Você está na página 1de 108

1

Nildo Viana

A QUESTÃO DA ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA

2
VIANA, Nildo. A Questão da Organização Revolucionária. Rio de Janeiro: Rizoma,
2014.

3
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
03

ORGANIZAÇÃO E TEORIA
05

CRÍTICA E RECUSA DAS ORGANIZAÇÕES BUROCRÁTICAS


22

LUTA DE CLASSES E ORGANIZAÇÕES PROLETÁRIAS


30

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA COMO EXPRESSÃO POLÍTICA DO


PROLETARIADO
41

ORGANIZAÇÃO INTERNA, DECISAO COLETIVA, AUTODISCIPLINA


61

ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA, PROLETARIADO E SOCIEDADE CIVIL


85

CONSIDERAÇÕES FINAIS
100

REFERÊNCIAS
104

4
INTRODUÇÃO

O problema da organização sempre acompanhou o movimento revolucionário


do proletariado e suas expressões teórico-políticas. Como os trabalhadores devem ser
organizar? Como os militantes revolucionários se organizam? Duas questões,
complementares e que são fundamentais para se pensar a práxis revolucionária. Assim,
o propósito que nos colocamos aqui é discutir e colocar algumas questões e
posicionamentos que abre espaço para se pensar a organização revolucionária, ou seja, a
organização dos militantes revolucionários.
Organizamos o texto da seguinte forma. Inicialmente fazemos uma breve
discussão sobre algumas das principais teorias da organização revolucionária. Neste
contexto, resgatamos alguns elementos do pensamento de Marx, Rosa Luxemburgo,
Gorter, Rühle, Pannekoek, sem o objetivo de retomar a totalidade de suas ideias sobre
organização, mas selecionando apenas os aspectos que nos interessam com mais
intensidade para nossa discussão posterior.
Posteriormente, apresentamos uma breve discussão sobre as organizações
burocráticas e sua recusa, entrando tanto no processo de constituição das ideologias que
nascem a partir delas quanto de suas práticas e consequências sociais.
A partir daí passamos a analisar as organizações proletárias, elemento
importante por ser referência para pensarmos a organização revolucionária e também
para discutirmos a necessidade de dupla organização ou organização unitária.
O passo seguinte é analisar a organização revolucionária e destacar um
determinado modo de concebê-la, como expressão política do proletariado e, portanto,
em seu processo social e histórico e ligação indissolúvel com o movimento
revolucionário do proletariado, o que significa descartar sua autonomização e separação
do movimento revolucionário do proletariado.
Isto permite passar para a discussão seguinte, que é a questão da organização
interna, o que remete para a questão da decisão coletiva e autodisciplina, entrando em
questões como a da liberdade individual e compromisso coletivo.
5
Uma vez estabelecido estas reflexões, falta discutir a relação da organização
revolucionária com o proletariado e a sociedade civil (movimentos sociais, etc.). Aqui
reside uma questão importante, que remete ao momento da ação da organização
revolucionária sobre as lutas sociais existentes.
***
A presente obra foi escrita em dois momentos distintos. Uma parte, a
introdução e os capítulos 01, 02 e 05, foram escritos em 2009 e distribuídos via e-mail
para participantes de um encontro político realizado nesse ano, quando houve a
exposição dos mesmos. Os capítulos 03, 04 e 06 e a conclusão, foram produzidos nessas
“férias de 2014” (janeiro-março).

6
ORGANIZAÇÃO E TEORIA

A organização é um termo que, como quase todos, é polissêmico. Apenas uma


rápida olhada nos sinônimos disponíveis nos dicionários e poderemos ver:
aparelhamento, arranjo, preparo, aparelho, coordenação, associação, clube, liga,
cadastramento, composição, confecção, tessitura, contextura, estrutura, organismo,
formação, instauração, teia, instituto. O significado da palavra pode, por conseguinte,
remeter a diferentes fenômenos, tal como a) ato ou efeito de organizar; b) modo pelo
qual um ser vivo é organizado, conformação, estrutura; c) modo pelo qual se estrutura
um sistema; d) associação ou instituição com objetivos definidos; e) organismo; f) a
designação oficial de certos organismos (ONU – Organização das Nações Unidas, por
exemplo); g) Planejamento ou preparo (a organização de uma reunião, por exemplo).
Indo além dos dicionários, é necessário entender o que significa uma
organização no sentido que usaremos a palavra na presente obra. Organização é uma
associação voluntária de pessoas que formam um grupo que possui uma finalidade
comum e busca atingi-lo através de um planejamento de suas atividades e tomadas de
decisão. Assim, uma organização, no sentido aqui utilizado, pressupõe um coletivo, um
grupo de pessoas, associadas voluntariamente (e não obrigatoriamente) ou não (no caso
de algumas organizações, nas quais os indivíduos são constrangidos a participar sem
querer ou por necessidade) que possui um projeto, uma finalidade, compartilhada por
todos (pelo menos no plano do discurso), que busca concretizar através de um
planejamento, o que implica atividades e decisões. No caso das organizações políticas,
ou seja, que agrupa militantes políticos, geralmente elas são relativamente voluntárias e
cujo objetivo é, em muitos casos, compartilhado por todos. Obviamente que o caráter
voluntário e o compartilhamento de objetivos são maior em pequenas organizações e
não-burocráticas, enquanto que nas grandes organizações burocráticas isso é abolido.
A partir disto é possível pensar várias formas de organização. O que nos
interessa aqui é a organização dos militantes políticos e esta assume duas formas
principais: a organização burocrática e a auto-organização. As organizações
7
burocráticas serão abordadas no próximo capítulo. Neste capítulo, apresentaremos a
concepção marxista sobre a questão da organização dos militantes revolucionários.
A primeira questão que deve ser analisada é o caráter voluntário das
organizações revolucionárias e também em outras organizações políticas. Isso significa
que as pessoas que participam de uma organização política não são constrangidas a
participar, elas o fazem por vontade própria. Claro que tal vontade própria, dependendo
da organização (principalmente aquelas que fazem um “discurso” revolucionário, mas
no fundo se adapta à sociedade capitalista abandonando todo projeto revolucionário e
mais ainda as que não se dizem revolucionárias), pode ser produzida inclusive através
de várias formas de pressão. Essa vontade própria pode ser mais ou menos refletida,
pode se fundamentar apenas na concordância com a finalidade, o projeto, da
organização, ou por outros motivos, tal como relações de amizade, busca de pessoas
para conviver (fuga da solidão), interesses financeiros, sexuais, acadêmicos, político-
eleitoral, etc. ou vários destes motivos reunidos.
O grau de reflexão do indivíduo que adere a uma organização pode ser maior
ou menor, bem como a concordância com a finalidade. Em alguns casos, a concordância
com a finalidade, o projeto ou objetivo final, da organização é apenas pretexto ou
justificativa para sua entrada e/ou permanência. Em síntese, o caráter voluntário da
entrada ou permanência nas organizações é mais ou menos reflexivo dependendo do
indivíduo e seu vínculo e relação com a finalidade da organização também é variável.
Claro é que isto também não é estático, pois uma pessoa pode aderir a uma organização
por determinado motivo (por exemplo, interesse financeiro) e depois adotar a finalidade
da organização e abandonar a motivação inicial. Também pode entrar numa organização
por acreditar no seu objetivo declarado (por exemplo, luta pelo socialismo) e pode
posteriormente se adequar ao seu objetivo real (ganhar eleições, por exemplo) ou, se
não houver tal adequação, abandonar a organização. Também é possível uma pessoa
entrar numa organização por concordar com a finalidade e mudar a este respeito e
permanecer devido relações afetivas e de amizade, bem como entrar por relações
afetivas e de amizade sem grande concordância com a finalidade e passar a concordar
com esta e se tornar a motivação fundamental da permanência.
Mas o que nos interessa aqui é o momento da reflexão, ou seja, é a pessoa que
adere a uma organização voluntariamente sem fazer grandes reflexões, o que tem

8
consequência para a própria organização. A reflexão é fundamental para que não haja
reprodução mecânica do estabelecido, conformismo, entre outros elementos, no caso de
uma organização revolucionária. O momento da reflexão, portanto, é fundamental numa
organização revolucionária.
As organizações revolucionárias que existiram na história do capitalismo foram
produzidas por diversos militantes e pensadores. A reflexão sobre a organização
revolucionária, no caso do marxismo, foi bastante incipiente. O motivo disso se deu,
principalmente, pela base da teoria marxista da revolução proletária: “a emancipação da
classe operária é obra da própria classe operária”. Sendo assim, os militantes
revolucionários e sua organização não são o elemento fundamental como ocorre numa
organização burocrática, tal como o partido leninista que se julga uma vanguarda e,
portanto, a questão organizacional é o próprio centro da reflexão sobre revolução.
Apesar de nunca ter sido o aspecto central do marxismo, ao contrário do
bolchevismo, a questão da organização revolucionária foi analisada e discutida por
alguns marxistas. A reflexão sobre organização revolucionária centrou-se sobre dois
aspectos principais: a relação com o proletariado, a classe revolucionária de nossa
época, e o objetivo da organização.
Marx apontou alguns elementos sobre a questão da organização. Não cabe
retomar a prática de Marx na Liga dos Comunistas ou na Associação Internacional dos
Trabalhadores, por exemplo, e nem analisar detalhadamente todos os seus textos sobre
organização, o que demandaria uma obra específica e aprofundada sobre isso, devido à
extensão e diversidade de questões envolvidas, além de problemas de interpretação. O
nosso foco aqui é outro. O objetivo é abordar os elementos fundamentais que estão
expostos em suas obras mais desenvolvidas e alguns trechos complementares em cartas
e outros textos menores. A ideia básica é a de que textos circunstanciais e menos
refletidos não são uma boa base para reconstituir a concepção de um autor e, por isso,
nas suas obras mais refletidas e desenvolvidas é que poderemos perceber com mais
clareza e exatidão a perspectiva do autor.
Encontramos no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, algumas
considerações sobre a relação dos comunistas com a classe operária:

Qual é a posição dos comunistas diante dos proletários em geral?


Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos
operários. Não têm interesses que os separem do proletariado em geral. Não
9
formulam quaisquer princípios particulares a fim de modelar o movimento
proletário (MARX e ENGELS, 1978, p. 116).

Assim, Marx coloca que os comunistas (não necessariamente uma


“organização”) não formam um “partido à parte”, ou seja, não possui uma posição
diferente, destacada, dos demais “partidos operários”. Obviamente que a palavra
“partido” aqui não tem o significado pelo qual hoje ela é entendida. Marx colocava
“partido” no sentido de posição, assim como em sua obra Dezoito Brumário, se refere a
“partido de César” (MARX, 1986). Na época em que Marx escreveu não existia os
partidos políticos modernos, ou seja, as organizações burocráticas que passarão a existir
nos últimos anos da vida de Marx e se estruturarão de forma cada vez mais burocrática,
principalmente no final do século 19 em diante1. Nesse caso, os demais “partidos
operários” seriam os demais indivíduos e grupos dentro do movimento operário, que
não são vistos como sendo opostos, não havendo oposição.
Afirma também que os comunistas “não tem interesses que os separem do
proletariado em geral”, ou seja, não possui interesses próprios. Aqui Marx apresenta um
elemento importante, o que nos possibilita perceber que há uma distinção clara entre
uma organização revolucionária e uma organização burocrática, pois esta última cria
“interesses próprios”. E isto é complementado pelo fato de que os comunistas “não
formulam quaisquer princípios particulares a fim de modelar o movimento proletário”,

1
Na verdade, é preciso superar a concepção dogmática e não marxista de buscar ler todos os textos de
Marx e todas as suas afirmações como se fossem “verdades reveladas”. Muitos fazem isso
descontextualizando tais afirmações ou cristalizando-as, transformando-as em dogmas. Assim, se Marx
disse em algum trecho de sua obra que é preciso fazer aliança com a burguesia, a afirmação se
transforma em algo inquestionável (além de ser descontextualizada, ou seja, pode ser uma afirmação
sobre um período de revolução burguesa e se toma isso como um absoluto, e daí se aplica para a
revolução proletária, o que é totalmente sem sentido). Em primeiro lugar, é necessário analisar o
contexto histórico em que Marx fez determinadas afirmações. Outro problema é a coisificação de textos
de Marx e outros autores. Algumas passagens em que ele aborda o processo de eleições são vistas com
horror por algumas pessoas que pretendem fazer uma leitura libertária de Marx, o que é outro tipo de
erro a ser evitado. A leitura do texto se torna um simples exercício de coisificação, pois não se
contextualiza o que foi escrito, não se observa que o significado da palavra “eleições” não é o mesmo
que possui hoje, e que mesmo se fosse, o processo eleitoral daquela época era bem diferente do atual,
que a burocratização das organizações, formação dos partidos políticos, democracia representativa
estava em seu início e que a visibilidade de seu caráter conservador não era tão evidente assim, etc.
Contra o dogmatismo, é preciso ressaltar que o marxismo não significa fidelidade a textos escritos, seja
lá de quem for, e sim a manutenção do caráter crítico-revolucionário, ou seja, como expressão teórica do
movimento revolucionário do proletariado. Contra a coisificação dos textos (de Marx ou qualquer
outro), é preciso resgatar o método dialético como recurso heurístico para compreender que um
determinado texto é algo concreto, e, portanto, “síntese de múltiplas determinações”, é um produto
histórico e social e que só assim pode ser realmente compreendido.
10
ou seja, não se constitui como uma vanguarda, como um grupo destacado da classe que
busca modelá-la.
Apesar disso, os comunistas não são parte indiferente do proletariado. Segundo
Marx e Engels:

Os únicos pontos que distinguem os comunistas dos outros


partidos operários são os seguintes: 1) nas lutas nacionais dos proletários dos
diversos países, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns, de todo o
proletariado, independentemente da nacionalidade; 2) nas diferentes fases de
desenvolvimento por que passa a luta entre proletariado e burguesia,
representam, sempre e em toda a parte, os interesses do movimento em seu
conjunto (MARX e ENGELS, 1978, p. 117).

Aqui temos os dois pontos de distinção entre os comunistas e demais posições


no interior do proletariado: a sua posição internacionalista e sua ligação com o interesse
geral da classe, ou seja, sempre se enfatiza a ligação com o proletariado como classe
revolucionária, como portadora da consciência revolucionária e não como indivíduos
atomizados ou como a classe vista como algo “empírico”. Assim, os comunistas
expressam o interesse geral de classe do proletariado revolucionário. Isto quer dizer
que não expressa interesses particulares ou corporativistas, nem mesmo nacionais, e
também não expressa interesses imediatos da classe operária vista empiricamente.
Marx e Engels prosseguem:

Praticamente, os comunistas constituem, pois, a fração mais


resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as
demais; teoricamente, têm, sobre a grande massa do proletariado a vantagem
de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do
movimento proletário (MARX e ENGELS, 1978, p. 117).

Assim, pois, temos uma diferenciação prática e outra teórica. No plano prático,
os comunistas2 são (ou devem ser) a fração mais resoluta do proletariado, ou seja, mais
decidida, radical e veloz nas decisões. No plano teórico, há uma vantagem de
compreensão mais nítida das condições, marcha e objetivo final do movimento
proletário, ou seja, tem uma percepção mais totalizante do processo, das tendências e do
objetivo final. Obviamente que estes dois elementos estão entrelaçados, pois somente a
partir do plano teórico é que é possível justificar a diferença no plano prático, o que

2
Aqui é preciso alertar de que “comunistas” não tem nada a ver com os que hoje se autointitulam assim,
pois na época em que Marx escreveu a palavra mais usada era “socialistas” e, posteriormente,
socialdemocrata. Aqui “comunistas” deve ser entendido com marxistas no verdadeiro sentido da
palavra, sem vínculos com partidos políticos, ou seja, marxistas autênticos e não suas deformações
socialdemocrata ou bolchevique.
11
significa que a teoria é fundamental nesse processo e sem ela não haveria distinção entre
os comunistas e demais indivíduos e grupos no interior do movimento operário. Marx,
em síntese, não observa contradição entre movimento comunista e movimento operário,
vê uma unidade que, na situação concreta, pode conter discrepâncias, contradições, etc.,
mas que é uma diversidade dentro de uma unidade.

O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os


demais partidos proletários: constituição do proletariado em classe, derrubada
da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado
(MARX e ENGELS, 1978, p. 117).

Aqui temos uma exposição de Marx sobre os objetivos dos comunistas, que é o
mesmo do proletariado, ou seja, a revolução proletária e instauração do comunismo. A
constituição do proletariado em classe é uma formulação problemática e dá margem a
interpretações equivocadas. O proletariado, desde que existe ao estar inserido na
relação-capital (ou seja, desde surge uma classe de trabalhadores assalariados que
produzem mais-valor em sua relação com o capital, que os explora), já está formado, o
que Marx quer dizer é como classe organizada e consciente, ou seja, com consciência
revolucionária e auto-organizado, autodeterminada3. Esta passagem do proletariado de
classe existente no processo de produção capitalista para classe revolucionária é
objetivo imediato dos comunistas e, portanto, seria papel destes contribuir com esta
passagem.
Como isso ocorreria? Tal como Marx escreveu nos preâmbulos da Associação
Internacional dos Trabalhadores, a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios
trabalhadores. O texto clássico de Marx sobre isso é o seguinte:

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do


país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma
situação comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, em face do
capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, [...], essa

3
Em A Miséria da Filosofia, retomando linguagem hegeliana, Marx (1985) fala em classe em si
(existente devido às relações sociais concretas, classe determinada pelo capital) e classe para-si (auto-
organizada e com consciência revolucionária, classe autodeterminada). Devido estas afirmações, alguns
comentaristas transformam Marx num idealista, para quem a classe só existiria possuindo “consciência
de classe” (revolucionária), o que é um equívoco derivado das formulações não muito claras de
passagens como essa. Na verdade, o proletariado é potencialmente revolucionário devido o seu ser-de-
classe e nas lutas de classes realiza tal potencialidade, se constituindo como classe revolucionária: “Não
se trata de saber que objetivo este ou aquele proletário, ou até o proletariado inteiro, tem
momentaneamente. Trata-se de saber o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a
fazer de acordo com este ser” (MARX, 1979, p. 55). Para uma análise do proletariado como classe, cf.
Viana, 2012.
12
massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que
defende se tornam interesses de classe (MARX, 1985).

Mas, para aqueles que podem pensar que é um texto isolado de Marx e que não
expressa sua posição, basta ler, no próprio Manifesto Comunista, a seguinte passagem:

Em geral, as colisões da velha sociedade favorecem de diversas


maneiras o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta
contínua: no início contra a aristocracia; depois, contra as partes da própria
burguesia cujos interesses entram em conflito com os progressos da indústria;
e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-
se obrigada a apelar para o proletariado, a solicitar o seu auxílio e a arrastá-lo
assim para o movimento político. A burguesia mesma, portanto, fornece ao
proletariado os elementos de sua própria educação, isto é, armas contra si
mesma (MARX e ENGELS, 1988, p. 75).

Ou seja, o proletariado, nas próprias lutas, desenvolve sua autoeducação,


criando suas formas de organização e desenvolvendo sua consciência revolucionária.
Isto é extremamente oposto à concepção kautskista-leninista da vanguarda e da
consciência que vem de fora. Marx, ao contrário do que coloca alguns ideólogos, não se
fundamenta em lutas de partidos ou de nações e sim na luta de classes e pensa a
autoemancipação proletária:

Há quase quarenta anos, colocamos em primeiro plano a luta de


classes como força motriz direta da história e, em particular, a luta de classes
entre burguesia e proletariado como a mais poderosa alavanca da revolução
social. Portanto, é-nos impossível caminhar junto com pessoas que tendam a
suprimir do movimento esta luta de classes. Quando fundamos a
Internacional lançamos em termos claros seu grito de guerra: ‘a emancipação
da classe operária será obra da própria classe operária’. Não podemos
evidentemente caminhar com pessoas que declaram aos quatro cantos que os
operários são muito pouco instruídos para poder emancipar a si mesmos, e
que eles devem ser libertados pelas cúpulas, pelos filantropos burgueses e
pequeno-burgueses. Se o novo órgão do partido toma uma atitude que
corresponda às ideias destes senhores, se essa orientação é burguesa e não
proletária, não nos restará mais nada para fazer, por mais lamentável que seja,
do que debater abertamente e romper a solidariedade da qual demos prova até
agora, na qualidade de representantes do partido alemão no exterior (MARX
e ENGELS, 1978b, p. 30)4.

Assim, na época de formação dos partidos políticos, de forma incipiente e


ainda não tão burocratizado como serão futuramente, já mostravam seu caráter
conservador e daí a crítica de Marx. Assim, a proposta de Marx não é substituir o
proletariado por ser sua vanguarda e sim de colaborar com a sua formação como classe

4
Marx realiza aqui uma das primeiras críticas ao pseudomarxismo, ao analisar o Partido Socialdemocrata
Alemão em seu período de formação, sendo uma carta circular de 1879 endereçada a vários líderes deste
partido.
13
revolucionária. Isto significa a derrubada da supremacia burguesa, ou seja, o fim de sua
hegemonia, exploração e dominação. Outro objetivo, intimamente relacionado, é a
tomada de poder político pelo proletariado, o que pode dar margem a más
interpretações. Na verdade, o objetivo dos comunistas não é tomar o poder político e
sim que o proletariado o faça, ou seja, a classe e não um suposto “partido” ou os
comunistas ou qualquer organização. Além disso, Marx pensa o poder político não
como o Estado capitalista, e sim como um de seus aspectos, o aspecto repressivo5. Isso
significa que tal tomada do poder político é realizado pela classe e significa o poder de
repressão, de uso da violência, por parte da classe em sua totalidade e não grupos que
agem em seu nome. Isso é muito distinto da conquista do estado burguês com seu
aparato burocrático.
Marx e Engels apresentam, no Manifesto, uma posição que nada tem de
vanguardista e isto se refere também ao aspecto teórico:

As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de forma


alguma, em ideias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele
pretenso reformador do mundo. São apenas expressão geral das condições
reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se
desenvolve diante de nossos olhos (MARX e ENGELS, 1978, p. 117).

