011).
Como se explicam, então, as opiniões correntes e os discursos
mediáticos (e até alguma bibliografia sociológica) que enfatizam,
não o valor atual das qualificações escolares (nomeadamente, de
nível superior), mas o que designam por “desvalorização dos
diplomas”?
Note-se, antes de mais, que tal “desvalorização” (suposta ou
efetiva) é conotada negativamente nesses discursos. Mas, numa
perspetiva valorativa favorável à redução das desigualdades so-
ciais, poderia ser conotada de forma positiva, na medida em tra-
duziria uma atenuação das desigualdades de condições sociais
(em termos, por exemplo, de rendimento económico ou de reco-
nhecimento cultural) entre os que têm e os que não têm diplo-
mas. Indiciaria, assim, uma maior igualdade de oportunidades
relativamente à obtenção de formação superior, um acréscimo
das oportunidades de obter esse nível de formação por parte de
proporções crescentes de cada nova geração.
A difusão do discurso “contra a desvalorização dos diplo-
mas” teve lugar não só em Portugal mas também em alguns ou-
tros países. A questão é tratada, para a sociedade francesa, por
Éric Maurin, num livro recente (La Peur du Déclassement, 2009). Aí
o autor demonstra, com base em informação estatística analisada
Desigualdades de recursos e oportunidades 61

de maneira pormenorizada, que o que se tem vindo a passar re-


centemente na sociedade francesa é bastante diferente das con-
vicções que nela tendem a circular socialmente.
Com efeito, o número de diplomados pelo ensino superior,
assim como o rácio entre jovens adultos com diploma e sem di-
ploma, têm crescido de forma muito considerável ao longo do
tempo, nomeadamente nos últimos anos. Um dos efeitos desse
processo é que, embora as desigualdades relacionadas com a
origem social se continuem a fazer sentir nos trajetos escolares,
essas desigualdades tendem a atenuar-se, nomeadamente no
ensino superior.
Entretanto, o crescimento do número de diplomas em cir-
culação no mercado de trabalho não foi acompanhado pela sua
desvalorização relativa, quer do ponto de vista da empregabili-
dade, quer do ponto de vista da remuneração (a situação a este
respeito em França é, em termos gerais, análoga à verificada no
conjunto da OCDE). A razão de fundo está, resumidamente, nas
alterações em curso no tecido económico, e no sistema de em-
prego em geral, no sentido de uma crescente incorporação de
qualificações (uma das manifestações da chamada “sociedade
do conhecimento”).
Apesar da precariedade do emprego ser crescente, em
particular para os jovens, a probabilidade de se ser afetado
por ela é tanto maior quanto menores forem as qualificações
escolares. O acesso à ocupação profissional e, sobretudo, a
profissões de qualificação média e superior, é tanto maior
quanto mais elevado for o nível de escolaridade. Em conjun-
turas de retração económica, estas duas tendências propor-
cionam vantagens concorrenciais ainda maiores no mercado
de trabalho.
Uma consequência da conjugação dos processos anterior-
mente referidos é que, quer para as classes médias e altas, quer
para as classes de assalariados na base da estrutura social, a es-
colaridade dos filhos se tornou mais decisiva. Deste modo, con-
clui Maurin (2009: 65), “o fenómeno principal não é a perda de
62 Desigualdades Sociais Contemporâneas

valor dos diplomas mas, sobretudo, a desvantagem crescente


que representa a ausência de diploma”.
Segundo o autor, radica aqui, em grande medida, o “medo
de desclassificação”, que tende a acentuar-se e a difundir-se na
sociedade. O “mito da desvalorização dos diplomas” (Maurin,
2007), embora sem fundamento ético ou factual, surge como
uma das manifestações desse receio de desclassificação.
A progressiva democratização do ensino, designadamente
do ensino superior, parece suscitar sentimentos de ameaça de
desclassificação entre os meios sociais (sobretudo as classes mé-
dias mais escolarizadas) que têm acalentado expectativas de ga-
rantia de um estatuto social relativamente privilegiado por via
(ou, pelo menos, com o concurso relevante) da obtenção de um
diploma de ensino superior. Parece suscitar igualmente, entre
meios sociais à partida menos escolarizados mas empenhados
em processos de mobilidade social ascendente por via da esco-
larização superior, sentimentos análogos de ameaça às aspira-
ções de alcançar um estatuto social desse tipo.
Os casos individuais de frustração de expectativas, mesmo
quando não são generalizáveis, tendem a ser particularmente
eloquentes para a sensibilidade pessoal e pública. Mas, na difu-
são social de noções como a da “desvalorização dos diplomas”,
estão também presentes parâmetros socioculturais mais espe-
cíficos. O principal será a conceção, ainda prevalecente em so-
ciedades como a francesa (para continuarmos a recorrer às
análises de Éric Maurin), ou como a portuguesa, de que na for-
mação escolar, particularmente de nível superior, não está tanto
em causa a aquisição de conhecimentos e competências de ele-
vado grau de complexidade, suscetíveis de serem acionados
com utilidade efetiva na vida profissional, e no conjunto de es-
feras da vida social, mas apenas, ou sobretudo, a obtenção de
um certificado de estatuto social relativamente elevado e dos
privilégios que por si só isso garantiria.
Deste ponto de vista, a formação superior seria apenas “po-
sicional” e não “substantiva”, e vigoraria relativamente a ela
Desigualdades de recursos e oportunidades 63

um mecanismo social de concorrência simples: mais diploma-


dos, concorrendo pelo preenchimento de um mesmo número
restrito de posições estatutárias de elite, levariam a uma perda
de valor dos diplomas.
Esse tipo de mecanismo social verifica-se efetivamente. Ve-
ja-se o esforço realizado por certas profissões organizadas cor-
porativamente para controlarem tão restritivamente quanto
possível o número de diplomados (em Portugal, ficou particu-
larmente conhecido, em décadas recentes, o caso dos médicos).
Porém, de um modo geral, o “valor dos diplomas” tem hoje
muito menor sustentação simplesmente estatutária (que tam-
bém nunca foi exclusiva). A “sociedade do conhecimento” veio
generalizar a aplicabilidade dos saberes e competências de ca-
ráter altamente elaborado, com níveis elevados de complexida-
de e codificação, quer na atividade profissional, quer noutros
domínios da vida social: cívica e política, lúdica e cultural.
Deste modo, os diplomas de ensino superior são cada vez
menos símbolos de status de elites rarefeitas. O valor dos diplo-
mas já não está só na exclusividade posicional, ainda que esta
ainda esteja presente, mas também, e cada vez mais, na obten-
ção de conhecimentos e no desenvolvimento de competências
suscetíveis de acionamento efetivo e pertinente em contextos
sociais múltiplos, designadamente profissionais.
Noutros termos, o “valor dos diplomas” não é hoje apenas
resultante de um “jogo de soma nula” concorrencial entre indi-
víduos, mas também, ou sobretudo, um “jogo aditivo” de quali-
ficações e capacidades. Isso ocorre tanto no plano individual
(valorização das qualificações acionáveis por cada um, nomea-
damente na sua vida profissional), como no plano das so-
ciedades (importância, para a produtividade económica e o
bem-estar social, da proporção de pessoas qualificadas presen-
tes em cada sociedade).
Procurando sumariar, relativamente a recursos e oportu-
nidades de caráter educativo, continua a verificar-se, por um
lado, que quanto mais elevados são os níveis de ensino
64 Desigualdades Sociais Contemporâneas

possuídos pelos pais, maior é a oportunidade de acesso dos fi-


lhos a níveis mais elevados de ensino e, por conseguinte, maior
é a oportunidade de aquisição por eles de níveis mais elevados
de qualificação, com todas as consequências que isso potencial-
mente traz. No geral, persiste um grau significativo de de-
sigualdade de oportunidades educativas, nomeadamente no
sucesso escolar, nas fileiras de ensino seguidas e no acesso aos
níveis de formação mais elevados.
Mas, por outro lado, a informação empírica disponível evi-
dencia que tais desigualdades de oportunidades educativas
têm vindo a reduzir-se ao longo do último meio século. Verifi-
cam-se, a este respeito, aliás, dinâmicas de convergência signifi-
cativas entre países, apesar de os sistemas educativos, os níveis
de escolarização e as políticas de igualdade de oportunidades
educativas não deixarem de apresentar variações muito impor-
tantes de país para país.
Em termos comparativos internacionais, para além dos as-
petos estruturais destas comparações, não se podem menospre-
zar os aspetos culturais, em sentido lato. Um dos que mais se
destacam é, precisamente, o facto de, nalgumas sociedades
mais do que noutras, a escolarização ter historicamente perma-
necido fortemente marcada por aspirações de defesa ou con-
quista de um estatuto social distintivo e protegido, mais do que
pela aquisição e uso efetivo de conhecimentos e competências,
designadamente na esfera profissional (mas também nas esfe-
ras cultural e comunicacional, cívica e política, da sociabilidade
e dos lazeres), e pelas recompensas decorrentes da rentabiliza-
ção concreta dessas capacidades cognitivas e operativas.
Mesmo com a universalização tendencial do ensino básico
e com o forte crescimento dos ensinos secundário e superior,
essa forma de encarar a escolaridade permanece ainda muito
difundida em países como Portugal — ou como a França
(Maurin, 2009) —, sobretudo em relação ao ensino superior.
Nestes países, as esperanças na qualificação entrelaçam-se,
assim, com um mal-estar social difuso cuja base não reside
Desigualdades de recursos e oportunidades 65

tanto, afinal, na desvalorização dos diplomas, mas principal-


mente: (a) nas crescentes dificuldades de acesso ao mercado de
trabalho, e sobretudo ao emprego estável; (b) na frustração de-
corrente da progressiva erosão das garantias quase automáti-
cas de status tradicionalmente associadas ao diploma; (c) no
receio dos custos pessoais elevados que pode acarretar a não
obtenção de uma qualificação superior.
Aliás, a consequência a tirar, no plano das políticas públi-
cas, do discurso contra uma — suposta ou real — desvalo-
rização dos diplomas, seria inverter a tendência das últimas
décadas, de aumento progressivo (alargamento e prolonga-
mento) da escolaridade e das formações. Uma tal política teria,
assim, como corolários: (a) a restrição do número de diploma-
dos; (b) o fechamento das oportunidades de acesso às qualifica-
ções e à mobilidade social por via educativa; (c) a acentuação
das desigualdades educativas da população; (d) a reinstalação
ou reforço de um caráter predominantemente estatutário das
qualificações superiores; (e) a redução do conjunto das qualifi-
cações socialmente disponíveis (decréscimo dos recursos edu-
cativos da sociedade em que tal fosse posto em prática); (f) a
reserva de estatuto social privilegiado por via educativa a um
grupo muito circunscrito de pessoas.
É fácil de entender que tal eventual política de “valorização
dos diplomas” (isto é, de valorização dos efeitos socialmente
inigualitários dos diplomas, nos planos económico e simbólico)
conduziria, com toda a probabilidade, não só ao agravamento
das desigualdades sociais entre indivíduos mas também à res-
trição dos potenciais de desenvolvimento das sociedades em
que fosse aplicada.
Em sentido contrário colocam-se as propostas de uma “nova
geração de políticas educativas” (Rodrigues, 2012), para as quais
as respostas ao desafio de proporcionar o máximo possível de
aprendizagens a todos, em condições da maior aproximação pos-
sível a uma efetiva igualdade de oportunidades, convergem tanto
com pressupostos éticos de justiça social como com diagnósticos
66 Desigualdades Sociais Contemporâneas

analíticos que reiteradamente salientam a importância que o alar-


gamento das qualificações das populações tem para a performan-
ce económica, a criatividade cultural e o bem-estar social dos
países, num contexto globalizado de sociedade do conhecimento.

Pobreza e exclusão social

Importa ainda deixar uma referência às situações de pobreza e


exclusão social nas sociedades contemporâneas.
É um tema estreitamente relacionado com o das desigual-
dades sociais, se bem que com especificidades. Implica certa-
mente desigualdades de recursos e de oportunidades, mas tem
a ver também com aspetos que, na teorização de Therborn
(2006), poderiam caber diretamente sob as categorias de desi-
gualdades vitais (aspetos de sobrevivência, saúde e deficiência)
e de desigualdades existenciais (aspetos de exclusão relacional,
cultural e institucional).
Nas últimas décadas, assistiu-se, por um lado, a um redo-
bramento da atenção prestada — justificadamente — ao impe-
rativo civilizacional de erradicação da pobreza (absoluta) no
mundo, em especial nas sociedades mais carenciadas, imperati-
vo esse que tem vindo a ser objeto de diversas iniciativas inter-
nacionais, com destaque para as promovidas no âmbito da
Organização das Nações Unidas.
Deste modo, as análises em termos de pobreza absoluta conti-
nuam a ter grande importância, nomeadamente em regiões do
globo como a África e a Ásia. A consulta dos Relatórios do De-
senvolvimento Humano (elaborados pelo PNUD — Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento) é muito elucidati-
va a este respeito, podendo neles encontrar-se indicadores da
pobreza absoluta em cada país (designadamente, a percenta-
gem da população vivendo com rendimento por pessoa equiva-
lente a menos de 1,25 USD por dia) e “índices de pobreza
humana” (nomeadamente o IPH-1, que combina os indicadores
Desigualdades de recursos e oportunidades 67

da percentagem da população com esperança de vida inferior a


40 anos, da taxa de analfabetismo dos adultos, da percentagem
da população sem acesso sustentável a uma fonte de água ade-
quada e da percentagem de crianças menores de cinco anos com
peso insuficiente para a idade).
O conceito de pobreza relativa, por outro lado, é o mais utiliza-
do para situações sociais de maiores níveis de desenvolvimento,
tendo ganho importância crescente a determinação de “linhas de
pobreza relativa” tanto para as caracterizações nacionais como
para as comparações internacionais. Atualmente, na União Eu-
ropeia, é usado o critério de 60% da mediana das distribuições
nacionais de rendimentos (Rodrigues, 2007; Rodrigues et al.,
2011). As populações abaixo dessa linha são consideradas em ris-
co de pobreza (relativa). Noutras análises, nomeadamente da
OCDE, o critério mais comum é o dos 50% da mediana.
Verificou-se nas últimas décadas, nos países mais desen-
volvidos, nomeadamente na União Europeia, o surgimento de
programas de luta contra a pobreza (relativa), em particular
para enfrentar os fenómenos de “nova pobreza” associados a
mutações económicas e sociais deste período: novas tecnologi-
as, globalização económica, competitividade crescente, desre-
gulação dos mercados, deslocalização industrial, precarização
do trabalho, envelhecimento demográfico, novos estilos de
vida (Alves, 2009).
Estes processos colocaram também na ordem do dia o con-
ceito de exclusão social, relativo a défices de inclusão na esfera
institucional da cidadania e/ou nas redes de laços sociais. As
conceções variam mas, em geral, a exclusão social é encarada de
forma multidimensional e a pobreza surge fortemente associa-
da a ela, embora não se lhe sobreponha estritamente: pode
haver exclusão sem pobreza, e vice-versa, sendo contudo pro-
vável que se induzam mutuamente, mais ainda se forem dura-
douras (Costa et al., 2008).
Este tipo de abordagens, nomeadamente no quadro da União
Europeia, quando tendeu a colocar o enfoque exclusivamente na
68 Desigualdades Sociais Contemporâneas

clivagem entre, por um lado, as pessoas e famílias em situação de


pobreza relativa ou exclusão social, e, por outro lado, todas as
outras, contribuiu por vezes para obscurecer a persistência ou
o recrudescimento de desigualdades atravessando a sociedade
“de-alto-a-baixo”, no seu todo.
Porém, a pobreza e a exclusão social, ou a vulnerabilidade a
elas (risco de pobreza e/ou de exclusão social), inscrevem-se
inequivocamente no âmbito do conjunto mais vasto de desi-
gualdades (vitais, existenciais e de recursos, para usar o quadro
concetual de Göran Therborn) que caracterizam de maneira es-
trutural e transversal as sociedades contemporâneas.
A análise das relações entre pobreza, exclusão e desigual-
dades não só recomenda a convocação de múltiplas dimensões
analíticas como ganha potencialidades de caracterização e ex-
plicativas adicionais com a utilização de conceitos integradores
como o de modos de vida da pobreza, na sua diversidade tipificável
(Capucha, 2005; 2007). Implica igualmente a consideração, não
só de condições estruturais (por exemplo, as distribuições de
rendimentos) e de quadros relacionais (por exemplo, as redes
sociais), mas também de ações institucionais, muito em especial
políticas públicas como as transferências sociais (redistribuição
de rendimentos) e a promoção ativa de qualificação e emprego
para as populações mais vulneráveis à pobreza e à exclusão.
Capítulo 5
Desigualdades vitais e existenciais

Longevidade e saúde

Após um capítulo dedicado às desigualdades de recursos e


oportunidades, focam-se agora outras dimensões das desigual-
dades sociais contemporâneas, mais próximas do que Göran
Therborn designa por desigualdades vitais e desigualdades
existenciais.
Sem fazer questão de retomar estas dimensões nos exatos
termos de Therborn, incluem-se aqui aspetos relativos tanto às
desigualdades de longevidade e de saúde como às desigualda-
des de direitos e de reconhecimento, incluindo situações de es-
tigmatização, discriminação e segregação.
São desigualdades de ordem diferente das desigualdades
de recursos. Mas tal não significa que não estejam em geral re-
lacionadas entre si, influenciando-se mutuamente, muitas ve-
zes de forma estreita e intensa, outras vezes de modos mais
indiretos.
Dois dos indicadores mais habituais relativos a desigual-
dades vitais, entre populações e no seio delas, são a esperança
de vida à nascença e a mortalidade infantil. Por exemplo, os re-
latórios do PNUD, já mencionados, usam o primeiro desses in-
dicadores na construção dos seus índices de desenvolvimento
humano (IDH).
69
70 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Os dados e as análises de Richard Wilkinson e Kate Pickett


(2009), num livro importante, de grande atualidade, já mencio-
nado (capítulo 4), são particularmente elucidativos a este res-
peito. Os autores mostram, em síntese, que as desigualdades
observadas entre países da OCDE, em termos de esperança de
vida e mortalidade infantil, estão fortemente relacionadas com
as desigualdades de rendimentos que se verificam nesses paí-
ses. Dizendo de outra maneira: quando se comparam os países,
verifica-se que, quanto mais desigual é a distribuição de rendi-
mentos, menor tende a ser a esperança de vida e maior a morta-
lidade infantil. A mesma relação é encontrada pelos autores nos
Estados Unidos da América, quando comparam os diversos es-
tados que integram esse país.
Wilkinson e Pickett mostram também como o mesmo tipo
de relação se verifica a respeito de outras manifestações da saú-
de das populações. Por exemplo, a ocorrência quer de doenças
mentais, quer de pessoas obesas tende a ser maior nos países
com maiores desigualdades económicas.
Estudos abrangentes que examinam, numa perspetiva
mundial, a esperança de vida e outros indicadores relaciona-
dos, mostram o grau elevado de desigualdade que persiste
entre países e grandes regiões do globo (Vagerö, 2006)— ape-
sar das tendências para uma relativa diminuição dessas desi-
gualdades ao longo do último meio século (com exceção de
grande parte de África).
Por outro lado, estudos de caso ilustrativos, por exemplo
em Estocolmo, na Suécia, mostram como, ao longo do último sé-
culo, a esperança de vida aumentou nessa cidade perto de trinta
anos, ou como a mortalidade infantil (até à idade de um ano)
caiu ali, nesse período, de 20 por cento para 3 por mil, diminuin-
do igualmente as distâncias a este respeito entre categorias so-
ciais (Vagerö, 2006).
Porém, ao analisar as desigualdades de esperança de vida e
de mortalidade dos adultos em faixas de idade ativas, entre re-
giões da Europa atual (tendências recentes para melhor na
Desigualdades vitais e existenciais 71

Europa Ocidental e para pior na Europa de Leste) e entre classes


sociais (indicadores bastante piores para os trabalhadores ma-
nuais do que para os não manuais), o autor conclui que estas de-
sigualdades vitais entre países e entre categorias sociais estão
ainda bem presentes, relacionando-se de maneira estreita, se
bem que complexa, com as desigualdades de recursos (distribu-
tivos e institucionais).
Num outro estudo de caso, realizado no Reino Unido, Shaw
et al. (2008) examinam com pormenor um conjunto de desigual-
dades vitais — a respeito, nomeadamente, de esperança de
vida, prevalência de doenças crónicas, prevalência de deficiên-
cias e autoperceção do estado de saúde. As conclusões vão no
mesmo sentido: a manifestação de desigualdades vitais signifi-
cativas em todos esses domínios e as relações persistentes que
elas tendem a manter com as classes sociais, os níveis de rendi-
mentos e as situações de pobreza.
Poder-se-iam referir inúmeros outros dados e exemplos.
Mas bastará aqui mencionar apenas mais um caso. Analisando
pormenorizadamente registos hospitalares em Portugal, uma
investigação recente acerca das idades de falecimento, causas
de morte e atributos sociais, mostra como as longevidades de
membros das classes sociais com maiores recursos económi-
cos e culturais são, em média, significativamente mais eleva-
das (Antunes, 2010). Revela também a importância que essas
desigualdades de recursos têm para a adoção de estilos de
vida mais ou menos saudáveis, pelo menos a partir de certa
idade, o que, por sua vez, contribui para explicar a longevida-
de socialmente desigual.

Cultura internacional e estilos de vida cosmopolitas

Colocando agora o enfoque analítico nas desigualdades exis-


tenciais, importa chamar a atenção para que nelas está sempre
de algum modo envolvida a atribuição de sentido à existência
72 Desigualdades Sociais Contemporâneas

social, associada a vivências do quotidiano, estilos de vida e


quadros culturais.
Mais especificamente, as desigualdades existenciais impli-
cam, em regra, atribuições de desigual valor a pessoas, grupos
ou categorias, nos processos de relacionamento social. Muitas
das situações de desigualdade existencial manifestam-se, as-
sim, como formas de estigmatização, de menosprezo social, de
negação ou negatividade identitária — em contraposição a for-
mas de distinção, apreço social e reconhecimento identitário.
Estes processos de desvalorização social (e, em contrapartida,
de valorização social) conduzem com frequência a discrimina-
ções (e, em sentido contrário, a privilégios), repercutindo-se em
múltiplas outras desigualdades.
Poderiam ser dados como exemplo os fenómenos de hierar-
quia de status (Max Weber, 1978 [1922-1956]) ou de distinção sim-
bólica (Pierre Bourdieu, 1979), referentes a desigualdades de
prestígio social que marcam fortemente variadas situações de
relacionamento humano em sociedade, os quais foram analisa-
dos finamente por clássicos da sociologia, antigos e recentes,
como os acima referidos.
Para além de todos os contributos para a análise das desi-
gualdades desenvolvidos nessa linha, torna-se aqui particular-
mente relevante destacar alguns aspetos específicos relativos a
dimensões globais das desigualdades existenciais no mundo
contemporâneo.
Uma das manifestações dessas desigualdades existenciais é
a constituição de círculos internacionais altamente seletivos, de
elevada distinção social, com estilos de vida cosmopolitas e
competências culturais de internacionalidade. Anne-Catherine
Wagner (2007) refere-se à configuração existencial desses meios
sociais usando o conceito de “cultura internacional”.
Esses círculos não são homogéneos nem unificados. Mas in-
tersetam-se com frequência nas mesmas redes, encontram-se
em locais específicos e partilham um conjunto assinalável de
elementos existenciais. Englobam aristocracias e possuidores
Desigualdades vitais e existenciais 73

de grandes fortunas (em ambos os casos, mais antigas ou mais


recentes), dirigentes e executivos de topo de grupos empresa-
riais importantes, políticos, diplomatas e altos quadros de orga-
nizações internacionais, assim como uma elite de consultores,
peritos, comunicadores, artistas e cientistas.
Entre os elementos existenciais constitutivos da cultura in-
ternacional que partilham, destacam-se as competências lin-
guísticas (domínio precoce de várias línguas), a familiaridade
com os média internacionais (como certos jornais, revistas ou
cadeias televisivas), a prática frequente das viagens a vários
pontos do mundo, os encontros internacionais em eventos
públicos, semipúblicos ou privados (festivos ou familiares,
profissionais ou de lazer, de causas ou de negócios), a escolari-
zação em colégios internacionais e universidades de elite, a
pertença a clubes internacionais altamente seletivos, as socia-
bilidades cosmopolitas.
A desigualdade existencial destas elites globais em relação
aos restantes habitantes do planeta é muito acentuada e eviden-
te, nomeadamente do ponto de vista dos estilos de vida que
praticam, dos acessos exclusivos de que beneficiam, da seletivi-
dade dos círculos a que pertencem, da notoriedade pública que
obtêm e da imagem social de distinção que lhes é atribuída.
Não menos importante é a desigualdade existencial que as
caracteriza, face à generalidade dos restantes meios sociais, do
ponto de vista da posse e do acionamento de um conjunto de
competências que cultivam intensamente. Incluem conhecer o
mundo, falar fluentemente diversas línguas, sentir-se plena-
mente à vontade em mobilidade internacional, ser capaz de lo-
calizar antigos colegas ou recorrer a contactos influentes nos
diversos pontos do globo, em especial nos mais estratégicos, e
conseguir movimentar-se com facilidade em meios cosmopo-
litas. Tais competências podem ser designadas, justamente,
usando mais uma vez a concetualização de Wagner, por “com-
petências internacionais”.
74 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Espaços locais, estigmatização identitária


e marginalidade avançada

Do ponto de vista das desigualdades existenciais — e, aliás, das


desigualdades em geral — as situações sociais examinadas nes-
te ponto contrastam fortemente com as anteriores. Podem ser
caracterizadas como situações de “marginalidade avançada”,
fazendo uso do conceito proposto por Loïc Wacquant (2008)
numa análise incidindo sobre espaços urbanos (metropolita-
nos) dos Estados Unidos da América e da Europa.
Em síntese, Wacquant estuda e compara, pormenorizada-
mente, as situações sociais, e as transformações recentes, do
“gueto negro” norte-americano (black ghetto) e do “subúrbio
operário” francês (working-class banlieue), tomando como terre-
nos de observação e análise os casos de South Side, no centro de
Chicago, e de La Courneuve, nos arredores de Paris.
Do ponto de vista das similitudes, ambos os casos são es-
paços sociais fisicamente degradados, com populações em-
pobrecidas, em larga medida desempregadas. A composição
da população residente num e noutro destes espaços urbanos
inclui uma proporção muito significativa “minorias” étni-
co-racialmente diferenciadas.
Nas últimas décadas, a situação destes locais, já antes pro-
blemática, tem vindo a agravar-se, passando por processos de
declínio urbano e de aumento do desemprego, assim como pela
acentuação do clima de estigmatização simbólica que sobre eles
paira e da discriminação social de que são alvo. Segundo Wac-
quant, o gueto negro passou a “hipergueto” e o subúrbio operá-
rio passou a “subúrbio degradado”. Ambos encarnam a figura
da “marginalidade avançada” (contrapartida da “modernida-
de avançada”).
Apesar das semelhanças, os casos norte-americano e europeu
(francês, no exemplo utilizado) apresentam diferenças muito sig-
nificativas. Duas das mais importantes têm a ver com: (a) a nature-
za da questão racial; (b) a relação do estado com esses espaços.
Desigualdades vitais e existenciais 75