Aqui, de acordo com o princípio do materialismo histórico, não se trata de


inventar e sim expressar a realidade da luta de classes. Neste sentido, os comunistas, no
plano teórico, apenas expressam a realidade da luta de classes e buscam efetivar seus
objetivos a partir desta compreensão teórica. Em síntese, em Marx, a relação dos
comunistas com o proletariado é de expressão teórica e prática do seu movimento real,
mas não do proletariado “empírico” e sim da classe que se torna revolucionária, o que

5
O problema é que é comum nas leituras entendermos as palavras tal como elas significam para nós e não
para o autor que a utiliza e, assim, uma leitura crítica deve saber distinguir e perceber o real significado
das palavras de acordo com o autor. Por isso a interpretação de Marx é problemática, já que se entende
por “partido político”, “poder político”, etc., no sentido das representações cotidianas ou do
bolchevismo, que geralmente serve de mediação para grande parte da leitura que se faz de Marx e isso é
mais forte porque há uma semelhança entre os construtos (falsos conceitos) do bolchevismo e as
representações cotidianas. É preciso contextualizar historicamente os escritos, entender os significados
das palavras em sua época e seu uso pessoal inovador das mesmas, ou seja, um processo de leitura
crítica. E o que significa poder político para Marx? Ele mesmo define isso no Manifesto, embora a falta
de leituras críticas e rigorosas dispense a percepção da própria definição do autor: “O poder político é o
poder organizado de uma classe para opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a
burguesia, se constitui forçosamente em classe, se, através de uma revolução, se converte em classe
dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói,
junto com essas, as condições dos antagonismos de classes, destrói as classes em geral e, com isso, sua
própria dominação de classe” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97).
14
significa não um reboquismo, ou seja, os comunistas não se limitam às reivindicações e
lutas imediatas e espontâneas do proletariado e sim no sentido da superação desta
situação e sua passagem para classe efetivamente revolucionária. Isto, ao mesmo tempo,
não significa vanguardismo, já que os comunistas não possuem o papel de dirigente e
nem interesses próprios, bem como não busca, para si, o poder político. Desta forma,
em Marx, o objetivo dos comunistas é a abolição do capitalismo e instauração do
comunismo, o que ocorre via passagem do proletariado de classe potencialmente
revolucionária para classe efetivamente revolucionária, ou seja, de classe determinada
para classe autodeterminada.
Esta posição será, no entanto, deformada pela socialdemocracia e pelo
bolchevismo, tal como colocaremos adiante. No interior da socialdemocracia
emergente, devido a um conjunto de mudanças históricas, tal como a passagem do
regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação intensivo, que significou
a transformação do estado liberal em estado liberal-democrático, e a instituição da
democracia partidária em substituição da democracia censitária (VIANA, 2003). A
legalização de partidos e sindicatos ocorreu através de sua regularização que provocava
um processo tendencial de burocratização (que vai avançar bastante no regime de
acumulação posterior, o intensivo-extensivo, que emerge após a segunda guerra
mundial).
Os militantes, mesmo os mais bem intencionados, buscam desenvolver uma
ação política e o mecanismo para tal, nesta época, era fundamentalmente os partidos
políticos socialdemocratas. Estes já eram organizações burocráticas e conservadoras
(basta ver a crítica de Marx) e com o passar do tempo, vão se tornar ainda mais
burocráticas e conservadoras, principalmente com seu crescimento quantitativo e mais
ainda graças ao seu crescimento eleitoral e recursos financeiros. A sociedade capitalista
corrompe facilmente os partidos socialdemocratas. Mas o descontentamento daqueles
que possuem uma perspectiva revolucionária vai gerar as diversas dissidências no
interior da socialdemocracia, tal como Gorter e Pannekoek, na Holanda, e Rosa
Luxemburgo, na Alemanha. As posições de Gorter e Pannekoek se desenvolveram com
o próprio desenvolvimento das lutas operárias e as tentativas de revoluções proletárias
em diversos países, enquanto que Rosa Luxemburgo também avançou, mas não
conseguiu efetivar uma ruptura tão radical quanto a que outros efetivaram devido sua

15
morte prematura em 1919. Luxemburgo desenvolve suas teses sobre organização no
interior da socialdemocracia alemã e em debate com as concepções existentes em sua
época, principalmente em oposição à socialdemocracia russa expressa no leninismo.
Devido ao embate com Lênin, Rosa Luxemburgo vai discutir a questão da organização
de forma mais aprofundada do que muitos outros e por isso abordaremos brevemente
sua análise do problema organizacional dos militantes revolucionários.
Rosa Luxemburgo partia da tese marxista de que a “emancipação da classe
operária é obra da própria classe operária” e sua visão da socialdemocracia era bem
semelhante a que Marx apresentava para os comunistas. Um dos grandes problemas da
análise de Luxemburgo é a confusão que ela fazia a respeito da socialdemocracia. Ela
confundia o que era efetivamente a socialdemocracia (e que ela mesma criticou) com o
que deveria ser, em sua posição/concepção. Essa confusão entre o ser e o dever-ser, o
real e o ideal, provocará alguns problemas e tornar a obra de Rosa Luxemburgo mais
fácil de deformação e assimilação por parte das tendências reformistas.
As nossas considerações a seguir também não se pretendem uma análise
exaustiva ou detalhada abarcando várias obras de Luxemburgo e sim mostrar, a partir do
seu texto de polêmica com Lênin, a sua posição sobre a questão da organização, que
para ela é o problema de organização da socialdemocracia, ou seja, do partido
socialdemocrata. Segundo Luxemburgo:

No movimento socialdemocrata, diferentemente dos antigos


experimentos utópicos do socialismo, a organização não é um produto
artificial da propaganda, mas um produto histórico da luta de classes, no qual
a socialdemocracia simplesmente introduz a consciência política
(LUXEMBURGO, 1991, p. 39).

Tal como para Marx, Luxemburgo pensa que a socialdemocracia é produto da


luta de classes e seu papel não é o do ultracentralismo leninista e sim o de expressar o
conjunto do proletariado, buscando sua unidade na luta contra a burguesia:

Destinada a representar, nos limites de um dado estado, a


totalidade dos interesses do proletariado como classe, em oposição a todos os
interesses parciais e de grupo do proletariado, a socialdemocracia esforça-se
naturalmente, em toda a parte, por unir todos os grupos nacionais, religiosos
e profissionais da classe operária num partido comum, unitário
(LUXEMBURGO, 1991, p. 41).

Aqui é visível, como em todo o texto de Luxemburgo que, ao contrário de


Marx, se trata de um partido político no sentido moderno da palavra. Nesse sentido, as
16
posições de Luxemburgo são semelhantes às de Marx, mas num contexto social e
histórico diferente e, além disso, pensando numa forma de organização diferente. Em
resposta à posição leninista, Rosa Luxemburgo acaba tendo que colocar em questão as
relações existentes no interior do partido. Lênin propunha uma organização rigidamente
centralizada e um comitê central com amplos poderes e colocava que isso era facilitada
no caso do proletariado que já era disciplinado nas fábricas, e por isso o problema da
disciplina seria mais intenso nos intelectuais, que seriam “indisciplinados”.
Luxemburgo responde a Lênin da seguinte forma:

Não é partindo da disciplina nele [no proletariado – NV] inculcada


pelo Estado capitalista, com a mera transferência de batuta da mão da
burguesia para a de um comitê central socialdemocrata, mas pela quebra, pelo
extirpamento desse espírito de disciplina servil, que o proletariado pode ser
educado para a nova disciplina, a autodisciplina voluntária da
socialdemocracia (LUXEMBURGO, 1991, p. 45).

Assim, a autodisciplina e a liberdade de ação são fundamentais para a luta


política da socialdemocracia:

Se a tática socialdemocrática for criada, não por um comitê


central, mas pelo conjunto do partido ou, melhor ainda, pelo conjunto do
movimento, então é evidente que, para as células do partido, a liberdade de
movimento é necessária. Apenas ela possibilita a utilização de todos os meios
oferecidos em cada situação para fortalecer a luta, tanto quanto o
desenvolvimento da iniciativa revolucionária (LUXEMBURGO, 1991, p.
48).

Rosa Luxemburgo pensa a socialdemocracia como sendo uma coordenação que


visa unificar o proletariado no sentido de atingir o seu objetivo final, ou seja, o
comunismo. Ela pensa na socialdemocracia como sendo uma parte do movimento
proletário, isto é, haveria uma fusão entre movimento operário e socialdemocracia.
Porém, isto não manifesta o que realmente a socialdemocracia era, ou seja, esta fusão
era um dever-ser e não uma realidade concreta e em algumas passagens Luxemburgo
percebe isso, principalmente quando aborda o seu caráter conservador. É por isso que
ela coloca a oposição entre reforma e revolução6 e por isso ela coloca o dilema entre as
duas possibilidades postas pelo contexto da luta proletária no capitalismo, lutar contra o
capitalismo no interior deste: cair num estado de seita ou abandonar o objetivo final.
Cair no estado de seita significa manter o objetivo final, revolucionário, em

6
Essa questão será mais desenvolvida em sua obra de crítica ao revisionismo de Bernstein
(LUXEMBURGO, 1986; VIANA, 2013).
17
contraposição às lutas cotidianas do proletariado e afastando-se, por conseguinte, das
“massas”, e abandonar o objetivo final significa abraçar o reformismo, ao lado das
“massas” e reproduzindo sua lógica própria que é de lutas reivindicativas dentro do
capitalismo.
A solução luxemburguista é a fusão entre socialdemocracia e proletariado, ela
representando o objetivo final e não abandonando as lutas cotidianas das “massas”,
servindo como uma coordenação do movimento proletário. Ela nem abandonaria o
objetivo final e nem se transformaria numa seita. Porém, não é isto que ocorria
praticamente, tal como a própria Rosa Luxemburgo percebeu, pois o caráter da direção
socialdemocrata é conservador. Porém, Luxemburgo considera que isso é produto de
um estágio das lutas ainda incipiente, que, tende a ser superada com o avanço das lutas
que geraria a fusão entre o movimento socialdemocrata e o movimento operário. Daí
sua defesa da socialdemocracia e sua explicação do seu conservadorismo, que teria
como base a própria classe operária e sua situação no capitalismo. Assim, o
burocratismo e reformismo seriam um mal passageiro e um processo natural.
O grande problema da análise de Rosa Luxemburgo é seu esquema analítico
que parte da oposição entre burguesia e proletariado e não fornece importância para as
demais classes sociais, inclusive não percebendo a formação de uma nova classe social,
a burocracia, que se amplia e tem suas bases forjadas em organizações oriundas do
proletariado, tais como partidos e sindicatos. Assim, o problema da socialdemocracia
não é o estágio das lutas operárias, que é apenas um elemento de fortalecimento do seu
conservadorismo, e sim o processo de burocratização e a formação de interesses
próprios pelas camadas dirigentes dos partidos.
Apesar disso, Luxemburgo contribui com duas ideias importantes: a
necessidade da fusão da organização revolucionária (o que é impossível no caso dos
partidos políticos, seja os reformistas e de “massas”, seja os leninistas-vanguardistas)
com o movimento revolucionário (sem abandonar o objetivo final, ou seja, sem aderir e
se limitar às lutas cotidianas da classe) e a autodisciplina interna da organização. O
primeiro ponto já está em Marx e o segundo é uma inovação de Luxemburgo, mesmo
porque ela pensa mais em termos de organização.
Porém, o processo histórico vai servir para Luxemburgo entender que tal fusão
é um dever-ser que não se concretiza na prática efetiva da socialdemocracia e sua saída

18
do Partido Socialdemocrata e formação do Partido Socialdemocrata Independente
demonstrou isso. Porém, ao não entender a verdadeira raiz do reformismo
socialdemocrata, ela contribuiu com a fundação de outro partido, e este, também, seguiu
o mesmo caminho e, mais uma vez, ainda na ilusão da possibilidade de unidade entre
um partido e o movimento operário, ajudou a fundar o Partido Comunista da Alemanha,
mais radical que o anterior, durante pouco tempo. Apesar da ascensão das lutas
operárias e sua radicalização, os diversos partidos (Socialdemocrata, Socialdemocrata
Independente) irão manter sua inércia burocrática, e seus interesses próprios, tal como
chegar ao poder estatal. Isso refuta a tese de Luxemburgo a respeito do conservadorismo
socialdemocrata ser produto do caráter incipiente da luta, pois quando esta se
radicalizou ele manteve a sua posição conservadora, ajudando ao processo de
contrarrevolução. O Partido Comunista da Alemanha, por sua vez, também irá se tornar
se tornar reformista, o que provocará a formação de uma nova organização, o Partido
Comunista Operário da Alemanha. Este, porém, se coloca como não sendo um “partido
propriamente dito”. É neste contexto de tentativa de revolução proletária na Alemanha
que uma nova discussão sobre a questão da organização surgirá e, no início, Herman
Gorter e Otto Rühle estarão juntos, mas depois se separam, dando origem a duas teses: a
da organização unitária e a da dupla organização. Este é o nosso próximo item de
discussão.
A ideia dos conselhos operários ganha força com o ressurgimento dos sovietes
na Rússia (que surgiram pela primeira vez em 1905) em 1917 e em outros países, tal
como Hungria, Itália e Alemanha. O holandês Hermann Gorter, que foi dissidente no
interior da socialdemocracia holandesa ao lado de Pannekoek e outros, transferiu-se
para a Alemanha e se tornou um dos grandes expoentes do KAPD (Partido Comunista
Operário da Alemanha), expressou uma concepção que posteriormente ficou conhecida
como sendo da dupla organização, que foi contestada por Otto Rühle, que propunha a
“organização unitária”. Porém, ambos tinham, de início, a mesma concepção. Rühle e
Gorter estavam entre os fundadores do partido. Inclusive Rühle foi o autor, segundo
dizem, do seu manifesto de criação. Apesar de carregar o nome de “partido”, que era
parcialmente negado, “no sentido tradicional”, a sua organização não tinha nenhuma
semelhança com os partidos socialdemocratas ou bolcheviques.

19
A ideia de que é preciso fazer da vontade revolucionária das
massas preponderante nas tomadas de posição táticas, de uma organização
realmente proletária, é o leitmotiv da construção organizativa do nosso
partido. Exprimir a autonomia dos membros em todas as circunstâncias é o
princípio de base de um partido proletário, que não é um partido no sentido
tradicional.

O KAPD coloca que as organizações de fábrica (conselhos de fábrica) e sua


articulação na União Operária Alemã era o elemento fundamental para a luta de classes
e tinha alguns objetivos principais: a destruição dos sindicatos e a organização da futura
sociedade comunista, o “sistema de conselhos”. O KAPD aglutinaria os setores mais
esclarecidos e decididos e atuaria em consonância com a União Operária Alemã. Nesse
momento, Rühle e Gorter estavam de acordo. Porém, um Congresso da III Internacional
dos Trabalhadores, em Moscou, no qual Rühle era um dos delegados, gerou sua
expulsão. Isso foi provocado pelo fato de Rühle não ter ficado para o Congresso após
uma conversa com Lênin, que leu um trecho de sua obra O Esquerdismo, A Doença
Infantil do Comunismo, no qual ataca os partidos comunistas que não seguiam a linha
bolchevique ou seus principais teóricos (Pankhurst na Inglaterra, Bordiga na Itália,
Gorter e Pannekoek na Alemanha), o que lhe fez desistir de participar. Gorter e os
demais consideraram isto um grave erro, pois seria necessário fazer oposição e
articulação no Congresso com outros agrupamentos dissidentes, e por isso decidiram
por sua expulsão. Daí em diante surge a proposta de Otto Rühle de “organização
unitária”.
A tentativa de revolução proletária na Alemanha gerou os conselhos operários
e em 1920 surgiu a AAUD (União Geral dos Trabalhadores da Alemanha), aglutinando
os conselhos de fábrica. Com a fundação do KAPD, uma estreita relação e colaboração,
apesar de alguns setores se opor a isso, passou a existir entre ele e a AAUD. Após a
expulsão de Rühle, essa oposição aumentou e através dele foi formada a AAUD-E (o
“E”, significando, em português, organização unitária), que recusa a existência de uma
organização de revolucionários separada da classe proletária.
Em síntese, a posição de Rühle pode ser assim resumida: os partidos políticos
são órgãos da dominação e, portanto, não servem para a ação revolucionária. No seu
famoso escrito, A Revolução não é Tarefa de Partido, ele diz:

A revolução não é uma questão de partido. Os três partidos


socialdemocratas têm a loucura de considerar a revolução como a sua própria
tarefa de partido e de proclamar a vitória da revolução como o seu objetivo

20
de partido. A revolução é a tarefa política e econômica da totalidade da classe
proletária. Só o proletariado como classe pode conduzir a revolução à vitória.
Tudo mais é superstição, demagogia, charlatanice política (RÜHLE, 1978,
p.161).

Porém, na época deste escrito, Rühle ainda se encontrava no KAPD e por isso
irá afirmar que este foi formado a partir da “elite do proletariado”, pelos seus elementos
mais experientes e esclarecidos, sendo uma organização política, “mas não um partido
político”, “não um partido no sentido tradicional do termo”. A sigla contendo o nome
“partido” é “o último vestígio exterior – depressa supérfluo – duma tradição”, um
vestígio que “será apagado”.
Posteriormente, Rühle chegará à conclusão de que mesmo uma organização
política não é necessária. A própria União Operária realizaria o papel que é reservado às
organizações políticas, tal como colaborar com o processo de educação da classe e
superação de seus limites. A organização unitária seria simultaneamente política e
econômica.
A posição de Gorter, no entanto, não apresenta a mesma evolução. Para ele, a
organização política ainda era necessária. Ainda usando o nome de partido, ele
considerava que este deveria ser composto apenas por revolucionários efetivos e
esclarecidos, agrupando os proletários com uma consciência mais ampla e profunda.
Porém, ele distingue dos demais partidos políticos, pois recusa o parlamentarismo e o
processo eleitoral, por um lado, e não aspira tomar o poder estatal, implantar uma
“ditadura de partido”. Por aglutinar apenas os elementos com saber mais profundo e
amplo, sempre será um “pequeno partido”, maior ou menor, em determinado contexto e
lugar, mas sempre pequeno. A sua base deve ser o proletariado e as organizações de
empresas. Estas são, porém, demasiado débeis para realizar o processo revolucionário e
o KAPD não busca uma ditadura de partido, o que parece ser uma contradição. A
solução disso se encontra na ditadura do proletariado, no qual a expansão das
organizações de empresa e fortalecimento da União Geral dos Trabalhadores abarcando
a classe operária em unidade com o KAPD, ou seja, com a organização política do
proletariado, institui a revolução proletária. A unidade entre União e KAPD, um partido
antiparlamentar e antiditatorial, é a chave para o avanço da luta proletária. É preciso
esclarecer que o KAPD, apesar do nome, não era um partido político no sentido
moderno da palavra, não sendo uma organização burocrática. E se opunha ao “partido

21
de chefes”, o que foi uma das motivações do ataque leninista aos “esquerdistas alemães”
(LÊNIN, 1989).
Com a derrota da revolução alemã, as organizações de fábrica se
enfraqueceram e se tornaram mais organizações políticas e por isso as duas uniões
(AAUD e AAUD-E) e o KAPD acabaram se confundindo e, posteriormente, gerou a
KAUD (União Operária Comunista), onde Gorter e Rühle se reencontrariam.

A KAUD exprimia, portanto, a mudança ocorrida nas concepções


de organização. Esta mudança tinha um sentido; é preciso lembrar o que
significava até então a noção de ‘classe organizada’. A AAUD e a AAUD-E
tinham confiado à primeira vista que seriam elas a organizar a classe
operária, que milhões de operários adeririam à sua organização. [...]. Agora a
KAUD incitava os operários a organizarem eles próprios os seus comitês de
ação e a estabelecerem ligações entre esses comitês. Por outras palavras, a
luta de classes organizada já não dependia de uma organização criada antes
das lutas. Segundo esta nova concepção, a ‘classe organizada’ tornava-se a
classe operária lutando sob a sua própria direção. Esta mudança de concepção
tinha consequências em relação a numerosas questões: a ditadura do
proletariado, por exemplo. Com efeito, visto que a ‘luta organizada’ já não
era um problema exclusivo de organizações especializadas na sua direção,
estas já não podiam ser consideradas como os órgãos da ditadura do
proletariado. [...]. O papel da nova organização, a KAUD, reduzir-se-ia então
a uma propaganda comunista clarificante dos objetivos, incitando a classe
operária à luta contra os capitalistas e as antigas organizações, principalmente
através da greve selvagem e fazendo-lhe ver a sua força e a sua fraqueza
(MEIJER, 1976, p. 43-44).

Em toda esta discussão, podemos resgatar alguns itens importantes para a


análise da questão da organização revolucionária. A ideia de Rühle de organização
unitária se desenvolveu num contexto histórico preciso, que foi o da ascensão das lutas
operárias na Alemanha, que teve seus grandes momentos desde a Revolução de
Novembro de 1918 e a expansão dos conselhos operários e autogestão em algumas
regiões, até meados de 1921, e ainda tendo fortes lutas sociais até 1923. Neste contexto,
a formação das Uniões Gerais facilitava a recusa de uma organização política distinta da
organizada nos locais de trabalho. Porém, nas lutas sociais concretas enfraquecia a luta
proletária, pois deixava o campo da ação política para os partidos tradicionais, ou seja,
para a socialdemocracia e seus partidos ou para os partidos bolchevizados. A posição de
Gorter, por sua vez, exagerava a importância e alcance da organização, além de alguns
equívocos sobre questões pontuais. Os desdobramentos da luta promoveram uma
espécie de síntese, que se consolidou na KAUD, embora nesse caso já seja um período
de refluxo do movimento revolucionário. A posição da KAUD será desenvolvida pelos
grupos de comunistas conselhistas que irão enfatizar a propaganda e produção teórica.
22
A relação com o proletariado não é de direção, embora na tendência de Gorter
esta palavra apareça algumas vezes. O objetivo da organização política, desde o KAPD
até o KAUD, é o mesmo exposto por Marx e Rosa Luxemburgo. Um outro elemento
que está presente é a relação interna dentro da organização, que é entendida não no
sentido leninista de dirigentes e dirigidos, controle burocrático, hierarquia e
regulamentos. Neste sentido, a ideia de organização revolucionária avançou em relação
à Rosa Luxemburgo no sentido de romper com a ideia de partido, embora no caso do
KAPD ainda não se rompeu com a palavra, o que permite confusões7.
Essas reflexões sobre a questão da organização recebeu outras contribuições,
tal como a de Pannekoek e outros, mas já fornece uma visão geral do processo de
análise marxista da organização revolucionária e os três pontos fundamentais para se
discutir no caso de uma organização revolucionária: objetivo, relação com o
proletariado e organização interna. Esta precisa ser aprofundada, mas antes disso é
necessário realizar uma breve discussão sobre a organização burocrática.

7
Ainda hoje isso persiste, tal como alguns que afirmam que haviam comunistas conselhistas que
defendiam a necessidade de um “partido”, o que significa desconhecer o momento histórico de
emergência do comunismo de conselhos e, ao mesmo tempo, a diferença entre partido e organização
revolucionária, bem como a própria essência do comunismo de conselhos.
23
CRÍTICA E RECUSA DAS ORGANIZACOES BUROCRÁTICAS

As organizações burocráticas são aquelas que são fundadas na relação entre


dirigentes e dirigidos. Os dirigentes são os burocratas, aqueles que dirigem, os dirigidos
são aqueles que obedecem as ordens superiores. A organização burocrática mantém esse
tipo de relação internamente e se puder, externamente. A mais poderosa organização
burocrática é o estado. Não poderemos discutir aqui o conjunto das organizações
burocráticas existentes, mas tão-somente as organizações políticas que se colocam como
“revolucionárias”. Neste sentido, o caráter burocrático dos partidos políticos em geral e
suas diferenças, não será abordado. Aqui focalizaremos apenas a organização
burocrática política pseudorrevolucionária, o partido de tipo bolchevique.
O grande ideólogo do partido bolchevique foi Lênin. A ideia de Lênin sobre
organização é oposta à tese de Marx. Enquanto Marx entendia que os comunistas devem
ser expressão do movimento revolucionário do proletariado, não possuindo interesses
próprios, Lênin coloca o partido como “vanguarda” cujo objetivo é a tomada do poder
estatal via insurreição. Ao dotar o partido de tão elevada importância, então a
organização e eficácia ganha uma igual importância. Ao contrário de Marx,
Luxemburgo, Gorter, Rühle, entre outros, que dedicaram alguns textos breves ao
problema da organização, este foi um dos temas mais abordados em toda obra de Lênin.
As obras em que ele trata disso são várias e poderíamos citar Que Fazer?; Um Passo
Adiante, dois Atrás; Esquerdismo – A Doença Infantil do Comunismo; Duas Táticas da
Socialdemocracia na Revolução Democrática; além de inúmeros textos, cartas e artigos.
A tese fundamental de Lênin está em sua obra Que Fazer? É nesta obra que se
encontra a fonte de todo o pensamento leninista e o seu caráter de ideologia da
burocracia. A base da concepção leninista é uma deformação do marxismo e tem suas
raízes na burocracia partidária, e como grande ideólogo Karl Kautsky. Enquanto Marx,
Luxemburgo, Gorter, Rühle, Korsch, Pannekoek e todos os marxistas autênticos
compreendem que o marxismo é derivado da luta de classes e que o processo de
24
desenvolvimento da consciência revolucionária do proletariado (e sua expressão teórica,
o marxismo) é também o resultado desta luta, Kautsky busca separar marxismo e
proletariado e coloca este último como sendo incapaz de chegar a uma consciência
revolucionária por si mesmo. Segundo Kautsky, “O movimento operário e o socialismo
não são de modo algum de natureza idêntica”. O socialismo seria anterior ao surgimento
do movimento operário e “começou por surgir nos meios burgueses” (Kautsky, 2002).
Essas teses serão desenvolvidas por Lênin. Este inclusive cita Kautsky, que mais tarde
será um renegado para ele, para fundamentar em sua autoridade a sua posição
vanguardista:

Como doutrina, o socialismo evidentemente tem suas raízes nas


relações econômicas atuais, da mesma forma que a luta de classe do
proletariado: do mesmo modo que esta última, resultada luta contra a pobreza
e a miséria das massas, provocadas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a
luta de classe surgem paralelamente e um não engendra o outro; surgem de
premissas diferentes. A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à
base de um profundo conhecimento científico. De fato, a ciência econômica
contemporânea constitui tanto uma condição da produção socialista como,
por exemplo, a técnica moderna, e, apesar de todo o seu desejo, o
proletariado não pode criá-las: ambas surgem do processo social
contemporâneo. Ora, o portador da ciência não é o proletariado, mas os
intelectuais burgueses (o grifo é de Karl Kautsky): foi do cérebro de certos
indivíduos dessa categoria que nasceu o socialismo contemporâneo, e foram
eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais evoluídos, que
o introduziram, em seguida, na luta de classe do proletariado onde as
condições o permitiram. Assim, pois, a consciência socialista é um elemento
importado de fora (Von Aussenhineigetranes) na luta de classe do
proletariado, e não algo que surgiu espontaneamente (urwuchsig) (apud
LÊNIN, 1978, p. 31).

Essa posição kautskista é antagônica à posição de Marx, como é possível notar


na leitura do capítulo anterior. Lênin também elogia outro ideólogo da burocracia e
pretenso socialista, Ferdinand Lassale, graças à sua “luta encarniçada contra a
espontaneidade”. Lênin declara abertamente seu interesse burocrático em dirigir o
movimento operário:

O impulso espontâneo das massas na Rússia foi (e continua a ser)


tão rápido que a juventude socialdemocrata encontrou-se pouco preparada
para realizar essas imensas tarefas. A falta de preparação, nossa infelicidade
comum, constitui a infelicidade de todos os socialdemocratas russos. O
impulso das massas não cessou de crescer e de se estender sem solução de
continuidade; e longe de interromper-se onde foi iniciado, estendeu-se a
novas localidades, a novas camadas da população (o movimento operário
provocou um redobramento da efervescência entre a juventude das escolas,
dos intelectuais em geral, e mesmo entre os camponeses). Os revolucionários
atrasaram-se quanto à progressão do movimento, e em suas ‘teorias’ e

25
atividade: não souberam criar uma organização que funcionasse sem solução
de continuidade, capaz de dirigir todo o movimento (LÊNIN, 1978, p. 41).

Lênin cai em contradição, ao reconhecer que foi o movimento operário que


provocou a efervescência na intelectualidade (a separação entre marxismo/socialismo e
movimento proletário se vê desmentida), mas isto se deve ao fato de que não é possível
desconsiderar totalmente a realidade concreta, mesmo no reino obscurante da ideologia.
Apesar deste reconhecimento da força espontânea do movimento operário, o problema é
deslocado para a falta de uma organização para dirigir tal movimento. É o eterno
problema burocrático da direção. Inclusive, quando há “direção” e não há tomada do
poder, passou a ser costume, principalmente no trotskismo, de se condenar não a
direção, o verdadeiro obstáculo, e sim determinada direção, que, se fosse revolucionária,
teria efetivado o objetivo final. Para a burocracia, o problema é não ter direção
(burocracia...) e sim se sem tem direção (burocracia...), ou seja, quando a realidade
questiona a ideologia, o problema é que a direção não era revolucionária e é preciso
uma que o seja (isto é, uma burocracia revolucionária, uma contradição de termos que é
visível).
Portanto, segundo Lênin, os trabalhadores são incapazes de, por conta própria,
chegar a uma consciência revolucionária1 e por isso precisam de uma vanguarda
dirigente. Os intelectuais burgueses e pequeno-burgueses aglutinados no partido são
aqueles que produzem a “ciência socialista” e, por isso, possuem um papel dirigente.
Daí ele faz a distinção entre organização dos trabalhadores e organização dos
revolucionários, sendo o sindicato a organização dos trabalhadores e o partido a
organização dos revolucionários. O primeiro, reformista e imediatista, realiza a luta
econômica, ou outro, portador da ideologia revolucionária, realiza a luta política.
Uma vez estabelecido que o partido é a vanguarda dirigente da classe operária,
fica claro a relação entre organização e classe. A primeira comanda, dirige, e toma o
poder estatal. Sendo o partido a vanguarda dirigente, então uma organização
centralizada e ampla deve ser constituída, sendo composta por revolucionários
profissionais:

1
O foco exclusivo na consciência não é gratuito, pois a “consciência socialista” vem dos “intelectuais
burgueses e pequeno-burgueses” que possuem acesso à ciência. A legitimação da dominação burocrática
no leninismo é o acesso à ciência e por isso ele fazia apologia da forma dominante de ideologia
dominante no capitalismo. Tal foco revela, também, que o que o partido quer do proletariado é apenas
“consciência” (leninista), ou seja, apoio para o partido e a conquista do poder estatal, e nada de ação e
muito menos de auto-organização.
26
A burocracia, como classe social que se caracteriza por ser dirigente, tende a
produzir ideologias dirigistas. O dirigismo de Lênin é expressão da burocracia partidária
da qual ele era um dos representantes. Isto é explicitado em várias passagens e obras,
inclusive em seu breve texto, Carta a um Camarada sobre as Nossas Tarefas de
Organização:

O jornal pode e deve assumir a direção ideológica do partido,


desenvolver as verdades teóricas, as teses táticas, as ideias gerais de
organização e as tarefas gerais de todo o partido em qualquer momento. O
dirigente prático, direto, do movimento, só pode sê-lo um grupo central
distinto (chamemo-los, por exemplo, Comitê Central), contatando
pessoalmente com todos os comitês, reunindo as melhores forças
revolucionárias de todos os socialdemocratas russos e tendo faculdades para
decidir em todos os assuntos gerais do partido, a saber: distribuição de
literatura, edição de panfletos, distribuição de forças, designação de pessoas e
grupos para a execução de certas tarefas, preparação de manifestações e
insurreições em toda a Rússia, etc. (LENINE, 1975, p. 88).

Para isso, uma rígida organização interna fundada numa disciplina de fábrica e
em um poderoso comitê central é fundamental2. A questão da organização dos “ditos”
revolucionários se torna a questão central: “o proletariado não tem outra arma na sua
luta pelo poder além da organização” (LÊNIN, 1978, p. 31). Entenda-se aqui por “sua
organização” o partido leninista. Daí o motivo pelo qual no marxismo autêntico a
questão da organização nunca foi o elemento fundamental enquanto que no
pseudomarxismo (socialdemocracia e bolchevismo), assume uma importância central.
Assim, a ideia de Lênin é controlar o movimento operário e para isso é
necessário uma rígida organização de revolucionários profissionais. Lênin assume o
jacobinismo que lhe acusaram: “o jacobino ligado indissoluvelmente à organização do
proletariado doravante consciente dos seus interesses de classe é justamente o
socialdemocrata revolucionário” (LÊNIN, 1978, p. 13).
Seria possível pensar que o pensamento leninista se organizou de forma tão
burocrática devido ao regime czarista ao qual estava submetido e que ele se limitava a
esse caso como lugar de aplicação. Porém, Lênin não pensava que sua ideologia de
partido era limitada ao caso russo, pois, segundo ele, “a experiência demonstrou que,
em algumas questões essenciais da revolução proletária, todos os países passarão,
inevitavelmente, por onde a Rússia passou” (LÊNIN, 1989, p. 22). Em sua obra sobre o

2
“Hoje, sem dúvida, quase todo mundo já compreende que os bolcheviques não se teriam mantido no
poder, não digo dois anos e meio, mas nem sequer dois meses e meio, não fosse a disciplina
rigorosíssima, verdadeiramente férrea, de nosso Partido” (LÊNIN, 1989, p. 13).
27
esquerdismo e em várias outras, o grande objetivo de Lênin era mostrar que o único
caminho para a revolução é seguir a receita bolchevique.
A ideologia dirigista é complementada pela ideia da disciplina para os
dirigidos. A ideia não é a autonomia individual na luta pela emancipação humana e sim
subserviência aos líderes, que são os mais aptos e capazes, para efetivar tal luta. A base
da ideologia da vanguarda reside justamente nesse processo de legitimação da
dominação e da direção. Sob esta base intelectual se organiza todo o processo de
legitimação e justificativa da direção com poder de decisão, hierarquia, desigualdade e
tudo que é expressão da sociedade de classes e de uma organização burocrática.
A justificativa para a existência de uma camada dirigente se fundamenta num
processo no qual a organização tem um objetivo que é a tomada do poder estatal, a
suposta revolução. Aqui temos dois elementos: a tomada do poder estatal é também uma
ideologia da burocracia. A sociedade comunista, e como está em Marx, é uma sociedade
sem classes e sem estado e a proposta original é a abolição do estado. A proposta
leninista, ou seja, burocrática, é a tomada do poder estatal. Isto se justifica pelo fato de
que os trabalhadores não são capazes de se emancipar sozinhos e nem de gerir a futura
sociedade, será preciso que alguém os ensine isto e este papel cabe ao estado. Este
estado, por sua vez, deve ser dirigido (e por isso conquistado) pela burocracia partidária.
O proletariado deve apoiar e garantir este processo e o faz isto ao ser “educado” pela
burocracia partidária. “A necessidade de educar sistematicamente as massas,
precisamente nessa ideia da revolução violenta, constitui a base de toda a doutrina de
Marx e Engels” (LÊNIN, 1987, p. 68). A ênfase na “revolução violenta” não é gratuita.
“A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário é impossível sem uma
revolução violenta” (LÊNIN, 1987, p. 68).

Mas a ditadura do proletariado, quer dizer, a organização da


vanguarda dos oprimidos em classe dominante para esmagar os opressores,
não pode unicamente conduzir à simples ampliação da democracia.
Juntamente com a enorme ampliação da democracia que se converte, pela
primeira vez, em democracia para os pobres, em democracia para o povo, e
não em democracia para os ricos, a ditadura do proletariado implica uma
série de restrições impostas à liberdade dos opressores, dos exploradores,
dos capitalistas. Devemos reprimi-los para libertar a humanidade da
escravidão assalariada; é preciso vencer sua resistência pela força, e é
evidente que onde há repressão há violência, não há liberdade nem
democracia (LÊNIN, 1987, p. 130).

28
Aqui temos a afirmação de que a organização da vanguarda dos oprimidos
realiza a repressão da classe dominante. Numa leitura superficial, pode-se pensar que é
semelhante ao que Marx colocou, mas há uma grande diferença: em Marx a repressão
da classe dominante é feita pela totalidade do proletariado e em Lênin é a “organização
da vanguarda dos oprimidos”, ou seja, o partido. A grande questão é que a burocracia
como classe dominante (que é a fusão da burocracia partidária e estatal) se torna quem
realizará a repressão e os reprimidos serão definidos, obviamente, por eles. Todos que
estiverem contra a burocracia estatal serão definidos como representantes das antigas
classes privilegiadas. Foi justamente isto que fez Lênin ao combater os chamados
“comunistas de esquerda”, que eram dissidentes do próprio Partido Bolchevique que
questionavam a ditadura leninista (bem como os camponeses na Ucrânia e os
marinheiros em Kronstadt):

Colocam-se, especialmente, as medidas destinadas a elevar a


disciplina do trabalho e a produtividade do trabalho. Há que intensificar todos
os esforços para que os passos já iniciados neste sentido, em particular pelos
sindicatos operários, sejam apoiados, reafirmados e reforçados. Entre eles
figuram, por exemplo, a introdução do pagamento por tarefa, a aplicação do
muito que tem de científico e progressista o sistema Taylor, o confronto dos
salários com os resultados gerais do trabalho da fábrica, com o rendimento
das ferrovias e do transporte hidroviário, etc. Figuram também aqui a
organização da emulação, a seleção dos organizadores, etc. (LÊNIN, 1988, p.
233).

A ditadura do proletariado é uma necessidade indispensável na


transição do capitalismo para o socialismo, e em nossa revolução esta
verdade foi totalmente confirmada na prática. Mas a ditadura pressupõe um
poder revolucionário realmente firme e implacável na repressão aos
exploradores e bandidos, enquanto que nosso poder é demasiado brando. Não
se assegurou ainda, pelo menos, a subordinação incondicional durante o
trabalho, às decisões pessoais dos dirigentes soviéticos, os ditadores eleitos
ou designados pelas instituições soviéticas, investidos de poderes ditatoriais
(...). Aqui se manifesta a influência da força deletéria pequeno-burguesa, a
força deletéria dos hábitos, aspirações e sentimentos do pequeno proprietário,
radicalmente opostos à disciplina proletária e ao socialismo (LÊNIN, 1988, p.
233).

Aqui temos todo o processo que explicita a ideologia da vanguarda. Trata-se do


substitucionismo, já identificado por Trotsky em seus escritos antileninistas de
juventude. A vanguarda é o proletariado e, sendo assim, quem se opõe à vanguarda é
contrarrevolucionário, pequeno-burguês. A ditadura é da vanguarda sobre todos que são
contra ela, rotulados de “classe dominante”. Isso ocorre nas relações de produção, no
qual o sistema Taylor funciona da mesma forma que em outras esferas. Não aceitar a

29
ditadura bolchevique, supostamente “proletária”, significa cair na influência pequeno-
burguesa.
Este substitucionismo ocorre inicialmente através do partido que substitui a
classe e depois, no interior do partido, o comitê central que substitui a massa do partido.
Ao se tornar a “vanguarda dirigente”, é preciso comandar o proletariado para que se
realize a revolução violenta e tomada do poder estatal. Assim, encerramos esta breve
consideração sobre as organizações burocráticas, colocando que se trata de uma
organização que faz discurso que se intitula marxista e revolucionário, voltado para o
proletariado, mas que, no fundo, é uma ideologia da burocracia. Seu objetivo final é a
conquista do poder estatal e para isso precisa realizar uma relação burocrática com o
proletariado (dirigi-lo) e internamente. Tal como coloca Lênin:

A consciência política de classe não pode ser levada ao operário


senão do exterior, isto é, do exterior da luta econômica, do exterior da esfera
das relações entre operários e patrões. O único domínio onde se poderá
extrair esses conhecimentos é o das relações de todas as classes e categorias
da população com o Estado e o governo (LÊNIN, 1978, p. 62).

Aqui temos novamente a tese da consciência que vem de fora e com a ideia de
que vem de fora das relações entre operários e patrões. Ora, fora destas relações das
duas classes fundamentais é preciso observar todas as classes e categorias em sua
relação com o Estado e governo, que se tornaram o foco central. A burocracia é a
terceira classe que quer dirigir a primeira (o proletariado) e nas relações de produção
isto não é possível, pois é preciso o aparato estatal para implantar sua própria
dominação, o que significa retirar os operários da luta de classes na produção – onde
poderia exercer a autogestão das unidades de produção – e desviá-la para o apoio ao
partido em sua luta pelo poder estatal. A burocracia partidária, dirigente de uma
pequena organização, se preocupa em direcionar a luta para a conquista do estado e
governo e busca se tornar burocracia estatal, dirigente de toda a população. O caráter
burocrático do leninismo se revela em seu objetivo máximo: a conquista do poder
estatal. É por isso que o leninismo recusa o marxismo neste aspecto fundamental: não se
trata, como em Marx e nos marxistas, de destruir o poder estatal, mas conquistá-lo. A
destruição do poder estatal seria a recusa do leninismo e torná-lo algo sem objetivo.
Assim, o partido leninista perderia sua razão de ser. É por isso que o marxismo, como

30
crítica e recusa das organizações burocráticas, do partido e do estado, é antileninista e o
leninismo é antimarxista.

31
LUTA DE CLASSES E ORGANIZAÇÕES PROLETÁRIAS

As lutas de classes na sociedade capitalista apontam para o processo de


reprodução da sociedade existente, interesse da classe dominante que é reforçado por
suas classes auxiliares, ou de revolução, interesse do proletariado e suas classes aliadas.
O proletariado tende a criar suas próprias formas de organização, independente dos
militantes revolucionários. No início do movimento operário, os sindicatos e as
cooperativas foram as formas organizacionais geradas e logo perdidas, pois passaram ao
controle da burocracia e foram integradas no capitalismo. Posteriormente, outras formas
organizacionais foram emergindo, desde o comitê de greve até os conselhos operários. É
esse processo que é importante analisar, ou seja, a emergência de organizações
proletárias e seu processo de destruição ou cooptação.
As primeiras organizações proletárias foram os sindicatos. A partir do
momento em que os sindicatos. Os trabalhadores são reunidos pelo capital nas fábricas,
minas, empresas em geral, e submetido a um processo de exploração e dominação que,
caso não haja resistência, se amplia indefinidamente. A Revolução Industrial mostrou o
alto grau de exploração, o intenso processo de dominação e as condições de vida
deterioradas, promovidas pela burguesia ávida de lucro. Nesse processo, os
trabalhadores buscam sobreviver, proteger a si e sua família, mas não consegue realizar
isso de forma adequada. Eles acabam buscando outras formas de luta e passam a buscar
uma organização e assim nascem os sindicatos. As trade-unions inglesas são uma
primeira manifestação do sindicalismo. Eles eram organizações dos trabalhadores que
foram combatidos pelo Estado e pela classe capitalista. Mas a força dos trabalhadores e
suas lutas acabaram promovendo a legalização deles.
Obviamente que tais lutas foram diversas, desde as lutas em favor das
organizações sindicais, mas também contra o trabalho feminino e infantil, entre diversas
outras reivindicações. A participação do proletariado nas lutas políticas, o
desenvolvimento da cultura socialista, a experiência revolucionária da Comuna de Paris,
32
foram fundamentais para o reconhecimento legal dos sindicatos e partidos políticos.
Assim, se durante o regime de acumulação extensivo havia a repressão e condenação de
partidos e sindicatos, no regime de acumulação intensivo o que ocorre é sua legalização
e regularização. Ao invés de reprimir, a burguesia aceita e realiza essa concessão, mas o
faz sob forma controlada e para que tais organizações percam eficácia.
Contudo, o trabalho sindical era demasiadamente árduo para trabalhadores já
superexplorados, pois era mais um gasto de tempo e energia e não havia nenhum
benefício para o sindicalista, que ainda era ameaçado de demissão, perseguição, etc. A
legalização e regularização dos mesmos tem o papel de integrá-los na máquina
capitalista. Os sindicatos passam a organizar os trabalhadores por categoria profissional,
o que gera uma divisão no interior do proletariado, criando uma diversidade de
interesses específicos, entre outros processos de separação, e a regularização e
legalização traz exigências de organização (registro, estatuto, cargos fixos, dinheiro,
etc.) que promove o seu processo de corrupção. Os sindicatos acabam sendo a fonte
geradora de uma nova fração da burocracia, a sindical. Os sindicalistas são oriundos das
classes trabalhadoras, mas acabam se afastando do processo de produção e passam a ter
atividades distintas, um modo de vida burocrático, na qual se especializa na relação com
a burocracia empresarial, estatal e partidária. Passam a ter estabilidade, maiores
rendimentos, possibilidade de corrupção, afastamento do trabalho alienado, etc. Os
trabalhadores criaram os sindicatos e os perderam.
Quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais os sindicatos se tornam
poderosos e conservadores. É por isso que Pannekoek coloca que se tornaram “órgãos
do capital” (PANNEKOEK, 2012; VIANA, 2011). É isso que permite também que os
sindicatos se tornem proprietários e passem a explorar proletários extraindo mais-valor,
criando o que foi chamado de “capitalismo sindical” (BERNARDO, 1987). A partir do
regime de acumulação conjugado, que emerge depois da Segunda Guerra Mundial, o
sindicalismo se tornou um dos principais instrumentos do capital para não somente
combater o seu ímpeto revolucionário, como já fazia no regime de acumulação
intensivo, mas também para combater qualquer espontaneidade, reivindicação e pressão
mais forte em torno de reivindicações, seja o mero aumento salarial ou qualquer outra.
Se no regime de acumulação intensivo os sindicatos eram entraves para a revolução
(com algumas exceções como em países de capitalismo menos desenvolvido, como no

33
caso da Guerra Civil Espanhola) e este era uma de suas funções, no regime de
acumulação conjugado ele se torna entrave para as reivindicações e exigências de
reformas, ampliando o seu conservadorismo que permanece até hoje. No regime de
acumulação integral se amplia seu vínculo com o capital e sua corrupção, sendo que
algumas centrais sindicais viraram meramente festivas e promotores de lazer alienado e
consumo, possuindo inclusive cartão de crédito e certo tipo de assistência social
(vínculo com planos de saúde, por exemplo). Não se esquecendo daqueles que criam
empresas capitalistas e exploram proletários. Claro que isso varia de acordo com país,
categoria profissional, etc., mas o papel dos sindicatos tornou-se esse e somente os
iludidos e pessoas sem noção da história ainda pensam em “sindicatos revolucionários”,
uma exceção que existiu em alguns momentos e que foi ficando cada vez mais raro até
se extinguir.
O vínculo dos sindicatos com os partidos políticos é outro ponto problemático.
Os primeiros partidos operários tinham uma grande quantidade de trabalhadores e não
possuíam o caráter tão burocrático quanto assumiu posteriormente. No seu período de
ilegalidade e perseguição, ainda não era uma organização burocrática consolidada. A
mesma época da burocratização dos sindicatos foi a que presenciou a burocratização
crescente dos partidos. Na segunda metade do século 19, com a emergência do regime
de acumulação intensivo, a democracia censitária é substituída pela democracia
partidária (VIANA, 2003) e assim a regularização e legalização dos partidos, inclusive
dos chamados socialdemocratas e socialistas, realizou o mesmo processo de ampliação
da burocratização.
Esse processo de burocratização dos sindicatos gera reação por parte do
proletariado, principalmente em certos contextos e setores. As lutas de classes
continuam, mesmo com maior estabilidade do capitalismo e com uma hegemonia
burguesa pouco questionada na sociedade civil. A insatisfação do proletariado continua
e em certas condições promovem novas lutas espontâneas. Uma das manifestações mais
fortes destas lutas espontâneas são as chamadas greves selvagens, que são realizadas
sem (e muitas vezes contra) os sindicatos. O movimento grevista, nesse caso, fica longe
ou em confronto com as burocracias sindicais. No contexto dessa luta mais ampla,
emergem formas de auto-organização do proletariado, como caixas de autoajuda,
comitês de greve, entre outros. O comitê de greve é uma dessas formas de auto-

34
organização que são o embrião de outras formas mais desenvolvidas, como os conselhos
de fábrica (PANNEKOEK, 2007). Essa é uma forma de auto-organização mais
desenvolvida e estável, que abre caminho para o avanço da luta quando isso proporciona
a constituição dos conselhos operários, formas organizativas mais amplas que articulam
diversos conselhos de fábrica.
Obviamente que existe uma luta de classes em torno das formas de auto-
organização do proletariado, bem como das demais classes exploradas. Contudo, o
nosso foco aqui é o proletariado, por ser a classe revolucionária de nossa época, ele está
no coração do processo de produção capitalista e é quem pode transformar as relações
de produção. No processo histórico de desenvolvimento do capitalismo, observamos
que o proletariado cria organizações, mas a burguesia, através do Estado ou qualquer
outro mecanismo, acaba realizando o seu processo de corrupção, tal como ocorreu com
os sindicatos. Os sindicatos foram, inicialmente, combatidos e depois integrados na
dinâmica da sociedade capitalista. O mesmo a classe capitalista tenta fazer com as
formas de auto-organização do proletariado, primeiro tenta combater (e os sindicatos
são um dos principais mecanismos para isso, ao lado do Estado e das empresas
capitalistas), e, posteriormente, cooptar.
Nesse caso, no entanto, há uma diferença. As formas de auto-organização são
organizações de base, nas quais os trabalhadores tem acesso direto. Os conselhos de
fábrica e os conselhos operários, por sua vez, surgiram de formas embrionárias de auto-
organização, e mantém as mesmas características, ampliando seu potencial
revolucionário por aglutinar os trabalhadores por local de trabalho (conselhos de
fábrica) e depois articulá-los a nível regional (conselhos operários). É uma luta coletiva
que podem ter alguns indivíduos que se destacam, mas que não se consolidam como
líderes, isso só ocorre quando já começou a perder o fôlego e tal consolidação significa
que já perdeu a radicalidade e está próximo da cooptação. Na Revolução Russa de 1905,
época em que os conselhos surgiram de forma pioneira, bem como em seu
ressurgimento em 1917 e aparecimento na Revolução Alemã (1918-1921), Revolução
Italiana (1919-1920) e Revolução Húngara (1919) e, depois disso, em diversas outras
experiências históricas do movimento operário (basta citar o caso de Paris em 1968, na
época da rebelião estudantil; o caso da Polônia em 1980; e o caso brasileiro das greves