No caso norte-americano, o hipergueto concentra esmaga-


doramente população negra, pouco escolarizada, pobre e de-
sempregada. A composição social das décadas do pós-guerra,
em que o operariado predominava, foi-se transformando nas úl-
timas décadas, com a desindustrialização destas áreas urbanas e
com a saída das famílias em mobilidade ascendente, numa con-
centração ainda maior de negros pobres e desempregados.
Em simultâneo, o estado está largamente ausente. As insti-
tuições públicas que exercem a sua ação na sociedade envolvente
praticamente não penetram neste espaço urbano confinado, no
qual funcionam substitutivamente, em modo autocontido, insti-
tuições locais específicas da população ali residente — das igrejas
às escolas, das lojas às associações. O hipergueto das metrópoles
norte-americanas funciona, pois, como uma unidade social de-
marcada racialmente e confinada institucionalmente.
No caso francês, a composição social dos subúrbios degra-
dados é bastante mais heterogénea. Houve também, no mesmo
período histórico, uma recomposição social, com diminuição
progressiva do operariado, chegada de imigrantes e uma juven-
tude largamente desempregada.
Mas, por um lado, são espaços urbanos diversificados, tan-
to do ponto de vista da composição de classe, como do ponto de
vista étnico-racial. Aí continuam a residir operários, emprega-
dos e funcionários em situação profissional estável, embora co-
existindo com um número crescente de desempregados e de
trabalhadores precarizados, muitos deles imigrantes (magrebi-
nos, africanos, europeus), sobretudo jovens.
Por outro lado, estes contextos sociais pluriétnicos e plu-
riclassistas não são de modo algum espaços confinados como
os hiperguetos norte-americanos. Constituem, sim, espaços
urbanos sobretudo residenciais (“dormitórios”), degradados
e estigmatizados, mas cuja população circula aberta e regu-
larmente pelos restantes espaços urbanos da metrópole, em
diversas dimensões existenciais (trabalho, consumo, lazer,
serviços). Além disso, a malha institucional do estado está
76 Desigualdades Sociais Contemporâneas

muito mais presente, nas suas diversas vertentes, da urbanís-


tica à educativa, da assistencial à policial.
Acresce, ainda, que o registo confrontacional principal que
emerge nestes subúrbios degradados não é tanto o étnico-racial,
característico do hipergueto norte-americano, mas sim o da re-
volta juvenil— mesmo que estes jovens, provenientes de va-
riadas origens, mas partilhando um sentimento acentuado de
revolta perante uma situação existencial comum de insucesso es-
colar, desemprego e discriminação, sejam com frequência objeto
de um discurso estigmatizante etnicizado ou racializado (o qual,
por vezes, eles próprios também utilizam, em modo de contrava-
lorização identitária).
Como refere Wacquant, o hipergueto e o subúrbio degrada-
do representam duas faces da marginalidade avançada. Eles evi-
denciam situações existenciais particularmente drásticas a que
as desigualdades sociais podem conduzir — paradoxalmente,
no cerne das mais avançadas sociedades contemporâneas.
Do ponto de vista da teoria geral das desigualdades, e to-
mando por referência o quadro concetual proposto por Ther-
born, a análise destes contextos urbanos de marginalidade
avançada permite ilustrar também, de maneira particularmen-
te elucidativa, a importância quer das dimensões espaciais das
desigualdades, quer das suas dimensões socioculturais, nome-
adamente identitárias, tal como elas se manifestam, com fre-
quência em conjugação, não apenas no plano das distribuições
de recursos, mas também no plano existencial.
Um texto também muito elucidativo das relações entre di-
mensões socioestruturais (“classes”), socioculturais (“estilos de
vida”) e socioespaciais (“efeitos de lugar”) das desigualdades é
o elaborado por José Madureira Pinto e Virgílio Borges Pereira
(2007), no qual se toma como observável uma freguesia do cen-
tro histórico do Porto. Outro exemplo ilustrativo encontra-se
nas análises de António Firmino da Costa (2008 [1999]), sobre as
relações entre “classes sociais”, “identidades culturais” e “qua-
dros de interação” locais, analisadas com base na pesquisa de
Desigualdades vitais e existenciais 77

terreno que o autor realizou num bairro do centro histórico de


Lisboa.

Quotidiano e novas tecnologias

Vejamos ainda um outro tipo de manifestação contemporânea


de desigualdades existenciais. São analisadas, neste caso, as de-
sigualdades contemporâneas relacionadas com o uso diferen-
cial da internet no quotidiano.
Uma pesquisa realizada há cerca de uma década (Cardoso
et al., 2005: 139-178) identificou e analisou os padrões de uso da
internet na sociedade portuguesa, numa época recente mas cor-
respondendo a uma fase ainda relativamente inicial da difusão
da internet no país. Nomeadamente, mostrou como, nessas cir-
cunstâncias, se estabeleceram desigualdades bastante acentua-
das de acesso e utilização da internet, por exemplo quanto à
frequência e intensidade dessa utilização, assim como quanto
aos contextos (casa, trabalho, escola, outros) e aos domínios de
uso (lazer, sociabilidade, informação, profissional, tecnológico,
comercial, outros).
A pesquisa mostrou também como essas desigualdades es-
pecíficas se relacionavam com outros parâmetros de desigual-
dade, designadamente com a idade, a escolaridade e a categoria
socioprofissional das pessoas inquiridas. Em termos sumários,
a utilização da internet tendia a ser bastante mais intensa e di-
versificada nos mais novos, nos mais escolarizados e nas cate-
gorias profissionais mais qualificadas.
Numa sociedade em que a vida quotidiana está cada vez mais
impregnada de novas tecnologias, nomeadamente de tecnologias
da informação e da comunicação, verifica-se ser este, efetivamen-
te, um dos domínios que contribuem para configurar de maneira
desigual a existência social quotidiana das pessoas.
Os trabalhos de Manuel Castells (2002-2003 [1996-1998]) so-
bre a “sociedade em rede” (the network society), constituem a este
78 Desigualdades Sociais Contemporâneas

respeito, como para diversas outras vertentes da sociedade con-


temporânea, referência fundamental — na qual, aliás, o estudo
acima mencionado, sobre a internet na sociedade portuguesa,
encontrou inspiração direta.
Um dos temas recorrentes a este respeito é o do “fosso digi-
tal” (entre utilizadores e não utilizadores da internet), abordado
numa perspetiva globalizada, por exemplo, por Chen e Wellman
(2005). Os autores discutem diversos cenários relativos quer aos
modos como as desigualdades sociais (categoriais, hierárquicas,
globais) afetam o uso da internet, quer aos efeitos potenciais da
internet sobre as desigualdades sociais — nomeadamente pos-
síveis efeitos de redução, de aumento e de transformação das
desigualdades sociais, os quais podem, aliás, verificar-se em si-
multâneo. Em todo o caso, a difusão da internet no quotidiano
das sociedades atuais tem já efeitos empiricamente verificáveis
nas desigualdades sociais contemporâneas, provavelmente am-
bivalentes, e tais efeitos tendem a intensificar-se.
Nesse sentido, o conceito de “fratura digital” pode ser insu-
ficiente e redutor, como assinala José Afonso Furtado (2012).
Mais pertinente é analisar as múltiplas “desigualdades digi-
tais” que, na atual sociedade da informação, se vão formando e
transformando .
Capítulo 6
Interseções de desigualdades

Da multidimensionalidade à interseção: classe, género


e etnicidade

O tema principal deste capítulo é o das interseções de desigual-


dades. Como se viu nos capítulos anteriores, há desigualdades
de múltiplos tipos, em diversas dimensões sociais. Correspon-
dentemente, as mais importantes teorias e análises das desi-
gualdades sociais contemporâneas assumem uma perspetiva
multidimensional.
Apesar disso, nas ciências sociais e nos estudos sociais apli-
cados encontram-se dois tipos de abordagens das desigualda-
des de caráter unidimensional.
Sintetizando, poderíamos chamar a um deles “teorias redu-
cionistas das desigualdades”. Para elas, as diversas desigualda-
des seriam meramente, ou no essencial, manifestações de uma
desigualdade principal determinante, de tal modo decisiva que
as outras desigualdades pouco contariam, ou pouca autonomia
explicativa específica teriam. Algumas versões da teoria das
classes marxista e das teorias da estratificação funcionalistas in-
cluem-se aqui, as primeiras procedendo a um reducionismo de
classe, de caráter fundamentalmente económico, e as segundas
a um reducionismo de status, de caráter hierárquico-funcional.
Note-se, porém, que outras versões das teorias das classes de
79
80 Desigualdades Sociais Contemporâneas

inspiração marxista, assim como das teorias da estratificação de


inspiração weberiana ou de inspiração funcionalista, assentam
em conceções multidimensionais.
Outro tipo de abordagens reducionistas das desigualdades
encontra-se sobretudo em “estudos empíricos unidimensio-
nais”. São estudos que só se ocupam de uma dimensão das desi-
gualdades. O mais comum é incidirem sobre as desigualdades
de rendimentos, entendendo-as implicitamente como constitu-
indo, em si mesmas, o essencial das desigualdades sociais, ou
como sendo as únicas com capacidade explicativa relevante.
Porém, na sua maioria, as abordagens das ciências sociais
sobre o tema — incluindo as mais elaboradas, fundamentadas e
elucidativas — têm dado conta do caráter multidimensional
das desigualdades, analisando teórica e empiricamente essa
multidimensionalidade.
Desde a teorização clássica de Max Weber sobre as diversas
hierarquias de poder, nas esferas da economia (classe), do pres-
tígio social (status) e do poder político (partido) (Weber, 1978
[1922-1956]), até ao recente quadro de sistematização proposto
por Göran Therborn (2006) sobre as desigualdades vitais, exis-
tenciais e de recursos na sociedade globalizada contemporânea,
passando por muitas outras concetualizações e variadíssimos
estudos, a multidimensionalidade das desigualdades tem sido obje-
to de análise teórica e pesquisa empírica.
No entanto, para além da multidimensionalidade das desi-
gualdades, em si mesma, importa analisar as interseções de desi-
gualdades, isto é, o facto de essas múltiplas desigualdades, ou
pelo menos algumas delas, não só coexistirem na sociedade,
mas se interligarem e se influenciarem mutuamente.
Praticamente todos os autores de referência neste domí-
nio, nomeadamente os estudados aqui desde início, como
Tilly (2005) ou Therborn (2006), chamam a atenção para a
existência de inter-relações significativas, muitas vezes bas-
tante fortes, entre diversas dimensões e manifestações das
desigualdades.
Interseções de desigualdades 81

Alain Bihr e Roland Pfefferkorn, em Le Système des Inégalités


(2008), destacam o caráter sistémico das desigualdades sociais
contemporâneas, de diversos pontos de vista: das “interações
entre desigualdades” (por exemplo, as repercussões das
desigualdades entre categorias socioprofissionais nas desigualda-
des de condições de trabalho e de rendimentos, assim como nas
desigualdades de saúde, longevidade, alojamento, consumo, edu-
cação, usos do tempo, participação no espaço público, etc.); da
“hierarquização das desigualdades” (algumas condicionam mais
decisivamente as outras do que o inverso); da “acumulação das
desigualdades” (tendência para as vantagens, ou as desvanta-
gens, confluirem nas mesmas pessoas e grupos); da “reprodução
das desigualdades” (tendência para a persistência dessas desi-
gualdades, efeito e causa sistémicos dos processos anteriores).
Algumas das perspetivas analíticas mais inovadoras neste
domínio sublinham não só as inter-relações sistémicas entre dife-
rentes dimensões de desigualdade mas também as interseções
intrinsecamente constitutivas das desigualdades e as interin-
fluências variáveis entre diversos registos de desigualdade, con-
soante os contextos, as situações e os processos em causa.
Floya Anthias (2005), por exemplo, ilustra precisamente este
tipo de abordagens, tomando como referência específica algu-
mas das interseções de desigualdades que mais têm sido objeto
de problematização e investigação, concretamente as interseções
entre desigualdades de classe, género e etnicidade.
Com efeito, muitas análises têm vindo a mostrar que as
desigualdades sociais de classe, género e etnicidade não são
redutíveis entre si ou a uma delas. Segundo as conceções re-
ducionistas, as outras não passariam de manifestações secun-
dárias, quando não mesmo ilusórias, de uma desigualdade
fundamental. Para algumas versões desse reducionismo, as
desigualdades de classe seriam as únicas verdadeiramente
determinantes, enquanto, para outras, as decisivas seriam as
desigualdades de género, e, para outras ainda, as desigualda-
des étnico-raciais.
82 Desigualdades Sociais Contemporâneas

De maneira alternativa, perspetivas como a de Anthias —


ou como, por exemplo, a de Rosemary Crompton (2003) — con-
sideram indispensável, para que a análise seja esclarecedora
das desigualdades realmente existentes, dar conta quer da au-
tonomia intrínseca de cada uma dessas dimensões de desigual-
dade (classe, género, etnicidade), quer das interseções entre
elas que são especificamente constitutivas das desigualdades
observáveis.
Deste modo, as interseções de desigualdades surgem sem-
pre como situadas e contextuais, contingentes e variáveis — po-
dendo assumir formas inconsistentes (no sentido do conceito de
“inconsistência de status”, reportando-se a indivíduos com po-
sições diferentes em diversas ordens hierárquicas, fenómeno
com consequências muito significativas, analisadas desde Max
Weber) ou contraditórias (alargando o significado, de certa ma-
neira afim ao anterior, do conceito de “lugares contraditórios de
classe”, proposto por Erik Olin Wright (1997) a propósito de lu-
gares de classe com características, em simultâneo, de classes
exploradoras/dominantes e exploradas/dominadas, consoante
as dimensões da estrutura social), identitárias (na medida em
que envolvam, por parte dos atores sociais, processos de autoi-
dentificação pessoal e/ou coletiva) ou posicionadas (supondo
percursos pessoais de autoposicionamento face às interseções
de categorias sociais).
Uma análise ilustrativa das interseções entre as desigualda-
des nas esferas do trabalho, da educação e do consumo, na socie-
dade portuguesa atual, encontra-se em Martins, Mauritti e Costa
(2007). A análise conduz à identificação de um conjunto de
padrões de vida diferenciados e desiguais: “destituídos”, “res-
tritivos”, “massificados”, “instalados” e “qualificados”. Estes
padões de vida evidenciam desigualdades integradas e contex-
tualizadas, resultando da interseção entre as desigualdades di-
mensionais referidas (no trabalho, na educação e no consumo), e
intersetando, ainda, um conjunto adicional de desigualdades re-
lativas ao território (regiões do país, espaços urbanos e rurais), às
Interseções de desigualdades 83

fases do ciclo de vida (escalões etários) e aos quadros de vida fa-


miliar (tipos de agregados familiares).

Interseções de desigualdades nos percursos de vida

Outros aspetos das interseções de desigualdades particular-


mente relevantes são os que podem ser captados através de aná-
lises realizadas em perspetiva diacrónica, nomeadamente as
relativas aos percursos de vida.
Um dos sociólogos que mais contributos tem dado para este
tipo de análises é Gøsta Esping-Andersen. Este sociólogo anali-
sa diacronicamente interseções das desigualdades de rendi-
mentos com outras desigualdades sociais, revelando aspetos
particularmente elucidativos das dinâmicas sociais contempo-
râneas (Esping-Andersen, 2007).
A análise toma como ponto de partida a constatação de que
as desigualdades de rendimentos se encontram em agravamen-
to tendencial nos países mais desenvolvidos, designadamente
nos países europeus. Essas desigualdades têm vindo a acentu-
ar-se, sobretudo pelo alongamento da parte superior da distri-
buição de rendimentos.
Numa perspetiva dinâmica, porém, verifica-se que as distri-
buições de rendimentos calculadas tomando em conta todo o
percurso de vida das pessoas são tendencialmente menos desi-
guais do que as distribuições captadas sincronicamente. Isso
acontece porque grande parte das pessoas passa por flutações de
rendimentos ao longo da vida, incluindo períodos de menores
recursos económicos, mesmo que estes acabem por pesar pouco
no conjunto da trajetória pessoal. Em contrapartida, as análises
sincrónicas agregam pessoas de todas as idades e em diferentes
fases dos seus percursos de vida, incluindo aquelas que se encon-
tram transitoriamente nos períodos menos favoráveis.
Em todo o caso, a desigualdade de rendimentos ao longo da
vida tende a evoluir de maneira convergente com a desigualdade
84 Desigualdades Sociais Contemporâneas

de rendimentos sincrónica, dependendo basicamente desta últi-


ma e do grau de mobilidade intergeracional a respeito dos ren-
dimentos. Concretamente, a desigualdade de rendimentos ao
longo da vida tende a ser tanto menor quanto menor for a ampli-
tude da desigualdade sincrónica e maior for o grau de mobilida-
de intergeracional.
O segmento social que mais tem sido afetado pelas dinâmi-
cas recentes do mercado de trabalho é o dos jovens adultos, os
quais experimentam crescentes dificuldades de emprego, com
os consequentes riscos de carência de rendimentos — embora a
situação seja muito variável, consoante os países, as origens so-
ciais, os níveis de escolaridade e os apoios do estado.
Um dos fatores mais importantes na evolução das desigual-
dades é a mudança de comportamento das mulheres, nos domí-
nios da escolaridade (crescente e mais bem sucedida do que a
dos homens), da conjugalidade (atualmente menos estável e
com formas mais diversificadas), da fecundidade (menos filhos
e mais tardios) e da profissionalização (cada vez mais abran-
gente e com qualificações crescentes).
Os efeitos desse conjunto de processos nas desigualdades
de rendimentos são de sinal contrário. Uns jogam no sentido da
redução das desigualdades: por exemplo, a diminuição pro-
gressiva do fosso salarial entre homens e mulheres (desfavorá-
vel a estas), apesar de ele se revelar particularmente persistente.
Outros jogam no sentido da acentuação das desigualdades: por
exemplo, a tendência para a homogamia entre homens e mu-
lheres com maiores níveis de escolaridade e profissões mais
qualificadas, reforçando a polarização de rendimentos entre
agregados familiares.
As resultantes em termos de desigualdades sociais reve-
lam-se, no conjunto, muito variadas de país para país. Nessa va-
riabilidade pesam muito especialmente dois tipos de fatores: os
diferentes perfis de profissionalização das mulheres (nas diver-
sas faixas da hieraquia de qualificações) e os regimes de guarda
e socialização das crianças em idade pré-escolar.
Interseções de desigualdades 85

Os menores graus de desigualdade ocorrem quando se


conjuga uma profissionalização tendencialmente universal
das mulheres com uma disponibilização também tendencial-
mente universal de instituições que propiciam cuidados de
qualidade às crianças em idades pré-escolares. É o que acon-
tece nos países nórdicos, em que se verificam menores graus
de desigualdade estrutural de rendimentos e maiores graus
de igualdade de oportunidades (com taxas de mobilidade so-
cial mais elevadas).
Nessas sociedades, as dinâmicas sociais de alteração dos
comportamentos, em particular de profissionalização generali-
zada das mulheres em todos os segmentos de qualificação,
conjugadas com as políticas públicas de qualificação das popu-
lações e de disponibilização de cuidados de qualidade a todas
as crianças em idade pré-escolar, têm vindo a contrabalançar
dois tipos de mecanismos sociais estruturalmente geradores de
desigualdades.
Por um lado, contrapõem-se aos potenciais efeitos polariza-
dores quer do atual “enviesamento cognitivo” do mercado de
trabalho (vantagens acrescidas dos trabalhadores com níveis de
qualificações mais elevados), quer da homogamia dos mais
qualificados. Por outro lado, contrariam os potenciais efeitos
inigualitários das desigualdades entre as famílias, quanto a re-
cursos económicos e socialização cultural, nas trajetórias esco-
lares e sociais dos filhos.
Segundo Esping-Andersen, apesar de o panorama social
ser globalmente mais propenso à acentuação das desigualda-
des do que o inverso, o caso dos países nórdicos mostra que há
possibilidades de ação a este respeito, nomeadamente através
de políticas públicas, no sentido da redução da amplitude das
desigualdades e da aproximação tendencial à igualdade de
oportunidades (ver também Esping-Andersen, 2008).
86 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Capital social e interseções de desigualdades

As interseções de desigualdades podem envolver numerosas di-


mensões, incluindo também, por exemplo, as desigualdades de
capital social. O conceito de capital social tem vindo a assumir,
como se sabe, importância crescente nas ciências sociais, desde as
análises clássicas de Pierre Bourdieu (1979) e James Coleman
(1990) até às mais recentes de Robert Putnam (2000).
Os entendimentos teóricos do que constitui o capital social
não são idênticos para os diversos autores. Seja como for, apli-
cando-se aos indivíduos e às redes relacionais que eles conse-
guem mobilizar, ou às sociedades e às potencialidades maiores
ou menores de nelas se gerarem dinâmicas cooperativas, o capi-
tal social tende a estar desigualmente distribuído e as desigual-
dades de capital social tendem a intersetar outras desigualdades
sociais.
Uma pesquisa realizada por van Oorschot e Finsveen (2009)
procura aferir quais são as interseções das desigualdades de
capital social (redes sociais, normas cívicas, confiança interpes-
soal e nas instituições) com uma série de outras dimensões de
desigualdade (género, idade, situação profissional, nível de
rendimento e nível educacional) num conjunto de países euro-
peus, e até que ponto a ação dos estados-providência afeta essas
desigualdades de capital social.
O estudo, recorrendo aos dados de um inquérito internaci-
onal com sucessivas aplicações ao longo do tempo (o Europe-
an and World Values Study), confirma empriricamente que as
desigualdades de capital social tendem a intersetar outras de-
sigualdades de distribuição de recursos. Por exemplo, pessoas
empregadas e com ensino superior tendem a possuir mais ca-
pital social do que pessoas sem emprego e com níveis de esco-
laridade mais baixos. Mas não é concludente a respeito da
relação entre as desigualdades de capital social e os diversos
regimes de estado-providência, pese embora a existência de
algumas indicações no sentido de que estados-providência
Interseções de desigualdades 87

mais desenvolvidos tendem a estar associados a menores desi-


gualdades de capital social.
Outra análise comparativa internacional, da autoria de Fer-
nando Luís Machado e Maria Abranches (2006), mostra como as
desigualdades de “capital social externo” dos imigrantes (me-
dindo esse tipo de capital social pelas relações de amizade com
imigrantes declaradas pelas populações autóctones) interse-
tam, em diversos países europeus, um conjunto de parâmetros
estruturantes das desigualdades sociais das populações desses
países, como a escolaridade, a categoria socioprofissional, o
contexto socioespacial de residência, o sexo e a idade.
Numa análise extensiva transnacional, com dados do Euro-
pean Social Survey, inquérito aplicado periodicamente na mai-
oria dos países que constituem o espaço europeu, verificou-se
recentemente a existência de relação significativa entre as desi-
gualdades de classe e as desigualdades de capital social, desig-
nadamente no que diz respeito a um dos seus componentes
relevantes, os níveis de confiança interpessoal e nas instituições
manifestados pelos inquiridos (Carmo e Nunes, 2012).
Também no já referido The Spirit Level, Wilkinson e Pickett
(2009) mostram como os níveis de confiança interpessoal va-
riam de país para país em relação evidente com os graus de de-
sigualdade de rendimentos prevalecentes nesses países.