35
de maio de 1978). Em todos esses momentos, as duas estratégias da burguesia foram
utilizadas: combate e cooptação.
O combate no caso russo de 1905 é bem conhecido. O seu retorno em 1917 fez
a classe dominante recuar e o bolchevismo, a burocracia partidária comandada por
Lênin e Trotsky, lançou palavras de ordem visando apoiá-los e incluir indivíduos
bolcheviques no seu interior, até conseguir influenciá-los e tomar o poder estatal. Uma
vez no poder, a estratégia foi esvaziar os conselhos operários (BRINTON, 1975). No
caso da Revolução Alemã, o que ocorreu foi o combate do Estado e, com sua força
crescente, a concessão que foi ceder o poder aos partidos socialdemocratas e constituir a
República de Weimar, assim, aproveitando-se da fraqueza de alguns conselhos que
caíram no discurso reformista, na cooptação e corrupção de outros, trocou a repressão
pela corrupção, o que só não se alterou em relação àqueles que mantiveram seu caráter
revolucionário e produziam “repúblicas de conselhos operários”, como na Baviera.
Em outros casos, ocorreu o mesmo ou algo parecido. No maio de 1968,
partidos de “esquerda” e sindicatos foram contra os conselhos e os estudantes; no maio
de 1978, durante o regime militar, os sindicatos governistas (chamados na época de
“pelegos”) combateram os conselhos e o chamado “novo sindicalismo” (liderados por
Lula, o futuro líder do Partido dos Trabalhadores), também, acusando-os de serem
“sindicatinhos” (IBRAHIM, 1986). Essa história repetitiva tautologicamente se repete e
isso não serve para as novas gerações aprendam a lição, pois a história é esquecida e
sempre relembrada a cada nova emergência radical do movimento operário.
O que interessa recordar aqui é que as organizações burocráticas que dizem
representar o proletariado ou qualquer classe trabalhadora apenas fazem um discurso
falso para comandar os trabalhadores e assim realizar os seus próprios interesses
(ganhar a eleição sindical, ganhar eleições em geral, obter apoio, recrutar filiados,
conseguir apoio para chegar ao poder estatal, etc.). A época de seu nascimento, no seu
período heroico não-burocrático, acabou, e se tornaram organizações da burocracia,
como classe social, que devem ser combatidos, pois é isto que elas fazem com as formas
de auto-organização ou com as lutas espontâneas dos trabalhadores.
Outro aspecto que é preciso enfatizar é que as formas de auto-organização do
proletariado (e de outras classes também) e suas lutas espontâneas são combatidas ou
cooptadas, pois a classe capitalista e seu estado, bem como os aparatos burocráticos

36
sindicais e partidários, não possuem interesse em sua autonomização e passagem para
classe autodeterminada. O capital e o Estado precisam manter a ordem, a estabilidade, o
grau de exploração, além do medo de qualquer tentativa de revolução social. Os
partidos de “esquerda” e os sindicatos só existem e possuem sentido se o movimento
operário e as classes exploradas em geral se apagarem e ficarem nos limites de uma
classe determinada, que fica nos limites da sociedade capitalista e que no máximo fazem
reivindicações pontuais geralmente apelando para seus “representantes”. Logo, não há
um processo evolutivo tranquilo e certeiro do movimento operário ou qualquer outra
classe explorada, pois há a luta de classes que atua no sentido de combater, desvirtuar,
etc.
Nesse sentido é fundamental o momento da greve, pois ela é um dos principais
incentivadores de formas de auto-organização que geram os conselhos de fábricas e os
conselhos operários, entre outras formas de conselhos (de bairros, de empresas, etc.). As
greves selvagens são importantes para conduzir esse processo do avanço da classe
proletária e das demais classes exploradas no sentido de sua luta adquirir mais força,
eficácia, unidade e desenvolvimento da consciência. Com o processo de radicalização
da luta, isso se fortalece e quando há a articulação de diversos movimentos grevistas,
quando a greve se torna mais ampla, a possibilidade da formação dos conselhos de
trabalhadores se torna uma realidade. A greve espontânea deve ser tornar greve de
ocupação e, posteriormente, de ocupação ativa. Tais greves exigem união, associação, e
auto-organização, desde suas formas mais elementares (comitês de greve, caixas de
autoajuda, etc.) até suas formas mais desenvolvidas, os conselhos de fábricas e os
conselhos operários.
Obviamente que isso ocorre com os obstáculos já aludidos e que por isso
avanços e retrocessos podem ocorrer em qualquer momento da luta. Por isso é
necessário alertar para os perigos do voluntarismo, para aqueles que pensam que basta o
ativismo e apoio a tais iniciativas para que apareçam conselhos de fábrica ou conselhos
operários. A emergência destes só ocorre depois de muitas lutas, muitas pequenas
vitórias e pequenas derrotas. Essas lutas, pequenas vitórias e pequenas derrotas, são
importantes porque permitem a politização de determinados indivíduos, bem como de
experiências coletivas que acabam sendo exemplares para mostrar o real papel do
Estado e dos governos em geral, do capital, dos partidos e dos sindicatos, como também

37
dos intelectuais ligados ao poder (a maioria absoluta). Mas a supervaloração dessas
lutas iniciais é um erro forte, pois acaba se perdendo a percepção do processo total, dos
riscos e contratendências (a única coisa que fica mais perceptível é a repressão e com o
passar da luta, a ação estatal e do capital). Desta forma, corre-se o risco de esquecer que
a luta isolada jamais levará a uma revolução social, que é necessário sair das
reivindicações corporativas, pontuais e outras limitadas e tentar agregar outras mais
profundas e distantes, bem como apoiar e incentivar outras iniciativas semelhantes de
outros setores.
Isso os próprios grevistas podem fazer. No entanto, além do tempo, cansaço e
outros processos unidos à atividade grevista, dificultam isso. Outro limite é que o
processo de desenvolvimento da consciência dos indivíduos proletários (bem como no
caso de outras classes de trabalhadores em um movimento grevista) não é homogêneo,
nem todos têm as mesmas concepções e representações, as mesmas informações e nem
clareza dos objetivos, pois grande parte quer apenas a satisfação de uma reivindicação
(aumento salarial, melhoria nas condições de trabalho, readmissão de demitidos).
Obviamente que o próprio movimento grevista, a auto-organização (por mais
incipiente que seja), a solidariedade e outros processos desencadeados, são positivos
para uma luta proletária. No entanto, a ação contrária das demais classes e o processo de
desgaste com sua duração, tende a enfraquecer o movimento. As derrotas muitas vezes
são inevitáveis. Contudo, mesmo no movimento mais fraco é necessário colocar o fogo
utópico no mesmo, ampliar as reivindicações, destacar os elementos potencializadores
da auto-organização, da solidariedade, etc., e de ir além no plano das lutas e
reivindicações e postular a transformação social, mesmo que não seja objetivo imediato
e desde movimento grevista. Outro elemento é guardar a memória da luta, para que os
novos lutadores que aparecerem, já tenham informações e possibilidade de um avanço
mais rápido nesse processo.
As organizações revolucionárias existentes, por sua vez, possuem um papel
fundamental nesse processo. O apoio aos movimentos grevistas e lutas espontâneas é
fundamental e pode se manifestar desde moções, panfletos, manifestações, etc., até a
reflexão teórica e política e tentativa de divulgar e articular outras experiências
semelhantes. Um papel das organizações revolucionárias é o que foi discutido no
primeiro capítulo, defender o interesse do conjunto do proletariado, o que significa não

38
só defender as formas de auto-organização, mas também sua articulação em algo maior,
uma associação revolucionária, conselhos operários, bem como usar de sua luta cultural
(conversas, panfletos, textos, postagens na internet, etc.) para denunciar não somente a
classe capitalista e a burocracia estatal, mas também a burocracia partidária e sindical.
Logo, essa ação no plano organizativo (incentivar o proletariado a criar, desenvolver e
articular formas de auto-organização e criticar e incentivar a recusa das organizações
burocráticas) é também um processo de colaboração com a autoformação e
autoeducação do proletariado, pois este precisa reconhecer o processo da luta de classes
e dos falsos aliados que possui, além de colocar reivindicações mais profundas e o
objetivo final de toda a luta, a autogestão social.
A sociedade capitalista cria um processo de divisão social do trabalho,
inclusive a divisão social do trabalho intelectual. Isso contribui para a naturalização da
divisão social do trabalho existente na sociedade capitalista, o que significa que se
reproduz nas representações, ideologias, etc. Na perspectiva dialética, totalizante, a
divisão social do trabalho são apenas formas de manifestações das partes de um todo
que foram constituídas historicamente e que servem para a reprodução do capitalismo, a
expressão concreta dessa totalidade social. Assim, ela cria um conjunto de separações e
fragmentações que não expressam a realidade (o cultural, o político, o econômico, etc.),
mas a coisifica, transformando algo histórico e social, em algo imutável e eterno, bem
como amplia isso gerando representações falsas de supostas fragmentações inexistentes,
incluindo os indivíduos, as ações, etc.
Esse é o caso de uma mobilização popular ou de um movimento grevista.
Quando ele ocorre, ele não é algo “puramente” econômico como alguns sustentam.
Partindo da ilusória divisão coisificante entre o “econômico” e o “político” 1, pensam
que um movimento grevista é “econômico”, o que é totalmente equivocado. Como
mostramos anteriormente, um movimento grevista é um processo de luta cuja
reivindicação pode ser, dependendo do caso, mais próximo do construto de “economia”

1
O leitor atento deve ter visto que nunca ou raramente usamos alguns termos comuns em nossa sociedade
e na produção acadêmica, justamente por serem construtos, unidades de ideologias que acabam
penetrando até nas concepções ditas revolucionárias, como “economia”, “sujeito”, “objeto”,
“subjetividade”, “objetividade”, etc. A expressão “política” e seus derivados utilizamos com mais
frequência, no sentido marxista do termo, como esclarecemos em outro lugar (VIANA, 2003) como
sendo toda e qualquer manifestação de luta de classes e não para nos referir ao aparato governamental
ou outros sentidos problemáticos do termo. A luta de classes também se manifesta no plano da
linguagem, pois ela não está separada da totalidade.
39
(se a única reivindicação for aumento de salários, por exemplo, o que raramente
acontece), mas o meio para se buscar a satisfação dessa reivindicação é a discussão, a
assembleia, a auto-organização, o que gera, por sua vez, autoformação e autoeducação,
sendo um processo, para utilizar construtos ideologêmicos, “econômico”, “político”,
“cultural”, “educacional”, “social”.
Da mesma forma, a intervenção de um grupo revolucionário com um panfleto,
apoio financeiro e com presença física, ou qualquer outra forma, não pode ser reduzido
ao “econômico”, “político”, etc. Mesmo sendo apenas um panfleto, ele é expressão de
uma luta cultural, possui um papel “político” e ao tratar das reivindicações, entra no
campo da “economia”. A panfletagem é uma ação que divulga uma mensagem (e esta
sendo revolucionária obviamente que no seu conteúdo conterá os elementos acima
mencionados), possuindo um papel que pode ser considerado “econômico” (já que sua
mensagem aborda as reivindicações), “político” (aponta para a necessidade da auto-
organização, combate à burocracia e aparato estatal, etc.), “cultural” (a mensagem é
uma manifestação cultural, já que incentiva e contribui com a autoformação,
autoeducação e sob forma cultural).
As diferenças existentes no interior de um movimento grevista ocorrem mais
nos casos individuais e nas posições e setores internos e na sua relação com o que lhe é
externo do que nessa abordagem reificante. No primeiro caso, temos a unidade do
pertencimento de classe, das condições de trabalho, do rendimento, etc., e, ao mesmo
tempo, a diversidade dos processos históricos de vida, das experiências, das
representações e concepções, dos valores, etc. Na luta, a unidade tende a aumentar, mas
existe a contratendência, que se revela principalmente pelas forças externas ao
movimento grevista (isso inclui classe capitalista, burocracia estatal, partidária e
sindical, meios oligopolistas de comunicação, grupos revolucionários, outros meios de
comunicação, etc.). Os objetivos que animam os grevistas, as possibilidades de “vitória”
(atendimento da reivindicação, mesmo que parcial, que é o que geralmente ocorre) ou
“derrota”, cansaço, etc., são outros elementos determinantes.
Nesse sentido, os indivíduos que estão no movimento grevista possuem um
papel fundamental no desenrolar dos acontecimentos e, cabe aqueles que se encontram
no mesmo e são revolucionários, buscar essa articulação com outros setores de
trabalhadores, grupos de apoio, etc. Certamente, poderão encontrar oposição de

40
militantes partidários no seu interior, pessoas com determinadas concepções políticas,
religiosas, etc. Isso é um problema em cada greve e um dos elementos que se deve levar
em conta na perspectiva revolucionária é que tal luta é parte de uma luta maior, tanto
espacial quanto temporalmente, e que deve avançar ao máximo possível, mas que deve
significar algum acúmulo para lutas posteriores.
Quanto mais ela avançar, mais servirá para acúmulo para as lutas posteriores,
mais experiências e mais indivíduos com experiências de luta existiram para as lutas
subsequentes, apesar disso poder se perder, parcialmente e totalmente. Por isso é
fundamental preservar a memória da luta, ou seja, além de ser importante ter uma
documentação da mesma (os panfletos, internos e externos, os documentos dos
empresários e/ou governos, as cartas de apoio, vídeos, entrevistas, reportagens na
imprensa, etc.) e seria fundamental uma reflexão crítica sobre a experiência,
constituindo um dossiê com documentos e análises, bem como sua ampla divulgação
para outros processos de luta e para aqueles que iniciarão outra luta no mesmo local.
As organizações revolucionárias também podem e devem intervir em tais lutas,
não para ser sua “vanguarda” e dirigir praticamente o movimento, nem para ser apenas
apoiador que fica à reboque. No entanto, isto será discutido no próximo capítulo.
Contudo, é fundamental já adiantar no sentido de colocar que as organizações
proletárias tendem a se desenvolver, autonomizar, fazer do proletariado uma classe
autodeterminada. Mas existe a contratendência representada pelo capital, estado,
burocracias, etc. Pensar que o proletariado ganhará inevitavelmente é uma ilusão e uma
posição política equivocada, pois enfraquece a luta revolucionária ao abandoná-lo ao
invés de buscar reforçá-lo. Não se trata de reforçá-lo no sentido reivindicativo e sim no
sentido revolucionário2, pois mais que a luta em si mesma seja importante. É aqui que
reside a linha divisória entre a posição reformista e a posição revolucionária. Não
intervir ou fazer apenas seguindo a dinâmica da luta do jeito em que se encontra é se
omitir ou nada contribuir com a luta. Ninguém se torna revolucionário só por estar junto

2
Obviamente que isso não deve ser entendido de forma simplista, tal como ir numa assembleia de
trabalhadores e defender a realização da revolução imediatamente. Significa simplesmente mostrar a
questão da totalidade da sociedade capitalista, os limites das reivindicações e reformas, sua efemeridade,
suas relações com o capital e o Estado, etc. e explicitar a necessidade de romper com as burocracias,
articular com outros movimentos grevistas, pensar na superação futura do capitalismo, etc., ou seja, é
um trabalho de ampliar a autoformação no sentido de incentivar a radicalização das lutas para que se
contribua, assim, com a passagem para classe autodeterminada, revolucionária. Obviamente que, numa
situação revolucionária, onde ela é uma possibilidade concreta, então tal defesa da revolução imediata é
uma necessidade e deixa de ser mera extravagância.
41
com trabalhadores3. Menos ainda se estes trabalhadores, eles mesmos, não são
revolucionários. Vamos aprofundar isso no próximo capítulo.

3
Nem estando junto com manifestantes, como alguns ingenuamente pensam. O autonomismo e o
obreirismo, entre outras concepções, são um retrocesso para o movimento revolucionário do
proletariado, bem como algumas posições anarquistas, principalmente os dogmáticos e pragmáticos. O
praticismo sem objetivo revolucionário contribui com a luta ao apoiar e estar presente nas lutas, mas é
um obstáculo ao fazer o elogio de si mesmo e não ir além disso e ainda querer transformar isso no
modelo a ser seguido de prática revolucionária.
42
A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA COMO
EXPRESSÃO POLÍTICA DO PROLETARIADO

O objetivo deste capítulo é discutir a relação da organização revolucionária


com o proletariado. Para tanto, vamos colocar duas posições bastante comuns no
interior dos partidos e grupos políticos que se autodenominam de “esquerda”,
“revolucionário” ou “vanguarda”. É necessário realizar a distinção de posições,
inclusive para que se entenda que um coletivo revolucionário não pode cometer o
equívoco do vanguardismo e nem o equívoco oposto do reboquismo. Além disso, se a
posição de uma organização revolucionária não deve ser vanguardista nem reboquista,
então qual deve ser? Esta é uma questão essencial a ser respondida, inclusive que
determina a razão de ser de uma organização revolucionária.
O único sentido para a existência de uma organização revolucionária é ser
expressão política do proletariado revolucionário. Isso será melhor desenvolvido
adiante, mas aqui é necessário introduzir tal discussão. Se a organização se diz
revolucionária, então seu objetivo deve ser a revolução proletária (e não existe nenhuma
outra revolução possível no horizonte, no máximo, a contrarrevolução burocrática, tal
como fez o bolchevismo na Rússia). Nesse sentido, é preciso compreender o vínculo
entre organização e proletariado.
Vimos, nos capítulos anteriores, algumas concepções ideológicas de
organizações burocráticas que buscam dirigir o proletariado. Elas serão alvo de nossas
críticas a seguir, mas já é bem entendido por tudo que foi dito até aqui que estão
descartadas, mas não deixam de existir por causa disso e também não deixam de
influenciar outros setores e organizações da sociedade. Também vimos a história de
formas de organização oriundas do próprio proletariado que se corromperam, seja
permanentemente (tal como no caso dos sindicatos, devido sua mutação organizacional
e transformação em organização burocrática) ou temporariamente (o que ocorre com
organizações de base, mas que podem ser reconquistadas desde que desburocratizadas).

43
Nesse contexto, também observamos a existência de organizações proletárias,
como os conselhos operários, de caráter revolucionário, e, por outro, grupos de
indivíduos também revolucionários, assim como suas discussões a respeito da relação
deles com o proletariado, tal como a discussão sobre a dupla organização ou
organização unitária.
A questão do vínculo com o proletariado é geralmente mal entendida. A
confusão é grande nessa questão e isso tem a ver com a própria ideia do que seja o
proletariado1. No sentido marxista, o proletariado é uma classe social existente na
sociedade capitalista, cujo elemento definidor é ser composto por trabalhadores
assalariados produtivos, ou seja, que produzem mais-valor (VIANA, 2014a; VIANA,
2008a). Ele é constituído pelas relações de produção capitalistas, o que significa que
não existe proletariado sem burguesia, sem a classe exploradora que extrai o mais-valor
produzido. Eles só existem nessa relação e são as classes fundamentais da sociedade
capitalista, pois ambas são constituídas pelo modo de produção capitalista e são o que o
caracterizam como modo de produção específico, o modo de produção dominante dessa
sociedade e que tende a se tornar o único, abolindo os modos de produção subordinados
(artesão, camponês, etc.).
As demais classes dos modos de produção anteriores vão se extinguindo e as
dos modos de produção subordinados possuem a mesma tendência (artesãos,
camponeses, latifundiários, etc.). As outras classes são produtos das formas sociais
capitalistas (“superestrutura”), ou seja, existem para realizar a reprodução do
capitalismo e não sua produção, compondo as classes sociais improdutivas, que não
geram mais-valor, e podem se dividir entre as que são classes auxiliares da burguesia e
as que são classes subalternas, que exercem atividades improdutivas em posição de
subalternidade nas instituições e empresas burguesas. As principais classes auxiliares da

1
Obviamente que a discussão aqui está no campo do marxismo (autêntico) e não do autonomismo,
anarquismo, etc.. Alguns anarquistas elaboraram discussões, algumas muito interessantes e importantes,
sobre questões organizacionais, mas como a compreensão do que é o proletariado, bem como outras
fontes de inspiração no campo metodológico e teórico ocorrem, então são concepções próximas, mas
distintas, principalmente contemporaneamente, devido algumas das novas influências no pensamento
anarquista vindas fora do mesmo, o que atinge determinados indivíduos e tendências. Essa influência é a
do pós-estruturalismo, composto por diversas ideologias que cumprem um papel de contrarrevolução
burocrática preventiva (VIANA, 2009) e acabam atingindo até grupos e indivíduos bem intencionados e
sinceros compromissados com a transformação social.
44
burguesia são a burocracia e a intelectualidade e a principal classe subalterna é a classe
serviçal2.
Nesse sentido, existe a luta entre as classes fundamentais, mas as outras classes
participam desse processo, sendo que as classes desprivilegiadas tendem a se aliar ao
proletariado, enquanto que as classes privilegiadas são auxiliares da classe dominante.
A luta de classes, devido a isto, se complexifica. No entanto, a possibilidade histórica de
constituição da autogestão social reside na luta do proletariado e, portanto, o marxismo
se vincula a ele, sendo sua expressão teórica. Ao ser sua expressão teórica e entendendo
que para o marxismo a teoria tem como objetivo a transformação radical do conjunto
das relações sociais, não sendo neutra e nem um fim em si mesma, isso significa que
também é sua expressão política.
O proletariado, no entanto, não é visto apenas como classe existente. Como
classe existente, o proletariado é o conjunto dos trabalhadores assalariados que
produzem mais-valor nas fábricas, minas, construção civil, agricultura, etc. Esse é o
proletariado como “classe em si”, classe determinada pelo capital, e que, portanto,
produz mais-valor e se reproduz no interior do capitalismo. Devido o processo de
exploração e dominação ao qual está submetido pela burguesia, então ele resiste, luta,
etc. Num primeiro momento, essa luta e resistência não são anticapitalistas, não é
revolucionária, é uma luta de uma classe determinada pelo capital e que, portanto, não o
ultrapassa. Reivindicar melhores condições de trabalho ou melhores salários significa
tão-somente melhorias no interior do capitalismo e manutenção das relações de
produção capitalistas, ou seja, manutenção da produção de mais-valor, da exploração.
As organizações e grupos que expressam esse proletariado também não ultrapassam o
capitalismo, ficando no mesmo nível de reprodução do capitalismo, e, mesmo se
dizendo “revolucionárias”, são reformistas3.

2
Marx observou a existência da classe serviçal no plano das relações privadas das famílias burguesas,
como produto do desenvolvimento capitalista (MARX, 1988). Na época em que ele produziu sua obra,
essa fração da classe serviçal estava em ascensão nos meios burgueses. A teoria marxista das classes
sociais foi muito pouco desenvolvida depois de Marx. Para consultar obras sobre classes nessa
perspectiva, o fundamental é ler o próprio Marx, embora suas observações sobre classes sociais estejam
espalhadas por inúmeras obras, embora com mais ênfase em algumas (MARX e ENGELS, 1992;
MARX, 1988). Uma síntese de sua concepção acompanhada de uma crítica de outras e tentativa de
atualização, pode ser vista em Viana (2014a).
3
Obviamente existe o reformismo socialdemocrata, dos partidos e burocracias, que ficam nesse nível,
mas a razão de ser disso se encontra nos seus próprios interesses. No entanto, também existem outros
grupos e coletivos, mais à esquerda, que fazem o mesmo processo recusando os vínculos com a
democracia burguesa e não possuindo interesses próprios por não ser uma organização burocrática e
45
É por isso que o marxismo é expressão teórica do proletariado revolucionário,
ou seja, como classe autodeterminada, que supera a determinação da sociedade
capitalista e avança na ruptura com ele, que não exige reformas e mudanças no seu
interior e sim sua abolição. É o proletariado que já não pede melhores salários e sim a
abolição do salariato. Assim, trata-se do proletariado quando ele cria suas formas de
auto-organização, realiza sua autoformação e autoeducação e se lança no movimento
revolucionário. A organização revolucionária deve expressar esse proletariado, como
classe autodeterminada, não o proletariado determinado pelo capital. Se não o fizer, não
é uma organização revolucionária, mesmo que o diga ou coloque a revolução em seus
discursos ou segredos noturnos dos iniciados da seita.
Em síntese, a organização revolucionária é expressão política do proletariado
como classe autodeterminada. Sendo expressão política, e entendendo-se por política
toda e qualquer manifestação da luta de classes, então é expressão teórica, cultural,
dessa classe. E a luta ocorre em todos os lugares da sociedade burguesa, no plano
cultural, nas lutas cotidianas nas fábricas, empresas, no espaço urbano, no campo, nas
instituições burguesas, etc. e se realiza sob diversas formas, desde a propaganda
generalizada, passando pela produção teórica, até chegar à presença física em
manifestações e ações coletivas, e isso depende do contexto, da situação geral, da
capacidade, força e número de integrantes da organização, etc. Obviamente que sendo
uma organização revolucionária a participação nos movimentos sociais, movimento
grevista, lutas sociais em geral, não é apenas de “presença física” ou “apoio verbal”, o

muitas vezes mantendo um discurso que fala de revolução. Este é o reformismo utópico-abstrato, um
novo tipo de reformismo que seria politicamente indiferente se não fosse a sua composição social, na
qual predominavam jovens ativistas, que não só usam ideologias e concepções para sustentar tal posição
e não avançar, estando aquém do proletariado como classe, pois este não cria autocensura e
autolimitação, ela vem de fora (e reforçada pelo reformismo utópico-abstrato) e por suas posições
contrárias a qualquer proposição revolucionária, na qual não se ultrapassa o taticismo e não se elabora
nunca uma estratégia. O seu caráter reformista, no entanto, lhe aproxima em um aspecto fundamental do
reformismo socialdemocrata: “o movimento é tudo e o objetivo é nada”, segundo a famosa frase de
Edward Bernstein (1997), refutado por Rosa Luxemburgo, que mostrou que o “o objetivo é tudo e o
movimento é nada” (LUXEMBURGO, 1986). Sem dúvida, Rosa Luxemburgo mostrou mais do que
isso, que a dicotomia entre meios e fins é falsa e equivocada, mas o seu mérito foi ter mostrado que os
meios não são os fins e que abandonar este significa abandonar a luta revolucionária. Há também
aqueles que concordam com tudo isso que foi dito, mas não dão conta de colocar isso em prática, ou
seja, entendem a necessidade de luta pelo objetivo final e seu caráter essencial, mas nas ações concretas,
práticas cotidianas, discurso imediato, não dão conta de ultrapassar o taticismo. Esse é um fenômeno
bem comum que expressa a dificuldade de relacionar teoria e realidade (o que é bastante comum
também nos meios acadêmicos nas monografias, dissertações e teses, nas quais os indivíduos mostram
uma determinada teoria, mas quando devem tratar do fenômeno social específico de análise não dão
conta de relacionar uma coisa com a outra), o que revela deficiência teórica, pois ela, desvinculada da
realidade e da prática é o mesmo que nada ou apenas discurso decorativo.
46
que pode ou não ocorrer, mas ocorrendo deve ser algo mais, deve ser na perspectiva do
proletariado (revolucionário). Logo, não se trata de participação por participação,
presença física para satisfazer a cobrança ou se defender da crítica de vanguardistas e
ativistas e sim de ação revolucionária refletida e organizada, pois o compromisso é com
a emancipação humana e revolução proletária e não com outros grupos e indivíduos.
Obviamente que com o avanço da luta proletária, há a tendência também a
ocorrer o avanço da luta da organização revolucionária. O seu crescimento quantitativo
tende a ocorrer, embora possa ser fonte de problemas e conflitos internos, bem como
sua ação tende a se tornar mais constante e presente. E uma deve reforçar a outra.
Quando chega um momento revolucionário, a organização revolucionária não deve se
fundir com o proletariado, pois este pode ser tornar predominantemente classe
autodeterminada, mas nem todos os indivíduos da classe serão e a ação das burocracias
partidárias e sindicais, bem como do Estado e capital, continuarão se exercendo e a
organização revolucionária deve, então, apoiar o proletariado revolucionário no sentido
de evitar a contrarrevolução burguesa (através do aparato estatal burguês e do capital),
que usa principalmente a repressão e cooptação, bem como a contrarrevolução
burocrática (expressa pelos partidos e sindicatos, que se dizem “representantes” dos
trabalhadores), afinal estes aparecem como aliados e muitas vezes usam discursos que
são convincentes e radicais4.
Essa discussão é fundamental para entendermos o processo de luta de classes e
o papel da organização revolucionária no seu desdobramento. Existem, geralmente, dois
obstáculos para compreender o papel da organização revolucionária em seu vínculo com
o proletariado e na luta de classes em geral. O primeiro obstáculo é o vanguardismo e o
segundo é o reboquismo. É preciso esclarecer teoricamente os limites e significado
dessas duas posições para entender mais adequadamente o papel da organização
revolucionária e sua relação com o proletariado.
A concepção vanguardista é uma posição burocrática. É a burocracia que quer
dirigir o proletariado e para isso deve gerar uma ideologia (a da vanguarda) visando
convencer seus militantes e legitimar sua ação diante da classe proletária. A ideologia

4
A ingenuidade de propor aliança ou “combater o inimigo comum” que seria apenas o capital e o Estado
deve ser superada e isso no interior dos grupos e indivíduos que se colocam intencionalmente como
revolucionários. A questão é que há uma luta de classes e o problema é se iludir com o discurso
supostamente “democrático”, “revolucionário”, dos “trabalhadores” dos partidos e outras organizações
revolucionárias supostamente proletárias ou revolucionárias.
47
da vanguarda, desenvolvida por Lênin e já discutida aqui, é o seu elemento justificador
e legitimador. Porém, existem mais alguns detalhes e outras formas pelas quais o
vanguardismo reaparece até em tendências muito mais radicais. Um elemento
fundamental o vanguardismo é a ideia de que o partido deve dirigir o proletariado e
tomar o poder estatal, mas, para isso, deve combater toda espontaneidade. A questão
aqui é justamente o combate à espontaneidade. Lênin, por exemplo, é claro nisso5:

O problema coloca-se exclusivamente assim: ideologia burguesa


ou ideologia socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não elaborou
uma “terceira” ideologia: é, além disso, em uma sociedade dilacerada pelos
antagonismos de classe não seria possível existir uma ideologia à margem ou
acima dessas classes). Por isso, toda diminuição da ideologia socialista, todo
distanciamento dela implica o fortalecimento da ideologia burguesa. Fala-se
de espontaneidade. Mas o desenvolvimento espontâneo do movimento
operário resulta justamente na subordinação à ideologia burguesa, efetua-se
justamente segundo o programa do “Credo”6, pois o movimento operário
espontâneo é o sindicalismo, a Nur-Gewerkschaftlerei7; ora, o sindicalismo é
justamente a escravidão ideológica dos operários pela burguesia. Por isso,
nossa tarefa, a da socialdemocracia, é combater a espontaneidade, desviar o
movimento operário dessa tendência espontânea que apresenta o
sindicalismo, de ser refugiar sob as asas da burguesia, e atraí-lo para a
socialdemocracia revolucionária (LÊNIN, 1978, p. 31-32).

A concepção vanguardista não só defende na ideologia que o proletariado não


consegue por contra própria de ascender à consciência revolucionária, como tem que
defender isso na prática, indo contra todas as lutas espontâneas, através de discurso,
ações e tentativas de assumir a lideranças delas. O leninismo e o vanguardismo em geral
só existem se o proletariado ficar ao nível de classe determinada. É por isso que eles
devem negar a espontaneidade e as lutas espontâneas, pois estas são a expressão da
possibilidade de passagem para classe autodeterminada. Se o proletariado se torna
classe autodeterminada, não tem necessidade de partidos e sindicatos que são
ultrapassados como seus “dirigentes”. O vanguardismo, concepção e prática, é uma
ideologia que busca manter o proletariado como classe determinada e sua ação prática,

5
E os intelectuais e partidos herdeiros do leninismo mostraram isso com maestria nas manifestações
populares que ocorreram no Brasil em 2013, pois condenaram as mesmas como sendo manifestação de
“fascismo” e o motivo principal para isso era a não existência de lideranças e a recusa dos partidos
políticos, ao lado de alguns discursos e manifestações nacionalistas e aparentemente patrióticas. Sem
não estiver sob a direção de um partido de vanguarda, uma burocracia, é um “risco” (para quem? Para o
capital?) e deve ser combatido.
6
Programa de sindicalismo com vinculações clericais produzido na Rússia no início do século 20.
7
Segundo Lênin, palavra russa cujo significado exclusivo do idioma é “luta apenas sindical”.
48
ao envolver o proletariado nos processos eleitorais, sindicalismo, sob direções
burocráticas, é a manutenção prática dele nessa situação8.
O problema do vanguardismo não é a intervenção nas lutas proletárias e lutas
sociais em geral e sim o seu significado, expressão de sua forma de agir, o que está
ligado aos seus objetivos. Obviamente que, tendo em vista sua forma de agir e seus
objetivos, então sua intervenção se torna negativa. A questão é que a interpretação de
que o problema do vanguardismo é a intervenção acaba gerando a ideia de que toda
intervenção é negativa. Isso é um equívoco e para entender isso é necessário entender
onde realmente há o problema do vanguardismo.
O vanguardismo é problemático em sua ação devido a dois elementos básicos:
a forma de agir e o objetivo. Isso gera problemas derivados, mas focalizaremos estes
dois e os derivados aparecerão no processo de análise de ambos. O objetivo do
vanguardismo, discurso e prática, é dirigir o proletariado e todos os demais setores da
sociedade, visando chegar ao poder estatal e assim generalizar sua direção, sob forma
ditatorial9. Isso é comum, já que o vanguardismo é expressão ideológica e prática da
burocracia partidária e outras semelhantes (sindical, por exemplo). Tendo este objetivo,
então o que interessa não é o desenvolvimento da luta proletária, mas o seu controle.
Quando Rosa Luxemburgo criticou Lênin ao dizer que com seu espírito estéril de vigia
noturno o que ele queria é controlar o movimento operário ao invés de desenvolvê-lo,
mostrou uma das principais características do vanguardismo. O vanguardismo precisa,
para atingir seus objetivos, conseguir dirigir o proletariado e para isso esse precisa
querer dirigir suas ações e conquistar o seu apoio para as ações partidárias, o que gera

8
No plano ideológico, tem também que cair no maniqueísmo, opondo o bem e o mal, sendo que o partido
de vanguarda é o bem e o resto, a burguesia e todos que não estão no partido, são o mal, tal como a
igreja fazia na sociedade feudal: fora dele não há salvação ou perdão. É por isso que Lênin sempre
realiza a dicotomia entre proletariado (leia-se partido de vanguarda, que pode aparecer sob vários
rótulos, inclusive “ideologia socialista”) e burguesia (não somente a classe burguesa, mas todas as
outras, e todos que mesmo sendo proletários e revolucionários, não estão do lado do partido de
vanguarda, e isso justifica, inclusive, os massacres históricos posteriores à tomada de poder pelo partido
bolchevique, seja de camponeses, marinheiros, operários, revolucionários, etc.). Assim, a terceira classe
(e as demais) desaparece. A terceira opção histórica, a burocracia, não existe, o que sobra é ou ficar do
lado do partido de vanguarda ou do lado da burguesia. A espontaneidade (e o proletariado real que a
manifesta) é expressão desta ou de sua dominação sobre a classe operária e por isso deve ser combatida
e é “burguesa”. Isso é totalmente oposto ao que Marx, Rosa Luxemburgo, comunistas de conselhos e
outros defendem, por manifestarem a perspectiva do proletariado e não da burocracia com sua ânsia
dirigista.
9
Isso não quer dizer que todos os integrantes de um partido leninista faça isso conscientemente e
intencionalmente, embora alguns o façam dessa forma, especialmente seus estratos superiores, os
grandes burocratas internos.
49
necessidade de combater a espontaneidade e impedir sua autonomização em relação às
burocracias. Isso significa que o vanguardismo precisa garantir que o proletariado fique
como classe determinada. Nesse caso, pode-se perguntar então qual é a diferença entre a
ação da burocracia partidária e seu vanguardismo e a ação da classe capitalista e do
Estado burguês. A diferença ocorre no interior da disputa pela hegemonia. A burguesia
e o Estado capitalista possuem hegemonia na sociedade burguesa e a burocracia
partidária radicalizada expressa no bolchevismo busca substituir a hegemonia burguesa
pela hegemonia burocrática, ou seja, a disputa do bolchevismo contra a classe capitalista
e seu Estado é por quem dirige o proletariado, mas em ambos os casos como classe
determinada e por isso ambos concordam com alguns aspectos básicos: a necessidade de
lideranças, a incapacidade do proletariado de autogerir suas lutas e a sociedade, a
supervaloração da ciência (e, por conseguinte, dos seus portadores), etc. Quando o
proletariado começa a ultrapassar a ambos, eles se unem no mesmo coro fazendo o
discurso contra a espontaneidade, seja direta ou indiretamente10.
Nesse sentido, o objetivo do vanguardismo é a direção e suas ações e forma de
agir são no sentido de garantir cargos, líderes, influência, no sentido de manter o
proletariado como classe determinada, mas mudando apenas aqueles que eles devem
seguir, os seus dirigentes e suas ideias. É assim que agem os vanguardistas e nesse
sentido eles precisam manter o proletariado no nível de classe determinada e para isso,
complementarmente, precisam combater as formas de auto-organização e a
espontaneidade, buscando substituí-la pela sua direção11.
Os males do vanguardismo já renderam muitos acontecimentos históricos, a
começar da contrarrevolução burocrática na Rússia, e por isso não precisamos retornar a
isso e nem exemplificar com os eventos mais conhecidos ou os processos cotidianos que
os reproduzem em pequena escala.

10
A forma direta é bem conhecida e o leninismo fez isso magistralmente como já demonstramos. A forma
indireta é a que coloca que as ações mais radicais pode provocar o fascismo ou que se não tiver
lideranças (eles, obviamente) os fascistas poderão assumir o comando, entre milhares de outros
estratagemas discursivos.
11
Claro que existe variantes no discurso vanguardista e esta síntese são apenas para mostrar seus aspectos
essenciais. O foco aqui é o leninismo ortodoxo, ou seja, fiel aos escritos de Lênin, por isso,
insurrecionalista, no sentido de jogar o proletariado na luta para apoiá-lo na conquista do poder estatal,
mas aqui não há espontaneidade e sempre relação dirigente-dirigido para que o partido conquiste o
poder político. Os desvios do leninismo, expressões de outras frações da burocracia ou sua apropriação
por outras classes, apresentam um discurso que tende a ser conservador ou reformista, pois, tal como no
caso da socialdemocracia, também deseja dirigi-lo e ganha-lo para o processo eleitoral em sua disputa
por espaço e poder dentro da sociedade capitalista.
50
Mas não é só o vanguardismo que é um obstáculo político para o proletariado.
O reboquismo, sua negação, acaba sendo outro problema grave para o movimento
revolucionário. No fundo, o reboquismo acaba exercendo o mesmo papel que o
vanguardismo, só que com objetivos e formas diferentes. O reboquismo emerge em
tendências políticas esquerdistas, ou seja, contrárias ao leninismo e em sua maioria
apontando para uma concepção radical de transformação social. Ele pode assumir vários
nomes: obreirismo, autonomismo, anarquismo, conselhismo, etc. Na sua composição
social predominam jovens e lumpemproletários, e, em menor grau, intelectuais e
proletários. Porém, existem também oportunistas e por isso setores da burocracia
partidária, como a socialdemocracia, que aglutina também alguns intelectuais e iludidos
de outras classes (proletários, camponeses, etc.), pode eventualmente assumir a mesma
posição e assim justificar sua ação e até mesmo contribuições para o processo
contrarrevolucionário12.
Desta forma, podemos dividir o reboquismo em duas tendências mais fortes, a
extra institucional e a institucional, especialmente, no último caso, ligado à
socialdemocracia. Essa última posição já foi demasiadamente criticada pela tradição
revolucionária e por isso focalizaremos apenas o reboquismo extra institucional,
realizado espontaneamente por indivíduos, grupos, coletivos informais, que se lançam
nas lutas sociais, seja de forma esporádica ou permanente, e acabam tendo um papel no
desenvolvimento do movimento em geral.
O reboquismo tem uma concepção mística de revolução e de proletariado. Para
a maior parte dos adeptos do reboquismo, o proletariado tem a missão revolucionária e
por isso é preciso “seguir” o seu movimento e ele libertará a todos. Um certo processo
de inevitabilidade do comunismo (ou anarquia, ou qualquer outro nome para a
sociedade pós-capitalista sem classes) é esperado e o caminho para ele é o proletariado
(ou os “pobres”, o “povo”, a “multidão”, os oprimidos, etc., entre outros nomes e
agentes sociais que se fundem nas grandes mobilizações ou manifestações). Obviamente
que no interior do reboquismo existem tendências com uma certa formação política e

12
Para citar apenas um exemplo, esse é o caso daqueles intelectuais que tentaram justificar o papel
contrarrevolucionário da socialdemocracia alemã (SPD - Partido Socialdemocrata Alemão e USPD -
Partido Socialdemocrata Independente da Alemanha) argumentando que eles apenas expressavam o que
o proletariado queria ou seu “reformismo” e assim contestavam a tese de sua “traição da revolução”,
pregada pelos bolchevistas. Aqui no Brasil alguns autores que escreveram sobre a Revolução Alemã
defenderam estas teses (REIS FILHO, 1984).
51
intelectual que usam um discurso mais elaborado e fundamentado para expressar a
justificativa de suas práticas.
Esse é o caso de algumas correntes autonomistas e até mesmo autointituladas
conselhistas, apesar de demonstrar, no último caso, seu desconhecimento da teoria dos
comunistas de conselhos. No caso, a incompreensão de Marx, Pannekoek, entre outros,
aliado a uma mentalidade dogmática, proporciona uma interpretação fetichista de
determinados termos e concepções. No caso de Marx, uma concepção mística de
proletariado, transformando a dialética idealista hegeliana que transforma a razão no
motor da história em uma dialética pseudomarxistas que o proletariado seria o motor da
história e não a luta de classes. Assim, através de uma dialética (mística, idealista,
hegeliana) imanente, se pensa que o proletariado é revolucionário e basta segui-lo para
sê-lo também. Aqui o reboquismo é o resultado de ideias mal assimiladas misturada
com desejos e idiossincrasias. Não só a dialética materialista se torna idealista e
hegeliana, como também o proletariado vira algo místico.
Em Marx, a dialética é um método (MARX, 1983, VIANA, 2014b; VIANA,
2007), deixando de ser algo místico. Em algumas tendências reboquistas, ela novamente
se torna mística, cujo referente material não é a razão tal como em Hegel e sim o
proletariado. Isso também deforma a consciência do que é o proletariado. O proletariado
é a classe dos trabalhadores assalariados produtivos, ou seja, produtores de mais-valor.
Ele não é revolucionário imediatamente, é classe determinada pelo capital, fica nos
limites da sociedade capitalista e suas lutas e reivindicações são no interior dessa
sociedade: melhores salários, melhores condições de trabalho, melhores serviços sociais
e estatais (de saúde, educação, transporte), e aceita a direção e hegemonia das outras
classes sociais (burguesia, burocracia). A organização revolucionária só tem razão de
ser se expressar o proletariado como classe autodeterminada, ou, segundo frase famosa
de Marx, ou ele é revolucionário ou não é nada.
Isso passa a ter outras justificativas ideológicas e apontam para o praticismo e
ideias sem sentido da “luta pela luta”, ou “prática pela prática”. Ou seja, basta seguir o
proletariado e se julga revolucionário ou basta estar presentes em manifestações, greves,
etc., para se julgar revolucionário. Há um empobrecimento do marxismo e de outros
autores que são citados abundantemente por alguns sem demonstrar a mínima
compreensão do que eles queriam dizer. Assim, frases descontextualizadas de Marx

52
sobre “prática”, termo geralmente não compreendido, ou até mesmo de Pannekoek,
passam a servir para defender teses totalmente moderadas, tal como “apenas a prática
propicia elementos para reflexão”, ou “quem apenas estudou não pode fazer boa
análise” de manifestações e lutas sociais. Esse tipo de concepção, supostamente
revolucionário e que pode usar e abusar de citações de autores como Marx, Pannekoek,
Debord, entre outros, cai em problemas insolúveis que parecem apenas questões
discursivas/formais, mas que é algo mais ao promover determinados discursos e
práticas. Alguns vão mais longe e pensam que para serem revolucionários, já que é uma
questão de classe, devem ir para as fábricas se tornarem operários, ou ainda para outras
atividades das classes desprivilegiadas ou mesmo do lumpemproletariado. Outros
pensam que devem “seguir o proletariado” para onde ele for e se vai para os sindicatos e
partidos, também devem ir.
Essas deformações do pensamento de Marx e do conselhismo são bastante
comuns e se fundamentam em um desejo enorme de ser revolucionário aliado com má
formação teórica e compreensão da teoria marxista (e, em alguns casos, de outras
concepções políticas libertárias). O culto do proletariado, da prática, das ações
espontâneas, é comum e demonstra uma total confusão em relação ao que Marx e o
conselhismo colocaram. Aliás, já é bastante evidente a incompreensão do conselhismo
ao se pensar que hoje poderiam existir grupos conselhistas, ao invés de entender que é
uma coisa datada historicamente e que não tem sentido reproduzir, tal como era, nos
dias de hoje, pois é necessária a atualização da teoria, seja do desenvolvimento
capitalista, seja das lutas de classes.
No caso de Marx, o problema pensar a luta operária desligada da luta de
classes em geral. Ao invés de entender a totalidade das relações sociais e das lutas de
classes, focaliza apenas o proletariado e sua ação, pensamento que, espontaneamente,
ele gera o comunismo. Por isso, basta seguir o proletariado e assim se contribui com a
constituição do comunismo. Sem dúvida, Marx colocou que na luta, que é algo bem
mais amplo do que “prática”, o proletariado se reúne, autoeduca, pode passar para classe
autodeterminada. No entanto, as lutas espontâneas são fundamentais nesse processo,
mas são lutas e não podem ficar estagnadas e por isso, os setores mais avançados da
classe, os indivíduos de outras classes, as classes aliadas, os grupos revolucionários
fazem parte desta luta. Contudo, é fundamental entender que essa luta é ponto de

53
partida, mas deve ser ultrapassado. A espontaneidade deve ser superada pela auto-
organização, o que significa a associação, ação coletiva consciente e auto-organizada. A
passagem das lutas espontâneas para as lutas autônomas é algo fundamental, pois as
lutas heterodirigidas por partidos e sindicatos, nos raros momentos em que isso ocorre,
não acrescentam muito para a luta operária, a não ser a possibilidade dela superar tais
lutas13.
Nesse sentido, as lutas heterogeridas devem ser superadas, pois caso contrário
o proletariado no máximo serve de apoio para troca de governos, insurreições que
geram golpe de Estado e capitalista de Estado. Se em certas situações elas podem
promover a passagem para lutas espontâneas e/ou autônomas, nem por isso devem ser
apoiadas, pois desde o início cabe aos revolucionários e organizações revolucionárias
denunciar, combater, tais lutas, já que elas são reprodução da dominação e da
heterogestão. Apoiar tais lutas porque elas poderiam gerar uma espontaneidade
revolucionária é uma grande ingenuidade e reforçar o domínio da burocracia sobre o
proletariado.
As lutas espontâneas também devem ser superadas, mas não combatidas. A
superação das lutas heterogerida se faz na luta contra elas, mesmo que isso promova o
isolamento temporário, mas aglutina setores mais avançados do proletariado e não se
promove a confusão entre revolucionários e oportunistas, pseudorrevolucionários, etc.,
o que gera um avanço localizado da luta que, no futuro, poderá se tornar um bom ponto
de partida para a superação das lutas heterogeridas e sua substituição por lutas
autônomas.
As lutas espontâneas são superadas não através do combate como as lutas
heterogeridas e sim através de seu aprofundamento e radicalização. É necessário que as
lutas não sejam apenas espontâneas, mas que passem a ser autônomas e/ou
autogeridas14. Ou seja, as lutas espontâneas devem ser apoiadas, mas o apoio não