Classes médias, mobilidade social e reconfiguração


das desigualdades

Num balanço sobre interseções de desigualdades, impõe-se ain-


da uma passagem, mesmo que breve, pelos temas das classes
médias e da mobilidade social na sociedade contemporânea.
O conceito de classes médias é bastante vago e impreciso.
No entanto, não parece possível prescindir dele em varia-
díssimas análises e em não menos numerosas controvérsias.
Importa aqui, sobretudo, salientar que, independentemente
88 Desigualdades Sociais Contemporâneas

da definição concetual utilizada, o espaço social das classes


médias nas sociedades contemporâneas é, provavelmente mais
do que qualquer outro, um espaço de interseções de desigualda-
des — desigualdades de recursos (económicos, culturais e outros),
desigualdades de estilo de vida e reconhecimento social (status), e,
o que não é menos importante, desigualdades de trajetórias so-
ciais (ascendentes, descendentes, horizontais), acompanhadas de
aspirações e perspetivas diversas de mobilidade social.
Uma das implicações de tudo isto é o facto de as classes
médias estarem frequentemente em processo de recomposi-
ção estrutural, mais ou menos intenso, assim como em proces-
so de reconfiguração das representações simbólicas acerca
delas próprias.
Bastará lembrar que se foi passando, ao longo do século XX,
de uma noção de classes médias predominantemente centrada
nos pequenos proprietários a uma outra noção que abrangia so-
bretudo funcionários e outros empregados não manuais, evolu-
indo posteriormente, na atual “sociedade do conhecimento”,
para ainda uma outra noção, agora focada nos profissionais,
quadros e técnicos com níveis elevados de qualificação.
Noutros tipos de aproximação à caracterização das clas-
ses médias, a análise faz-se em função das distribuições de
rendimentos, sendo propostos limiares diversos — mas to-
dos situados, como é evidente, nas faixas intermédias dessas
distribuições.
Seja como for, a noção de classes médias designa sempre
uma “interseção de meios sociais heterogéneos” (Bosc, 2008:
110), nos quais se cruzam, de maneira particularmente intrinca-
da, múltiplas dimensões de desigualdade e múltiplas dinâmi-
cas de mobilidade social.
A crise atual das classes médias tornou-se tema recorrente
das mais variadas polémicas e análises. Se, durante grande parte
do século XX, o principal tópico de interesse e debate, nos países
mais desenvolvidos, foi o da tendência de fundo para o “alarga-
mento das classes médias”, chegando mesmo a enunciar-se a
Interseções de desigualdades 89

possibilidade de uma virtual universalização da condição social


de classe média (pese embora a contradição formal nos termos!),
neste início de novo milénio, mas já com raízes nas últimas déca-
das do anterior, a tematização pública e sociológica preferencial
sofreu uma forte oscilação, deslocando-se para o tópico da “crise
das classes médias”.
Esta tematização agrega vários elementos, sendo frequen-
tes os seguintes: (a) a fragilização das relações de emprego, ou o alas-
tramento das formas de precaridade laboral, que agora atinge
não só os trabalhadores pouco qualificados, mas também pro-
fissionais, quadros e técnicos de nível médio e superior; (b) a
pressão sobre os rendimentos, os quais, em vez do crescimento re-
gular anterior, tendem agora a estagnar, apertados no contexto
de uma nova polarização entre, por um lado, os rendimentos
“estratosféricos” dos grandes investidores e altos dirigentes
empresariais e, por outro lado, os rendimentos fracos e instá-
veis de grande parte dos trabalhadores menos qualificados; (c) o
bloqueio da mobilidade social ascendente, de caráter sobretudo in-
tergeracional (“ascensor social encravado”), contrariamente às
décadas anteriores, em que a mobilidade social ascendente se ti-
nha tornado perspetiva corrente para as classes médias, assim
como para uma parte considerável das famílias de pequenos
agricultores, operários e assalariados pouco qualificados dos
serviços, com aspirações a que os seus filhos pudessem ascen-
der às classes médias; em ambos os casos a escolarização tende a
ser vista como estratégia fundamental para a mobilidade ascen-
dente (a par de outras estratégias, também importantes, nomea-
damente: a estratégia empresarial, a estratégia migratória e a
estratégia de funcionarização).
Todos estes aspetos convergem na situação particularmen-
te difícil dos jovens na conjuntura social atual: níveis elevados
de desemprego e precariedade laboral, remunerações baixas e
rendimentos instáveis, necessidade de níveis crescentes de for-
mação e perceção de que a formação superior já não garante por
si só o acesso a posições de status social elevado, custos muito
90 Desigualdades Sociais Contemporâneas

altos da autonomia residencial, perspetivas de mobilidade so-


cial inversas às da geração anterior, difundindo-se cada vez
mais generalizadamente a convicção de que muitos deles po-
dem entrar em processos de estagnação de mobilidade ou mes-
mo de mobilidade social descendente.
Estas circunstâncias e perceções são vividas com particular
sensibilidade pelos jovens das classes médias e pelos seus agre-
gados familiares, entre os quais tende a alastrar “o medo da des-
classificação”, para usar a expressão de Éric Maurin (2009)
referida no capítulo 4.
Alguns investigadores salientam os processos de mobili-
dade social descendente que afetam principalmente as atuais
gerações jovens (Peugny, 2009). Ou sublinham, como Chauvel
(2006c) ou Estanque (2012), tanto a alteração recente das cir-
cunstâncias, em desfavor das classes médias, como as suas
perceções de crise e o seu estado de espírito de desencanto e
desorientação.
Em contrapartida, investigadores como Serge Bosc (2008)
ou Dominique Goux e Éric Maurin (2012) relativizam um tanto
o panorama. Os elementos de informação empírica que reunem
e as análises a que procedem mostram que os traços de situação
acima inventariados tendem efetivamente a ocorrer, imprimin-
do uma marca forte no clima social atual. Mas mostram também
que não atingem as classes médias no seu todo, nem afetam o
conjunto dos mecanismos de mobilidade social que as abran-
gem. Mais do que a uma crise generalizada, estar-se-ia a assistir,
hoje, a uma recomposição das classes médias.
Por outro lado, a sensação de perda de status ou de desclassifi-
cação social, que parece afetar especialmente alguns setores das
classes médias, tem contornos um tanto ambíguos. Se, em varia-
dos casos, corresponde a uma efetiva degradação das condições
sociais de existência de indivíduos e famílias de classe média, nou-
tros casos constitui sobretudo uma manifestação do modo como
certos segmentos das classes médias vivenciam e representam
ideologicamente processos de encurtamento das hierarquias
Interseções de desigualdades 91

sociais e enfraquecimento das assimetrias de status, ou, por outras


palavras, processos de redução das desigualdades.
Nestes últimos casos, o que está em causa é uma questão
posicional e estatutária: o sentimento ou a perspetiva, provavel-
mente o receio, por parte desses setores das classes médias, de
que as suas posições de status relativamente privilegiado, ou de
distinção simbólica, face aos meios sociais mais desfavorecidos,
se encontrem em processo de um certo esbatimento.
Poderá fazer sentido colocar à discussão a hipótese de
que essa “defesa de status”, por parte de alguns setores das
classes médias (nomeadamente, daqueles cuja posição social
depende mais do reconhecimento estatutário do que do exer-
cício de competências complexas), constitua, afinal, uma das
manifestações da interseção de duas tendências, no domínio
das desigualdades.
São duas tendências que se observam, hoje, em sociedades
como a portuguesa e outras sociedades europeias, mas de senti-
do contrário uma à outra: por um lado, uma tendência para a
acentuação das desigualdades de rendimentos; por outro lado,
uma tendência para a redução das desigualdades de status —
estando esta última associada a fatores como a expansão da es-
colaridade, a generalização da cultura mediática e a crescente
transversalidade de alguns consumos massificados.
No fundo, os diversos casos examinados e as variadas aná-
lises discutidas, mesmo quando são parcialmente descoinci-
dentes ou quando colocam a ênfase em aspetos diferentes,
ilustram o feixe intrincado das interseções de desigualdades
que ocorrem no espaço atual das classes médias e nos processos
de mobilidade social que o atravessam.
Apesar dessa complexidade de interseções, convém no en-
tanto registar que as desigualdades relativas às oportunidades
de mobilidade social tendem a ser tanto maiores quanto mais
desiguais são as sociedades em termos estruturais, designada-
mente quanto às distribuições de rendimentos (Wilkinson e
Pickett, 2009).
Capítulo 7
Desigualdades, justiça social e políticas
públicas

Redistribuição, reconhecimento e representação


num mundo globalizado

Neste capítulo volta-se ao tema das relações entre desigual-


dades e justiça social, colocado de maneira preliminar logo
de início (capítulo 1). Assinalaram-se então, a este propósito,
os problemas inerentes à distinção, mas também aos entre-
laçamentos, entre uma vertente cognitiva/analítica e uma
vertente valorativa/normativa nas abordagens sobre desi-
gualdades sociais. Retomam-se agora, com um pouco mais
de aprofundamento, alguns dos tópicos principais dessa pro-
blemática (relações entre desigualdades e justiça social), situ-
ando-os na perspetiva do principal fio condutor deste livro,
as desigualdades sociais contemporâneas em contexto de
globalização.
A questão recorrente acerca de que diferenças sociais podem
ou devem ser consideradas desigualdades sociais tem sido muitas
vezes respondida em termos de justiça social. Por exemplo,
Göran Therborn, um dos autores que se tem vindo a tomar
como referência na teorização e análise das desigualdades so-
ciais no atual mundo globalizado, põe a questão nos seguintes
termos: “As desigualdades são diferenças que consideramos in-
justas” (Therborn, 2006: 4).
93
94 Desigualdades Sociais Contemporâneas

O autor acrescenta três sentidos habituais da noção de in-


justiça social, tais como tendem a aparecer nos discursos cor-
rentes: (a) a violação de uma norma de equidade (segundo
algum tipo de critério: valor humano, pertença social, desempe-
nho, ou outros); (b) uma desigualdade excessiva, gravemente li-
mitadora das possibilidades de vida dos mais desfavorecidos
(devido a uma forte concentração de recursos, a uma forte assi-
metria de poderes ou a intensos efeitos simbólicos de inferio-
rização); (c) algo sentido socialmente como imerecido (por
exemplo, vantagens obtidas mais com base no exercício de po-
der do que em função de contributos dados à sociedade).
Por mais lapidar que seja o enunciado de Therborn atrás
transcrito, e por mais interessante que seja este seu primeiro in-
ventário de conceções de injustiça social, ficam muitas questões
em aberto. Desde logo, quem é o sujeito das atribuições de injus-
tiça consideradas? E quem sustenta, mesmo que apenas im-
plicitamente, os critérios de justiça social subjacentes a essas
atribuições?
Por um lado, não é possível ao analista, estudioso ou inves-
tigador das desigualdades abordar o tema sem mobilizar, ele
próprio, um conjunto de critérios e juízos de justiça social. Sem
eles, apenas conseguiria, quando muito, traçar um mapa cogni-
tivo de semelhanças e diferenças. E, mesmo assim, a distinção
cognitiva dificilmente deixaria de pressupor algum tipo de va-
lorizações, nomeadamente quanto a traços relevantes a distin-
guir ou não.
Deste modo, a análise das desigualdades remete, não só
para as competências cognitivas de quem analisa, mas também
para as suas orientações de valor — e para a importância de,
ponderando-as reflexivamente, procurar não deixar que a pre-
ferência valorativa prejudique o discernimento cognitivo.
Por outro lado, não se pode deixar de tomar em conta, na
análise sociológica do tema, os critérios e os julgamentos de
justiça/injustiça social em presença no contexto social em cau-
sa, tanto em âmbitos circunscritos como no quadro mundial
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 95

contemporâneo de relações sociais globalizadas, com a visibi-


lidade recíproca e as inter-relações a múltiplos níveis que nes-
te se estabelecem.
Além disso, em cada contexto social particular e, por maio-
ria de razão, no quadro das relações sociais mundializadas, os
juízos de justiça ou injustiça social, e os respetivos critérios sub-
jacentes, são largamente plurais, com frequência conflituais e
suscetíveis de mutação. Em todo o caso, alguns dos fenómenos
mais importantes que hoje se verificam a este respeito são as
tendências para o alastramento e a universalização de alguns
valores, como, por exemplo, os inerentes a conceções contem-
porâneas de direitos humanos, sendo as vítimas do desrespeito
desses direitos humanos consideradas como sujeitas a situa-
ções de desigualdade e injustiça (Ishay, 2008 [2004]).
Um percurso, ainda que breve, por algumas das teorizações
atualmente mais influentes sobre o tema das relações entre de-
sigualdades e justiça social pode revelar-se, pois, do maior
interesse.
As contribuições recentes de Nancy Frazer vão diretamente
ao encontro deste conjunto de tópicos. A autora coloca precisa-
mente a questão da justiça social no contexto contemporâneo de
globalização (Frazer, 2008). Prosseguindo e atualizando traba-
lhos anteriores, propõe uma teoria da justiça de caráter tri-
dimensional, salientando a importância que têm, no mundo
globalizado contemporâneo, as injustiças económicas, as injusti-
ças culturais e as injustiças políticas.
A teorização de Frazer assenta na conceção de que uma si-
tuação social de justiça requer formas de organização da socie-
dade que permitam a todos participar em paridade (como
“pares”) na vida social. Combater as injustiças sociais significa,
assim, desmantelar obstáculos institucionalizados que impe-
dem alguns de concretizarem efetivamente, como parceiros a tí-
tulo pleno, essa participação na interação social.
Tais obstáculos podem consistir principalmente em desi-
gualdades económicas, ocasionando injustiças distributivas.
96 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Face a essas injustiças socioeconómicas têm sido defendidas e de-


senvolvidas políticas de redistribuição. Boa parte dos movimen-
tos sindicais do último século e meio situam-se nessa vertente,
tal como as políticas do estado-providência ou estado social:
impostos progressivos, legislação laboral, segurança social,
educação pública, serviços públicos de saúde.
Por outro lado, os referidos obstáculos podem localizar-se
sobretudo no domínio das hierarquias de valor cultural, le-
vando a injustiças de reconhecimento — nomeadamente, reco-
nhecimento deficitário, distorcido ou estigmatizante de status
ou de identidade. Face a essas injustiças socioculturais ganha-
ram particular destaque, nas últimas décadas, as políticas de re-
conhecimento da “diferença” (ou melhor, de certas diferenças),
ou do “direito à diferença”, envolvendo processos de mudan-
ça de sensibilidade cultural, movimentos sociais, alterações de
quadro legislativo e políticas públicas de “ação afirmativa”
(por vezes é também usada a designação, algo paradoxal, de
“discriminação positiva”).
Essas tomadas de posição e formas de ação visam obter
respeito pela diferença e combater discriminações com base
em atributos como o género, a orientação sexual, a raça, a et-
nia, a origem nacional, a deficiência, ou outros. Algumas des-
sas reivindicações, movimentos e políticas públicas remetem,
de facto, para combinações de reconhecimento simbólico e re-
distribuição compensatória.
Um dos méritos do trabalho de Nancy Frazer é o de ter vin-
do a defender, consistentemente, que as desigualdades socioe-
conómicas e as desigualdades socioculturais não se reduzem
umas às outras, mas coexistem nas sociedades atuais, gerando
formas diversas de injustiça social. Nas situações concretas, es-
sas formas de injustiça social surgem muitas vezes entrelaça-
das, embora umas vezes reforçando-se mutuamente e outras
vezes competindo entre si.
Um outro contributo específico das análises mais recentes
de Frazer é a chamada de atenção para uma terceira dimensão
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 97

das desigualdades, também ela geradora de injustiça social no


atual quadro social de globalização. Essa terceira dimensão das
desigualdades é de caráter mais especificamente político e as
injustiças que dela decorrem são injustiças de representação.
Num primeiro plano, mais habitual, incluem problemas de
injusta representação política de certas categorias sociais (de
género, região, etc.) nos parlamentos ou noutras instâncias dos
estados-nação. Num segundo plano, mais diretamente conec-
tado com o quadro societal globalizado contemporâneo, in-
cidem sobre limitações ao enquadramento (framing) de pessoas,
grupos, categorias e populações (por exemplo, estrangeiros,
migrantes, refugiados) nos âmbitos de pertença nacionais ou
globais e nas instâncias de definição de regras de relacionamen-
to à escala global (levantando, como diz Frazer, problemas de
“metainjustiça” global).
Face a estas novas injustiças sociopolíticas de caráter global,
as políticas de representação têm sido protagonizadas por diver-
sas forças sociais, designadamente por organizações não gover-
namentais (ONG) de caráter transnacional, por movimentos
sociais globalizados e por instituições de regulação ou governa-
ção globais (em especial, a Organização das Nações Unidas,
com as diversas entidades de intervenção especializada que lhe
estão ligadas).
Assim, segundo Frazer, as políticas de representação repor-
tam-se fundamentalmente à definição de âmbitos de inclusão
dos atores sociais, tal como à justa tomada em consideração des-
ses atores sociais nas instâncias de decisão, nacionais e suprana-
cionais — incluindo no acesso às políticas de redistribuição e às
políticas de reconhecimento. É uma questão cada vez mais pre-
mente, mas ainda largamente em aberto, à escala global.
98 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Justiça como equidade (fairness) e perspetiva


das capacidades (capabilities)

Uma das dificuldades que se colocam à análise sociológica das


relações entre desigualdades e justiça social consiste na multi-
plicidade de significados que essas noções assumem.
A um primeiro nível, são noções que surgem em perma-
nência na vida social corrente, na qual são usadas em aceções
diversas, muitas vezes com forte ambiguidade semântica, em
circunstâncias de consenso difuso ou de polarização conflitual
a este respeito entre atores sociais. A um segundo nível, sur-
gem como conceitos teoricamente especializados, reiterada-
mente objeto de exame aprofundado, desde as grandes obras
referenciais das civilizações antigas (de caráter literário, religi-
oso ou filosófico) até às elaborações eruditas atuais. Estas con-
ceções teóricas interagem com as noções de desigualdade e
justiça social disseminadas nos sistemas socioculturais e na
vida quotidiana.
Tais conceções teóricas, devido ao seu caráter elaborado e
condensado, constituem instrumentos intelectuais da maior
utilidade, ajudando, por um lado, a clarificar categorias e crité-
rios analíticos e, por outro lado, a decifrar as noções e entendi-
mentos que a este respeito circulam socialmente, de maneira
alargada.
De entre as teorias da justiça atuais, importa aqui destacar
duas, pelo uso alargado que delas tem sido feito nas análises so-
ciológicas contemporâneas sobre a problemática das relações
entre desigualdades e justiça social: a teoria da justiça como
equidade (fairness), de John Rawls, e a perspetiva das capacida-
des (capabilities), de Amartya Sen.
Na sua obra fundamental, A Theory of Justice, publicada ini-
cialmente em 1971 e sujeita a atualizações posteriores, o filósofo
John Rawls formulou dois princípios de justiça, nos quais sinte-
tiza toda a sua elaboração teórica. “Primeiro Princípio. Qualquer
pessoa deve ter um igual direito ao mais alargado sistema total
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 99

de iguais liberdades básicas compatível com um sistema similar


de liberdades para todos. Segundo Princípio. As desigualdades
económicas e sociais devem ser organizadas de modo a que, em
simultâneo: (a) sejam para o maior benefício dos menos favore-
cidos, de forma consistente com um princípio de poupança jus-
to; e (b) estejam ligadas a lugares e posições abertos a todos sob
condição de justa igualdade de oportunidades” (Rawls, 1971:
302-303).
De forma ainda mais condensada, a teoria da justiça de
Rawls assenta numa “conceção geral”, a de que “todos os bens
sociais primários — liberdades e oportunidades, rendimentos e
riqueza, e as bases do respeito por si próprio — devem ser dis-
tribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual
de algum desses bens, ou de todos, seja em vantagem dos me-
nos favorecidos” (Rawls, 1971: 303).
A teoria da justiça de Rawls incide sobre as estruturas insti-
tucionais fundamentais das sociedades, visando esclarecer em
que medida elas são justas ou injustas do ponto de vista, preci-
samente, das suas consequências para as desigualdades sociais.
É uma teoria de caráter abrangente, incluindo no seu âmbito di-
mensões relativas à distribuição de rendimentos e riqueza as-
sim como dimensões relativas à distribuição de liberdades,
oportunidades e condições de dignidade pessoal (respeito).
Um dos aspetos que mais se destacam nesta teoria é o re-
quisito de que, para que as estruturas e instituições de uma
sociedade possam ser consideradas socialmente justas, elas
combinem iguais liberdades básicas com distribuições socio-
económicas equitativas. O “princípio de poupança justo” refe-
re-se à problemática, de caráter diacrónico, da justiça social
intergeracional — questão, aliás, cada vez mais atual, encara-
da hoje em dia sobretudo em termos de sustentabilidade (am-
biental, geopolítica, económica, do emprego, do estado social,
dos modos de vida).
Esta conceção da justiça como equidade, embora de eleva-
do grau de abstração, fornece um poderoso critério teórico para
100 Desigualdades Sociais Contemporâneas

a análise, em termos de justiça social, das desigualdades sociais


concretas. Pode ser muito interessante e elucidativo usá-la na
análise de certas desigualdades, em determinadas sociedades,
no sentido de procurar aferir, atendendo aos quadros institu-
cionais nelas prevalecentes, se tais desigualdades devem ser
consideradas justas ou injustas.
Pelo seu lado, Amartya Sen, um dos autores do índice de
desenvolvimento humano, das Nações Unidas (já referido no
capítulo 5 e examinado com mais pormenor no capítulo 10), tem
vindo a propor uma teoria das capacidades (capabilities) que se
relaciona diretamente com as problemáticas da justiça social e
das desigualdades. Uma sua obra recente, The Idea of Justice
(2009), retoma e desenvolve os seus trabalhos anteriores a este
respeito.
As capacidades (capabilities) são entendidas por Amartya
Sen em sentido amplo, segundo uma perspetiva baseada nas li-
berdades (freedom-based capability approach), como oportunida-
des efetivas de fazer escolhas e realizar ações visando objetivos
que cada um tem razões para valorizar.
Nesta conceção de capacidades há, pois, tanto um elemento
de pré-condições (meios) como um elemento de realizações
(fins). Mas, mais importante ainda, há também um elemento
decisivo de oportunidades efetivas (liberdades), estruturais e
situacionais, para escolher e agir. Assim, não são só as distribui-
ções de recursos que contam, nem só as realizações em si. Con-
tam também as oportunidades efetivas de, em determinadas
circunstâncias, poder escolher e fazer algo. Para o economista e
filósofo, as “capacidades não são mais, de facto, do que uma
perspetiva nos termos da qual as vantagens e desvantagens de
uma pessoa podem ser razoavelmente avaliadas” (Sen, 2009:
296-297).
Do ponto de vista das relações entre justiça social e desi-
gualdades, a teoria de Sen distingue-se da de Rawls em vários
aspetos. Desde logo, é de caráter ainda mais multidimensional.
Todo o tipo de desigualdades pode, em princípio, ser relevante
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 101

para a justiça social, desde as desigualdades de riqueza, educa-


ção, status e poder, passando pelas de género, idade, raça, etnia
e naturalidade, até inúmeras outras desigualdades relativas
não apenas a pré-condições gerais da ação mas também às mais
variadas constelações de circunstâncias específicas.
Além disso, esta teoria das capacidades coloca-se sobretu-
do numa perspetiva situacional e não tanto numa perspetiva
institucional. Para Sen, mais do que tentar desenhar abstrata-
mente as instituições ideais de uma sociedade justa (como faz
Rawls, na sequência de teorias anteriores do “contrato social”),
importa cuidar das múltiplas situações de injustiça social con-
cretas, associadas a diversas formas de desigualdade específi-
cas, e procurar atenuá-las, corrigi-las ou mesmo eliminá-las.
Segundo o autor, as controvérsias sobre desigualdades e jus-
tiça social tendem a fazer apelo a um mesmo padrão argumenta-
tivo, o de que a igualdade num certo domínio social implica a
desigualdade noutro domínio. Sublinha, pois, a indispensabili-
dade de, nas análises sobre justiça social, colocar sempre uma
questão chave: “desigualdades de quê?”
Amartya Sen tem a preocupação de se distanciar das conce-
ções unifocais da desigualdade, enfatizando a pluralidade alar-
gada de bases potenciais de desigualdade. Chama também a
atenção para que a igualdade não é o único valor que uma teoria
da justiça precisa de tomar em conta. Sublinha ainda que a
igualdade de capacidades constitui apenas uma parcela dos re-
quisitos de justiça social.
No entanto, apesar destas relativizações, destaca dois pon-
tos: (i) que há uma multiplicidade de dimensões e situações em
que as desigualdades de capacidades têm consequências rele-
vantes de injustiça social; (ii) que os esforços para reduzir as de-
sigualdades de capacidades vão ao encontro de um objetivo
fundamental de justiça social.
Neste sentido a perspetiva das capacidades de Sen tem
grande aplicabilidade à escala global. Sintomaticamente, é ela
que está na base, como se referiu, da construção do índice de
102 Desigualdades Sociais Contemporâneas

desenvolvimento humano e dos programas da Organização


das Nações Unidas com ele relacionados.