13
Tal como ocorreu em diversos momentos da história. Um bom exemplo disso é o caso do Chile e das
lutas dos trabalhadores que nasceu para defender um governo, sendo heterodigiridas, e acabaram se
tornando espontâneas e/ou autônomas.
14
Entenda-se por lutas espontâneas as que se realizam espontaneamente pela população, proletariado,
etc., ou seja, que não são dirigidas por organizações burocráticas, mas também não se contrapõem a elas.
As lutas autônomas já são lutas nas quais não só são realizadas espontaneamente, mas também
apresentam a recusa das organizações burocráticas (partidos e sindicatos, principalmente). As lutas
autogeridas, por sua vez, são lutas que não são somente não são dirigidas por organizações burocráticas
e são contra elas, mas também colocam como objetivo a autogestão social, ou seja, expressa o
proletariado como classe autodeterminada, pois o seu objetivo é a constituição de uma sociedade
54
significa ficar no seu nível ou criar autocensura e auto impedimento de ação. É
necessário apoiar as lutas espontâneas, mas, ao mesmo tempo, mostrar que é necessário
a recusa das organizações burocráticas (autonomização, o que beneficia a passagem
para as lutas autônomas) e apontar para o processo revolucionário e o objetivo final, a
autogestão social. Obviamente que isso não deve ser feito sob a forma simplista, pois é
preciso colocar no contexto da luta e sob forma compreensível, a partir de uma
estratégia revolucionária15 que una reivindicações imediatas com questões mais
profundas e o objetivo final ao lado de questões específicas com a questão global, bem
como a unidade entre meios e fins, o que pressupõe compreender a necessidade de
articulação entre o proletariado e outras classes desprivilegiadas, indivíduos, grupos
revolucionários, etc.
Claro que aqueles que apelam para Marx e o culto da prática e do proletariado
podem, através de uma má interpretação, fazer apelo ao discurso da autoridade para
sustentar sua posição reboquista. No entanto, se Marx considerava que a revolução
proletária era produto da luta proletária – e não custa recordar que “luta” é mais amplo
que “prática” – que tendia para a constituição da associação operária, ele também
reconhecia que existem as contratendências. Marx considerava que o proletariado em
sua luta avança, mas que esse avanço era beneficiado com as crises, a burguesia lhe
jogando na luta política contra a nobreza ou outras frações internas, indivíduos de outras
classes que se aliam ao proletariado, etc.
Ao mesmo tempo, percebia que havia uma luta de classes, que a burguesia
tentava frear qualquer desenvolvimento revolucionário do proletariado, que realizava
um processo de repressão e divisão da classe operária. Por isso, os comunistas, tal como
colocamos no primeiro capítulo, fazem parte dessa luta e entre as diversas tendências e
possibilidades históricas apoiam o proletariado na luta pela sua passagem para classe
autodeterminada (“organizada como classe”), defendendo os interesses gerais e objetivo
final (o comunismo).

radicalmente diferente. A tendência histórica e evolutiva é a sequencia de lutas espontâneas, autônomas


e autogeridas, enquanto que isso nem sempre ocorre, pois muitas vezes o processo morre nas lutas
espontâneas ou nas lutas autônomas, ou as lutas autogeridas são derrotadas. Também ocorrem distintos
processos em regiões e setores da população, nos quais uns estão realizando lutas espontâneas, mas
outros podem estar desenvolvendo lutas autônomas e, outros, lutas autogeridas. Também é possível a
passagem de lutas espontâneas para lutas autogeridas de imediato, mas depende de um conjunto de
determinações e de cada caso concreto.
15
A questão da estratégia revolucionária não poderá ser desenvolvida aqui, mas pode ser analisada em
outra obra (VIANA, 2008b).
55
Da mesma forma, ele percebia outra ameaça contrarrevolucionária, que era a
inércia social, ou seja, a tendência de reprodução das relações de produção e do
conjunto das relações sociais burguesas. Isso é perceptível nos últimos escritos de Marx,
quando ele analisa o desenvolvimento capitalista e a necessidade da superação do
capital e do dinheiro no comunismo. Em Crítica ao Programa de Gotha, ele propõe o
“sistema de bônus” justamente para substituir o dinheiro e abolir a possibilidade de
reprodução das relações de produção capitalistas16.
A época de Marx, no entanto, era outra e somente os dogmáticos leem seus
textos como escritos sagrados, fora da época e do contexto17. A ameaça
contrarrevolucionária, no período em que Marx escreveu o Manifesto Comunista, era a
das classes pré-capitalistas em certos países e a burguesia nos países capitalistas. A
contrarrevolução assumiu outras formas depois disso e era difícil sua previsão na época
de Marx. A classe burocrática iria se desenvolver e consolidar assumindo um grande
peso nas lutas sociais, especialmente a burocracia estatal, sua tendência mais moderada
e próxima da burguesia, e a burocracia da sociedade civil, em formação quando Marx
era vivo, principalmente a partidária e sindical. Nesse sentido, as mudanças históricas
após a época de Marx devem servir de alerta para necessidade de não tomar suas
afirmações fora do contexto histórico e confundir suas concepções com as da burocracia
partidária e nem tomá-las dogmaticamente. Até mesmo ele, se tivesse vivido mais
tempo, reformularia e aprofundaria várias ideias e suas posições ficariam mais claras.
Porém, outros marxistas viveram e teve a oportunidade de observar novas
tentativas de revoluções proletárias, além da Comuna de Paris, tal como aqueles que
ficaram conhecidos como “comunistas de conselhos”. Curiosamente, eles também são
interpretados da mesma forma problemática que Marx, inclusive por alguns que querem
ser “herdeiros” de sua tradição. Estes supostos herdeiros, além de interpretação

16
Essa posição de Marx mostra um antagonismo com Lênin, que defendia que no “processo de
transição”, no “socialismo”, o dinheiro seria ainda mais importante (1979), o que mostra os vínculos do
leninismo e do capitalismo de Estado. A preocupação fundamental de Marx era a emancipação humana
via revolução proletária e por isso a análise dos perigos da contrarrevolução, enquanto que Lênin se
preocupava em tomar o poder estatal burguês ao invés de constituir uma nova sociedade. A sua invenção
de um “período de transição”, o “socialismo”, palavra e ideia nunca vista em Marx (e que passou a ser
atribuída a ele, numa das maiores mentiras históricas reproduzidas como uma quase-verdade) expressa
sua concepção burocrática e contrarrevolucionária.
17
Marx e Engels perceberam, inclusive, a mudança na posição da burguesia, que de classe revolucionária
que jogava o proletariado na luta se torna cada vez mais defensiva e temerosa em relação à possibilidade
de autonomização da classe operária e por isso deixou de assumir o papel ofensivo e incentivador de
revoluções políticas. O caso da Rússia e outros lugares comprovam isso.
56
equivocada, caem, muitas vezes, num forte dogmatismo, tornando os escritos
conselhistas em “verdades reveladas”, descontextualizando, não percebendo as
mudanças históricas e sociais, bem como realizando o culto dos escritos sagrados. No
fundo, realizam o mesmo que o pseudomarxismo fez com Marx. A verdadeira herança
intelectual e política de Marx e dos comunistas conselhistas é a mentalidade
revolucionária, que não se prende a dogmas, culto da autoridade, reificação de ideias e
desconsideração da totalidade e da historicidade.
Aqueles que justificam o reboquismo apelando para Pannekoek demonstram
desconhecer o seu pensamento e realizam uma interpretação deformada do mesmo18. A
ideia de que o proletariado se autoliberta está tanto em Marx quanto em Pannekoek.
Este último, como teórico dos conselhos operários, vai desenvolver um conjunto de
análises a respeito da luta de classes e da ação revolucionária do proletariado, mas
nunca cai num evolucionismo e posturas praticistas e reboquistas. A própria ideia de
conselhos operários é um princípio organizacional e não um dogma (PANNEKOEK,
2012), pois eles podem assumir formas diferentes em contextos diferentes, podem se
corromper, etc. Pannekoek sempre ressaltou a importância da organização e da
consciência. Segundo ele,

A Revolução operária não será o efeito de uma força física brutal,


será sim uma vitória do espírito. Será certamente obra do poder resultante da
massa dos operários, mas este poder será, sobretudo, espiritual. Os
trabalhadores não ganharão por possuírem sólidos punhos – os punhos são
facilmente dirigidos, por vezes voltados contra os seus possuidores por
espíritos astuciosos; também não ganharão por serem a maioria – as maiorias
ignorantes e desorganizadas foram regularmente mantidas em sujeição e na
impotência por minorias organizadas e instruídas. A maioria só vencerá se
forças, morais e intelectuais, poderosas lhe permitirem ultrapassar e dominar
os seus senhores. Ao longo da história, as revoluções não foram avante
porque novas forças espirituais se levantaram nas massas. Contudo as
revoluções são períodos construtivos de evolução da humanidade. E mais
ainda que todas as que se desenrolaram no passado, a revolução que fará dos

18
Em um debate pela internet, um militante, supostamente “conselhista” e apelando para Pannekoek,
buscava dizer que a prática era o fundamental e para isso utilizava a discussão em Lênin Filósofo, livro
do astrônomo holandês, em sua crítica ao leninismo, para “fundamentar” sua posição totalmente oposta
ao do autor citado. A partir de uma interpretação sui generis sobre relação entre “matéria” e
“consciência”, descontextualizado a discussão, atribuía a Pannekoek um culto do proletariado de caráter
místico, algo totalmente sem sentido. Aqui se une falta de leitura e atribuição de significado para formar
uma péssima interpretação. Sem dúvida, ao invés de analisar os escritos de Pannekoek sobre essa
questão específica da luta proletária, pega um texto que discute a ideologia leninista (que, obviamente,
tem elementos relacionados), descontextualizando-o para, no fundo, justificar sua própria concepção.
Seria o mesmo que ler a parte em que critico o vanguardismo e “esquecer” a parte que critico o
reboquismo e usar meu texto para a defesa da mesma posição praticista e reboquista, pois deixou
inúmeros escritos e afirmações de Pannekoek para justificar sua interpretação deformadora.
57
trabalhadores os senhores do mundo exigirá as mais levadas qualidades
morais e intelectuais (PANNEKOEK, 2007, p. 86-87).

Desta forma, a discussão a respeito do reboquismo acaba promovendo uma


discussão a respeito do praticismo e das ilusões de indivíduos revolucionários, bem
intencionados na maioria dos casos. A discussão de Marx e Pannekoek sobre a luta é
referente ao proletariado, é a classe em sua luta que desenvolvimento suas formas de
auto-organização e autoformação. Isso é bem diferente das concepções praticistas, que
julgam que um indivíduo é revolucionário por realizar alguma prática (segundo os
leninistas é a prática partidária ou de ação sobre os trabalhadores), independentemente
da reflexão, do contexto, etc. A prática de um operário, devido seu modo de vida,
interesses, contraposição à classe capitalista, é uma constante luta, enquanto que o
indivíduo revolucionário, quando pertencente a outras classes, especialmente às que são
privilegiadas (burguesia, burocracia, intelectualidade) luta por outros motivos, sendo
uma opção, o que não ocorre no caso dos proletários. Além disso, o fato de estar em
manifestações, ações proletárias, greves, não faz de ninguém um revolucionário ou mais
revolucionário que outros. Estar do lado dos proletários e outras classes desprivilegiadas
não torna ninguém revolucionário, mesmo porque, na sua vida cotidiana, essas classes
lutam e podem ser tornar revolucionárias, mas ainda não são.
O proletariado, como classe, precisa lutar cotidianamente e a constituição da
autogestão social é sua libertação e emancipação humana em geral, logo, é seu interesse
de classe. Os indivíduos revolucionários, na maioria dos casos, fazem uma luta
cotidiana e permanente apenas quando cai no ativismo ou se torna “revolucionário
profissional”, algo distante do verdadeiro sentido da palavra. O pior é que ele tem
interesses imediatos, distinto dos interesses do proletariado. Este só tem “os seus
grilhões a perder”19, mas o revolucionário oriundo das classes privilegiadas tem muito
mais a perder20, um conjunto de pequenos interesses que nem todos superam apesar de
profissão de fé revolucionária.
Aliás, o praticismo de determinados revolucionários parece um exercício de
autoconvencimento de seu compromisso com a revolução, pois seria ela que garantiria e

19
Sem dúvida, há o fantasma do desemprego, sendo este o grande interesse imediato que dificulta as lutas
operárias, mas existem algumas outras com menos força de pressão.
20
Além dos riscos, da possibilidade do desemprego se for trabalhador, da necessidade de formação e
especialização, dos valores e vínculos familiares e sociais, da competição social, etc., há o conflito
interno, psíquico, entre prioridades e, em alguns casos, até medo da revolução e suas consequências
pessoais e familiares.
58
provaria tal compromisso. Através da prática ele provaria ser revolucionário e esse
critério aboliria suas origens sociais, seus interesses, suas prioridades, seus valores, seu
passado, sua dedicação, seu tempo de militância (biográfico e de ação efetiva em
relação à sua vida cotidiana). Assim, um militante que vai numa manifestação por mês
talvez se julgue mais revolucionário do que outro que vai uma vez por semestre (ou não
vai), mas que desenvolve atividades que podem chegar até diversas horas diárias
durante vários anos, só que em outro tipo de atividade.
Nesse sentido, ao contrário do que coloca o anti-intelectualismo, os militantes
revolucionários devem se dedicar ao estudo e pesquisa, muito mais do que os
proletários, embora esses também ganhem com o processo de autoformação no sentido
mais teórico. O praticismo dos indivíduos revolucionários impede uma análise mais
ampla da realidade, do próprio envolvimento nas lutas de classes, da reflexão sobre seus
valores, representações, dos problemas de suas ideias (dogmatismo, por exemplo) e
práticas (reboquismo)21. Além disso, quer queiram ou não, estão interferindo nas lutas
proletárias e sociais em geral e por isso devem fazê-lo conscientemente, para não
exercer uma ação trágica, contrária aos fins que se propõe22.
O que não deixa de ser curioso é que o resultado prático do vanguardismo e do
reboquismo seja o mesmo: manter o proletariado como classe determinada pelo
capital. Ambos, um combatendo sua espontaneidade e o outro reproduzindo ela sem
avançar um milímetro, acabam reforçando sua situação de classe determinada, que não
ultrapassa o nível das reivindicações cotidianas e reformas sociais. A diferença é que no
caso do vanguardismo, ideologia da burocracia, se busca combater a espontaneidade

21
Sem dúvida, esse praticismo pode estar inspirado por ideologias supostamente revolucionárias, além de
deformar concepções revolucionárias. Esse é o caso da ideologia estruturalista, tal como se vê na obra
de João Bernardo, que desconsidera a “ideologia” e os indivíduos: “A ideologia é expressão da prática,
não é causadora da prática. Ao abordar a esfera da ideologia depois do sistema de causalidade deixo
claro na própria forma de exposição que da ideologia não resulta qualquer ação de retorno sobre as
instituições” (BERNARDO, 1991, p. 39).
22
Não há nada mais revelador do que a análise das experiências históricas do proletariado revolucionário.
Afinal, através de lutas heroicas ele institui a Comuna de Paris, a Revolução Russa, A Revolução
Alemã, A Revolução Polonesa, para citar apenas quatro de dezenas de experiências. O proletariado
executou lutas espontâneas, muitas chegando a lutas autônomas e até autogeridas, mas o seu movimento
foi derrotado. Se sua ascensão revolucionária fosse um evolucionismo mecânico e rumo ao comunismo,
seria difícil explicar algumas das suas derrotas: por qual motivo deixou os bolcheviques realizar a
contrarrevolução? A socialdemocracia alemã? E muitos outros casos poderiam ser citados. Obviamente
que diversas determinações atuaram nessas derrotas, mas uma delas, sem dúvida, é a questão da
necessidade de articulação entre auto-organização e autoformação, o que remete ao problema, também,
da ação dos coletivos revolucionários, no sentido de combater a burocracia, o capital, o Estado,
contribuir com o avanço mais rápido e homogêneo do proletariado, etc.
59
para dirigir o proletariado, e, no caso do reboquismo, se busca manter a espontaneidade
e deixa caminho aberto para os vanguardistas, governos e outros usurparem seu
movimento. O vanguardismo é contrarrevolucionário e o reboquismo é não-
revolucionário. O segundo é um mal menor, mas que é um obstáculo e problema para o
proletariado, sendo que no bojo da luta de classes, acaba beneficiando a burguesia ou a
burocracia.
Assim, é fundamental que a organização revolucionária faça reflexão sobre
suas ações e entenda a necessidade de superar o vanguardismo e o reboquismo. Mas se a
organização revolucionária não é vanguardista nem reboquista, então o que é? A
organização revolucionária recusa e combate o vanguardismo, pois seu objetivo não é
tomar o poder estatal, os aparatos burocráticos, ganhar eleições, fazer do proletariado
apoio para suas próprias ambições e interesses, ou seja, não tem a pretensão dirigista,
burocrática. Os seus objetivos são outros: é a autoemancipação proletária (o que
pressupõe auto-organização e autoformação) através da revolução proletária e
instauração da autogestão social. Logo, em seus objetivos não há luta pelo poder e sim
contra o poder, não busca conquistá-lo, mas destruí-lo. A sua forma de agir é diferente,
portanto, não é vanguardista, como colocaremos adiante.
No entanto, o objetivo das organizações revolucionárias é discursivamente o
mesmo de certas tendências reboquistas, que fazem um discurso revolucionário, mas na
prática não ultrapassam o reformismo e as reivindicações imediatas, no máximo
chegam a uma crítica do burocratismo, o que é interessante. Contudo, ficam no nível da
classe determinada e caem no utopismo, pensando que a “prática pela prática” ou a “luta
pela luta” levaria a uma nova sociedade, esquecendo-se ou desconsiderando a força das
ideias no processo histórico e que a prática pode se alterar drasticamente se não tiver um
rumo, um objetivo final. O objetivo final é jogado para as calendas gregas nas
concepções reboquistas. Por isso suas semelhanças com o reformismo.
Uma organização revolucionária não apenas coloca o objetivo da autogestão
social, mas luta por ele e articula as reivindicações e reformas com ele, bem como não
fica perdido em lutas isoladas, busca articulá-las para lhe dar mais eficácia e ampliar a
possibilidade de se tornar revolucionária. O objetivo final é o telos da organização
revolucionário e não a “prática” em si mesma e isso o diferencia dos objetivos dos
reboquistas, presos no castelo imanente do praticismo. E esse praticismo é muitas vezes

60
acompanhado, assim como no discurso socialdemocrata, pelo “realismo politico”, e pela
ânsia doentia de estar junto com os trabalhadores, explorados e oprimidos, mesmo sem
colaborar em nada para que supere essa situação, apenas ajudam a melhorá-la e,
portanto, suportá-la com mais paciência.
Essa diferença de objetivos em relação ao vanguardismo e ao reboquismo gera,
por sua vez, diferenças na forma de agir. As ações de uma organização revolucionária
deve ser no sentido de tornar o proletariado uma classe autodeterminada, o que
pressupõe apoiar suas lutas espontâneas, mas buscando fazê-las avançar no sentido de
se tornarem lutas autônomas e, posteriormente23, autogeridas. A forma de agir, portanto,
não se fundamenta no controle, na manipulação, na busca de cargos e formação de
lideranças e sim na luta ao lado dos trabalhadores e outros setores, sem disfarçar suas
concepções, apontando imediatamente para autogestão social como seu objetivo, para a
necessidade de auto-organização e autoformação, bem como para a crítica do
capitalismo em geral e da burocracia. Portanto, um dos diferenciais em relação ao
vanguardismo (e ao reboquismo) é a crítica revolucionária, uma das formas de sua luta
cultural.
A luta cultural, nesse caso, é algo estratégico, pois não só colabora, como parte
da luta de classes, com a autoformação (e, em seus efeitos, como a auto-organização),
como também com a recusa da burocracia e defesa da autogestão, gerando, portanto,
tanto ferramentas intelectuais para o proletariado efetivar sua luta contra o capital e a
burocracia, como também informações e elementos para sua prática de luta. A luta
cultural também produz a crítica das ideologias, do reformismo, do reboquismo, e ainda
aponta para uma estratégia revolucionária e maior consciência dos obstáculos, da
contrarrevolução.
Sem dúvida, a luta cultural é luta política, prática. No fundo, é práxis
revolucionária, mas que não se constitui enquanto elemento de busca de direções e
cargos, nem em estar necessariamente participando como “liderança informal” nos
movimentos sociais e lutas sociais. A ação nos movimentos sociais, movimento
operário, lutas de classes em geral, é de luta cultural e prática de apoio, contribuição, no
sentido da auto-organização e autoformação.

23
Não se trata de um etapismo, pois em determinadas situações históricas específicas, as lutas
espontâneas podem passar a ser diretamente autogeridas.
61
Nesse sentido, é uma ação que difere tanto da vanguardista quanto da
reboquista e se coloca no plano revolucionário, expressando politica e teoricamente o
proletariado como classe autodeterminada, o que significa que nada impede a
organização revolucionária de criticar ações pontuais, indivíduos e grupos que são
obstáculos para o desenvolvimento do processo revolucionário. Isso significa,
obviamente, que a proximidade é maior com os setores mais avançados do proletariado,
cujo desenvolvimento não é homogêneo em todos os países, regiões, categorias
profissionais, etc., e luta para que os demais setores avancem e contribuam numa luta
mais eficaz e homogênea.
Nesse sentido, a organização revolucionária não deve se omitir e deixar de
fazer propostas revolucionárias, de ação e luta, pois ela faz parte da luta de classes e luta
de um determinado lado e com determinado objetivo. O que ela não faz é querer
substituir o proletariado, pois é este que deve realizar o processo revolucionário, mas o
ajuda, pressiona, critica, sugere, apresenta propostas, entre outras formas de ação, para
que ele efetive concretamente isso.
Para conseguir fazer isso e não cair no vanguardismo e no reboquismo ou,
ainda, no reformismo e conservadorismo, a organização revolucionária deve refletir
sobre si mesma, o que foi feito de forma muito limitada até hoje, como apontamos no
capítulo sobre organização e teoria. Portanto, é fundamental aprofundar essa questão da
relação da organização revolucionária e proletariado, por um lado, e as relações
internas, por outro. Esses serão os objetivos dos próximos capítulos.

62
ORGANIZAÇÃO INTERNA, DECISÃO COLETIVA E AUTODISCIPLINA

A questão do agrupamento dos indivíduos revolucionários remete ao problema


da organização interna. Como os indivíduos revolucionários associados se organizam?
Quais são os processos de formação, adesão, relação nos processos de atividade e ação,
etc. São questões complexas e que merecem reflexão, pois sempre há o perigo da
burocratização e desvio do objetivo final que é a autogestão social e a reflexão e ações
voltadas para obstaculizar esse processo se tornam importantes.
A formação de uma organização revolucionária é produto da livre decisão de
alguns indivíduos que resolvem agir coletivamente ao invés de individualmente no
sentido de fortalecer a tendência revolucionária e a autogestão social (embora alguns
coletivos não surjam exatamente com este objetivo claramente definido ou até seguindo
as tendências burocráticas, mas podem romper coletivamente e se tornar uma
organização revolucionária ao invés de burocrática, mesmo que com rachas e
ambiguidades). Uma vez formada a organização revolucionária, outros indivíduos
podem querer aderir a ela e toda organização, inclusive para conseguir realizar seus
objetivos e atividades cotidianas de forma mais adequada e contribuir mais efetivamente
com a luta do proletariado, necessita conseguir mais militantes, embora este não seja,
como nas organizações burocráticas, a questão prioritária. O crescimento organizacional
não pode ser prioridade em uma organização revolucionária, pois se o for, já significa
um abandono da tendência revolucionária, no sentido de que a quantidade passa a ser o
elemento fundamental e o risco de burocratização e perda do caráter revolucionário se
torna algo bastante próximo.
O problema da adesão é um problema do indivíduo aderente e da organização
que a aceita. Por parte do indivíduo que realiza a adesão 1, isto é realizado a partir de

1
Adesão significa unir-se a uma iniciativa, tornar-se ligado, intimamente relacionado. Isto é o contrário
do que faz as organizações burocráticas, que não buscam adesão, mas fazem recrutamento. Esta palavra,
aliás, de origem militar, como muitas outras presentes no bolchevismo, significa arrebanhar, aliciar (ou,
63
suas afinidades e concordâncias com as teses e objetivos do grupo. Esta adesão pode ser
espontânea ou incentivada. A espontânea é aquela na qual o aderente, por tomar
conhecimento da organização, se aproxima e manifesta o seu interesse em participar da
mesma. A adesão espontânea é iniciativa do aderente. A incentivada é aquela na qual a
organização incentiva através de convite ou conversas, pois, obviamente, quanto mais
aderentes tiver, mas poderá contribuir com as lutas sociais, desde que isso não se torne
um objetivo em si mesmo.
Por outro lado, para a organização revolucionária, é necessário pensar o
processo de adesão, ou seja, quais os requisitos que são solicitados de um indivíduo que
manifesta interesse ou vontade de aderir ou daqueles que são incentivados a isso. As
organizações burocráticas podem construir critérios rígidos ou algumas aceitar qualquer
pessoa sem nenhum critério (tal como um partido socialdemocrata, no qual basta ir à
sede do partido e preencher a ficha de filiação). No caso de uma organização
revolucionária, é preciso que se coloquem claramente os objetivos e outras informações
sobre a mesma para que o aderente saiba de elementos básicos para poder tomar sua
decisão. Além disso, é preciso deixar claro os princípios fundamentais da organização e
que haja concordância com eles, o que pode ser sintetizado em um manifesto.
É preciso tomar certos cuidados, pois determinados indivíduos podem ser
problemáticos para a organização, além da possibilidade, em determinados contextos
históricos, de infiltração de agentes do aparato repressivo do estado2. Entre os
indivíduos problemáticos existem aqueles que buscam aderir ao movimento
revolucionário por revolta pessoal contra a sociedade existente por não ter conseguido
realizar os objetivos que ela coloca (ascensão social, poder, riqueza, consumo, etc.),
pois aí a pessoa tem fortes traços de mentalidade burguesa e sua motivação fundamental
é o ódio, possuindo tendência destrutiva ao invés de construtiva (o objetivo de uma

em sentido mais estrito, arrolar para serviço militar), já revela o burocratismo: é a organização
burocrática que recruta (“arrebanha”) o indivíduo. No caso da adesão, a iniciativa é do indivíduo, ou
seja, ele toma tal decisão. Obviamente que uma organização revolucionária não precisa esperar que os
indivíduos se apresentem apenas espontaneamente, pois também pode e deve buscar a adesão. A grande
questão é que isso é feito de forma livre, sem pressão, sem subterfúgios, buscando deixar o possível
aderente o mais bem informado possível dos objetivos, história, teorias, da organização e colocando os
aspectos fundamentais necessários para ser aceito (tal como concordar com um documento escrito, um
manifesto, por exemplo) e sem ser a prioridade da organização.
2
Claro que isso nada tem a ver com a paranoia de alguns grupos ou indivíduos que criam um verdadeiro
sistema de desconfiança mesmo em períodos de democracia burguesa, com alguns chegando mesmo a
nunca revelar o nome, usando sempre pseudônimos, e algumas organizações serem clandestinas ou
semiclandestinas.
64
organização revolucionária é ajudar na constituição da autogestão social e o processo de
destruição do capital, Estado, etc., é apenas um meio, mas nesse caso, a situação é
invertida, a destruição é o objetivo). Esses indivíduos devido ao seu ódio arraigado,
derivado de seu processo histórico de vida que gerou tal sentimento vinculado a valores
e concepções, são problemáticos por seu caráter destrutivo, seu comportamento muitas
vezes agressivo, e, ainda, devido aos traços de mentalidade burguesa, sua maior
possibilidade de se corromper. Isto é próximo ao que Erich Fromm definiu como
“caráter rebelde” em comparação com o “caráter revolucionário”:

“Defino o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra


a autoridade por não ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a
autoridade devido ao seu ressentimento e, em consequência, constituir-se na
autoridade, em substituição à derrubada. Muito frequentemente, no momento
mesmo em que atinge tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que
combatia tão acerbamente, antes” (FROMM, 1986, p. 116).

Embora as análises de Fromm sobre caráter rebelde e revolucionário sejam um


tanto quanto abstratas, é possível pensar no caso do rebelde exista essa tendência
dominante, mas é preciso entender também que o dito ressentimento contra a autoridade
pode provocar algo diferente, dependendo de outros elementos não abordados por
Fromm (classe ou origem de classe, valores, etc.) e, sendo assim, é possível que o
rebelde se torne um revolucionário, que é uma outra possibilidade. Outro tipo
problemático é a pessoa de mentalidade autoritária. Fromm também contribui com esta
discussão ao pensar o que denomina “caráter autoritário”:

“... a estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo


sendo de força e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às
autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos que estão
submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter autoritário sente-se mais forte
quando pode submeter-se a uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e
até certo ponto apoiada na realidade) exagerada, deificada, e quando ao
mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe estão sujeitos à
autoridade” (FROMM, 1986, p. 116).

Obviamente que Fromm, novamente, é um tanto quanto abstrato, mas fornece


elementos para se pensar a mentalidade autoritária e o quanto seria problemático este
tipo de indivíduo aderir a uma organização revolucionária. Porém, é preciso também
perceber que os seres humanos não são estáticos e nem incorrigíveis, sendo que uma
pessoa de mentalidade autoritária pode se autocontrolar e evitar que isto se torne uma
impossibilidade de ação revolucionária, o que é extremamente difícil e, certamente, para

65
tal indivíduo, doloroso. De qualquer forma, dificilmente pessoas de mentalidade
autoritária busca aderir a organizações revolucionárias, pois as contradições são fortes e
os interesses antagônicos.
A relação cotidiana na organização revolucionária é outra questão que merece
reflexão. Esta relação ocorre a partir das atividades executadas, da relação pessoal
instituída entre os integrantes, das questões relativas à tomada de decisões, etc. O
elemento fundamental neste contexto é o processo decisório, ou seja, como as decisões
são tomadas. O critério fundamental para a decisão numa organização revolucionária é a
da decisão coletiva. Ou seja, não devem existir pessoas que decidem sem a consulta
coletiva3, não existe aparato dirigente, burocrático, em organizações revolucionárias.
As formas pelas quais as decisões são tomadas devem priorizar o coletivo e
isto pode ocorrer via várias formas, tal como reuniões, encontros e assembleias, via
meios de comunicação, internet e seus mecanismos disponíveis, etc. Claro está que as
decisões devem ser tomadas coletivamente. No entanto, isto pode provocar problemas e
encontrar obstáculos. Por exemplo, em um coletivo de dez pessoas, apenas três
aparecem em reunião para se tomar determinadas decisões, é preciso saber como
proceder. Isto pode ser discutido e refletido coletivamente e se pode, por exemplo,
chegar à conclusão que é necessário um quórum para a reunião poder ter caráter
deliberativo ou que é legítimo os presentes decidirem devido ao fato dos demais estarem
ausentes e, portanto, se omitiram em decidir. Esta reflexão sobre o processo de decisão
coletiva pode ser um consenso informal ou pode ser formalizado em um estatuto.
Também existem casos em que certas decisões precisam ser tomadas
imediatamente e não haver condições para reunião ou consulta coletiva. Assim, alguns
podem decidir e desde que seja a partir de um compromisso com o coletivo, ou seja,
desde que as decisões tomadas não sejam pontos de discórdia ou que aqueles que as
tomam reflitam sobre se é uma posição aceitável pelo coletivo. As comissões de
3
Obviamente que certas questões, se há confiança e o indivíduo sabe que está de acordo com a posição
do coletivo, algumas iniciativas individuais são possíveis independente de decisão coletiva e depois
pode ser avaliada, se foi feita em nome do coletivo. Se determinada ação não foi feita em atividade ou
em nome do coletivo, então isso não é problema do coletivo. Da mesma forma, determinadas atividades
do coletivo precisam de algumas decisões urgentes que aqueles que estão envolvidos nelas devem tomar
e isso é um caso específico e diferente. Sem dúvida, também não se deve cair no fetichismo da decisão
coletiva, pois o coletivo pode errar e por isso toda decisão coletiva pode ser revista (e, no caso de
corrupção do coletivo, cabe ao(s) indivíduo(s) que continuam revolucionários não aceitar a decisão
coletiva e ou tentar reverter o processo ou abandonar a organização). Outro aspecto é que se a decisão
tomada num momento e no processo de execução já não é mais consenso ou posição da maioria, então é
possível não executá-la e rediscuti-la, superando-a.
66
atividades, por sua vez, possuem maior autonomia para executar aquilo que se
comprometeram a fazer. Claro está que tal autonomia é conferida pelo coletivo ao
instituir a comissão e pode ser mais ou menos ampla dependendo da decisão coletiva no
momento de sua instituição ou da prática consensual do coletivo.
Numa organização revolucionária a confiança entre seus integrantes é algo
comum e por isso as comissões possuem uma autonomia elevada para executar as
atividades que são assumidas por elas. O processo de confiança instaurado se deve ao
fato de que o objetivo da organização é contribuição para a revolução autogestionária
visando instaurar a autogestão social e por isso não existem interesses pessoais ou
quaisquer outros interesses menores que possam criar fortes conflitos. Claro que a
divergência de opinião sobre questões específicas pode existir e geralmente existem,
mas sua gravidade é pequena e não gera, necessariamente, um processo de competição e
desconfiança. Cabe ao coletivo evitar que alguns militantes façam constantemente
práticas equivocadas através de vários mecanismos, desde os pessoais e informais, até
as discussões coletivas.
Para se organizar, o coletivo necessita de uma coordenação que, tal como as
comissões de atividades, tem relativa autonomia e não tem poder de decisão, mas
somente de execução. Este procedimento impede a burocratização e a sua transformação
em grupo de dirigentes (burocratas), a não ser que o faça sem reação do restante do
coletivo. Caso tente deixar de ser comissão executiva e queira se tornar dirigente, então
pode haver um processo de discussão no sentido de retomar o caráter original, ou ser
revogada a qualquer momento desde que o coletivo o queira.
Assim, a organização interna é realizada de forma não burocrática e pode
assumir várias formas. No caso aqui colocado, a forma – que é uma das várias formas
possíveis – é a seguinte: a instância maior são as reuniões, encontros, assembleias, do
coletivo, que é a instância decisória, a que supera qualquer outra decisão seja anterior ou
de comissões ou coordenação. Em casos de grupos pequenos e localizados em apenas
uma cidade, basta a reunião. Já no caso de grupos maiores e distribuídos em várias
cidades e localidades, a realização de reuniões locais não é suficiente e por isso os
encontros e assembleias se tornam necessários.
Além da instância decisória que são as reuniões, encontros, etc., existem as
comissões de atividades que realizam ações específicas, tal como publicações,

67
panfletagens, cursos, grupos de estudos, etc. As comissões recebem certa delegação
para executar alguma atividade e possui autonomia relativa para fazer da forma mais
adequada sem ter que consultar o coletivo ou coordenação para decidir todos os
detalhes. Caso queira colaboração ou consultar espontaneamente e isto seja possível,
também é algo benéfico para o andamento e comunicação do que vem sendo realizado.
Isto depende da deliberação coletiva, que pode formar, por exemplo, uma comissão para
redigir um panfleto e solicitar que o mesmo seja discutido antes de ser reproduzido ou
pode dar autonomia total em sua elaboração e reprodução.
Sobre o número de pessoas para dar validade ao processo decisório, isto
depende do número de integrantes do coletivo, de integrantes ativos e diversos outros
aspectos que na realidade concreta se coloca para cada coletivo. Claro que as
organizações que possuem em seu interior um grande número de militantes oriundos de
organizações burocráticas ou então que surgiu como dissidência de uma organização
deste tipo, então algumas dificuldades aparecerão como herança das práticas e
concepções anteriores. A confiança mútua será menor, a valoração das decisões e
detalhes será maior, a ideia da importância do crescimento grupal será forte, o controle
das ações pode ser solicitado, etc. Isto pode ser minimizado a partir de estudos e leituras
de pensadores libertários, de discussão coletiva e do esboço de novas práticas na
realidade concreta. Caso isso não ocorra, então o risco de se tornar uma organização
burocrática (com ou sem discurso marxista, conselhista ou autogestionário) é
plenamente possível, bem como rachas e afastamentos, o que é bem comum nas
organizações burocráticas. Em síntese, o número pode ser definido por decisão coletiva,
sob a forma escrita de um estatuto ou sob a forma consensual informal.
Além da instância decisória, coordenação e comissões, pode haver outros
processos e encaminhamentos que a necessidade concreta pode produzir e cabe, neste
caso, aos coletivos resolverem isto na prática cotidiana, sempre através da decisão
coletiva.
Antes de encerrar esta discussão, é preciso discutir uma questão bastante
colocada pelas organizações burocráticas em contraposição às organizações
revolucionárias. De acordo com a mentalidade burocrática e dominante, os indivíduos
das organizações burocráticas dizem que as organizações revolucionárias são partidos
tal como elas e possuem líderes da mesma forma. Seguindo esta mentalidade, é

68
impossível pensar uma organização sem líderes, o que revela os “limites intransponíveis
da consciência burocrática”, para parafrasear Marx.
Em primeiro lugar, é necessário refutar a ideia de que as organizações
revolucionárias possam ser consideradas partidos políticos. Mas para que isso seja
entendido é necessário colocar o que é um partido político. Em outro local apresentamos
a definição de partido político:

Os partidos políticos são organizações burocráticas que visam à


conquista do Estado e buscam legitimar esta luta pelo poder através da
ideologia da representação e expressam os interesses de uma ou outra classe
ou fração de classes existentes. Assim, os quatro elementos principais que
caracterizam os partidos políticos são: a) organização burocrática; b) objetivo
de conquistar o poder do Estado; c) ideologia da representação como base de
sua busca de legitimação; e d) expressão dos interesses de classe ou fração de
classe. Uma organização burocrática se caracteriza por funcionar através da
relação dirigentes-dirigidos. Aqueles que dirigem, os burocratas, tomam as
decisões e controlam os dirigidos. Na sociedade contemporânea, existem
diversas organizações burocráticas além dos partidos políticos, tais como: os
sindicatos, as igrejas, as escolas, o próprio Estado, etc. Por que os partidos
políticos são organizações burocráticas? Eles são organizações burocráticas
devido seu objetivo de conquistar o poder político, pois para realizá-lo é
necessário ter eficácia, o que pressupõe recursos humanos e financeiros,
disciplina, unidade, etc. Os partidos políticos que buscam conquistar o poder
através da democracia representativa (processo eleitoral) precisam
movimentar enormes quantias de dinheiro para financiar a campanha
eleitoral, precisam de um quadro de funcionários eficientes e disciplinados,
precisam de uma unidade de ação, sem os quais uma vitória seria quase
impossível (VIANA, 2003, p. 12-13).

Aqui temos a diferença básica entre organização burocrática e revolucionária.


A primeira estabelece relação entre dirigentes e dirigidos, a segunda não. A primeira
possui o objetivo de conquistar o poder estatal, a segunda não. A primeira usa a
ideologia da representação, a segunda não. A primeira é expressão de determinadas
classes e frações de classes (burguesia, pequena-burguesia, burocracia, etc.) e a segunda
é expressão do proletariado. Não há dúvida que as organizações revolucionárias não
visam conquistar o poder estatal e sim contribuir com sua destruição por parte do
proletariado, bem como não pode haver discordância do fato de não ser ou buscar ser
vanguarda ou representação do proletariado e sim expressão, não visa substituir ou
dirigir a classe, mas estar na luta com ela.
Porém, os indivíduos oriundos das organizações burocráticas não conseguem
conceber uma organização sem líderes e por isso acusam as organizações
revolucionárias de possuir “líderes”. O líder é um “chefe”, ou seja, em linguagem
moderna, é um burocrata. Na sociedade moderna, não há situação na qual a investidura
69
do poder seja inata e por isso o burocrata é eleito. A burocracia partidária é escolhida
pela votação, tal como os representantes governamentais na democracia burguesa, e
possuem o papel de direção por um período de tempo determinado4. Assim, o dito
“partido revolucionário” reproduz os mesmos procedimentos da democracia burguesa
que combatem, pelo menos discursivamente5. Uma vez eleito, ele é um dirigente e ao
invés de estar submetido ao coletivo, o que ocorre é o contrário, o coletivo que se vê
submetido ao líder (ou melhor, líderes, a burocracia partidária formada por muitos
burocratas).
Na organização revolucionária também existe uma coordenação que tem um
determinado período de tempo de existência e esta é escolhida através da decisão
coletiva sob a forma consensual ou através do voto. Porém, a diferença reside em que
esta coordenação não tem poder de decisão e não dirige ninguém. A coordenação
apenas executa as ações que o coletivo decidiu, sendo mero órgão de execução e não de
decisão. Sem dúvida, no processo de decisão coletiva todos podem participar e alguns
dos indivíduos do coletivo participam mais do que outros, bem como alguns possuem
maior experiência ou saber teórico ou condições sociais mais propícias, e, devido a isso,
poderão inspirar ou contribuir6 mais do que outros indivíduos.

4
Na democracia burguesa, isso é realizado periodicamente, através do processo eleitoral que pode ser
quadrienal, bianual, etc. E os partidos supostamente de “esquerda”, tanto socialdemocratas quanto
bolchevistas, elegem suas direções em congressos periódicos, anuais, bianuais, etc. O problema não é o
congresso e sim a eleição de dirigentes, o que, na verdade, é um processo de escolha de burocratas.
5
Essa não é a única forma. Tal como nos regimes ditatoriais, nas quais não existe escolha dos burocratas,
é possível que, nas organizações burocráticas, a direção seja definida sob outras formas, inclusive
desconhecidas pelos militantes (tal como na época de regimes ditatoriais nas quais se formam
organizações clandestinas que recebem “ordens” vindas de não se sabe quem, sob o pretexto de
segurança e não repressão), ou quando o nível de burocratização é elevado e se torna um partido
ditatorial ou de regime ditatorial, que pode, de forma decorativa, utilizar algum tipo de eleição sem
concorrência real.
6
Colocamos inspirar pelo motivo de que inspiração é uma palavra mais adequada do que influência.
Influenciar é algo unilateral, ou seja: A influencia B. Embora isso possa ocorrer na sociedade moderna,
devido às relações sociais, as relações de poder e existência de pessoas com o que Erich Fromm
denominava “caráter receptivo”, o que ocorre geralmente, principalmente quando se trata de pensadores
produtivos e militantes revolucionários, é a inspiração, um processo no qual A é inspiração para B, mas
não de forma unilateral, ou seja, B se inspira em A (como se trata de ideias, então o mais adequado é
dizer que B se inspira nas ideias de A), e que, portanto, esta inspiração é um processo produtivo de B,
tanto quanto de A. No caso de A, é por ter produzido alguma ideia inspiradora e no caso de B por
compartilhar com A valores, sentimentos e concepções que torna possível a inspiração, ou seja, isso
torna possível aproveitar a ideia produzida por A, não sendo unilateral e sim bilateral, mesmo porque B
também pode inspirar A e, em um coletivo, seriam diversos indivíduos inspirando e sendo inspirados.
Quanto ao uso da expressão contribuir é a mesma coisa, mas considerando mais no sentido quantitativo.
Nesse sentido, contribuir mais quer dizer ter produzidos mais ideias inspiradoras.
70
Devido a este processo, muitos irão considerar que tais indivíduos são líderes,
o que é uma relação bem diferente. Os líderes são dirigentes e os indivíduos mais
inspiradores não são dirigentes, já que o que fazem é inspirar ideias e não comandar os
outros. Claro que é possível afirmar que quem inspira ideias indiretamente comanda. O
problema, no fundo, reside na corporificação da ideia em um indivíduo, embora não seja
possível uma separação, é preciso estar mais ligado à ideia do que ao indivíduo7.
No entanto, o que ocorre é também uma questão de não cair no purismo ou
numa concepção ingênua, pensando que esse processo de inspiração ou contribuição
possa ser prejudicial. Assim como a organização revolucionária é parte da luta de
classes e busca fortalecer adesão a determinadas ideias e práticas8, então não se pode
pedir aos indivíduos dentro de uma organização que não façam o mesmo, mesmo
porque, além de ser praticamente impossível, a não ser que o indivíduo seja indiferente
ou extremamente receptivo e omisso, todos tendem a acreditar que sua concepção é a
mais adequada. Aqui devemos então discutir dois outros elementos e diferenciar direção
de hegemonia e autoridade racional e autoridade irracional.
O processo de hegemonia não significa direção. A existência de direção
significa burocracia, onde alguns dirigem e outros são dirigidos, é uma relação social
estável e garantida e legitimada por documentos escritos, costumes, valores, ideologias.
A hegemonia é uma relação social provisória, que não se corporifica necessariamente
em indivíduos, pois a ênfase não é na pessoa e sim nas ideias veiculadas pela(s)
pessoa(s) e só se sustentam dessa forma, não permitindo direção nem decisão individual
ou acima do coletivo. A hegemonia não se fundamenta em documentos escritos, pois
estes, numa organização revolucionária, não concede nenhum privilégio para indivíduos
ou relação social hierárquica, bem como as teorias, inclusive dos que mais inspiram os
demais, pois elas são justamente contra privilégios, hierarquia, burocracia9. Os costumes

7
O que não significa que se deva desconsiderar o indivíduo, pois se ele contribui muito, então é uma
pessoa que merece credibilidade e respeitabilidade, o que deve ser maior ainda se sua prática é
correspondente às ideias produzidas, ou seja, se há coerência.
8
Atuando sobre o proletariado e outras classes e grupos no sentido revolucionário, como colocamos
anteriormente, ou seja, não ficando no reboquismo.
9
Obviamente que nos referimos aqui a organizações revolucionárias, pois, se não for assim, então a
referida organização não é revolucionária, no sentido proletário-autogestionário do termo. Também é
preciso dizer que se trata de hegemonia proletária e não hegemonia burguesa e burocrática. Porém,
hegemonia proletária não quer dizer corporificada em indivíduos proletários e sim caracterizada por
expressar a perspectiva revolucionária do proletariado. Nesse caso, a avaliação das pessoas que estão na
coordenação, são mais ativistas ou possuem maior acúmulo teórico, deve se centrar não na questão se há
ou não “influência” e sim na forma, objetivo e consequências disto para os demais indivíduos e para o
71
e outros processos nos quais existem convivência e estabelecimento de relações sociais
mais ou menos estáveis, também não devem promover privilégios e hierarquias. Todos
possuem a mesma possibilidade formal de se manifestar e inspirar. A questão se esta
possibilidade é usada ou não é derivada de processos sociais e individuais alheios ao
desejo do coletivo e podem ser obstáculos, que devem, na medida do possível, buscar
ser removidos. Um revolucionário convicto de que sua proposição ou concepção é
revolucionária e necessária, deve ter a plena liberdade de defender e divulgar, bem
como os demais e se uma prevalece, isto se dá via decisão coletiva, consensual ou da
maioria.
O que é necessário evitar é o predomínio do que Erich Fromm denomina
autoridade irracional, o que já foi colocado parcialmente quando abordamos o caráter
autoritário. A autoridade irracional é, segundo Fromm, “inibidora”, enquanto que
existiria outra que seria “racional”:

A autoridade não é uma qualidade que uma pessoa ‘tem’, na


acepção em que possui qualidades físicas ou bens materiais. A autoridade
refere-se a uma relação interpessoal em que uma pessoa vê outra como seu
superior. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre o tipo de relação
de superioridade-inferioridade que pode ser chamada de autoridade racional e
o que pode ser descrito como autoridade inibidora. Um exemplo mostrará o
que tenho em mente. A relação entre o professor e o aluno e a entre o dono de
escravos e seu escravo baseiam-se, ambas, na superioridade de um sobre o
outro. Os interesses do professor e do aluno têm direção coincidente. O
professor fica satisfeito se consegue aperfeiçoar o aluno; se não consegue, o
fracasso é dele e de seu aluno. O dono de escravos, pelo contrário, quer
explorar o escravo tanto quanto possível; quanto mais tirar dele, tanto mais
satisfeito ficará. Ao mesmo tempo, o escravo procura defender ao máximo
seus anseios por um mínimo de felicidade. Esses interesses são
decididamente antagônicos, pois o que é vantajoso para um prejudica o outro.
A superioridade tem função diferente nos dois casos: no primeiro, ela é a
condição para o auxilia a pessoa sujeita à autoridade; no segundo, é a
condição para sua exploração. A dinâmica da autoridade, nestes dois tipos, é
distinta também: quanto mais o aluno aprender, menor será a distância que o
separa do professor; ele ficará cada vez mais semelhante ao professor. Por
outras palavras, a relação autoritária tende a desvanecer-se. Porém, quando a
superioridade serve de base à exploração, a distância vai-se intensificando em
toda sua longa duração (FROMM, 1981, p. 135).