Igualdade de situações e igualdade de oportunidades

Um debate central sobre desigualdades e justiça social é o que


contrapõe igualdade de situações e igualdade de oportunidades.
Qual destas conceções melhor se ajusta à prossecução da justiça
social? O tema está hoje, uma vez mais, na ordem do dia. Uma
análise sociológica particularmente interessante e atualizada a
este respeito foi apresentada recentemente por François Dubet
(2010).
A conceção de justiça social como igualdade de condições
reporta-se diretamente, como diz Dubet (2010: 9), aos “lugares
que organizam a estrutura social”. O ideal inscrito nessa conce-
ção é o de limitar significativamente as desigualdades entre os
lugares estruturais que os indivíduos ocupam na sociedade.
Esta conceção foi assumida por grande parte dos movimen-
tos de trabalhadores ao longo dos séculos XIX e XX, quer nas
ações revolucionárias tendo como horizonte uma “sociedade
sem classes”, quer nas lutas sindicais por melhores salários e di-
reitos sociais.
Foi também essa conceção que esteve presente, em larga
medida, no desenvolvimento de um conjunto de instituições e
políticas públicas de redistribuição de rendimentos, proteção
social e prestação de serviços públicos, designadamente de
educação e saúde, que se afirmou sobretudo na Europa nas
décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial — sistema de
instituições e políticas públicas que ficou conhecido como “es-
tado-providência” ou “estado social”.
Pelo seu lado, a conceção de justiça social como igualdade
de oportunidades “faz parte, desde a sua origem, do projeto de-
mocrático moderno”, como assinala igualmente Dubet (2010:
53). Nesta conceção, não são as desigualdades de situações, as
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 103

assimetrias estruturais ou as hierarquias funcionais que são


contestadas, pelo menos em primeira aproximação, mas sim os
privilégios (de alguns) e as discriminações (contra outros).
Esta conceção, tal como a anterior, tem estado presente, em
diversas formas, na história das sociedades ao longo dos últi-
mos séculos, desde as profundas transformações sociais e polí-
ticas que ocorreram na Europa e na América nos séculos XVIII e
XIX pondo em causa privilégios de aristocracias, ordens e cor-
porações, até aos movimentos sociais e às políticas públicas atu-
ais visando superar um conjunto de discriminações.
Entre essas discriminações contam-se as raciais e étnicas, as
de género e orientação sexual, as regionais e linguísticas, ou
ainda as que atingem pessoas em situação de pobreza e catego-
rias sociais particularmente vulneráveis à exclusão social, para
mencionar apenas algumas das mais recorrentes. Nesta perspe-
tiva, o fundamental é proporcionar direitos e acessos, liberdade
e mobilidade social, reconhecimento das identidades e recom-
pensa do mérito.
O estado-providência, ou estado social, tem vindo tam-
bém a ser incumbido de assegurar condições de igualdade de
oportunidades, tanto através de políticas universalizantes
(por exemplo, as de escolarização universal), como de políti-
cas seletivas, designadas como de “ação afirmativa” ou de
“discriminação positiva”, visando contrariar desigualdades
de oportunidades estruturalmente persistentes (por exemplo,
estabelecendo quotas mínimas de género para as instâncias de
representação e decisão política, como os parlamentos, desig-
nadamente quotas mínimas de mulheres, tradicionalmente
sub-representadas nessas instâncias).
Na obra referida, François Dubet não se limita a uma análise
das conceções de “igualdade de lugares” e de “igualdade de opor-
tunidades” e dos resultados efetivos alcançados pelas instituições
e políticas desenvolvidas sob a égide de cada uma delas, ou de am-
bas. Procede igualmente, com efeito, a uma análise das limitações
ou distorções evidenciadas por essas instituições e políticas.
104 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Deste ponto de vista, um dos aspetos assinalados como


mais criticáveis nas instituições e políticas que têm como pano
de fundo concetual e valorativo a perspetiva da redução das
desigualdades de situações é a assimetria forte que tendem a
estabelecer entre os incluídos no sistema corporatista de esta-
tutos sociais garantidos e os não incluídos nesse sistema. Isso
ocorre, designadamente, em estados-providência da Europa
continental (como no caso da França, analisado mais de perto
por Dubet).
Assiste-se assim, nesses países, a uma situação social com
duas faces, ou à coexistência de duas realidades sociais. As desi-
gualdades de rendimentos nesses países são relativamente li-
mitadas e a proteção social é bastante consistente. Porém, isso
acontece sobretudo para um conjunto de segmentos sociais com
estatuto profissional e inclusão nos sistemas de proteção social
tendencialmente garantidos. Pelo contrário, aqueles que à par-
tida não estão incluídos encontram dificuldades muito grandes
em acederem a esse sistema de estatutos sociais garantidos. É o
que se passa notoriamente com uma proporção crescente de jo-
vens, que se veem remetidos ao desemprego ou a situações de
trabalho precário. E é também o que acontece com parte signifi-
cativa das mulheres, dos imigrantes, das minorias étnicas ou
das pessoas com trajetórias prolongadas (intra e intergeracio-
nalmente) de pobreza e exclusão social.
Se essa segmentação assimétrica é porventura ainda mais
acentuada nos países da Europa do Sul, onde além disso a ampli-
tude das desigualdades tende a ser maior, a situação é bastante
diferente nos países nórdicos, nos quais uma maior igualdade de
situações coexiste com uma também maior igualdade de oportu-
nidades. É diferente também nos países anglo-saxónicos, embo-
ra de outra maneira, dado que aí as desigualdades de situações
tendem a ser bastante elevadas, sendo em contrapartida maiores
as oportunidades de acesso ao emprego, não se formando uma
segmentação tão vincada entre emprego estatutário protegido e
desemprego ou trabalho precário.
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 105

Registe-se, de passagem, o conjunto de afinidades que é


possível encontrar entre este tipo de análises e a teorização já
clássica de Gøsta Esping-Andersen sobre os diversos tipos de
estado-providência na Europa, prolongada nos desenvolvi-
mentos analíticos a que o autor tem vindo a proceder sobre o es-
tado-providência e as desigualdades, focando os processos
sociais que envolvem de forma particularmente decisiva as mu-
lheres, as crianças e os idosos nas sociedades europeias atuais
(Esping-Andersen, 2008).
Por outro lado, a influência crescente da conceção de igualda-
de de oportunidades, tal como nas últimas décadas tem vindo a
traduzir-se em mudanças nas instituições do estado-providência e
nas políticas públicas, conduziu também a resultados paradoxais.
A par dos efeitos positivos de inclusão e acesso conseguidos pelo
prolongamento da escolaridade universal ou pelas políticas de
igualdade de género (entre outros exemplos), verificaram-se
igualmente efeitos perversos.
Tem sido objeto recorrente de atenção e debate a acentua-
ção das desigualdades de rendimentos verificada sobretudo
desde os anos 80 do século passado, designadamente na maio-
ria dos países mais desenvolvidos (o tema é analisado e proble-
matizado nos capítulos 4, 9 e 10). Esse processo está claramente
ligado, se bem que apenas em parte, a políticas de redução da
progressividade dos impostos (em especial, sobre os altos ren-
dimentos), de elevação abrupta das remunerações dos qua-
dros dirigentes e de desativação ou restrição de alguns dos
mecanismos de redistribuição anteriormente assumidos pelos
estados-providência.
Essas orientações de política pública invocam com fre-
quência, em sua legitimação, algum tipo de entendimento hi-
percompetitivo da conceção de igualdade de oportunidades.
Tais entendimentos são na realidade bastante controversos,
parecendo muitas vezes reduzir-se à mera consagração re-
trospetiva das acentuadas desigualdades existentes.
106 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Por sua vez, noutro registo, as políticas de discriminação


positiva, visando beneficiar certas categorias sociais que se
encontram em circunstâncias negativas de desigualdade de
oportunidades persistente, tiveram tendência a concretizar-se
segundo modalidades marcadas pelo que Dubet chama “um
tropismo elitista”. Em casos como os das mulheres, de algumas
minorias raciais e étnicas ou dos oriundos de meios sociais de
baixos recursos, as medidas postas em vigor têm visado mais
promover a colocação de alguns indivíduos dessas categorias so-
ciais em instâncias de elite (por exemplo, como parlamentares ou
governantes, dirigentes empresariais ou altos quadros) do que
reduzir a sua imensa sobrerrepresentação nos lugares sociais
mais desfavorecidos, designadamente nos empregos com piores
condições de trabalho e mais baixas remunerações.
Além disso, ainda, as políticas de discriminação positiva re-
querem em geral que os seus destinatários se reconheçam como
“vítimas” (de discriminação negativa) e assumam “identida-
des” que lhes deem acesso a compensações específicas (as iden-
tidades correspondentes às categorias contempladas por essas
medidas). Deste modo, essas políticas não deixam também de
conduzir, com frequência e intensidade variáveis, ao reforço de
estereótipos, à multiplicação e rigidificação de segmentações
identitárias e à concorrência entre diversos tipos de “vítimas”
pela prioridade na atribuição de vantagens compensatórias —
podendo tudo isto, por sua vez, gerar novas desigualdades e
novas discriminações.
Importa notar, segundo Dubet, que estas limitações ou dis-
torções são sobretudo imputáveis às instituições e políticas espe-
cificamente concretizadas em cada contexto social em nome dos
princípios da igualdade de lugares ou da igualdade de oportuni-
dades, e não tanto a esses princípios em si mesmos.
Numa perspetiva de síntese, Dubet destaca a importân-
cia de, em favor de um aumento da justiça social nas socieda-
des contemporâneas, combinar políticas inspiradas quer na
conceção de igualdade de lugares, quer na de igualdade de
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 107

oportunidades, procurando minorar os efeitos indesejáveis


de umas e outras. Mas considera igualmente que, no momen-
to presente, atendendo à gravidade dos problemas de injusti-
ça social ligados às desigualdades estruturais, importa dar
prevalência às políticas mais diretamente focadas na promo-
ção da igualdade de situações. Deste modo, também os ob-
jetivos de igualdade de oportunidades encontrariam, eles
próprios, melhores condições de prossecução.
Outros especialistas na problemática contemporânea das de-
sigualdades sociais e das conceções de justiça social a elas ligadas
convergem em muitos aspetos com este tipo de análises, mas assu-
mem prioridades diferentes. É o caso, por exemplo, do filósofo
Patrick Savidan que, perante a importância crescente da proble-
mática da igualdade de oportunidades no mundo atual, mas aten-
dendo igualmente aos sérios problemas colocados por essa noção
e por um conjunto de políticas que nela se inspiram, preconiza a
sua reconcetualização como “igualdade de oportunidades susten-
tável” (Savidan, 2007). No essencial, trata-se de tornar a igualdade
de oportunidades suscetível de perdurar no tempo, o que pressu-
põe, afinal, relações sociais estruturadas de maneira menos polari-
zada e praticadas de maneira mais solidária.

Cidadania, movimentos sociais e políticas públicas


perante as desigualdades

Poder-se-ia considerar as propostas de Dubet ou de Savidan,


anteriormente referidas, como versões diversas de uma mes-
ma ideia norteadora: a de que estruturas sociais, instituições e
políticas públicas inspiradas em combinações de aspetos das
conceções de igualdade de situações e de igualdade de oportu-
nidades, criteriosamente selecionados, podem ser geradoras
de maior justiça social no mundo contemporâneo.
Estas considerações ligam-se já diretamente a uma nova
questão, a das respostas às desigualdades. O que está em causa,
108 Desigualdades Sociais Contemporâneas

em termos gerais, é a ação social que emerge dos juízos e senti-


mentos de injustiça social que indivíduos ou grupos, em deter-
minados contextos e circunstâncias, associam a algum tipo de
desigualdades sociais. Esses processos podem ser muito diver-
sos. Os mais significativos assumem o caráter de ações de cida-
dania, de movimentos sociais ou de políticas públicas — que,
em modalidades e com intensidades variadas, surgem perante
as desigualdades e as injustiças sociais.
O conjunto de aspetos envolvidos no tema da ação social
perante as desigualdades e os sentimentos de injustiça a elas as-
sociados é vastíssimo. A título apenas ilustrativo, podem assi-
nalar-se alguns trabalhos que exploram diversas facetas desta
vasta problemática.
As relações entre desigualdades de classe e dimensões de
cidadania (valores, atitudes e participação de caráter cívico e
político) são analisadas em diversos estudos, por exemplo os de
Almeida, Costa e Machado (2006) ou de Cabral (2006). Refira-se
ainda Nunes (2011), que examina com minúcia, à escala euro-
peia, as relações entre desigualdades de classe e desigualdades
de participação em práticas de ação coletiva.
Podem igualmente mencionar-se análises como as de Moz-
zicafreddo (2000 [1997]), Fernandes (2006) ou Pinto (2008) sobre
diversos aspetos das tensões, mudanças e alternativas com que
se vê atualmente confrontado o estado social, nomeadamente
quanto aos mecanismos de regulação e às políticas públicas nas
condições de desigualdade contemporâneas.
Numerosos estudos, como os de Schlozman et al. (2005) e
Hacker et al. (2005), analisam as relações entre as crescentes de-
sigualdades nos Estados Unidos da América nas últimas déca-
das e a participação política dos cidadãos (no primeiro caso) e
as políticas públicas (no segundo caso). Examinam as relações
nos dois sentidos, nomeadamente como é que as desigualda-
des geram ou inibem participação política, ação partidária e
movimentos sociais, e como é que essas formas de ação (ou a
ausência delas) contribuem para a atenuação ou a acentuação
Desigualdades, justiça social e políticas públicas 109

das desigualdades. De modo análogo, quanto às políticas pú-


blicas, examinam quer processos em que elas visaram com-
bater desigualdades, quer casos em que são elas próprias
produtoras de desigualdades.
É sintomático que a OCDE, num estudo recente já referido,
Divided We Stand. Why Inequality Keeps Rising (2011b), sublinhe,
ao analisar as causas do aumento progressivo das desigualda-
des de rendimento na área da OCDE nas últimas décadas, a im-
portância do fator “alterações nas políticas públicas”, em áreas
como as da fiscalidade, do mercado de trabalho, das transferên-
cias sociais e dos serviços públicos.
Concretamente, foram implementadas nesses países, em
modalidades e com intensidades variáveis, políticas de redução
dos impostos para os níveis de rendimentos mais elevados, de
mínima ou nula taxação fiscal de rendimentos de capitais e tran-
sações financeiras, de desregulação do mercado de trabalho, de
desproteção social (nomeadamente pela diminuição das transfe-
rência sociais para indivíduos e famílias fortemente carenciados)
e de restrição da amplitude dos serviços públicos.
Este fator — “alterações nas políticas públicas” — revela-se
mais importante do que outros habitualmente assinalados, como
a “globalização”, a “inovação tecnológica” e as “alterações de-
mográficas”, os quais têm também contribuído para a acentua-
ção das desigualdades de rendimentos nesses países, mas com
impacto menor, ou mesmo com efeitos ambivalentes.
O estudo da OCDE enumera ainda algumas das principais
consequências dessa intensificação das desigualdades: a retra-
ção da mobilidade social ascendente, a acentuação das desigual-
dades de oportunidades, os impactos negativos na performance
económica, o aumento do ressentimento social, a geração de ins-
tabilidade política e a indução de sentimentos populistas, prote-
cionistas e antiglobalização.
Nesse sentido, as recomendações da OCDE no domínio das
políticas públicas vão para políticas de redistribuição mais efe-
tivas, para políticas de emprego inclusivas e, em especial, para o
110 Desigualdades Sociais Contemporâneas

reforço das políticas de educação e formação, designadamente


na educação e formação de adultos com baixas qualificações e
no acesso a formação superior ao longo da vida.
Noutra vertente, vários autores têm dado conta das formas
de protesto e movimento social, com forte caráter transnacio-
nal, que têm vindo a surgir em contexto de globalização (della
Porta e Tarrow, 2008; Montagna, 2008; Ruggiero, 2008). Apesar
da variedade de objetivos e processos que os caracteriza, e das
contraposições que os atravessam, esses movimentos sociais e
mobilizações coletivas focam-se criticamente, em larga medida,
nas desigualdades contemporâneas e nas injustiças sociais de-
las decorrentes. Movimentos como o “Occupy Wall Street”
(Time, 2011), ao confrontarem na esfera pública “os 1%” mais ri-
cos (em oposição aos restantes 99% da população), surgem
como emblemáticos desses movimentos sociais contra o atual
exacerbamento das desigualdades.
Algumas das mais importantes teorias e conceções de justiça
social, como as abordadas nos pontos anteriores deste capítulo,
têm influenciado a proposta e, em certos casos, a implementação
de políticas públicas dirigidas ao enfrentamento de um conjunto
de desigualdades à escala nacional e à escala global (Piachaud,
2008). Nesta linha de pensamento, importa registar o exame críti-
co e multifacetado das relações entre justiça e igualdade apresen-
tado por Augusto Santos Silva (2010), no quadro de um conjunto
de valores que propõe como orientação para a ação política
contemporânea.
Capítulo 8
Sociedade do conhecimento e desigualdades
em Portugal e na Europa

Estruturas transnacionais de classes e desigualdades


de recursos educativos

Este capítulo tem como objetivo analisar algumas das vertentes


mais importantes da atual reconfiguração das desigualdades so-
ciais num contexto societal que se pode caracterizar como de
“globalização” e “sociedade do conhecimento”, ilustrando em
simultâneo a pertinência de, para o fazer, convocar e combinar os
níveis de análise nacional e transnacional. A ilustração envolve
aqui, concretamente, a sociedade portuguesa e o espaço social
europeu.
Retomam-se de seguida, com algumas adaptações e refe-
rências adicionais, análises incluídas numa obra coletiva, orga-
nizada pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
(CIES), do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), sobre,
justamente, Portugal no Contexto Europeu (3 volumes), nomeada-
mente no segundo volume, intitulado Sociedade e Conhecimento
(Costa, Machado e Ávila, 2007).
Num capítulo aí dedicado à análise transnacional de clas-
ses sociais e recursos educativos (Costa, Machado e Almeida,
2007), parte-se da constatação de que, hoje, os conceitos de glo-
balização e sociedade do conhecimento são usados de maneira re-
corrente, não só na sociologia e noutras ciências sociais, mas
111
112 Desigualdades Sociais Contemporâneas

também, em geral, no discurso erudito, técnico, político e


mediático.
A utilização do conceito de globalização generalizou-se nas
ciências sociais a partir do início dos anos 90 do século passado.
Alguns autores veem a globalização como consistindo, sobretu-
do, numa estratégia económica de grandes empresas capitalis-
tas multinacionais, em busca da expansão dos mercados e da
internacionalização da produção, estratégia essa apoiada por
estados poderosos, nomeadamente pelos EUA, e por organiza-
ções internacionais como a Organização Mundial do Comércio,
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
Sociólogos como Anthony Giddens (1990), entre vários ou-
tros, preferem considerar os processos de globalização em sen-
tido amplo e plural, abrangendo não só vertentes económicas
mas também dimensões ambientais, culturais, comunicacio-
nais, políticas e militares. No cerne do significado do conceito
de globalização colocam o alargamento e intensificação das re-
lações sociais à escala mundial, verificados de maneira drástica
nas últimas décadas, gerando interdependências largamente
acrescidas.
As transformações da esfera económica fazem parte dos
processos de globalização, mas as outras dimensões desses pro-
cessos têm dinâmicas próprias e importância específica. Podem
apresentar, mesmo, tendências desfasadas ou aspetos contradi-
tórios entre si. Na análise da sociedade atual, é decisivo debru-
çarmo-nos sobre as combinatórias que vão ocorrendo entre
essas diversas dimensões e dinâmicas — nomeadamente no
que respeita às reconfigurações das desigualdades sociais.
As novas tecnologias da informação e da comunicação
(TIC), com o seu desenvolvimento acelerado e a incorporação
vertiginosa que têm tido na atividade económica e na vida quo-
tidiana, assim como, em geral, a intensificação da inovação tec-
nológica e organizacional a partir de conhecimentos de base
científica, são largamente reconhecidas como fontes cruciais da
mudança social contemporânea. Em simultâneo, o processo de
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 113

alargamento e prolongamento da escolarização, de acréscimo


rápido das qualificações formais das populações e de incorpo-
ração desse trabalho qualificado na atividade económica e soci-
al, processo esse muito intensificado nas décadas mais recentes,
tem sido igualmente considerado uma das molas decisivas da
mudança social atual. É, no essencial, para dar conta destes dois
conjuntos de processos que têm sido usadas as expressões “so-
ciedade da informação” e “sociedade do conhecimento”.
Também acerca destes conceitos a controvérsia tem sido
grande nas ciências sociais. Por exemplo, Manuel Castells
(2002-2003 [1996-1998]) prefere falar de “era da informação” e
“modo de desenvolvimento informacional”. Anteriormente,
sociólogos também muito conhecidos, como Alain Touraine
(1970 [1969]) ou Daniel Bell (1977 [1973]), tinham abordado o
advento do que designaram por “sociedade pós-industrial”,
em análises onde já estava inscrita a problemática do que se vi-
ria a chamar “sociedade do conhecimento”. Algumas obras de
referência, recorrendo a diferentes terminologias, focam em
especial determinados protagonistas centrais dos processos
que caracterizam a sociedade do conhecimento. É o caso dos
“analistas simbólicos” em Robert Reich (1993 [1991]) ou da
“classe criativa” em Richard Florida (2002).
Fazendo um balanço dos significados nucleares inscritos
nestas diversas abordagens, o conceito de sociedade do conhe-
cimento remete, no essencial, para a presença profundamente
estruturante e largamente abrangente, na sociedade contempo-
rânea, de conhecimentos formalizados e codificados, desenvol-
vidos por peritos em instituições especializadas, através de
procedimentos de elevado grau de elaboração. Estes conheci-
mentos constituem, hoje, um elemento central da organização
da sociedade e dos processos de mudança social.
Estes processos sociais contemporâneos ocorrem em gran-
de parte a escalas transnacionais. Os processos de globaliza-
ção são um exemplo evidente. Os processos de integração
europeia são outro. Aliás, globalização e integração europeia
114 Desigualdades Sociais Contemporâneas

são processos distintos, mas têm-se vindo a influenciar reci-


procamente de diversas maneiras. Ambos têm repercussões
decisivas, hoje, na mudança e reconfiguração da sociedade
portuguesa.
Tal não significa que as sociedades nacionais e os esta-
dos-nação, com as suas particularidades estruturais, institucio-
nais e culturais, não continuem a ter uma enorme importância.
Mas a persistência dessa importância, a diversos níveis e em va-
riados aspetos, não permite ignorar até que ponto o centro de
gravidade das estruturas sociais e dos processos de mudança se
situa atualmente, numa larga medida, em âmbitos transnacio-
nais. Mais precisamente, a compreensão de muitos fenómenos
sociais contemporâneos — designadamente os fenómenos de
desigualdade social — requer uma análise sociológica que arti-
cule os dois níveis de análise, nacional e transnacional.
Registe-se ainda que desenvolver uma análise transnacio-
nal não significa apenas proceder a comparações internacio-
nais. Essas comparações são esclarecedoras, sem dúvida, mas
hoje em dia a constituição da sociedade dá-se também, em larga
medida, diretamente a escalas transnacionais. Quer isto dizer
que, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista
metodológico, algumas das unidades de análise sociológica
pertinentes precisam de ser redefinidas como de âmbito especi-
ficamente transnacional.
Como se referiu logo de início, as ciências sociais em geral, e
a sociologia muito em particular, têm desenvolvido de maneira
continuada análises teóricas e pesquisas empíricas sobre clas-
ses sociais, designadamente sobre as desigualdades que são de-
las constitutivas ou estão com elas relacionadas.
Os focos analíticos têm sido variáveis, consoante os investi-
gadores, centrando-se uns mais nas assimetrias estruturais dos
lugares de classe, outros nos padrões diferenciados de práticas
quotidianas e estilos de vida relacionados com desigualdades
de classe, outros nas relações das classes sociais com as formas
de participação e de ação coletiva, nomeadamente na esfera
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 115

política, outros ainda nas desigualdades decorrentes das ori-


gens de classe e associadas às trajetórias sociais, etc.
As tipologias de classes ou lugares de classe utilizadas na
análise teórica e empírica têm sido também variadas e alternati-
vas, por vezes apenas parcialmente comparáveis entre si.
Recorrendo à tipologia ACM (ver capítulo 3) e aos dados
do European Social Survey (ESS) de 2004 (round 2), envolven-
do 22 países, foi possível não apenas caracterizar a composi-
ção de classe de cada país mas, para além disso, avançar na
análise de estruturas de classe transnacionais (Costa, Macha-
do e Almeida, 2007).
Mais pormenorizadamente, os resultados relacionam e in-
tegram três níveis de análise. Ao nível mais desagregado, obti-
veram-se os resultados relativos à estrutura de lugares de classe
de cada um dos países, evidenciando as semelhanças e diferen-
ças entre eles. No outro extremo, ao nível mais agregado, obte-
ve-se a composição de classe do universo europeu estudado,
tomado como um todo.
A este nível, a análise das estruturas sociais no espaço euro-
peu atual mostra uma composição social em que as classes assala-
riadas de base, operários e empregados executantes, constituem
cerca de 55% da população ativa, os trabalhadores independentes
passam um pouco dos 5%, a nova classe média assalariada (profis-
sionais técnicos e de enquadramento) representa um quarto da
população (25%) e a classe de topo, na heterogeneidade dos seus
segmentos (empresários, dirigentes e profissionais liberais), apro-
xima-se dos 15%.
Os empregados executantes (empregados de atividades
de rotina nas atividades administrativas, do comércio e dos
serviços) e os operários (da indústria, construção e transpor-
tes), apesar de partilharem a condição de assalariados de base
e tecerem múltiplos laços entre si nas relações pessoais e na
vida quotidiana, têm características estruturais muito distin-
tas. Designadamente, os conteúdos e contextos do trabalho
são muito diferentes, os empregados executantes ganharam
116 Desigualdades Sociais Contemporâneas

peso na estrutura social nas últimas décadas e os operários


diminuíram, e, ainda, os lugares de classe de empregados
executantes são ocupados em grande parte por mulheres en-
quanto os de operários continuam a sê-lo maioritariamente
por homens.
De salientar, ainda, que os profissionais técnicos e de en-
quadramento (profissionais assalariados com qualificações de
nível médio ou superior e/ou com posições de autoridade hie-
rárquica intermédia nas organizações) têm vindo a ganhar
presença crescente na estrutura social. Esta tendência é parti-
cularmente significativa na perspetiva da análise das estrutu-
ras sociais em contexto de sociedade do conhecimento. Outro
aspeto muito relevante, na perspetiva da sociedade do conhe-
cimento, é o das desigualdades nos níveis de recursos educati-
vos conseguidos pelas diversas classes de agentes que ocupam
hoje a estrutura social europeia — aspeto que se retoma no
ponto seguinte.
Mas a caracterização de conjunto apresentada acima, com
a pertinência analítica própria que possui, poderia correr o ris-
co de não representar muito mais do que uma média abstrata,
sem grande significado sociológico. Em contrapartida, a análi-
se país a país, e as comparações internacionais entre eles, sen-
do certamente úteis, são também insuficientes. O risco, desta
feita, é o de não dar conta de processos de estruturação social a
nível transnacional, que tudo indica estarem efetivamente a
acontecer.
Importa, pois, a um nível intermédio, procurar afinidades
de composição de classe entre conjuntos específicos de países.
Isso conseguiu-se através de uma análise de clusters. Chegou-se
assim a quatro clusters, ou quatro agregados transnacionais de
classes (ATC), cada um englobando um conjunto de países e ca-
racterizado por uma estrutura de lugares de classe com caracte-
rísticas próprias.
O ATC 1 constitui o conjunto maioritário, de certo modo o
padrão europeu em termos de estrutura social. Engloba os
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 117

países nórdicos (Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia) e


vários outros do Oeste e Centro Europeus (Alemanha, Bélgica,
Holanda, Luxemburgo, Suíça). A França e a Itália não fizeram
parte desta ronda do ESS, caso contrário teriam muito prova-
velmente ficado igualmente neste agregado. Mas a Espanha
pertence já também a este conjunto. Nele tornaram-se maiori-
tários os quadros e técnicos, ou profissionais técnicos e de en-
quadramento (PTE), protagonistas centrais das dinâmicas da
sociedade do conhecimento. Os PTE atingem 30% da popula-
ção ativa no espaço social do ATC 1.
O ATC 2 distingue-se do anterior por a respetiva estrutura
de lugares de classe evidenciar um peso relativo menor de pro-
fissionais técnicos e de enquadramento (PTE) (22%), a par de
uma proporção bastante mais elevada de empregados execu-
tantes (EE): 39% no ATC 2, comparados com 30% no ATC 1.
O peso relativo dos operários (O) é ainda menor do que no
agregado anterior (18% no ATC 2, face a 21% no ATC 1). São so-
ciedades altamente terciarizadas. Incluem os países insulares
do Atlântico Norte (Reino Unido, Irlanda e Islândia) e também
a Áustria.
Em certo sentido, passa-se o contrário com o ATC 3, consti-
tuído pelos seguintes países: Eslovénia, Eslováquia, Estónia,
República Checa e Ucrânia. Nele o peso relativo dos operários
(O) é claramente o mais elevado (36%). Tanto este aspeto como a
proporção também significativa de profissionais técnicos e de
enquadramento (PTE) (24,4%) terão a ver com a história especí-
fica destes países, todos eles pós-comunistas, em cuja estrutura
social continuaram a fazer-se sentir marcas da grande indústria
e de uma base de escolarização alargada.
Por último, o ATC 4 destaca-se pela presença ainda eleva-
da de trabalhadores independentes (TI) (15%), em grande par-
te no setor agrícola, e pela fração comparativamente bastante
menor de profissionais técnicos e de enquadramento (PTE)
(13%). Agregam-se aqui dois países do Sul da Europa (Portu-
gal e Grécia) com a Polónia, provavelmente o mais marcado
118 Desigualdades Sociais Contemporâneas

pela atividade agrícola de entre os antigos países de regime co-


munista incluídos nesta ronda do ESS.
Descendo para o nível de análise nacional, e comparando
países dentro deste último agregado transnacional, é possível
ver, por exemplo, que o peso dos TI em Portugal é menor (8%), ou
que na Grécia é menor o peso dos PTE (9%). Comparações seme-
lhantes podem ser feitas dentro dos outros agregados. Isso não
retira a pertinência à análise empreendida a nível transnacional
nem diminui o significado sociológico das estruturas transnacio-
nais de classes concretamente encontradas. Apenas corrobora o
que se disse atrás acerca da necessidade de se proceder, hoje em
dia, a análises de classes que conjuguem o nível nacional com o
nível transnacional (neste caso, com os agregados referidos e
com o espaço europeu como um todo).
Os agregados transnacionais de classes abrem uma janela
analítica própria sobre as estruturas sociais, os processos de
mudança estrutural, os seus fatores subjacentes e os seus efei-
tos, tal como estão a ocorrer na sociedade contemporânea, no-
meadamente no espaço europeu.
Em termos concetuais, porém, uma coisa são os lugares de
classe, outra são as classes de agentes. Uma perspetiva sociológi-
ca aprofundada torna necessário distinguir analiticamente
estas duas dimensões (Costa et al., 2000). Não são, evidente-
mente, duas realidades sociais independentes entre si. Mas
também não são dimensões redutíveis uma à outra. Indo dire-
to ao essencial, embora com o risco de alguma simplificação,
os lugares de classe são estruturados predominantemente por
processos económicos, enquanto, pelo seu lado, as classes de
agentes são formadas fundamentalmente através de processos
de socialização.
Claro que em ambas as dimensões intervêm ainda os pro-
cessos de ação coletiva, assuma ela mais a forma de ação insti-
tucional ou de movimento social. Mas a ação coletiva, num
sentido não trivial, é algo que atua sempre sobre um fundo so-
cial pré-constituído, neste caso pré-constituído precisamente,
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 119

de maneira continuada, pelos processos económicos e pelos


processos de socialização.
Especificando um pouco mais, pode dizer-se que os lugares
de classe são estruturados predominantemente, em termos
imediatos, pelo sistema de emprego. Este, por sua vez, decorre
de processos complexos, envolvendo as dinâmicas dos merca-
dos e da inovação tecnológica, os modelos de organização e ges-
tão, as estratégias empresariais e um conjunto de políticas
estatais.
Já a formação das classes de agentes remete para estruturas
e dinâmicas bastante distintas, em especial para as instâncias e
os processos de socialização. O ponto fundamental que importa
aqui sublinhar é que, em contexto da sociedade do conhecimen-
to, os processos de socialização tendem a focar-se de maneira
decisiva na escolarização. Ganham particular centralidade e
importância, neste contexto: (i) a aquisição de conhecimentos
implicando níveis elevados de codificação e formalização; (ii) a
aquisição de competências de utilização desses conhecimentos;
e (iii) a obtenção de certificações que reconheçam, explicitem e
legitimem formalmente essas aquisições.
Uma das razões para o desenvolvimento atual de processos
de padronização internacional de certificações consiste, justa-
mente, na confluência entre uma dinâmica de qualificações
crescentes (sociedade do conhecimento) e uma dinâmica de
mobilidade potencial também crescente (globalização). Essa
confluência gera o apelo a mecanismos que permitam que co-
nhecimentos e competências possam ser reconhecidos com
relativa rapidez e segurança para além dos círculos de interco-
nhecimento próximo.
Apesar dessas convergências tendenciais, o preenchimento
dos lugares de classe pelas classes de agentes não conduz sem-
pre e em todo o lado aos mesmos perfis educativos das classes
sociais.
Recorrendo a um indicador simples e comparável — o nú-
mero de anos de escolaridade — a análise dos dados do referido
120 Desigualdades Sociais Contemporâneas

ESS mostra, como seria de esperar, que os ocupantes dos lugares


de classe de profissionais técnicos e de enquadramento (PTE), e,
logo a seguir, de empresários, dirigentes e profissionais liberais
(EDL), são os que, a nível europeu, possuem em média recursos
educativos mais elevados (14 e 13 anos, respetivamente).
Em contrapartida, os lugares de classe de trabalhadores in-
dependentes (TI), empregados executantes (EE) e operários (O)
tendem a ser preenchidos por classes de agentes com recursos
escolares claramente menores (10, 11 e 10 anos, respetivamen-
te). Na Europa atual, os membros destas classes sociais possu-
em, assim, qualificações escolares bastante apreciáveis, embora
significativamente menores do que os PTE e EDL.
Poder-se-ia proceder a uma análise comparativa dos diver-
sos países individualmente considerados, o que revelaria aspe-
tos adicionais também muito esclarecedores. Mas interessará
sobretudo ilustrar as potencialidades de outras unidades de
análise, os agregados transnacionais de classes. Vejamos ape-
nas um exemplo, referente ao ATC 4, em que se inclui Portugal.
No ATC 4, os EE, O e TI têm recursos educativos em média
muito inferiores (10, 8 e 8 anos, respetivamente) aos dos seus
equivalentes estruturais nos outros ATC (11 a 12 anos, 10 a 11
anos e 10 a 12 anos, respetivamente). Não transportam consigo,
comparativamente com os seus pares, o mesmo nível de conhe-
cimentos formalizados, competências correlativas e certifica-
ções correspondentes, o que, num contexto de sociedade do
conhecimento e de globalização, os coloca numa situação parti-
cularmente desfavorecida e ameaçada.
O mesmo não se passa com os PTE, que detêm um nível de
recursos educativos semelhante ao que se verifica nos outros
ATC. Aparentemente, esta classe de agentes inseriu-se já muito
mais numa dinâmica de sociedade do conhecimento e globali-
zação do que as outras classes de agentes deste ATC.
Apesar das transformações pelas quais tem passado a so-
ciedade portuguesa neste contexto de globalização e sociedade
do conhecimento, que são efetivamente muito significativas, os
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 121

“dualismos” que lhe foram apontados em diversas obras socio-


lógicas de referência ao longo das décadas passadas, ou a
“modernidade inacabada” (Machado e Costa, 1998) que a tem
caracterizado, constituem um traço estrutural persistente.
As pessoas que em Portugal e nos outros países do ATC 4
ocupam os lugares de classe de assalariados de base e de traba-
lhadores independentes possuem em média bastante menos re-
cursos educativos do que os seus congéneres dos outros ATC
europeus. O conteúdo cognitivo que estas classes de agentes
transportam para as atividades profissionais que desenvolvem
não é o mesmo dos seus equivalentes estruturais a nível euro-
peu. Neste ATC, não só a proporção de atividades mais qualificadas é
menor (limitação estrutural do lugar de classe de PTE) como o ní-
vel de qualificação aplicado às mesmas atividades é menos elevado (no-
meadamente nas classes de agentes assalariados de base ou
trabalhadores independentes).
Este último aspeto poucas vezes tem sido identificado ou
tido em consideração, mas as suas consequências não são
menos importantes do que as do primeiro, em termos de desi-
gualdades sociais. Com efeito, do ponto de vista pessoal, as
oportunidades não são equivalentes às dos membros das
mesmas classes a nível europeu. Empregabilidade, mobilida-
de, remuneração e outros aspetos fundamentais das con-
dições sociais de existência encontram-se estruturalmente
afetados. Por outro lado, do ponto de vista societal, os níveis
de qualidade e produtividade conseguidos em diversos do-
mínios de atividade (empresas, administração pública, servi-
ços sociais, associações) nos países do ATC 4 encontram-se
também estruturalmente afetados em comparação com os
dos outros agregados transnacionais.
Em suma, às desigualdades estruturais entre classes so-
mam-se as desigualdades estruturais entre contextos sociais ca-
racterizados tanto em termos dos perfis de lugares de classe
como em termos da formação (nomeadamente, da qualificação)
das classes de agentes. Estas desigualdades repercutem-se, por
122 Desigualdades Sociais Contemporâneas

sua vez, quer a nível das oportunidades pessoais, quer a nível


das potencialidades societais.
Sem proceder aqui a desenvolvimentos adicionais relativos
ao nível de análise nacional, não se pode deixar de chamar a
atenção para a baixa qualificação escolar de todas as categorias
em Portugal, mesmo em comparação apenas com os outros paí-
ses do mesmo ATC (Costa, Machado e Almeida, 2007).
Este traço estrutural tem tido consequências muito signifi-
cativas, nomeadamente nas dificuldades de modernização do
tecido económico nacional em contexto de transição para a
sociedade do conhecimento. Importará acompanhar analitica-
mente, quanto à integração de Portugal no contexto de globali-
zação e sociedade do conhecimento, as dinâmicas sociais de
alargamento da escolarização e da formação ao longo da vida
(incluindo as políticas públicas a esse respeito), para ver até
que ponto estas desigualdades estruturais transnacionais vão
sendo superadas ou não.

Indicadores de desigualdades em perspetiva


comparativa europeia

As análises anteriores podem ser utilmente complementadas re-


correndo a um conjunto de indicadores comparativos entre Portu-
gal e os outros países da União Europeia (Carmo, Cantante e
Baptista, 2010) apresentados em Desigualdades Sociais 2010. Estudos
e Indicadores, uma publicação do Observatório das Desigualdades.
Relativamente às desigualdades de rendimentos, usando
como medidas de desigualdade o coeficiente de Gini e o rácio
S80/S20, e como fonte o SILC 2008 (Statistics on Income and Li-
ving Conditions, Eurostat), pode verificar-se como Portugal é
um dos países da União Europeia com maiores desigualdades
de rendimentos (em Portugal, o coeficiente de Gini = 0, 36 e o rá-
cio S80/S20 = 6,1, enquanto os valores médios da UE-27 são os
seguintes: coeficiente de Gini = 0,31 e S80/S20 = 5,0).
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 123

Portugal encontra-se nos níveis de maiores desigualdades


de rendimentos na Europa, a par de países como a Letónia e a
Lituânia, a Roménia e a Bulgária, a Grécia e o Reino Unido. No
outro extremo encontram-se os países com distribuições de
rendimentos menos desiguais, nomeadamente países nórdicos
como a Suécia e a Dinamarca, ou países do Centro e Leste Euro-
peus, como a Hungria, a República Checa, a Eslováquia e a Eslo-
vénia. Em 2008, os países com maior e menor desigualdade de
rendimentos na UE-27 eram, respetivamente, a Letónia (coefici-
ente de Gini = 0,38; S80/S20 = 7,3) e a Eslovénia (coeficiente de
Gini = 0,23; S80/S20 = 3,4).
Além disso, o PIB per capita em Portugal (em PPC) situa-se
entre três quartos e quatro quintos da média da UE. A atual crise
económica e financeira estará provavelmente a agravar esta si-
tuação nacional de desigualdade perante o espaço internacio-
nal europeu.
Para além dos recursos económicos, os recursos educativos
são fundamentais na atual sociedade do conhecimento, como se
tem vindo a referir. Apenas 28% da população dos 25 aos 64
anos tinha em Portugal, no ano de 2008, qualificação educativa
a nível do ensino secundário ou do ensino superior, enquanto a
média da UE-27 era de 72% (dados do Labour Force Survey, Eu-
rostat). A desigualdade educativa da população portuguesa
face ao contexto europeu é muito grande, neste aspeto da maior
importância na atualidade.
Apesar disso, a evolução do país neste domínio foi assinalá-
vel nos anos mais recentes (a taxa de qualificação secundária ou
superior passou de 18% a 28% em 10 anos, entre 1998 e 2008).
Para isso contribuíram políticas como a expansão do pré-escolar,
a escola a tempo inteiro e a redução das retenções no ensino
básico, a universalização do ensino secundário, um grande alar-
gamento do ensino profissional, uma vasta operação de educa-
ção e formação de adultos a nível básico e secundário (“Novas
Oportunidades”), uma nova estrutura de ciclos de estudo no en-
sino superior (“Processo de Bolonha”), com faseamento mais
124 Desigualdades Sociais Contemporâneas

gradual, e possibilidades específicas de acesso de adultos (maio-


res de 23 anos) a este nível de ensino.
Mesmo assim, a distância às médias europeias não dimi-
nuiu muito, uma vez que essas médias têm estado elas próprias
em aumento constante, devido às dinâmicas de qualificação
crescente que têm vindo a verificar-se em todos os países da
União Europeia.
Por outro lado, quanto às taxas de risco de pobreza (relati-
va), Portugal localiza-se em posição intermédia no espaço euro-
peu, evidenciando também eficácia intermédia das políticas
sociais — redução de 25% para 18% da população em risco de
pobreza, após transferências sociais (as médias corresponden-
tes da UE-27 situam-se em 25% e 17%, respetivamente, ainda se-
gundo o SILC 2008).
Estas indicações podem ser utilmente corroboradas e com-
plementadas com as de um estudo recente coordenado por Car-
los Farinha Rodrigues et al. (2011). De acordo com esse estudo, a
distribuição dos rendimentos no país é muito desigual. Em ter-
mos médios, o rendimento disponível por adulto equivalente,
segundo dados do Inquérito às Condições e Vida e Rendimento,
do INE (versão portuguesa do SILC), era, em 2008, um pouco
superior a 10 mil euros por ano. Mas os 5% mais ricos da popu-
lação ganhavam cerca 18 vezes mais do que os 5% mais pobres.
Ou, ainda, os 10% mais ricos auferiam quase 30% do rendimen-
to total, enquanto os 10% mais pobres não chegavam a deter 3%
desse rendimento total.
A evolução da distribuição dos rendimentos ao longo das
décadas de 1990 e 2000 (mais precisamente, num período de 15
anos, entre 1993 e 2008) correspondeu, em termos gerais, a uma
diminuição das desigualdades (por exemplo, o índice de Gini
passou de 0,39 em 1993 para 0,35 em 2008). Essa redução das
desigualdades ocorreu fundamentalmente por efeito do au-
mento das proporções do rendimento auferidas pelos escalões
de rendimentos mais baixos (sobretudo, no primeiro decil),
para o que terão muito provavelmente contribuído as políticas
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 125

sociais a eles dirigidas, mantendo-se ou agravando-se, por


outro lado, as assimetrias nos escalões de rendimentos mais
elevados.
É na componente salarial dos rendimentos (a qual repre-
senta cerca de 70% dos rendimentos das famílias) que se torna
mais visível uma tendência para a acentuação das desigualda-
des, muito em especial no topo dos ganhos salariais. Entre 1985
e 2008, os 10% de indivíduos com ganhos salariais mais eleva-
dos aumentaram a proporção dos rendimentos salariais por
eles auferida em 25%, os 1% com remunerações mais elevadas
aumentaram essa proporção em 49% e os 0,1% do topo das re-
munerações aumentaram-na em 70%).
Em contrapartida, a taxa de risco de pobreza desceu de
22,5% em 1993 para 17,9% em 2008 (valores após transferên-
cias sociais) — considerando a linha da pobreza (relativa) em
60% do rendimento mediano por adulto equivalente. Nos ido-
sos, a redução da pobreza foi particularmente acentuada nesse
período (de cerca de 40% para cerca de 20%), enquanto a po-
breza infantil foi oscilando em torno dos 23% sem se afastar
duradouramente desse valor.
Finalmente, o estudo que se tem vindo a referir (Rodigues et
al., 2011) confirma que as desigualdades educativas são bastan-
te grandes, quer relativamente ao conjunto da União Europeia,
quer nas distribuições internas. Em 2008, apenas 13% dos indi-
víduos de referência das famílias (os de rendimento mais eleva-
do no agregado familiar) tinham o ensino superior e outros 13%
o ensino secundário, ficando-se 73% pelo ensino básico, no má-
ximo. A relação entre nível de qualificação escolar e nível de
rendimentos é forte. O rendimento médio duplica e mais do que
triplica entre os detentores do ensino básico e os do ensino se-
cundário e superior, respetivamente. Além disso, a desigualda-
de interna do segmento mais qualificado é a única a aumentar
de forma significativa e continuada durante o período de 1993 a
2008, o que está relacionado com a já referida acentuação das
desigualdades de rendimentos nos escalões mais elevados.
126 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Literacia e perfis de desigualdades nacionais


e internacionais

Nas sociedades contemporâneas, a informação escrita tor-


nou-se um elemento fundamental, encontrando-se um pouco
por todo o lado, impregnando o quotidiano, presente numa
grande variedade de suportes (livros, revistas, jornais, impres-
sos, sinaléticas, filmes, televisão, computadores, telemóveis,
terminais, etc.) e inserido nos diversos domínios de atividade
e relacionamento social (profissão, estudo, cultura, cidadania,
comunicação, lazer, convívio, etc.).
As competências de literacia — entendidas como capacida-
des de processar com efetividade informação escrita na vida
quotidiana, nessa variedade de domínios e suportes — consti-
tuem, pois, um recurso fundamental na sociedade do conheci-
mento, cada vez mais transversal e generalizado, mas também
desigualmente distribuído.
Este aspeto das desigualdades sociais contemporâneas pode
ser ilustrado recorrendo aos estudos desenvolvidos por Patrícia
Ávila (2007; 2008). Além de proporcionarem esclarecimento teó-
rico, sociológico e metodológico sobre o conceito de literacia, a
importância da literacia na atual sociedade do conhecimento e a
medição dos níveis de literacia, as obras mencionadas dão acesso
a um conjunto de indicadores e análises.
Em primeiro lugar, permitem caracterizar as distribuições
desiguais de literacia na população adulta portuguesa — as
quais revelam um perfil nacional de desigualdade muito acen-
tuada quanto à posse deste importantíssimo recurso cognitivo e
comunicacional.
Em segundo lugar, procedem a comparações entre países a
respeito de níveis médios e perfis de literacia — daí resultando a
evidenciação de que, mesmo no conjunto das sociedades mais
desenvolvidas (nomeadamente, países europeus e outros paí-
ses da OCDE), se verifica a existência de desigualdades muito
elevadas, de dois tipos: quer entre os níveis médios de literacia
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 127

dos diferentes países, quer nas maiores ou menores desigualda-


des internas de cada um deles nas respetivas distribuições so-
ciais de competências de literacia.
À data dos últimos dados internacionais disponíveis in-
cluindo a sociedade portuguesa (finais dos anos 1990), esta
encontrava-se bastante mal colocada destes dois pontos de
vista, uma vez que era, nesse conjunto de países mais desen-
volvidos, uma das que possuía níveis médios de literacia
mais baixos e uma das que revelava maiores desigualdades
internas na distribuição social de recursos cognitivos e comu-
nicacionais de literacia.
Em terceiro lugar, analisam finamente a centralidade da li-
teracia na vida social atual, relacionando-a com um conjunto de
outras vertentes das desigualdades, designadamente as estrati-
ficações de qualificação escolar e socioprofissionais, as idades e
os percursos de vida, ou, ainda, as práticas do quotidiano que
envolvem experiências de contacto com a informação escrita,
hoje em dia potencialmente muito variadas.
Fica claro, em suma, como as competências socialmente
disponíveis de processamento e utilização de informação escri-
ta na vida quotidiana (nas suas diversas esferas, da educativa à
profissional, da cultural à comunicacional, da lúdica à cívica),
não só são hoje elemento estruturante e recurso central da socie-
dade do conhecimento, como estão também desigualmente dis-
tribuídas, na sociedade e entre sociedades.
Os níveis de literacia e as desigualdades de literacia têm,
pois, impactos muito significativos, quer no plano das capaci-
dades, oportunidades e empoderamento dos indivíduos, quer
no plano dos potenciais de desenvolvimento e no bem-estar dos
países (Murray et al., 2009).
128 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Estudantes do ensino superior: desigualdades de acesso


e de percurso

Os estudantes do ensino superior são um dos segmentos sociais


em que as dinâmicas contemporâneas da sociedade do conheci-
mento se manifestam de forma mais direta e intensa.
Podemos retomar aqui alguns resultados de um projeto de
investigação sobre os estudantes e as suas trajetórias no ensino
superior (Costa e Lopes, 2010; 2011). A investigação foi concetu-
alizada teoricamente e executada metodologicamente a três ní-
veis de análise sociológica, estrutural, institucional e biográfico,
considerando-os não como estanques entre si mas como com-
plementares e inter-relacionados.
Tal como aconteceu na generalidade dos países europeus, ve-
rificou-se em Portugal nas últimas décadas um alargamento signi-
ficativo do acesso ao ensino superior. Com efeito, em 1974, quando
a ditadura foi derrubada e se iniciou o restabelecimento da demo-
cracia em Portugal, apenas cerca de 40 mil estudantes frequenta-
vam o ensino superior, enquanto atualmente o frequentam perto
de 400 mil. Em grande medida devido àquele atraso de partida, e
apesar do crescimento recente, a proporção de pessoas com o ensi-
no superior na população portuguesa dos 25 aos 64 anos era ainda
em 2009 apenas cerca de 14%, em comparação com 30% de média
na OCDE (Education at a Glance 2011).
Uma das consequências do alargamento do acesso ao ensino
superior em Portugal, tal como noutros países, tem sido a diver-
sificação das origens sociais dos estudantes. As desigualdades
neste domínio reduziram-se muito, comparando com algumas
décadas atrás. No entanto, as oportunidades sociais de acesso
continuam a ser estruturalmente desiguais.
No conjunto, cerca de 60% dos estudantes do ensino
superior provêm hoje de famílias de classes “altas” ou “mé-
dias” (empresários, dirigentes, profissionais liberais, profis-
sionais técnicos e de enquadramento), enquanto os outros
40%, aproximadamente, provêm de famílias de assalariados
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 129

de base (empregados executantes, operários industriais, assa-


lariados agrícolas) e trabalhadores independentes não qualifi-
cados (Martins, Mauritti e Costa, 2008). Esta situação permite
falar, no ensino superior atual, de um “duplo padrão de re-
crutamento social”, com uma vertente de reprodução social e
outra de mobilidade social ascendente.
Importa ter em conta, porém, que as referidas categorias so-
ciais de origem dos estudantes correspondem, em termos apro-
ximativos, a cerca de 30% e 70% da população, respetivamente.
Comparando estas proporções com as das famílias de origem
dos estudantes do ensino superior, verifica-se a persistência de
desigualdades de oportunidades estruturais. Há meio século,
essas desigualdades de oportunidades eram da ordem das de-
zenas e mesmo centenas de vezes; atualmente situa-se entre
algumas unidades e uma dezena de vezes, consoante as catego-
rias sociais e a maneira de medir a posição social (Mauritti e
Martins, 2007).
Deste ponto de vista, a sociedade portuguesa segue a ten-
dência da generalidade dos países europeus: alargamento da
base social de recrutamento dos estudantes do ensino superi-
or, diminuição progressiva das desigualdades sociais de aces-
so, persistência de um certo grau de desigualdade estrutural
nessas oportunidades de acesso. Essas tendências são trans-
versais na União Europeia, embora com variações de país para
país, designadamente quanto aos graus de desigualdade de
acesso consoante as origens sociais dos estudantes (Orr, 2008;
Martins, 2012).
O atraso histórico deste processo no país, por comparação
com os mais desenvolvidos, assim como as desigualdades
estruturais persistentes, justificaram, aliás, políticas públicas
prosseguidas na última década, como a universalização do en-
sino secundário, o reforço dos apoios sociais a estudantes eco-
nomicamente carenciados e a diversificação das vias de acesso
ao ensino superior e das modalidades da sua frequência (por
exemplo, através de possibilidades de acesso específicas para
130 Desigualdades Sociais Contemporâneas

adultos, de cursos pós-laborais ou do regime de estudante a


tempo parcial).
Outras desigualdades são também relevantes neste domí-
nio, assim como a sua evolução. Por exemplo, cerca de 54% dos
estudantes presentes no sistema de ensino superior são hoje do
sexo feminino, comparativamente com cerca de 46% do sexo
masculino. Há poucas décadas a proporção era inversa; a ultra-
passagem dos 50% pelas estudantes deu-se nos anos 80.
Mas, para além dos dados estruturais, interessa conhecer
as práticas sociais. Como é que as desigualdades estruturais
se manifestam nos percursos escolares e sociais que os estu-
dantes vão percorrendo e construindo no ensino superior?
Que relações ativas estabelecem eles com as condições estru-
turais e institucionais de desigualdade com que se veem
confrontados?
Para obter elementos de resposta a estas questões foi parti-
cularmente importante a análise a nível biográfico. Realiza-
ram-se 170 estudos de caso de trajetórias de estudantes (ou
ex-estudantes recentes) do ensino superior, correspondendo a
uma amostra estratificada segundo diversos parâmetros rele-
vantes para a captação de uma grande diversidade de situações
e percursos. Para todos esses casos realizaram-se entrevistas em
profundidade e elaboraram-se, a partir delas, “retratos socioló-
gicos” (Lahire, 2002) de cada um dos estudantes.
Foi possível identificar, assim, oito percursos-tipo princi-
pais: “percursos tendenciais”, “percursos de contratendência”,
“percursos focados na educação”, “percursos com inflexões”,
“percursos com problemas de transição (para a vida adulta,
para o ensino superior)”, “percursos com dificuldades de conci-
liação (entre esferas de vida)”, “percursos com dificuldades de
integração (social e escolar)”, “percursos com problemas nos
modos de estudar”.
Esses percursos-tipo apresentam articulações variáveis, tanto
com a localização dos estudantes na estrutura social como com os
seus resultados escolares (sucesso, insucesso, abandono). Através
Sociedade do conhecimento e desigualdades em Portugal e na Europa 131

da caracterização fina desses percursos e da sua padronização ti-


pológica, consegue-se avançar na elucidação não só das condições
sociais em que os indivíduos se inscrevem, mas também das rela-
ções ativas que eles estabelecem com essas condições sociais (Cos-
ta e Lopes, 2010; 2011). Umas e outras (condições sociais e relações
ativas) são fatores essenciais das desigualdades múltiplas que
configuram atualmente os percursos dos estudantes do ensino
superior.
Capítulo 9
Desigualdades no mundo, casos e comparações

A “grande inflexão” das desigualdades nos EUA

Depois de se ter procedido a uma abordagem específica das de-


sigualdades sociais contemporâneas em Portugal e na Europa,
o presente capítulo examina um conjunto de outros casos de
particular importância para o conhecimento das desigualdades
no mundo atual.
Selecionaram-se, por um lado, dois casos de grandes países
com níveis de desenvolvimento elevado e protagonismo deter-
minante nos processos contemporâneos da globalização e da
sociedade da informação e do conhecimento — os Estados Uni-
dos da América e o Japão.
Selecionaram, também, por outro lado, dois outros grandes
países — o Brasil e a China — que, partindo de níveis de desenvol-
vimento económico bastante mais baixos, têm vindo nos últimos
anos a crescer economicamente a ritmo muito elevado, fazendo
parte do conjunto dos que têm vindo a ser chamados “países
emergentes”. Serão ainda feitas algumas referências comparativas
complementares à Índia, à África do Sul e à Rússia.
Este primeiro ponto ocupa-se das desigualdades sociais
nos EUA, das suas dimensões principais e das fortes alterações
nos níveis de desigualdade económica que ocorreram nesse
país ao longo do último século.
133
134 Desigualdades Sociais Contemporâneas

As desigualdades económicas atingem níveis muito eleva-


dos na sociedade norte-americana atual, dos mais elevados en-
tre os países de maiores níveis de desenvolvimento: coeficiente
de Gini perto de 0,4 em meados da década de 2000, para uma
média da OCDE pouco superior a 0,3, segundo dados da pró-
pria OCDE (2008).
Esse caráter acentuado das desigualdades nos Estados Uni-
dos da América foi já assinalado em capítulos anteriores, nome-
adamente no capítulo 4, e está associado a um conjunto de
problemas sociais — como se pode ver, por exemplo, no estudo
também já referido de Richard Wilkinson e Kate Pickett (2009).
No entanto, nem sempre foi assim. Os níveis de desigualda-
de económica nos EUA variaram muito ao longo do último sé-
culo, o que fica bem evidente na curva em U que descreve
graficamente as grandes mudanças na distribuição dos rendi-
mentos apresentada por Piketty e Saez (2007).
Como anteriormente se referiu (capítulo 4), as análises des-
ses economistas mostram que, nos Estados Unidos da América,
no período entre o princípio do século XX e a Segunda Guerra
Mundial, aproximadamente 45% dos rendimentos do país eram
apropriados pela população posicionada no decil superior da
distribuição de rendimentos. Com a Grande Depressão, a econo-
mia de guerra, as mudanças ocorridas nas relações laborais e as
políticas ficais de redistribuição do New Deal, essa fração dos
rendimentos diminuiu acentuadamente para cerca de 30%. A de-
sigualdade económica manteve-se nessa ordem de grandeza du-
rante décadas, tendo recomeçado a subir, intensamente, nos anos
70 e 80, atingindo outra vez perto dos 45% no início do novo
milénio.
De entre as inúmeras análises disponíveis sobre as desigual-
dades nos Estados Unidos da América e as transformações que
as caracterizaram no último século, o livro de Douglas S. Massey
(2007), Categorically Unequal. The American Stratification System,
é uma das mais abrangentes e esclarecedoras. Nessa análise,
Massey aborda as três dimensões de desigualdade categorial
Desigualdades no mundo, casos e comparações 135

historicamente mais decisivas nos EUA: as desigualdades de


raça, classe e género — cada uma em si mesma e as três nas suas
múltiplas interseções.
As desigualdades de raça assumiram a forma extrema de
escravatura dos afro-americanos nos estados sulistas dos EUA,
até à Guerra Civil na segunda metade do século XIX. Após a
abolição da escravatura, instalou-se nesses estados um sistema
de segregação racial formal e informal, conhecido como “siste-
ma de Jim Crow”, que só viria a ser desmantelado (pelo menos
em termos formais) a partir dos anos 60 do século XX, com o
Movimento pelos Direitos Civis dos negros e um conjunto de le-
gislação antidiscriminação racial promulgada na segunda me-
tade da década de 60 e durante a década de 70.
Permaneceram, porém, diversas formas de discriminação
difusa e surgiram ou acentuaram-se novos mecanismos de desi-
gualdade categorial racializada, designadamente de âmbito so-
cioespacial (“guetos urbanos”, como se viu no capítulo 5) ou na
esfera judicial (aumento exponencial das taxas de encarcera-
mento, sobretudo de jovens negros do sexo masculino). Por ou-
tro lado, a partir dos anos 80, redobraram os mecanismos
sociais de discriminação da população categorizada como “his-
pânica” (ou “latinos”), em grande parte oriunda do México e
das Caraíbas, cuja imigração aumentou muito nesse período.
Apesar das importantes mudanças ocorridas ao longo de um
século e meio no sentido da não discriminação racial (nomeada-
mente, todo o processo de reconhecimento legal dos direitos civis
dos negros, seguido de diversas medidas compensatórias de ação
afirmativa), esta vertente das desigualdades categoriais está longe
de ter desaparecido nos EUA. Tais desigualdades apresentam
agora, tendencialmente, manifestações mais atenuadas e contor-
nos mais informais, mas permanecem bastante acentuadas.
Por exemplo, entre os anos 70 e a primeira décade de 2000, os
rendimentos médios anuais das famílias categorizadas como de
“negros” mantiveram-se aproximadamente à mesma (grande)
distância dos das famílias categorizadas como de “brancos”,
136 Desigualdades Sociais Contemporâneas

tendo estas subido da ordem dos 40 mil USD anuais para a dos 50
mil, e aquelas da ordem dos 20 mil para a dos 30 mil. Pelo seu lado,
os “latinos”, permanecendo em situação intermédia, perderam
posição relativa, passando da ordem dos 30 mil USD anuais no iní-
cio dos anos 70 para a ordem dos 35 mil nos anos 2000.
Pelo seu lado, as desigualdades de classe acentuaram-se
substancialmente nos EUAno último meio século. Uma das com-
ponentes desse processo foi a reorientação das políticas sociais.
A partir dos anos 70, o valor real do salário mínimo começou a
baixar, tendo-se esse decréscimo acentuado progressivamente
desde então. Os apoios sociais aos desempregados e aos pobres
sofreram reduções muito significativas, nos valores médios por
pessoa, igualmente a partir dos anos 70. O número de famílias
pobres beneficiárias de apoios específicos diminuiu bastante,
primeiro nos anos 70 e depois nos anos 90.
Outra componente foi a progressiva quebra da capacidade de
ação dos sindicatos e a redução das taxas de sindicalização. Esta
tendência teve os seus primeiros episódios logo no pós-guerra e
no final dos anos 50, com a legislação restritiva dos modos e esfe-
ras de ação sindical então promulgada. A partir daí, prolongou-se
sempre em sentido descendente, até à atualidade.
Igualmente importante, com incidência significativa nas
classes médias, foi o crescimento contínuo e intenso, ao longo
de todo o último meio século, do endividamento dos consumi-
dores. A dívida por pessoa aumentou cerca de 16 vezes entre o
pós-guerra (meio do século XX) e o início do século XXI. Deve
acrescentar-se que a crise financeira e económica que se desen-
cadeou em 2008 agravou os níveis do endividamento, com
repercussões proporcionalmente bastante mais graves nos es-
tratos sociais de rendimentos baixos e médios.
Da maior importância foi, ainda, a intensificação progressi-
va da segregação espacial das classes sociais que se verificou a
partir dos anos 70. Considerando como “pobres” as famílias
com rendimentos abaixo da linha de pobreza definida a nível
federal e como “afluentes” as famílias com rendimentos acima
Desigualdades no mundo, casos e comparações 137

de quatro vezes esse valor, vários indicadores evidenciam, des-


de então, nas grandes áreas metropolitanas dos EUA, fortes
acréscimos de concentração residencial separada de cada um
desses segmentos sociais. Estes processos de segregação espaci-
al foram frequentemente acompanhados por diversos mecanis-
mos de acentuação das clivagens de classe.
Mecanismos políticos: por exemplo, a possibilidade parado-
xal que os governos locais de circunscrições administrativas aflu-
entes têm de baixarem os impostos dos seus residentes (que
usufruem, mesmo assim, de serviços municipais de elevada qua-
lidade), enquanto as circunscrições onde se concentram os mais
pobres se veem na necessidade de elevar esses impostos para
acudirem (precariamente) às carências dos seus residentes.
Mecanismos económicos: acentuação desta “ecologia da
desigualdade” pela ação de agentes económicos, nomeada-
mente pela procura de localização de empresas e estabeleci-
mentos em municipalidades com impostos baixos, poder de
compra elevado, serviços de boa qualidade e riscos mínimos,
assim como pela crescente promoção imobiliária de condomíni-
os fechados.
Mecanismos educacionais: concentração de crianças e jo-
vens de famílias pobres em escolas de baixos recursos (e o inver-
so para as famílias afluentes), numa época em que a formação
escolar é cada vez mais decisiva para as oportunidades de vida
— além de diversos outros mecanismos discriminatórios a fa-
vor das classes altas, nomeadamente no acesso às universida-
des de elite, por exemplo através da reserva de quotas e outras
facilidades para filhos de antigos alunos.
Mecanismos sociais: as redes sociais tendem a funcionar de
maneiras diferentes nestes contextos; de um modo geral, nas
áreas de concentração de populações afluentes as redes sociais
potenciam oportunidades, enquanto nas áreas de concentração
de pobreza mobilizam no essencial ajudas à sobrevivência, com
muitas dificuldades em propiciarem recursos suficientes para a
mobilidade social e espacial.
138 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Mecanismos culturais: estes contextos residenciais forte-


mente segregados em termos de classe suscitam reportórios de
referência e de conduta distintos; os residentes em concentra-
ções urbanas de populações pobres, designadamente, veem-se
na necessidade de lidarem no quotidiano com ambientes caren-
ciados e agrestes, favoráveis à emergência de condutas de auto-
preservação e, em certos casos, de violência e criminalidade,
ameaçadoras para os meios sociais afluentes (que, por seu lado,
desenvolvem crescentemente estratégias de fechamento distin-
tivo e defensivo), mas, antes de mais, perigosas e destrutivas
para os que vivem nesses próprios meios sociais desfavoreci-
dos; tudo isto reforça a visibilidade dos contrastes sociais e os
estereótipos de classe recíprocos.
No domínio das desigualdades de género, verificou-se um
ponto de viragem importante nos anos 60. Até então a maioria
das mulheres estava confinada ao desempenho de papéis so-
ciais familiares e/ou (principalmente a partir dos anos 20) a em-
pregos de escritório, serviços e cuidados pessoais, a que alguns
autores chamaram empregos de “colarinho rosa” (por contra-
posição aos de “colarinho azul” e de “colarinho branco” dos
homens). As de classe baixa eram sobretudo empregadas do-
mésticas, de limpeza e de restaurantes; as de classe média eram
tipicamente secretárias, enfermeiras e professoras. No conjun-
to, os salários das mulheres mantinham-se muito abaixo dos sa-
lários dos homens.
A partir dos anos 60, com o desenvolvimento da “economia
pós-industrial”, a participação das mulheres na vida profissio-
nal cresceu acentuadamente, a situação mais frequente nas fa-
mílias passou a ser a de dupla carreira profissional (homem e
mulher), os salários das mulheres aproximaram-se dos dos ho-
mens (por acréscimo dos das primeiras e relativa estagnação
dos dos segundos).
Em concomitância, outras mutações ocorreram envolven-
do os movimentos feministas, a contraceção química, o aumen-
to das qualificações escolares das mulheres e a abertura a estas
Desigualdades no mundo, casos e comparações 139

de novas oportunidades profissionais, mudando valores, iden-


tidades, estilos de vida e relações interpessoais no sentido de
uma maior igualdade de estatuto social e de uma maior autono-
mia das mulheres face aos homens.
Estes processos, porém, não eliminaram por completo as
desigualdades de género na esfera profissional e na esfera
pessoal. Essas desigualdades continuam a existir nos EUA —
nomeadamente nos níveis salariais, no acesso a posições diri-
gentes e na repartição das tarefas domésticas e familiares — em-
bora em menor grau e com tendência para diminuírem.
Além disso, as referidas mudanças tiveram, nos Estados
Unidos, repercussões muito desiguais nas faixas superiores e
inferiores da estrutura de classes. Simplificando, as mulheres
das classes médias e altas entraram em força nas universidades
e nas profissões científicas, técnicas, liberais e de gestão, tendo
conseguido maior paridade com os homens a nível profissional
e remuneratório, assim como a nível das relações interpessoais
e da vida familiar. Nos estratos mais baixos da estrutura social,
as ocupações permaneceram em larga medida segregadas em
termos de género, trabalhando a maioria das mulheres, pouco
escolarizadas, em serviços de baixa qualificação e remunera-
ção, ao mesmo tempo que as suas relações interpessoais e fami-
liares com os homens se mantiveram mais assimétricas.
Massey mostra ainda como, no decurso do último meio sécu-
lo, a associação destas três dimensões de desigualdade categorial
às distribuições de rendimentos nos EUA evoluiu de maneiras di-
versas. A variância nas distribuições de rendimentos associada ao
fator “raça” manteve-se aproximadamente constante; a variância
associada ao fator “género” tem vindo a diminuir bastante; e a
variância associada ao fator “classe” (operacionalizado aproxima-
tivamente pela variável “nível educativo”) tem vindo, pelo con-
trário, a aumentar de maneira substancial, sendo hoje a mais
importante. Analisando os efeitos das interseções de desigualda-
des, a conjugação “género-educação” surge como a que mais in-
fluencia as assimetrias nas distribuições de rendimentos.
140 Desigualdades Sociais Contemporâneas

As explicações para a “grande inflexão” das desigualdades


nos Estados Unidos a partir dos anos 70 — the great U-turn, como
tem sido designada — são objeto de controvérsia, mas aponta-se,
em geral, quer a redução dos impostos incidentes sobre os rendi-
mentos mais elevados e o forte crescimento das remunerações de
altos dirigentes empresariais, quer as transformações nas rela-
ções laborais associadas às transformações tecnológicas, orga-
nizacionais e profissionais da sociedade da informação e do
conhecimento e aos processos de globalização — processos que
podem, aliás, estar interligados, pelo menos em parte.
Douglas S. Massey acrescenta que os fatores de caráter
político são indispensáveis para se compreender o percurso
específico dos EUA face aos de outros países de nível de desen-
volvimento semelhante. Por exemplo, atualmente, em boa
parte dos países mais desenvolvidos da União Europeia, as de-
sigualdades de rendimentos antes de impostos não são me-
nores, mas após impostos têm assumido graus bastante menos
acentuados do que nos EUA (ver também Alvaredo e Piketty,
2010). A importância do fator político na acentuação das de-
sigualdades nos Estados Unidos é também salientada por
Joseph E. Stiglitz (2012).
Segundo Massey, a alteração de políticas públicas geradora
ou intensificadora da “grande inflexão” das desigualdades te-
ria tido muito a ver com o realinhamento político dos estados do
Sul, nos anos 70, os quais passaram de apoiantes do Partido De-
mocrático a apoiantes do Partido Republicano (alteração que se
verificou também em parte da classe trabalhadora dos estados
do Norte). Esse realinhamento seguiu-se à garantia dos direitos
civis dos negros nos anos 60 e à sua inclusão nos sistemas de be-
nefícios sociais. Isso teria provocado uma rutura da aliança en-
tre a América de tradição industrialista (Norte) e a América
originariamente esclavagista (Sul) que tinha sustentado o New
Deal (Roosevelt) e o prolongamento das suas políticas públicas
durante as primeiras décadas do pós-guerra até aos anos 60. As
repercussões no campo político teriam sido de enorme alcance,
Desigualdades no mundo, casos e comparações 141

nomeadamente na grande inflexão das desigualdades, sobretu-


do a partir dos anos 70, e, de certo modo, estariam ainda a fa-
zer-se sentir.

Desigualdades elevadas e redução das desigualdades no


Brasil

O Brasil é outro dos grandes países das Américas, atualmente


com uma população de cerca de 200 milhões de habitantes — os
outros grandes países americanos em termos demográficos têm
cerca de 300 milhões (EUA) e de 100 milhões (México) de
pessoas.
É geralmente referido que o Brasil é um país com desigual-
dades sociais muito acentuadas. Por outro lado, nos anos mais
recentes registou um forte crescimento económico, o que o colo-
cou na lista dos principais “países emergentes” do mundo
contemporâneo.
Particularmente interessante é o processo de significativa
redução das desigualdades sociais que se verificou no Brasil
durante os últimos anos — o que não significa que não continue
a ser uma sociedade fortemente inigualitária.
Para usar a sistematização de Marcelo Neri (2010; 2012), se
os anos 80 do século XX representaram no Brasil a década da de-
mocratização e os anos 90 a década da estabilização (económica
e institucional), o início do século XXI pode caracterizar-se
como a década da redução das desigualdades.
Um dos aspetos salientes deste processo foi a redução da po-
breza. Usando como referência a linha de pobreza de 1,25 USD
por dia, a percentagem da população abaixo dessa linha caiu de
cerca de 15% no início dos anos 90 para cerca de 10% na viragem
do milénio e para cerca de 5% no final da primeira década de
2000. Se se usar a linha de pobreza de 2 USD por dia, o decrésci-
mo é, para as mesmas datas, de cerca de 25% para cerca de 20% e,
em seguida, para cerca de 10% da população brasileira.
142 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Considerando toda a população e todo o leque da distribui-


ção de rendimentos, verifica-se que as desigualdades de rendi-
mentos no Brasil se reduziram consideravelmente. Com efeito,
o índice de Gini da distribuição dos rendimentos familiares per
capita desceu de 0,59 no início dos anos 2000 para 0,55 no final
dessa década.
É inegável, pois, que, embora as desigualdades de rendi-
mentos na sociedade brasileira permaneçam elevadas — recor-
de-se que, para o conjunto dos países da OCDE, o índice de Gini
relativo às distribuições de rendimentos tem um valor perto de
0,3 —, têm vindo a diminuir nos anos mais recentes em medida
não menosprezável.
Alguns outros indicadores confirmam esta asserção. Por
exemplo, os valores acumulados dos aumentos de rendimentos
das famílias na primeira década de 2000 foram tanto mais acen-
tuados quanto mais baixos os decis da distribuição. Em concre-
to, o aumento dos rendimentos nessa década foi cerca de 70%
no primeiro decil da população (mais pobre) enquanto no decil
de topo (mais rico) foi cerca de 10%, variando de forma regular
entre esses dois extremos.
Considerando a classificação de classes de rendimentos de-
senvolvida no Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio
Vargas, Marcelo Neri mostra como, entre 2003 e 2008, e em valo-
res aproximados, a classe E (com rendimentos mais baixos) de-
cresceu dos 50 milhões de pessoas para 30 milhões e a classe D
de 47 milhões para 45 milhões, enquanto a classe C cresceu de
65 para 90 milhões e a classe AB de 13 milhões para 19 milhões.
Note-se que nesse período, relativamente curto, cerca de 20
milhões de pessoas saíram da pobreza (da classe E) e cerca de 25
milhões acederam à classe C (rendimentos familiares mensais
entre 1100 e 4800 reais, em números redondos), a qual constitui
a categoria modal no Brasil atual.
Os fatores explicativos são complexos, mas é possível des-
tacar aspetos relativos ao crescimento económico, ao mercado
de trabalho, à educação e às políticas sociais.
Desigualdades no mundo, casos e comparações 143

Crescimento económico: forte crescimento anual do PIB; na


última meia década cresceu entre 5% e 10% ao ano (exceto em
2009, ano em que esse crescimento foi negativo, por efeito, muito
circunscrito no tempo, da crise financeira internacional desenca-
deada nos EUAem 2008); na década anterior o crescimento anual
do PIB já tinha sido, em média, muito elevado.
Mercado de trabalho: subida continuada do salário mínimo
(de cerca de 250 reais no início de 2000 para cerca de 450 reais no
final da década, em valores efetivos); crescimento da taxa de ati-
vidade e da taxa de emprego; crescimento significativo do em-
prego formal em valores absolutos e em valores relativos (face
ao emprego informal).
Educação: aumento continuado dos níveis educativos, de 5
anos de escolaridade média na população de 25 ou mais anos
em 1992 para 7 anos de escolaridade média em 2008; e redução
também continuada das desigualdades educativas, com desci-
da do índice de Gini relativo aos anos de escolaridade comple-
tados por essa mesma população, de 0, 47 em 1996 para menos
de 0,39 em 2008.
Políticas sociais: para além das pensões de reforma e outros
benefícios dos sistemas de segurança social, dos subsídios de
desemprego e da assistência social a crianças, jovens, idosos e
pessoas com deficiência, destaca-se o programa “Bolsa Famí-
lia”, emblemático de uma década de políticas sociais (início em
2003), abrangendo cerca de um quarto da população brasileira;
esse programa é dirigido às famílias mais pobres e reveste a for-
ma de apoio monetário condicional à vacinação das crianças e à
frequência com assiduidade da escola pelos jovens dessas famí-
lias, sendo entregue prioritariamente às mulheres (em mais de
90% dos casos); o impacto deste programa faz-se sentir ainda
mais na região do Nordeste e nas zonas rurais, as mais pobres
de um país em que as desigualdades regionais também são
muito acentuadas.
Resta acrescentar que, apesar das especificidades do Brasil,
a redução das desigualdades foi uma tendência partilhada, ao
144 Desigualdades Sociais Contemporâneas

longo da última década, com outros países América Latina (Ló-


pez-Calva e Lustig, 2010), numa região em que os níveis de desi-
gualdades, em termos comparativos mundiais, são em geral
muito elevados.

Crescimento económico e alargamento


das desigualdades na China

Na China, o país mais populoso do mundo (atualmente já com


mais de 1300 milhões de pessoas), verificou-se nas últimas dé-
cadas um fortíssimo crescimento económico, o qual colocou o
país nos primeiros lugares do produto económico mundial (no
segundo lugar, logo a seguir aos EUA, tendo ultrapassado re-
centemente o Japão).
Esse crescimento económico, atendendo ao peso popula-
cional da China, contribuiu decisivamente, por um lado, para
uma certa atenuação das desigualdades internacionais de ren-
dimentos, se consideradas entre médias dos rendimentos na-
cionais per capita ponderadas pelas populações dos respetivos
países, como se viu no capítulo 4.
Por outro lado, no entanto, esse forte crescimento económico
foi acompanhado pelo aumento das desigualdades de rendi-
mentos internas ao país — o que, dado o referido peso populacio-
nal, não deixou de contribuir significativamente, por seu turno,
para o aumento das desigualdades globais.
Deste ponto de vista, as transformações nas desigualdades
de rendimentos concomitantes com o elevado crescimento eco-
nómico são, na China, de sentido inverso às acima referidas
para o Brasil. Mas importa ter em conta que o nível de desigual-
dades era, e é, bastante menos elevado do que no Brasil. Neste, o
índice de Gini dos rendimentos familiares per capita desceu de
cerca de 0,60, nos anos 1990, para cerca de 0,55, na primeira dé-
cada de 2000, enquanto na China subiu, no mesmo período, de
cerca de 0,33 para cerca de 0,41 (Arnal e Förster, 2010).
Desigualdades no mundo, casos e comparações 145

Cai Fang e Du Yang (2010) analisam estas duas tendências


(crescimento económico e aumento das desigualdades de ren-
dimento), salientando a importância de tomar em considera-
ção, na análise desse aumento de desigualdades, as diferenças
regionais e os movimentos migratórios internos — basicamen-
te, as migrações de populações rurais para as grandes cidades
costeiras.
Os autores apontam a importância de um conjunto de trans-
formações institucionais que ocorreram desde os anos 1980, e
sobretudo nas décadas seguintes — com a institucionalização
gradual da economia de mercado, as reformas da agricultura fa-
miliar que aumentaram a produtividade e geraram excedentes
de mão de obra nas regiões rurais e, ainda, a diminuição das res-
trições à mobilidade geográfica interna ligadas ao sistema de re-
gisto administrativo das famílias. Daí resultaram as referidas
migrações das áreas rurais para as cidades costeiras em rápido
crescimento demográfico e económico.
As desigualdades anteriormente existentes, em grande par-
te ligadas a uma economia dual (clivagem rural/urbano), sofre-
ram importantes mutações, complexificando-se em diversos
sentidos.
Por um lado, a pobreza diminuiu acentuadamente. Na pri-
meira metade dos anos 1980, com as reformas então introduzi-
das no sistema económico rural, a pobreza reduziu-se nessas
regiões: de 250 milhões para 125 milhões de pessoas abaixo da
linha de pobreza absoluta. Nas décadas seguintes, essa redução
continuou através de programas de desenvolvimento rural, se-
guidos de programas de política social, incluindo medidas de
rendimento mínimo das famílias, a partir do final dos anos
1990. Estas medidas de rendimento mínimo e outras políticas
sociais aplicam-se também a parte das populações urbanas,
mas com frequência não abrangem os novos contingentes de
migrantes internos.
No conjunto, considerando a linha de pobreza de 1,25 USD
por dia, regista-se um decréscimo de cerca de 55% da população
146 Desigualdades Sociais Contemporâneas

abaixo dessa linha de pobreza no início dos anos 90 para cerca


de 15% no final da primeira década de 2000 (perto de vinte
anos). Considerando a linha de pobreza de 2 USD por dia, a re-
dução foi, no mesmo período, de quase 80% para cerca de 35%
da população da China (Arnal e Förster, 2010).
Por outro lado, como foi referido, o processo conjugado de
forte crescimento económico e forte migração interna foi acompa-
nhado de um alargamento das desigualdades, embora as tendên-
cias sejam diferentes consoante os segmentos populacionais.
Cai Fang e Du Yang chamam a atenção para a importância
de, na análise destes processos, contemplar a existência de três
segmentos sociais: a população rural, a população urbana esta-
belecida e a população migrante. As análises mais habituais
consideram apenas as duas primeiras, o que obscurece um con-
junto de fenómenos relevantes em termos de desigualdades de
rendimentos.
Com a deslocação para as cidades costeiras, os trabalhado-
res migrantes têm conseguido mais emprego e rendimentos
mais elevados do que tinham nas suas regiões rurais de origem,
mas trabalhando para isso muito mais horas do que os seus con-
géneres urbanos estabelecidos e ficando fora de grande parte
dos sistemas urbanos de proteção social. As escolas a que os
seus filhos têm acesso são também, geralmente, de qualidade
inferior.
Constituindo um segmento mais homogéneo, dos pontos de
vista demográfico e social, do que as populações rurais e urbanas
não migrantes, evidenciam no seu interior desigualdades de ren-
dimentos também menores: índice de Gini de 0,31, enquanto o
do segmento rural é de 0,43 e o do segmento urbano estabelecido
é de 0,42. Um cálculo integrado para toda a população trabalhan-
do e residindo em meio urbano (urbanos estabelecidos + migran-
tes) conduz a um índice de Gini de 0,41.
Importa referir ainda outras vertentes das transformações in-
tensas da China atual. A escolarização crescente faz parte delas.
Por exemplo, as matrículas anuais no ensino superior subiram de
Desigualdades no mundo, casos e comparações 147

cerca de 1 milhão no final da década de 1990 para cerca de 6 mi-


lhões uma década depois. As políticas sociais e o sistema público
de saúde, apesar de serem ainda de caráter bastante restrito e em
muitos casos não abrangerem o conjunto da população, começam
também a alargar o seu âmbito de aplicação. Os trabalhadores mi-
grantes, já referidos por diversas vezes, parecem ser dos mais des-
protegidos no presente contexto.
Os efeitos conjugados da introdução da economia de
mercado, do crescimento económico rápido, da migração ru-
ral-urbana, da segmentação entre emprego formal e emprego
informal e dos rendimentos crescentes da escolarização con-
duziram a um alargamento das desigualdades de rendimen-
tos na China atual.
Se bem que vários dos fatores referidos tenham de facto
efeitos mistos, atuando em parte no sentido do aumento e em
parte no sentido da redução dessas desigualdades, o saldo glo-
bal nos últimos anos tem sido um aumento das desigualdades
de rendimentos.
Outras análises, para além da vertente das distribuições de
rendimentos, tratam também outros aspetos, muito importan-
tes, das desigualdades sociais na China de hoje (Chunling,
2008). Contam-se, entre esses aspetos, a pertença ou não ao par-
tido oficial, as estruturas de classes (e suas transformações) e os
padrões de mobilidade social. Estes últimos estão agora mais li-
gados às desigualdades de qualificações do que anteriormente
— embora outros fatores, como os referidos ao longo deste pon-
to, também sejam influentes nas oportunidades (desiguais) de
mobilidade social.

Desigualdades de género no Japão

Acrescenta-se neste capítulo, ainda, uma breve incursão pelas


desigualdades sociais no Japão, outro país demograficamente
muito importante (perto de 130 milhões de habitantes). O Japão
148 Desigualdades Sociais Contemporâneas

é também um dos países com índices de desenvolvimento mais


elevados e uma das maiores potências económicas mundiais —
até há pouco na segunda posição em termos de PIB (depois dos
EUA), atualmente na terceira posição (depois da China).
Neste caso, a análise foca-se nas desigualdades de género
(Ogasawara, 2004). Os estudos sobre as desigualdades de género
no Japão sublinham, em geral, uma divisão de trabalho acentuada
entre homens e mulheres, com um centramento dos primeiros na
atividade profissional e das segundas na vida familiar.
Os percursos profissionais das mulheres japonesas tendem
a sofrer importantes inflexões ao longo do ciclo de vida: inser-
ção plena no mercado de trabalho até ao casamento; retirada
após o casamento e o nascimento de filhos; regresso à atividade
profissional vários anos depois, mas apenas em parte dos casos
e muitas vezes apenas a tempo parcial. Em termos de agregados
estatísticos, a taxa de atividade feminina cai acentuadamente
após a idade do casamento, voltando a aumentar depois, passa-
dos alguns anos, embora apenas em parte — padrão que já não
se observa senão de forma tendencialmente residual nos países
mais desenvolvidos europeus e norte-americanos.
Na esfera profissional, as mulheres têm muito menos aces-
so do que os homens a posições de chefia e a remunerações
elevadas. Segundo a autora, importa registar que tanto a “se-
gregação vertical” das mulheres no emprego como a “discrimi-
nação salarial” de que são alvo (remunerações em geral mais
baixas do que as dos homens para ocupações e qualificações de
nível semelhante) atingem na sociedade japonesa uma intensi-
dade que já não se encontra nas sociedades da Europa e da
América do Norte — com as quais o Japão se compara, muitas
vezes favoravelmente, em termos tecnológicos, económicos,
educativos e de nível de vida.
O mesmo não se pode dizer da “segregação horizontal”
(concentração em áreas ocupacionais específicas, designada-
mente as relacionadas com os serviços pessoais, educativos,
de saúde, administrativos ou comerciais), aspeto em que a
Desigualdades no mundo, casos e comparações 149

situação das mulheres japonesas não se distingue particular-


mente desses outros países.
Porém, o aspeto principal que Yuko Ogasawara ressalta é
que, a esse panorama de fortes desigualdades de género em
desfavor das mulheres, captado através de indicadores estatís-
ticos relativos à esfera profissional, não parece corresponder
um panorama semelhante no plano da vida quotidiana das mu-
lheres japonesas, das suas interações sociais e experiências pes-
soais, captadas por métodos de pesquisa de caráter qualitativo e
intensivo, tais como estudos etnográficos, entrevistas em pro-
fundidade, histórias de vida, etc.
Vários estudos deste tipo, incidindo quer sobre a vida do-
méstica e familiar, quer sobre a esfera do consumo e do lazer,
quer ainda sobre as situações e relações profissionais, revelam,
por parte das mulheres japonesas, não só atitudes muito positi-
vas perante a vida e sentimentos de satisfação elevados, mas
também graus importantes de autonomia e liberdade naquelas
diversas esferas da vida quotidiana — e mesmo, algo supreen-
dentemente, capacidades significativas de exercício de poder
na família e no emprego.
As desigualdades sociais de género na sociedade japonesa
surgem assim a outra luz, com contornos diferentes dos revela-
dos pelas análises extensivas a que se fez alusão inicialmente,
ou até, em alguns aspetos, de sentido inverso.
As características da situação social das mulheres japone-
sas, vistas pelo lado dos modos como elas agem e sentem na
vida quodidiana, não podem nem devem ser dissociadas —
reconhece Ogasawara — das condições estruturais que as en-
quadram e em que elas se inscrevem. Mas, por sua vez, tais
condições estruturais também não podem ser adequadamente
compreendidas — insiste a autora — sem se tomar em conside-
ração aqueles aspetos de vivência e subjetividade que caracteri-
zam a vida quotidiana dessas mulheres.
Importará, sim, como propõe, aprofundar a investigação
destas desigualdades de género examinando mais finamente as
150 Desigualdades Sociais Contemporâneas

suas interseções com outras dimensões das desigualdades, no-


meadamente com as de classe ou as de fase do ciclo de vida, as-
sim como com as ligadas às transformações sociais globais.
Resta acrescentar que a bibliografia com informação e aná-
lise úteis para a análise comparativa internacional das desi-
gualdades sociais contemporâneas é cada vez mais vasta e
diversificada. Não é possível aqui prosseguir com mais ilustra-
ções, mas convida-se o leitor interessado a consultar alguma
dessa bibliografia sobre muitos outros casos. Por exemplo, po-
dem ser muito elucidativas e interessantes quer as análises (de
certo modo já clássicas, mas em constante atualização e repro-
blematização) que comparam os sistemas de desigualdades so-
ciais dos Estados Unidos e da Europa (Kingston e Holian, 2007),
quer as que examinam as mudanças verificadas nas desigualda-
des na Rússia e outros países da Europa de Leste entre a era so-
viética e a transição pós-comunista (Kivinen, 2006), ou as que
comparam as evoluções das desigualdades no Brasil e na China
(atrás referidas) com as de outros “países emergentes”, como a
Índia ou a África do Sul (Arnal e Förster, 2010).
Capítulo 10
Desenvolvimento humano e desigualdades
globais

Desigualdades de desenvolvimento humano

Com o capítulo 10 aproximamo-nos do fim deste breve percurso


por um tema inesgotável. Retoma-se nele a perspetiva global das
desigualdades sociais contemporâneas que esteve presente ao
longo de todo o livro. Aborda-se um conjunto de aspetos que são
da maior importância para a análise das desigualdades sociais
contemporâneas à escala global e que, de certo modo, constituem
eixos integradores desta problemática.
Entre os instrumentos fundamentais para a caracteriza-
ção e análise das desigualdades atuais numa perspetiva glo-
bal contam-se os Relatórios do Desenvolvimento Humano
(RDH), publicados anualmente pela Organização das Nações
Unidas (ONU).
O primeiro RDH foi publicado em 1990 pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A iniciativa e a
conceção foram dos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen,
inspirando-se nas conceções deste último sobre desigualdades,
capacidades (capabilities) e justiça social (ver capítulo 7).
A ideia básica que preside a estes relatórios — e, em particu-
lar, à sua medida de desigualdades mais importante, o índice de
desenvolvimento humano (IDH) — é que o desenvolvimento e
as desigualdades de desenvolvimento são multidimensionais.
151
152 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Por conseguinte, na medição e análise das desigualdades de de-


senvolvimento no mundo — nomeadamente nas comparações
sincrónicas entre países e nos estudos diacrónicos de séries
temporais —, não é informativamente suficiente nem analiti-
camente satisfatório focar apenas a dimensão económica nem
usar apenas indicadores económicos convencionais, como o
PIB per capita.
O IDH combina três dimensões fundamentais: vida, educa-
ção e rendimento — ou, usando a terminologia do RDH-2010:
“vida longa e saudável”, “conhecimento” e “um padrão de vida
digno”. Para a operacionalização destas dimensões o IDH recor-
re atualmente aos seguintes indicadores: “esperança de vida à
nascença”, para a primeira dimensão; “média de anos de escola-
ridade” e “anos de escolaridade esperados” à entrada da escola,
para a segunda dimensão; “rendimento nacional bruto (RNB) per
capita” (em PPC), para a terceira dimensão. Estes indicadores são
combinados segundo uma série de algoritmos que conduz ao
cálculo dos valores do IDH para cada país em cada ano.
Também podem ser feitos cálculos do IDH para agregados
por “níveis de desenvolvimento” e “grandes regiões mun-
diais”. Os países classificados pelos RDH como “desenvolvi-
dos” incluem os pertencentes à OCDE e outros países ou áreas,
como Hong-Kong, por exemplo. Outras grandes regiões inte-
gram países classificados como “em desenvolvimento”, desig-
nadamente a África Subsariana, a América Latina e Caraíbas, a
Ásia do Sul, a Ásia Oriental e Pacífico, os Estados Árabes, a Eu-
ropa e Ásia Central (incluíndo alguns países europeus do Bálti-
co e dos Balcãs não inseridos na OCDE), e um conjunto de
países classificados como “menos desenvolvidos” (na maior
parte africanos).
As grandes dimensões do IDH têm-se mantido as mes-
mas desde início, mas os indicadores e as fórmulas de cálculo
têm vindo a ser objeto de aperfeiçoamento progressivo. Além
das dimensões analíticas centrais do IDH e dos indicadores
principais usados no seu cálculo, como indicado atrás, os RDH
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 153

têm incluído muitos outros indicadores, relativos a diversas di-


mensões adicionais, designadamente: o “empoderamento” (ou
“capacitação”), a “sustentabilidade e vulnerabilidade”, a “se-
gurança humana”, as “perceções sobre bem-estar e felicidade
individuais”, o “bem-estar cívico e comunitário”, as “tendên-
cias demográficas”, o “trabalho digno”, a “educação”, a “saú-
de”, os “fluxos e compromissos financeiros”, a “economia e
infraestruturas” e o “acesso às tecnologias de informação e
comunicação”.
No RDH-2010, em acréscimo a várias atualizações de indi-
cadores e fórmulas de cálculo, foram também introduzidos
outros três índices agregados: o índice de desenvolvimento hu-
mano ajustado à desigualdade (IDHAD), que calcula a percen-
tagem de perda no IDH decorrente das desigualdades internas
(a nível nacional) em cada uma das suas três dimensões; o índi-
ce de desigualdade de género (IDG), que calcula a desigualdade
das mulheres em relação aos homens considerando três di-
mensões, designadamente a saúde reprodutiva feminina assim
como a capacitação (educativa e política) e a atividade económi-
ca (participação no mercado de trabalho) de mulheres e ho-
mens; e, ainda, o índice de pobreza multidimensional (IPM),
calculado em função de um conjunto de privações das famílias,
designadamente nos domínios da saúde (deficiências de nutri-
ção e mortalidade infantil), da educação (ausência de qualquer
grau de escolarização completa ou crianças em idade escolar
não matriculadas no sistema de ensino) e do padrão de vida (ca-
rências graves, na casa, de eletricidade, água, saneamento,
revestimento do chão, combustíveis para cozinhar, e em equi-
pamentos de transporte e comunicação).
O RDH-2010 evidenciou um conjunto de padrões nas ten-
dências de desenvolvimento humano registadas no mundo
nos últimos 40 anos (20 anos de cálculo direto e 20 anos de cál-
culo retrospetivo). Verifica-se, desde logo, que os níveis de
desenvolvimento humano aumentaram significativamente
no mundo entre 1970 e 2010, de uma média de 0,48 do IDH
154 Desigualdades Sociais Contemporâneas

para uma média de 0,68 — o que é bastante significativo.


Estes valores e os seguintes recorrem ao cálculo de um “IDH
híbrido”, construído para permitir estas comparações dia-
crónicas (PNUD, 2010).
Este progresso verificou-se em praticamente todas as gran-
des regiões do mundo e na maioria dos países, embora a ritmos
variados e com diferentes perfis dimensionais. As exceções são
poucas, embora alguns países africanos não tenham melhorado
o seu IDH neste período. As evoluções de grandes países asiáti-
cos, nomeadamente a China, influenciam bastante estes resul-
tados a nível mundial, mas mesmo sem ela o padrão geral é de
melhoria significativa do IDH.
Um dos pontos importantes a assinalar é que países com
níveis de desenvolvimento económico semelhantes podem ter ní-
veis de desenvolvimento na saúde e na educação muito variáveis.
O crescimento dos recursos económicos é sempre importante, mas
foi possível a variados países melhorarem bastante os seus níveis
de desenvolvimento na educação e na saúde mesmo sem terem al-
cançado níveis de rendimento muito elevados. Outros, pelo con-
trário, apresentam níveis de saúde e educação menos elevados do
que se poderia supor face aos seus níveis económicos — casos que,
em geral, apresentam profundas desigualdades internas.
Verificaram-se neste período, aliás, efetivas reduções das de-
sigualdades internacionais nas dimensões da saúde e da educação
(convergência), embora na dimensão económica o processo seja
diferente, observando-se grandes assimetrias e coexistindo dinâ-
micas importantes de convergência e divergência.
A esperança de vida, por exemplo, aumentou 13% entre
1970 e 2010 para o conjunto dos “países desenvolvidos”, sendo
atualmente de 80 anos, enquanto para o conjunto dos “países
em desenvolvimento” esse aumento foi de 21%, situando-se
agora nos 68 anos. Do mesmo modo, as taxas de alfabetização
subiram 2% nos primeiros, onde abrangem hoje 99% da popula-
ção adulta, enquanto nos segundos subiram 61%, atingindo
atualmente 81% da população adulta.
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 155

As taxas de escolarização, nos vários graus de ensino, têm


também vindo a aumentar, mas a ritmos diferentes, situando-se
ainda a níveis muito desiguais para o ensino secundário e, sobre-
tudo, para o ensino superior. No ensino primário as taxas brutas
de matrícula tendem para os 100%, tanto nos “países desenvolvi-
dos” como nos “países em desenvolvimento” (em termos
médios, para cada um destes dois conjuntos, apesar dos casos
particulares em que tal ainda não acontece, em certos países, ter-
ritórios ou etnias, ou nas populações femininas de alguns deles).
As taxas brutas de matrícula no ensino secundário situam-se hoje
igualmente na ordem dos 100%, em média, nos “países desen-
volvidos” (há 40 anos era da ordem dos 75%), enquanto nos “paí-
ses em desenvolvimento” se situam, em média, na ordem dos
65% (25% há 40 anos). Quanto à taxa bruta de matrícula no ensi-
no superior, a desigualdade é por enquanto bastante maior: a
média atual para os “países desenvolvidos” é cerca de 70% (25%
há 40 anos), enquanto nos “países em desenvolvimento” está
perto dos 20% (uns escassos 2% há 40 anos).
Já o rendimento cresceu 126% no conjunto dos “países de-
senvolvidos”, onde a média era em 2010 de 37 mil USD anuais per
capita (em PPC a valores de 2008), enquanto no conjunto dos “pa-
íses em desenvolvimento” o crescimento foi de 184% para uma
média atual de 5,8 mil USD. Nestes últimos, porém, as variações
entre regiões são muito grandes — por exemplo, entre um cresci-
mento de quase 1200% na região da Ásia Oriental e Pacífico, hoje
com uma média de 6,5 mil USD, um crescimento de 88% na Amé-
rica Latina e Caraíbas, com um rendimento médio atual de 11 mil
USD, e um crescimento de 20% na África Subsariana, com um
rendimento médio que não chega aos 1,5 mil USD.
Apesar de, a nível global, se encontrarem os padrões de
conjunto referidos, verifica-se igualmente uma variabilidade
muito acentuada entre grandes regiões e entre países, quer
nos perfis multidimensionais, quer nos ritmos de mudança.
Os RDH contêm a este respeito múltiplos exemplos. As com-
parações internacionais que se podem efetuar a partir deles
156 Desigualdades Sociais Contemporâneas

proporcionam uma captação concreta e variada das desigual-


dades sociais multidimensionais no mundo atual e das desi-
gualdades nas suas evoluções.

Desigualdade mundial e mobilidade internacional

Mas para a caracterização e compreensão das desigualdades so-


ciais globais no mundo contemporâneo não basta proceder a
comparações internacionais como as anteriores. Importa apro-
fundar a análise, examinando adicionalmente, desde logo, um
conjunto de aspetos interligados entre si, designadamente as
desigualdades mundiais que colocam direta ou indiretamente
em inter-relação segmentos populacionais de diferentes países
e as alterações nas desigualdades mundiais decorrentes dos flu-
xos de mobilidade internacional.
Segundo Korzeniewicz e Moran (2009), a análise das desi-
gualdades sociais numa perspetiva global mostra como nos últi-
mos séculos tenderam a estabelecer-se dois tipos de estruturas
sociais em diferentes países: as dos países com “equilíbrios de
baixa desigualdade” (low-inequality equilibria) — corresponden-
do em larga medida aos países de níveis elevados de desenvolvi-
mento — e as dos países com “equilíbrios de alta desigualdade”
(high-inequality equilibria) — praticamente todos os outros. Se-
gundo os autores, os Estados Unidos da América constituem
uma exceção, possuindo características híbridas entre aqueles
dois ideal-tipos.
Esses conjuntos de países não estão isolados entre si. Pelo con-
trário, têm vindo a influenciar-se reciprocamente, sendo que entre
uns e outros se estabeleceram relações, elas próprias, de acentuada
desigualdade. Isto é, os países com estruturas sociais de baixa de-
sigualdade tenderam a conseguir vantagens significativas de de-
senvolvimento face aos de alta desigualdade.
Assim, se se construir — como fazem os autores — uma tabela
da distribuição dos rendimentos globais por decis (distribuição da
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 157

população mundial segundo dez intervalos hierarquizados de ní-


veis de rendimentos per capita), e se, em cada um desses decis glo-
bais, se localizarem os segmentos populacionais de cada país que
têm esses níveis de rendimentos (segmentos esses referenciáveis,
por sua vez, em termos dos decis nacionais das distribuições de
rendimentos de cada país), as inferências podem ser da maior
relevância.
Verifica-se, por exemplo, que os decis nacionais de topo de
alguns países ficam concentrados nos decis globais correspon-
dentes aos rendimentos mais baixos, enquanto os decis nacio-
nais de outros países se distribuem por um leque de decis
globais intermédios e os decis nacionais de outros países ainda
se encontram concentrados nos decis globais de topo (de rendi-
mentos mais elevados). Alguns países apresentam distribui-
ções nacionais que se estendem ao longo de quase todo o leque
das desigualdades globais.
A localização dos decis nacionais nos decis globais é, pois,
muito variável e a amplitude da sua distribuição pelos decis
globais também. No conjunto, essa localização dá uma ideia
esclarecedora das desigualdades mundiais e de como tanto as
desigualdades intranacionais (dentro de cada país) como as desi-
gualdades internacionais (entre países) fazem parte intrínseca
da composição das desigualdades globais.
Essas distribuições traduzem também o facto de, na
formação das desigualdades mundiais contemporâneas,
atuarem mecanismos de exclusão seletiva e desigualdade ca-
tegorial tendo como base, especificamente, uma forma de sta-
tus adscrita, a cidadania nacional. Segundo os autores, os
efeitos inigualitários das fronteiras nacionais, longe de se te-
rem desvanecido com a globalização dos mercados, coexis-
tem com ela, tendo-se estabelecido na atualidade um sistema
inigualitário de amplitude mundial no qual um tipo específi-
co de desigualdade categorial — a cidadania nacional — se
tornou um fator e critério decisivo das desigualdades à escala
mundial.
158 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Deste modo, a mobilidade internacional surge hoje como


via ambicionada, ou mesmo privilegiada, para uma mobilidade
social ascendente relativamente rápida no sistema de desigual-
dades mundializado — a par de, e comparativamente com, ou-
tras duas vias de mobilidade social ascendente: a dos percursos
de qualificação pessoal (visando propiciar desse modo o acesso
individual a melhores posições nas hierarquias sociais) e a par-
ticipação em processos de desenvolvimento nacional (tendo
como horizonte uma melhoria de posição relativa dos contextos
sociais nacionais em que se está inserido).
Uma ilustração recente da análise das relações entre desi-
gualdades nacionais, internacionais e globais é apresentada por
Branko Milanovic (2011b), num trabalho em que compara as
distribuições de rendimentos atuais de cinco países: os BRIC
(Brasil, Rússia, Índia e China) e os Estados Unidos da América.
O autor analisa de forma integrada os três referidos âmbitos de
desigualdades, confrontando a distribuição de rendimentos de
cada país com a distribuição de rendimentos global (do conjun-
to da população mundial). Obtém, deste modo, a localização
dos segmentos de rendimento de cada país na distribuição de
rendimentos global. As desigualdades globais entre segmentos
da população mundial podem, assim, ser analisadas tomando
em conta os diferentes países em que esses segmentos se locali-
zam e as diferentes posições em que estes se situam nas desi-
gualdades internas de cada um deles.
Pode-se comparar, por exemplo, a intensidade das desigual-
dades nos vários países e as relações que tais distribuições ini-
gualitárias nacionais têm com a distribuição de rendimentos à
escala global. Uma constatação particularmente relevante é que
toda a população dos Estados Unidos se encontra acima dos 60%
na distribuição de rendimentos da população mundial. O mes-
mo não se passa nos BRIC, onde frações muito significativas ou
mesmo largamente maioritárias das respetivas populações estão
abaixo ou muito abaixo desse nível de rendimentos. As propor-
ções das distribuições de rendimentos nacionais situadas acima e
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 159

abaixo desse limiar variam muito, aliás, entre os diferentes paí-


ses. Por exemplo, na Índia, a quase totalidade da população
situa-se abaixo do referido limiar dos 60%. Já no Brasil, a distri-
buição da população atravessa toda a escala de rendimentos
mundial, com segmentos da população nos níveis mais baixos
dessa distribuição e outros segmentos nos níveis mais altos.
Milanovic faz questão de destacar as enormes distâncias a
que, em termos de rendimentos, os segmentos mais pobres
dos países ricos estão dos segmentos mais pobres dos países
em desenvolvimento — assinalando ainda como essa situação
está ligada a um conjunto de fluxos migratórios atuais ou, pelo
menos, de aspirações e tentativas nesse sentido. O tema é reto-
mado e desenvolvido pelo autor num livro recente (Milanovic,
2011a).

Novas classes globais

As análises anterioresl interligam-se estreitamente com as que


colocam a questão em termos da emergência de novas classes
globais.
De certo modo, as análises de Robert Reich (1993 [1991]) so-
bre os “analistas simbólicos” ou de Richard Florida (2002) sobre
a “classe criativa” inseriam-se já nesta problemática — embora
o caráter globalizado dessas “novas classes” não fosse tão cen-
tral à argumentação teórica desses autores como à de outras
propostas sociológicas mais recentes, como, por exemplo, as de
Saskia Sassen (2005) e de Anne-Catherine Wagner (2007).
Para estas duas autoras, os processos de globalização finan-
ceira, económica, mediática e cultural entrecruzam-se com pro-
cessos de recomposição social à escala mundial, incluindo a
emergência ou a renovação de classes globais.
Nos atuais processos de globalização, como sublinha Wagner,
as relações diferenciadas das classes sociais com o espaço global e
com a mobilidade internacional são particularmente relevantes.
160 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Anteriormente, eram já bem conhecidos tanto um certo cos-


mopolitismo das elites aristocráticas, religiosas, comerciantes,
intelectuais e artísticas europeias (pelo menos desde o século
XVI) como o projeto internacionalista do movimento operário
tal como se afirmou na Europa do século XIX — embora, como
se sabe, um e outro entrecruzados, de maneira ambivalente,
com vertentes de caráter nacionalista.
Atualmente, segundo Wagner, as dinâmicas sociais, com o
pendor acentuadamente globalizante que adquiriram, incluem
processos de reestruturação da burguesia capitalista internaci-
onal que se traduzem num peso crescente da finança, num re-
forço de posições de famílias poderosas do mundo dos negócios
e num protagonismo crescente de figuras que assumem papéis,
com frequência intermutáveis, de grandes empresários, gesto-
res de topo e investidores internacionais.
Além disso, da configuração atual das elites internacionais
fazem parte modos de vida que envolvem elevada mobilidade
internacional e um conjunto de capacidades linguísticas, redes
de relacionamentos (capital social) e formas de distinção cultu-
ral altamente internacionalizadas, a que Anne-Catherine Wag-
ner chama “competências internacionais”.
Ainda segundo a autora, verificam-se também dinâmicas
de globalização nas zonas médias e baixas das estruturas de
classes. Os exemplos vão desde as redes transnacionais de mi-
grantes aos movimentos sociais e organizações não governa-
mentais que projetam a sua ação à escala global, passando pelas
mutações de modos de vida que, abrangendo faixas cada vez
mais alargadas da população mundial, incluem uma massifica-
ção tendencial do turismo internacional, dos estudos no estran-
geiro e das experiências profissionais internacionais.
Segundo Saskia Sassen (2005), pelo seu lado, para além de
famílias tradicionalmente detentoras de elevados capitais eco-
nómicos inseridas em redes internacionais influentes, podem
identificar-se hoje três novas classes globais: uma “nova classe
profissional transnacional”, constituída por quadros dirigentes
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 161

de topo e profissionais altamente qualificados dos grupos em-


presariais, dos negócios e da finança; uma nova classe de “altos
funcionários de redes transgovernamentais”, circulando entre
estados e organismos internacionais, com agendas renovadas
como, por exemplo, a globalização económica, o ambiente, os
direitos humanos ou o combate ao terrorismo; e uma “nova
classe global de desfavorecidos”, englobando uma miríade di-
fusa de indivíduos, grupos, associações e redes — nomeada-
mente migrantes, mas também não migrantes — partilhando
condições objetivas, atitudes subjetivas ou formas de ação de al-
gum modo conectadas com as desigualdades que sofrem, ou a
que se opõem, nas configurações de globalidade atuais (nou-
tros textos, Sassen faz distinção entre uma nova classe global de
ativistas e uma nova classe global de desfavorecidos, mas tra-
ta-as conjugadamente).
Para Saskia Sassen merece ainda destaque a conexão entre
estas classes sociais e as “cidades globais”, como Nova Iorque
ou Londres, São Paulo ou Hong-Kong. As novas classes globais
têm relações diferentes com o espaço e a mobilidade. Os mem-
bros das duas primeiras deslocam-se internacionalmente com
muita frequência, em geral entre cidades globais. Os da terceira
deslocam-se muito menos, embora haja exceções; mesmo os mi-
grantes, na sua maioria, não viajam internacionalmente com
grande frequência ou tendem a circular apenas entre local de re-
sidência e local de origem.
Mas todos encontram nas cidades globais um tipo de con-
texto particularmente propício às atividades que realizam, aos
modos de vida que cultivam, ao estabelecimento das redes em
que se inserem e à prossecução de projetos ou à mobilização
por causas que partilham — domínios em que combinam as in-
terações localmente contextualizadas com as interações à dis-
tância, em especial as mediadas pelos meios de comunicação
eletrónicos.
162 Desigualdades Sociais Contemporâneas

Perceções, valores e crenças sobre desigualdades


no mundo atual

Os pontos anteriores tomaram como objeto um conjunto de


aspetos socioestruturais das desigualdades atuais constituídas à
escala global: desigualdades de desenvolvimento humano, as-
simetrias globais de rendimentos, mobilidade internacional,
classes globais. Mas importa também examinar brevemente um
conjunto de aspetos socioculturais respeitantes às desigualdades
sociais contemporâneas, mais especificamente relativos a per-
ceções, valorizações e crenças sobre desigualdades no mundo
de hoje.
No quadro societal globalizado atual verifica-se que as “de-
sigualdades subjetivas” podem não coincidir com as “desigual-
dades objetivas”, para usar a terminologia de Louis Chauvel
(2006b). Recorrendo a um conjunto de inquéritos internacionais
(o World Inequality Databse e o Luxembourg Income Study,
para as distribuições de rendimentos, e o International Survey
Study, para as perceções e valorizações sobre desigualdades), o
autor mostra que, se se compararem diversas sociedades nacio-
nais, as relações que se encontram entre desigualdades sociais
estruturais, por um lado, e perceções sociais das desigualdades
ou julgamentos sociais sobre as desigualdades, por outro, não
são relações constantes mas variáveis. Ou, colocando a questão
ainda de outro modo, essas relações podem apresentar-se quer
como “congruentes”, quer como “incongruentes”.
Por exemplo, nos Estados Unidos da América ou nas Filipi-
nas, no início dos anos 2000, as desigualdades de rendimentos
eram bastante elevadas. Mas enquanto nos EUA as perceções so-
ciais prevalecentes entre a sua população tendiam a considerar as
desigualdades económicas do país como baixas, nas Filipinas as
perceções sociais tendiam a considerar as desigualdades económi-
cas nacionais como altas. Pelo seu lado, a Noruega e a Hungria
apresentavam baixos coeficientes de Gini nas distribuições de ren-
dimentos, mas as populações desses países percecionavam as
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 163

desigualdades económicas neles vigentes como baixas no primei-


ro caso e altas no segundo.
Voltando a dois países com graus de desigualdade de ren-
dimentos elevados, os Estados Unidos da América e as Filipi-
nas, em ambos só uma minoria das respetivas populações (na
ordem dos 20%), agora já não em termos de perceção da situa-
ção existente mas de julgamento valorativo sobre ela, conside-
rava essas desigualdades como excessivamente elevadas. Pelo
contrário, em países como a França ou a Hungria, com graus de
desigualdade de rendimentos muito mais baixos, a maioria das
respetivas populações (na ordem dos 60% a 70%) avaliava essas
desigualdades, em termos de julgamento valorativo, como ex-
cessivamente elevadas. Mas já na Alemanha ou na Noruega,
com graus de desigualdade de rendimentos semelhantes aos
dos dois países anteriormente referidos, apenas uma minoria
das respetivas populações (na ordem dos 20%) considerava va-
lorativamente essas desigualdades como excessivas.
Com base em dados como estes, Louis Chauvel propõe uma
tipologia analítica das relações entre desigualdades objetivas e
subjetivas. Quando, num contexto de elevadas desigualdades
objetivas se desenvolve uma forte recusa subjetiva das desi-
gualdades, o autor classifica a situação social resultante como
de “sociedade de classes”. Pelo contrário, quando nesse género
de contexto de altas desigualdades objetivas a recusa subjetiva
das desigualdades é de baixa intensidade, a situação social é ti-
pificada como de “alienação”.
Se o contexto social for de baixo grau de desigualdades ob-
jetivas, outros dois casos ideal-típicos podem ocorrer: de forte
recusa subjetiva dessas desigualdades, situação social caracte-
rizada como de “superconflitualidade”, ou de fraca recusa
subjetiva dessas desigualdades, situação social que o autor de-
signa, recorrendo ao mesmo reportório terminológico, por
“sociedade sem classes”.
Resta acrescentar que Chauvel assinala, neste e noutros es-
tudos, que estes diferentes tipos de situações podem suceder-se
164 Desigualdades Sociais Contemporâneas

no tempo num mesmo país, ou num conjunto de países, associa-


dos a mudanças históricas relevantes, mais repentinas ou mais
graduais (Chauvel, 2006a).
Pode avançar-se ainda um pouco mais nesta problemática
(das relações entre vertentes objetivas e subjetivas, ou socioes-
truturais e socioculturais, das desigualdades) analisando como
as desigualdades sociais contemporâneas encontram hoje su-
porte cultural num conjunto de crenças (implicando valores)
que se têm vindo a disseminar socialmente.
Como defende Daniel Dorling (2010), na sua obra Injustice.
Why Social Inequality Persists, tem-se assistido ao longo das déca-
das mais recentes à difusão de um conjunto de crenças que
suportam a emergência, a persistência ou a acentuação de algu-
mas das mais notórias formas contemporâneas de desigualdade
social. Essas crenças são particularmente características das so-
ciedades mais desenvolvidas. Mas, com a influência que estas
exercem, não surpreende ver essas crenças alastrar globalmente.
De certa maneira, estas novas crenças geradoras de desi-
gualdades “emergem das cinzas” de anteriores formas de injus-
tiça social que em grande parte foram superadas nos países com
níveis de desenvolvimento elevados. Mas nem por isso as novas
formas de desigualdade e as crenças que as suportam deixam
de se revelar geradoras de situações relevantes de injustiça
social.
Essas crenças (serão verdadeiramente “novas”?) podem
sintetizar-se, segundo Dorling, nas seguintes expressões: “o eli-
tismo é eficiente”; “a exclusão é necessária”; “o preconceito é
natural”; “a avidez é boa”; “o desespero é inevitável”.
O autor toma por referência principalmente os Estados
Unidos da América e o Reino Unido para apontar que, em socie-
dades como estas, onde antes a grande maioria da população
não tinha acesso senão a níveis elementares de educação for-
mal, se verificou ao longo do último século, e sobretudo após a
Segunda Guerra Mundial, uma expansão muito significativa
dos níveis educativos médios e superiores. Essa expansão da
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 165

educação foi abrangendo cada vez mais pessoas e os percursos


educativos foram-se tornando cada vez mais prolongados, o
que trouxe importantes benefícios de acesso ao conhecimento, à
cultura e a capacidades de profissionalização por parte de ca-
madas sociais incomparavelmente mais amplas da população
do que antes acontecia.
Com este processo, porém, veio frequentemente de contra-
bando uma forma de elitismo que se tornou altamente influente,
sobretudo a partir dos anos 80 do século passado. A prolifera-
ção de rankings de capacidades e realizações nos mais variados
domínios; a tendência para a classificação social de escolas, cur-
sos, vias de estudo ou percursos escolares segundo categorias
fortemente estratificadas; a multiplicação de mecanismos e
efeitos sociais inigualitários ou discriminatórios associados a
essas hierarquizações; a secundarização do valor da cooperação
relativamente ao da competição, constituída em modo privile-
giado de ação, se não mesmo de existência social — tudo isto
está mais explícita ou mais implicitamente associado ao pressu-
posto elitista de que essas hierarquias são naturais e eficientes,
isto é, de que na sua base estão atributos intrínsecos de superio-
ridade ou inferioridade pessoal e de que a sua consagração
conduz a uma otimização das recompensas individuais e dos
resultados sociais. Segundo o autor, este “elitismo tornou-se
uma nova justificação da desigualdade” (Dorling, 2010: 19).
Do mesmo passo, continuando a seguir o autor, “onde o
pensamento elitista conseguiu crescer mais fortemente, a exclu-
são social tornou-se mais alargada” (Dorling, 2010: 20). As si-
tuações anteriores de carência extrema foram superadas nesses
países, deixando as suas populações de ser afetadas por elas.
Contudo, a partir dos anos 80, as situações de miséria deram lu-
gar, nessas sociedades, a um alargamento cada vez maior das
desigualdades de rendimentos, assim como ao crescimento dos
níveis de desemprego. A exclusão social passou em larga medida
a estar associada já não à pobreza absoluta mas à pobreza relati-
va, traduzindo-se em grandes dificuldades de acesso quer a
166 Desigualdades Sociais Contemporâneas

condições de vida consideradas socialmente como normais, nas


diversas esferas da existência (trabalho, consumo, educação,
cidadania, etc.), quer a oportunidades sociais efetivas, designa-
damente para as crianças nascidas em famílias colocadas nessas
circunstâncias de exclusão.
Como fator decisivo para a persistência dessas formas de
exclusão social encontra-se a crença na inevitabilidade de tais
situações, atribuídas em última instância a defeitos de caráter
dos que as sofrem, contrastantes com o merecimento virtual-
mente ilimitado atribuído aos que conseguem apropriar-se
duma fração cada vez maior da riqueza, reservando, para si
mesmos, prerrogativas como as de auferirem rendimentos ele-
vadíssimos e beneficiarem de taxas reduzidas de contribuição
fiscal (ou mesmo da sua inexistência, para algumas espécies de
rendimentos e riqueza).
Na mesma ordem de ideias, o racismo e o sexismo institu-
cionalizados deram em grande parte lugar a novas formas de
preconceito, explícita ou implicitamente assentes em crenças na
superioridade de uns e na inferioridade de outros, sendo estas
(superioridade e inferioridade) agora frequentemente con-
sideradas como de base genética, embora também de base
sociocultural.
Em qualquer caso, esse recrudescimento do preconceito
nos países mais desenvolvidos tem conduzido quer à intensifi-
cação das polarizações sociais, materializadas de diversas ma-
neiras (desde as concentrações de altos e baixos rendimentos,
como se referiu, até ao reforço da endogamia educacional ou da
segregação residencial), quer à intensificação das manifesta-
ções de xenofobia e rejeição dos imigrantes (mais especifica-
mente, dos imigrantes que alguns setores dessas sociedades,
mais ou menos amplos, tendem a considerar como seres huma-
nos inferiores).
A indigência a que largos segmentos sociais estavam vota-
dos em épocas anteriores foi também superada nestes países.
Mas foi substituída por novas formas de privação — mais
Desenvolvimento humano e desigualdades globais 167

especificamente, de privação relativa — num contexto social em


que, sobretudo a partir dos anos 80 do século XX, se acentuou a
avidez de mais ganhos, mais consumos, mais símbolos de status,
mais notoriedade pública ou posição social mais destacada.
Esta tendência está intimamente interligada com a crença não
só na legitimidade mas também no benefício social das desigual-
dades e, por conseguinte, da avidez como atitude natural para
triunfar nesse contexto — por mais que os efeitos de excesso nuns
tantos, os efeitos de dependência ou frustração em muitos outros e
os efeitos de risco sistémico, como o colapso desencadeado em
2008 na esfera financeira e propagado a todas a outras esferas
sociais, desmintam repetidamente essas supostas virtudes.
Além disso, tendo a doença física sido em larga medida
controlada nesses países mais desenvolvidos, comparativa-
mente com a situação de saúde que tinham anteriormente, es-
tão agora em expansão as doenças mentais. Mais ainda, é
atualmente notório o alastramento de formas difusas de deses-
pero, socialmente experimentadas perante o crescimento das
desigualdades, a intensificação da competição (em domínios
fundamentais de existência social, como a escola, o emprego,
os consumos, as relações pessoais, o status, etc.) e as perspeti-
vas de futuro cada vez mais incertas ou ameaçadoras. Nestas
circunstâncias, o desespero existencial tende a ser assumido
como uma inevitabilidade.
Elitismo, exclusão, preconceito, avidez e desespero são, as-
sim, segundo Daniel Dorling, cinco crenças fundamentais que,
hoje em dia, sustentam a persistência ou mesmo a acentuação
da injustiça social inerente às principais desigualdades que têm
vindo a instalar-se nas sociedades contemporâneas, muito em
especial nos EUA e no Reino Unido, mas com tendência a alas-
trar mundialmente
Conclusão
Desigualdades e justiça global

A concluir, importa recolocar, em termos amplos embora sinté-


ticos, a questão das relações entre desigualdades e justiça social
à escala global.
Vários dos temas abordados anteriormente, dão contribui-
ções úteis para a análise da questão. É o caso, nomeadamente, da
teorização de Nancy Frazer (2008), sobre três dimensões fun-
damentais da justiça social num mundo globalizado: redistribui-
ção económica, reconhecimento cultural e representação política —
expressamente analisadas pela autora como respostas às mais
importantes situações de desigualdade e injustiça que hoje per-
sistem ou emergem na sociedade global.
Outros desenvolvimentos teóricos sobre a problemática
contemporânea da justiça global foram elaborados a partir da
teoria da justiça como equidade. O debate teórico que se tem de-
senvolvido a este respeito incide, no essencial, sobre questões
como as seguintes. Será a conceção de justiça como equidade de
John Rawls, concebida para quadros institucionais nacionais,
transponível para o plano internacional? Poderão os seus pres-
supostos encontrar equivalente ou extensão verosímil no âmbi-
to global?
O próprio Rawls apenas considerou de maneira muito limita-
da a possibilidade de justiça redistributiva à escala internacional
(Rosas, 2011). No entanto, autores de inspiração rawlsiana mas de
169
170 Desigualdades Sociais Contemporâneas

orientação cosmopolita encaram positivamente essa possibilida-


de. Explorando argumentos diversificados, consideram que as de-
sigualdades globais, e as injustiças correlativas, decorrem em
larga medida de sistemas de interdependência de âmbito mundial
que se estabeleceram nas relações entre agentes económicos e na
esfera de ação de um conjunto de instituições de âmbito internaci-
onal (OIT, OMC, FMI, BM, etc.). Torna-se pertinente, pois, procu-
rar proceder à reconfiguração do quadro estrutural e institucional
vigente a nível global, de modo a aproximá-lo da justiça como
equidade, visando efeitos redistributivos relevantes (e outros efei-
tos equitativos).
Nesta ordem de ideias, Christopher Bertram (2008), entre
outros, aponta alguns exemplos de reformas institucionais que
estão na ordem do dia, tais como: reformas no comércio interna-
cional, designadamente o levantamento de restrições de países
mais desenvolvidos à importação de produtos dos países em
desenvolvimento; alterações nos direitos de propriedade inte-
lectual, nomeadamente no sentido de viabilizar um acesso mais
alargado a medicamentos por parte de populações pobres de
países em desenvolvimento; impostos sobre utilização de re-
cursos naturais e sobre transações financeiras internacionais, a
canalizar para o desenvolvimento de países pobres ou para o
rendimento de populações carenciadas.
A problemática dos direitos humanos tornou-se também
uma componente destacada dos debates e das ações que tomam
como objeto as desigualdades globais e a justiça global. Não se
sobrepondo linearmente à das desigualdades sociais, tem no
entanto interseções muito fortes com ela, nomeadamente se
olharmos uma e outra do ponto de vista da justiça global.
Bastará retomar a esclarecedora categorização dos direitos
humanos proposta por Micheline Ishay (2008 [2004]): direitos re-
lativos à universalidade da dignidade humana; direitos relativos
às liberdades civis e outros direitos liberais; direitos relacionados
com a equidade política, social e económica; direitos relaciona-
dos com solidariedades e identidades nacionais e comunitárias.
Conclusão 171

De imediato se reconhece como os domínios de incidência desses


direitos são também domínios de incidência das desigualdades
vitais, existenciais e de recursos, tal como sistematizadas por Gö-
ran Therborn (2006).
Além disso, como assinala Ishay (2008 [2004]), nos grandes
debates atuais sobre direitos humanos têm vindo a confron-
tar-se, em traços largos, posições globalistas e antiglobalistas,
multilateralistas e unilateralistas (nas relações internacionais),
fundamentalistas do mercado e fundamentalistas religiosas.
Com demasiada frequência, esses debates têm conduzido
a impasses. Mas têm também permitido o surgimento e a afir-
mação de posições mais equilibradas e esclarecidas quanto à
justiça global, particularmente atentas aos efeitos perversos de
desigualdades relevantes que se estabelecem hoje em dia no
mundo — por exemplo, as distribuições fortemente desiguais
de recursos económicos no plano global, as acentuadas assi-
metrias internacionais de poderes políticos e militares, ou, ain-
da, as múltiplas desigualdades decorrentes de opressões e
discriminações exercidas, num quadro de relações sociais glo-
balizadas, em nome de pressupostos ideológicos ou tradições
culturais.
Essas desigualdades e as injustiças a elas associadas têm
sido alvo não apenas de debate mas também de movimentos so-
ciais e mobilizações coletivas à escala global. O aspeto que mais
se destaca nessas formas de ação coletiva é precisamente, como
assinala Nicola Montagna (2008), a sua transnacionalização.
Segundo o autor, esses movimentos pela justiça global
assentam num conjunto de elementos fundamentais. Um de-
les é a expansão das redes de organizações da sociedade civil,
privilegiando laços e contactos horizontais, apoiados nas
novas possibilidades de comunicação eletrónica. Outro, não
menos importante, consiste no desenvolvimento de um
quadro interpretativo abrangente, com capacidade para, nas
ações por direitos humanos e contra desigualdades globais,
interligar diferentes ideias provenientes, nomeadamente, da
172 Desigualdades Sociais Contemporâneas

esquerda tradicional, de alguns grupos religiosos e dos cha-


mados novos movimentos sociais (feministas, ambienta-
listas, etc.).
Estas redes e conceções têm originado a realização de cam-
panhas de protesto de âmbito transnacional, e mesmo transcon-
tinental, incidindo sobre temas como a redistribuição da riqueza
(por exemplo, através de taxas fiscais sobre as transações finan-
ceiras internacionais, como a taxa Tobin), a redução da dívida de
países em dificuldade económica ou com necessidades de desen-
volvimento, a canalização de recursos para populações em situa-
ção de pobreza, a preservação de recursos naturais, a defesa de
minorias, a proteção de refugiados ou o protesto contra a ação de
organizações internacionais (BM, FMI, OMC, G20, etc.), conside-
radas por estes movimentos como, em larga medida, responsá-
veis ou corresponsáveis pelas atuais situações de desigualdade e
injustiça global.
Por outro lado, numa perspetiva institucional e de políticas
públicas, importa registar que existe hoje um conjunto de orga-
nizações que podem ser caracterizadas como instituições inter-
nacionais de governação global (global governance) (Deacon, 2008).
São constituídas a partir dos estados nacionais, mas têm graus
variáveis de autonomia face a eles. Formam hoje um conjunto
alargado de atores globais.
Grande parte deles pertence ao complexo institucional Na-
ções Unidas — como a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), fundada anteriormente mas integrada depois no sistema
das Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas para a Edu-
cação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Organização
Mundial da Saúde (OMS), entre muitas outras agências e progra-
mas, como o Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), atrás várias vezes mencionado. O Banco Mundial (BM),
o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial
do Comércio (OMC) também têm ligações com as Nações Unidas,
embora constituam organizações autónomas.
Conclusão 173

A maneira como estas organizações intervêm no domínio


do que se pode designar por política social global — dirigida à re-
dução das desigualdades e à promoção da justiça social à escala
global — é muito variável entre elas. As orientações que tendem
a predominar numas podem revelar-se bastante diferentes das
de outras.
Sobretudo as organizações da área económica, como o BM,
o FMI e a OMC, têm sido com frequência, como se referiu, alvo
de movimentos de protesto, eles próprios de âmbito transnacio-
nal, que acusam as intervenções daquelas organizações de,
muitas vezes, agravarem mais do que reduzirem as desigualda-
des e as injustiças globais.
Importa, no entanto, assinalar igualmente que essas organi-
zações não são imutáveis, estando sujeitas, nomeadamente, às
alterações mais ou menos drásticas, com efeitos convergentes
ou divergentes, quer das posições relativas entre países mais
desenvolvidos e países emergentes, quer das conjunturas eco-
nómicas, com destaque, atualmente, para a crise financeira de-
sencadeada em 2008.
De qualquer modo, no contexto social globalizado atual, é
possível, segundo Deacon, identificar diversos tipos de proces-
sos e projetos de política social global: (a) de “redistribuição
global” (transferências internacionais, ajudas ao desenvolvi-
mento, fundos globais); (b) de “regulação social global” (dos
negócios internacionais, das transações financeiras e das condi-
ções de trabalho, entre outros aspetos); (c) de “direitos sociais
globais” (como os que fizeram parte dos Objetivos do Milénio,
das Nações Unidas, nas áreas da redução da pobreza, da educa-
ção universal, da autonomização social das mulheres, da redu-
ção da mortalidade infantil, da melhoria da saúde materna, da
contenção das pandemias, da sustentabilidade ambiental e da
justiça económica global).
Estas vertentes de uma possível política social global es-
tão longe de se encontrarem concretizadas na sua plenitude.
Em vários domínios não conseguiram ainda sequer um grau
174 Desigualdades Sociais Contemporâneas

razoável de consensualização. Mas constituem processos e


projetos relevantes, em curso ou em debate no mundo con-
temporâneo, dirigidos à redução das desigualdades e à pro-
moção da justiça social à escala global.
Talvez por isso encontrem eco em reflexões e propostas re-
centes do destacado filósofo e sociólogo alemão Jürgen Haber-
mas (2012 [2011]). A propósito das presentes dificuldades da
União Europeia, mas também das potencialidades contidas na
construção nela já realizada, discorre e argumenta elaborada-
mente sobre o referencial ético (norteado pelos conceitos de
“dignidade humana” e “direitos humanos”) e o formato institu-
cional de uma possível “democracia transnacional”: uma “co-
munidade cosmopolita” articulando institucionalmente duas
bases de legitimidade democrática, os “povos dos estados” e os
“cidadãos do mundo” (noutros termos, uma comunidade de-
mocrática de estados e cidadãos).
Segundo Habermas, apesar de a probabilidade imediata
não ser grande, existem possibilidades de que tal esteja ao al-
cance da União Europeia e, num plano mais especulativo ainda,
de que essa institucionalização democrática de uma comunida-
de cosmopolita possa vir a expandir-se à escala planetária —
num processo que poderia tomar como base de partida o com-
plexo institucional das Nações Unidas, embora implicando a
sua reconstrução profunda.
Seja como for, o ponto que importa aqui sublinhar é que
essa hipotética construção institucional não poderia deixar de
assumir, como condição de constituição, o compromisso de
procurar progressivamente superar — registe-se a veemência
da expressão — a “injustiça monstruosa de uma sociedade
mundial altamente estratificada, na qual existem desigualda-
des insuportáveis na distribuição dos próprios bens de primei-
ra necessidade e das oportunidades de vida” (Habermas, 2012
[2011]: 131).
Este horizonte de “uma ordem mundial mais justa do ponto
de vista social” (Habermas, 2012 [2011]: 130) pode ser ou não
Conclusão 175

realizável. Em todo o caso, do ponto de vista cognitivo, a profu-


são de indicadores e análises que se foram convocando ao longo
deste livro parece não deixar dúvidas de que a questão se coloca
efetivamente: as desigualdades sociais no contexto globalizado
contemporâneo são significativas e têm implicações múltiplas
no plano da justiça social.
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