A questão de Fromm é mais ampla e não se encaixa em todas as formas de


relações sociais. Porém, sua discussão sobre a relação do caráter autoritário e sua
relação com o poder também contribui com nossa discussão:

coletivo. Defender a democracia de forma autoritária é uma contradição e por isso deve ser questionado
(critério da forma), ter como objetivo uma liderança estável e com amplos poderes é questionável
(critério do objetivo/conteúdo), agir desta forma ou com este objetivo é prejudicial ao coletivo (critério
das consequências).
72
Para ele [o caráter autoritário – NV] há, por assim dizer, dois
sexos: os poderosos e os desprovidos de poder. Seu amor, admiração e
disposição para submeter-se são automaticamente despertados pelo poder,
quer seja de uma pessoa ou de uma instituição. O poder encanta-o, não por
quaisquer valores específicos que possa simbolizar, mas somente por seu
poder. Assim como seu ‘amor’ é automaticamente suscitado pelo poder, da
mesma forma pessoas ou instituições sem poder despertam seu desprezo. O
simples fato de avistar uma pessoa impotente faz com que ele deseje agredir,
dominar, humilhar esta. Enquanto um tipo diferente de caráter fica
estarrecido ante a simples ideia de atacar uma pessoa indefesa, o caráter
autoritário sente-se tanto mais animado quanto mais indefeso se tiver tornado
seu objeto (FROMM, 1981, p. 137-138)10.

Desta forma, vemos que a autoridade inibidora, autoritária, reproduz as


relações de poder na sociedade e pode fazê-lo apelando para valores burgueses, tais
como titulação, status, etc., e mantém subserviência a outras autoridades (um intelectual
de um partido leninista dificilmente irá criticar os intelectuais em geral e os “grandes”
em particular, apenas os que são considerados “burgueses”, “vendidos”, etc. e
reconhecerá, mesmo nos conservadores, méritos e capacidade superior), já que sua
mentalidade burocrática o predispõe a respeitar os semelhantes, pois isto também
mantém sua respeitabilidade. Segundo Fromm, a autoridade racional se fundamenta em
outros pressupostos, tal como a razão e o crescimento do outro, ao invés da dominação e
exploração.
Porém, a ideia de autoridade presta-se a mais confusão do que solução. A
abordagem de Fromm, embora tendo certa base social, é muito abstrata e genérica (e sua
referência a tipos ideais weberianos demonstra isso) e muitas vezes psicologista. Sem
dúvida, existem elementos psíquicos envolvidos em todas estas questões, mas existem
outras questões que não aparecem na análise de Fromm, tal como as pressões sociais e
institucionais, a luta de classes, etc. Assim, ao invés de pensar em autoridade racional e
irracional (ou “inibidora”, que, no fundo, é a percepção da autoridade por quem é
submetido a ela) é melhor distinguir entre o indivíduo que é autoridade e o que é
inspirador11. A autoridade, portanto, é uma determinada forma de percepção de alguns
indivíduos por outros indivíduos, e que pode provocar temor, respeito, inveja, etc. que
atribui ao mesmo uma superioridade (social, natural, divina, ou qualquer outra) e isso
10
“Na primeira [forma de autoridade racional - NV] prevalecem elementos de amor, admiração e
gratidão; a autoridade é, simultaneamente, um êmulo com quem a pessoa quer identificar seu eu, parcial
ou inteiramente. Na segunda situação [de autoridade inibidora – NV] formar-se-á ressentimento ou
hostilidade contra o explorador, pois subordinar-se a ele contraria os interesses próprios da pessoa”
(FROMM, 1981, p. 135).
11
Um indivíduo inspirador é aquele que, por suas teorias, práticas, representações, valores, etc., consegue
servir de inspiração para outros.
73
pode ser reforçado por organizações12, os próprios indivíduos tidos como autoridade,
por determinadas relações sociais estabelecidas (a fonte desta percepção que pode
reforçá-la depois de existente). O autoritarismo é quando a referida autoridade (ou as
autoridades) utiliza-se desta percepção e de sua posição social para ir além das próprias
prerrogativas de sua posição social, tal como o professor autoritário, que usando seu
poder de atribuir notas e presença, utiliza isso para controlar e humilhar os alunos,
excedendo o seu exercício comum a partir das relações sociais instituídas.
A ideia de autoridade é de origem psicológica. As organizações burocráticas
são dirigidas, obviamente, por burocratas e estes são autoridades pela posição dirigente
que ocupam e a percepção derivada disso. Neste sentido, Lênin era uma autoridade. Da
mesma forma um professor é uma autoridade pela posição que ocupa. Ou seja, a raiz da
autoridade está nas relações sociais, bem como o tipo de autoridade se fundamenta no
tipo de relação social. Entre os militantes de uma organização revolucionária não existe
relação social fundada na hierarquia, dominação, exploração, privilégios. Os membros
da coordenação pode ser qualquer indivíduo que tenha disposição e disponibilidade e
seja indicado ou escolhido pelo coletivo13. Por conseguinte, se autoridade é uma
percepção que atribui superioridade a outros indivíduos, então não há espaço para isso
em uma organização revolucionária.
O que pode haver é confiança e reconhecimento de qualidades (que não são
inatas, inacessíveis, etc.) desenvolvidas por determinados indivíduos. Tais qualidades
podem ser força física, saber teórico, comunicabilidade, ética, etc. e não gera nenhuma
hierarquia ou ideia de superioridade, apenas há reconhecimento de características
geradas por processos históricos de vida diferentes e que não fornecem nenhum
privilégio a ninguém. O único “privilégio” é o reconhecimento das qualidades existentes

12
Quando esta “autoridade” possui poder, ou seja, é um dirigente, ele é um burocrata. A tendência de
certos grupos ainda não formais, tal como uma organização leninista em formação, é transformar as suas
“autoridades” em burocratas. Os burocratas, por sua vez, tendem a ser considerados como sendo
“autoridades”.
13
Claro que não sem critérios, pois isto depende da disposição e disponibilidade do indivíduo e da
percepção e contribuição que fornece ao coletivo. Ou seja, um indivíduo pode não querer participar de
uma coordenação. Da mesma forma, não se pode, baseando-se nesse princípio abstrato e
desconsiderando que nunca colaborou efetivamente, que se atrapalha nas atividades, entre diversos
outros problemas que poderiam ser citados, desconsiderar que a princípio qualquer um pode compor a
coordenação, mas que nas relações sociais concretas existem aqueles que o coletivo pode preferir sua
não presença na coordenação. Logo, não existe obstáculo formal (documento, estatuto, etc.) ou
princípio/concepção que impeça tal participação, mas as situações concretas em relação a indivíduos
concretos pode gerar decisão de não aceitar ou de indicar determinadas pessoas para tal.
74
em determinados indivíduos e, tal como nas demais relações internas no coletivo, não é
estático e pode ser “revogado” a qualquer momento, ou seja, não é uma posição do
indivíduo e sim uma atribuição a ele livremente concedida pelos outros e que pode ser,
dependendo de suas práticas e ideias, retirada a qualquer momento, desde que deixe de
expressar a perspectiva revolucionária do proletariado.
A confiança e reconhecimento não são propriedades dos indivíduos na
organização revolucionária e sim uma situação que pode mudar com a mudança do
referido indivíduo. É o coletivo que decide se confia ou que grau de confiança tem em
determinados indivíduos, bem como o reconhecimento de suas qualidades. Por
conseguinte, não existem autoridades nas organizações revolucionárias. Pode existir um
processo de confiança e reconhecimento que só se mantém com o indivíduo mantendo
as práticas e ideias que lhe proporcionaram isso (e que pode atingir a todos os
indivíduos da organização, dependendo de várias determinações no caso desta, desde
sua composição, história, etc.). O que existe em uma organização revolucionária são
companheiros de luta, pessoas convergentes com o mesmo objetivo: a derrocada da
sociedade capitalista e a instauração da autogestão social via revolução proletária.
Isto pressupõe a hegemonia proletária. As organizações burocráticas são
hegemonizadas por sua direção que expressam a perspectiva burguesa ou burocrática e
por isso necessitam e reproduzem o culto à autoridade. No caso das organizações
revolucionárias, a hegemonia proletária aponta para a crítica das autoridades, pois a
perspectiva do proletariado manifesta valores, sentimentos, concepções que vão contra o
culto à autoridade e ao autoritarismo, bem como a existência de hierarquias no interior
do coletivo. Porém, como os indivíduos da organização revolucionária não são perfeitos
e não existe perfeição, então é possível que alguns tenham mais dificuldade de partir da
perspectiva do proletariado do que outras, mas não nas questões mais gerais e
fundamentais (se assim ocorresse, haveria contradição no que se refere aos objetivos da
organização e sobre suas concepções fundamentais), então podem surgir divergências
sobre questões pontuais, determinadas pelas dificuldades individuais (desemprego, etc.),
desequilíbrios psíquicos, pressões sociais externas (familiares, profissionais, etc.),
pertencimento a grupos sociais específicos, formação intelectual diferenciada, interesses
pessoais, reprodução de aspectos da mentalidade burguesa ou burocrática, etc.

75
Porém, o que é necessário é a hegemonia proletária, ou seja, a hegemonia da
perspectiva do proletariado revolucionário. Isso, ao contrário de outras concepções de
hegemonia14, apresenta a necessidade do predomínio de valores axionômicos,
sentimentos e concepções que expressam os interesses de classe do proletariado, ética
libertária e uma nova sociabilidade. A comunicação igualitária é um dos elementos
fundamentais da prática da perspectiva do proletariado revolucionário e para sua
hegemonia. Embora existam obstáculos neste sentido (dois exemplos: maior domínio
teórico proporcionado por mais estudos ou maior disponibilidade para militância), é
necessário garantir a todos os integrantes a possibilidade de se manifestar sem nenhuma
objeção formal ou impedimento prático.
Obviamente que numa organização revolucionária pode conviver tanto um
professor universitário quanto um estudante secundarista e a formação de ambos é
diferenciada e, por conseguinte, nas reuniões nas quais se tomam as decisões coletivas,
pode haver maior peso do primeiro na decisão, devido suas habilidades discursivas,
domínio teórico, etc., caso haja divergências entre ambos. Porém, cabe aos militantes
saberem julgar as posições não pelo status social dos indivíduos com propostas
divergentes ou pela forma do discurso e sim pela sua consonância ou não com a
perspectiva proletária revolucionária. Assim, se o estudante secundarista defende a tese
de que a contribuição financeira para o coletivo deve ser escalonada de acordo com as
condições de cada militante e o professor universitário defende que todos devem
contribuir com a mesma quantia, pois isto é pressuposto de relações igualitárias e pode
fazer todo um discurso elaborado sobre isso e não houver outro que revele que isso é
manifestação dos direitos burgueses, ou seja, uma regra universal que se aplica a
indivíduos desiguais, cabe aos demais militantes entenderem o discurso mais elaborado
é equivocado, pois o que está em jogo não é um princípio abstrato e universal de
igualdade e sim a possibilidade de permanência no coletivo, a igualdade na
desigualdade, no interior de relações sociais concretas, pois, caso contrário, o que ocorre
é desigualdade na igualdade.

14
Não se trata da concepção gramsciana segundo a qual a hegemonia é “direção moral e intelectual”, pois
isto pressupõe a existência de dirigentes e dirigidos. A hegemonia proletária não se corporifica em
indivíduos. Ela se manifesta através, obviamente, de indivíduos, mas não são propriedade deles e nem
são eles o critério de tal hegemonia. Logo, quem exerce a hegemonia são aqueles que expressam a
perspectiva do proletariado revolucionário enquanto expressam tal perspectiva e pode ser a totalidade do
coletivo e pode ser que alguns realizem tal expressão em algum aspecto, mas não em outros e é por isso
que dizemos que não está corporificado seja em indivíduos proletários seja em “dirigentes”.
76
Nesse processo ganha importância a questão da autodisciplina e das relações
sociais internas na organização revolucionária, o que remete para inúmeras questões. É
necessário, em tal organização, solicitar o compromisso dos demais e o próprio. O
compromisso com a organização não é compromisso com indivíduos no seu interior e
nem a transformação da organização em fetiche e sim com a perspectiva do proletariado
revolucionário e sua manifestação interna no coletivo.
O próprio compromisso se manifesta através da autodisciplina e autoformação.
A autodisciplina é um processo no qual o indivíduo mantém e realiza seu compromisso
com o objetivo final, a hegemonia proletária, e, ao mesmo tempo, com atividades e
questões específicas do coletivo. A autodisciplina no sentido da perspectiva do
proletariado revolucionário é prioridade e pode, inclusive, a proporcionar uma crítica e
questionamento da organização, caso se afaste de tal perspectiva. Nas atividades do
coletivo, ao assumir alguma atividade, a autodisciplina se torna necessária, pois uma
vez feito o compromisso, deve ser realizado, a não ser em casos específicos,
imprevistos, etc., que, ocorrendo, deve comunicar ao coletivo para que outra pessoa se
encarregue dela.
A autodisciplina tem como pressuposto a autoformação. Sem dúvida,
elementos da educação nas instituições burguesas, na experiência de vida e nos grupos
de estudos, debates e encontros informais entre os militantes, há elementos de formação
e autoformação. Além disso, o indivíduo deve buscar sua autoformação por conta
própria, inclusive para garantir maior autonomia intelectual e liberdade de decisão. Isso
se dá, principalmente, via leitura. A leitura é um ato individual e cabe ao indivíduo
aprofundar ao máximo suas leituras, em quantidade e qualidade, visando uma
autoformação mais ampla, pois assim contribuirá mais com a organização e consigo
mesmo. Obviamente que indicações, grupos de estudos, cursos do coletivo, etc. também
colaboram. A autoformação se dá na luta, nas experiências práticas, nas leituras, nas
próprias atividades. Essa autoformação deve estar ligada ao processo de compreensão
dos objetivos e meios para concretizar o processo de luta política. Isto faz com que a
autodisciplina seja realmente autodisciplina, ou seja, a pessoa executa determinada
atividade, concorda com os objetivos, da forma mais consciente e possível, e contribui
com elaboração e decisão das atividades, não apenas de sua execução. E pode assumir a
posição crítica, caso haja problemas na organização (internos ou externos).

77
Um elemento da autoformação é desenvolver a capacidade de autorreflexão, ou
seja, refletir sobre si mesmo e sua prática, sua formação, seus valores, seus sentimentos,
suas motivações, suas leituras. A leitura, por exemplo, é fundamental, mas deve ser
realizada a partir de uma perspectiva crítica e libertária, sem sacralizar obras e autores
por sua fama, status, reconhecimento social, etc. Às vezes um escrito de um
semianalfabeto pode ser muito mais profundo do que de um doutor em filosofia, ou pelo
menos mais útil e verdadeiro. Claro que isso também não deve provocar a ideia
contrária e a recusa dos textos de doutores em filosofia, pois o critério aqui não é a
titulação ou falta de titulação de quem escreve e sim a veracidade, os valores,
perspectiva, etc. dos mesmos.
É necessário reconhecer que divergências ocorrem e sempre ocorrerão no
interior da sociedade capitalista, o que pode haver é variação sobre o que se diverge,
como, por qual motivo, o número, etc., e os mecanismos de resolução. Em uma
organização revolucionária e autogestionária, desde que tendo bases mais sólidas (ou
seja, tendo um desenvolvimento mínimo de uma base teórica e perspectiva do
proletariado revolucionário, o que significa determinados valores, sentimentos e
concepções comuns), as divergências tendem a ser menos graves e quantitativamente
diminutas. Em certos contextos históricos pode haver agravamento neste processo, ou
diminuição. Isto irá depender desde questões relativas a indivíduos até desdobramentos
das lutas sociais a nível mundial, entre diversas outras determinações.
Assim, é preciso reconhecer que, ao lado da autodisciplina individual, que é o
compromisso que o indivíduo assume com os outros indivíduos da organização e,
fundamentalmente, com a perspectiva revolucionária do proletariado (o que pode
legitimar até a ruptura com a organização, caso tenha abandonado tal perspectiva), é
necessária a autodisciplina coletiva. Esta expressa o compromisso do coletivo com a
perspectiva do proletariado revolucionário, o objetivo final, suas atividades,
autoformação coletiva, etc. Porém, esta autodisciplina coletiva pode ser falha quando
não há autodisciplina individual por parte de alguns militantes. Isto pode gerar a
necessidade de solicitação de autodisciplina. A coordenação ou os militantes,
individualmente ou durante reuniões coletivas, podem solicitar dos indivíduos, a nível
geral ou em casos específicos, a autodisciplina necessária para que a autodisciplina
coletiva se concretize.

78
Porém, tal solicitação não deve ser realizada de forma agressiva, “autoritária”
(por exemplo, por parte da coordenação do coletivo), e sim da forma mais tranquila e
racional possível. Qualquer um, neste contexto, pode tomar a iniciativa da solicitação.
Esses cuidados no processo de solicitação de autodisciplina individual são necessários
tendo a consciência de que os indivíduos revolucionários não são deuses, não são
perfeitos. Cansam, se equivocam, erram, estão influenciados pelos valores dominantes,
pelas ideias dominantes, possuem problemas familiares, financeiras (ainda estamos no
capitalismo), questões pessoais não resolvidas, etc. Isso significa que é preciso perceber
isso e não exigir perfeição, o que não significa, também, justificar e aceitar todos os
equívocos ou erros e questões problemáticas.
É preciso avançar a consciência. A autoformação tem um papel importante no
desenvolvimento da consciência dos militantes revolucionários. Porém, isto não é
possível partindo de premissas irracionalistas e anti-intelectualistas. E isso significa
tentar perceber um companheiro de luta como um ser humano que pode e, certamente
possui, muitas falhas, defeitos, etc. E ver isso num contexto de formação do indivíduo
que é um processo histórico, que ele está envolvido em uma totalidade e que isto é o que
explica as limitações. A autoformação individual também é necessária por ser um
elemento fundamental para permitir um avanço da comunicação igualitária e da razão
emancipadora, a única forma que permite tal comunicação. No plano dos valores e
sentimentos, havendo divergências, não há possibilidade de comunicação, apenas
conflito.
Assim, como ninguém está imune a valores e sentimentos típicos da sociedade
burguesa (ciúme, inveja, possessividade, ambição, competição, ódio, etc.) e
desequilíbrios psíquicos, embora se manifeste em proporções muito menores do que em
outras organizações e situações, então é possível a criação de divergências tendo estes
elementos, bem como também ideias influenciadas pela cultura dominante e ideologias
burguesas. Para a comunicação fluir, nesses casos, é fundamental a mediação da razão
emancipadora (em oposição à razão instrumental). Através dela é possível o indivíduo,
que não conseguiu fazer isto através da autorreflexão individual, pensar as fontes e
limites de determinados valores, sentimentos e ideias. Isto pode ser realizado na
autorreflexão coletiva durante os encontros e reuniões do coletivo, ou, em certos casos,
nas discussões individuais dos integrantes do coletivo. A autoformação contribui para

79
que as pessoas tenham melhores condições de realizar autorreflexão individual e
contribuir com a autorreflexão coletiva15.
No sentido de contribuir com a autoformação coletiva, algumas atividades
podem ser desenvolvidas, tal com cursos de formação política, textos e publicações,
inclusive permitindo livre acesso não apenas ao processo de participação, leitura, etc.,
mas também de socialização, produção. O leitor deve desenvolver sua consciência e
manifestar isso, mesmo que de forma mais simples, e isto é fundamental para o seu
próprio avanço, bem como para a divulgação das ideias da organização revolucionária
em linguagem mais acessível para parte da população com menos domínio na cultura
escrita.
Uma nova sociabilidade deve ser esboçada no interior de uma organização
revolucionária. Quanto mais isso se concretizar, mais se avança no processo de luta por
uma nova sociedade. A confiança, a sinceridade, não são coisas comuns na
sociabilidade capitalista, mas devem avançar em uma organização revolucionária (e, de
resto, em todas as relações sociais, ou seja, é um objetivo geral, embora com os devidos
cuidados e sem ingenuidade, pois ainda estamos submetidos à luta de classes, conflitos,
competição, etc. e nem todos os lugares são propícios para pensar em realizar isto).
Há casos em que são mais graves, no qual o indivíduo se mostra bem distante
de uma ética libertária e muito envolvido com a mentalidade burguesa e interesses
pessoais ou então com desequilíbrios psíquicos graves que comprometem sua ação e
relações sociais. Também existem conflitos que podem ser provocados por questões
pessoais, relativos à sexualidade e uso de drogas, por exemplo.
Nos casos das pessoas que aderem a uma organização revolucionária, mas
mantém fortes aspectos da mentalidade burguesa e interesses pessoais –
comprometendo os objetivos, atividades, e imagem do grupo16 – é preciso ter cuidado e
o coletivo deve decidir até que ponto a intensidade deste envolvimento do indivíduo
com a sociedade burguesa dificulta sua continuidade e se é viável sua permanência no

15
Inclusive para entender que a organização revolucionária não é um mosteiro e nem reunião de
indivíduos perfeitos e puros, e por isso o purismo e exigências exageradas é algo que não tem sentido na
mesma.
16
Por imagem do grupo entenda-se como as pessoas próximas ou que possuem conhecimento da
existência e teses do grupo, inclusive outros agrupamentos políticos adversários que podem usar
qualquer coisa para atacá-lo, em momentos de conflitos nas lutas sociais, o avaliam. Um indivíduo que
rouba outras pessoas, sendo que tal prática nada tem a ver com o grupo, e faz parte do coletivo
compromete sua imagem, para citar apenas um exemplo.
80
mesmo. A instância decisória máxima, caso alguém conclua que as práticas de tal
indivíduo são comprometedoras, é a reunião geral ou assembleia, dependendo do
tamanho do coletivo, que pode ser convocada por qualquer membro17 que coloca em
discussão a permanência ou não do indivíduo em questão, que poderá defender-se
livremente, e a decisão consensual ou da maioria aponta para sua saída ou permanência
(ou um prazo para reavaliação e mudança de comportamento, caso se queira dar uma
segunda chance).
No caso de uma pessoa com desequilíbrios psíquicos graves, que promove, por
exemplo, brigas pessoais e com convivência conflituosa, é necessário uma reflexão
sobre este caso específico. Alguns desequilíbrios psíquicos mais graves são um
obstáculo para uma posição realmente revolucionária. Um psicopata, por exemplo, é
uma pessoa que foi destruída pelas relações sociais capitalistas e que realiza a
destruição de outras, essa é uma forma de entendê-la. Mas isto não significa concordar
ou aceitar suas práticas. Desta forma, a ética libertária consiste, nesse caso, em
compreender e perceber que antes deste indivíduo psicopata ser um destruidor, ele foi
destruído. Ao invés de tomar e analisar sua situação como um dado, perceber que foi
constituído historicamente e por relações sociais fundadas na exploração, dominação,
opressão, que o fizeram ser o que ele é.
No caso de militantes revolucionários em suas relações recíprocas, é preciso
também ter esta percepção, o que também não significa concordar e aceitar, dependendo
do que se trata, pois se a questão tem forte consequência política, torna-se necessário o
questionamento e a conversa esclarecedora, caso não, pode se esperar que isto ocorra
espontaneamente, etc. Isso também pode ser feito de forma indireta, através de textos
que tematizem determinadas questões. Ou seja, para desequilíbrios psíquicos que não
são visivelmente prejudiciais ao coletivo, é um caso de ordem pessoal e somente quando
compromete o coletivo é que passa a ser um problema do coletivo e, portanto, que
merece discussão coletiva.
A distinção entre problema de ordem pessoal e ordem coletiva é importante
para garantir a liberdade individual, a intimidade e privacidade dos indivíduos

17
O coletivo pode decidir que, ao invés de apenas um indivíduo, inclusive para evitar que problemas
individuais sejam confundidos com questões da organização, e que certos indivíduos problemáticos
queira condenar outros (ou seja, o verdadeiro problema acusa outro de ser problema), seja no mínimo
três, mas isto depende da decisão coletiva, do tamanho da organização, etc.
81
componentes do coletivo. Uma organização revolucionária é um agrupamento com
objetivos revolucionários e autogestionários, e não uma associação psicanalítica ou
grupo de amizade, mas também possui preocupação humanista com seus integrantes, e
faz parte da sociabilidade não-burguesa a solidariedade e ajuda mútua, que pode ser
realizada via coletivo ou via contatos individuais fora das relações internas da
organização. Porém, esta colaboração com determinados indivíduos com desequilíbrios
psíquicos mais ou menos graves ou comprometedores, deve ser realizada apenas quando
é um problema de ordem coletiva. Quando é de ordem pessoal, pode haver resistência
individual e afastamento, caso se insista em intervir em algo que é da instância da
intimidade e privacidade do indivíduo. Nesses casos, não comprometendo o coletivo e
sendo vontade do indivíduo a não interferência, então cabe ao coletivo não se manifestar
sobre isso.
Essa mesma distinção entre ordem pessoal e coletiva também se manifesta no
caso do problema da sexualidade e do uso de drogas. A sexualidade humana é bastante
complexa e na sociedade burguesa promove um conjunto de problemas correlatos e que
por isso deve haver cuidado neste aspecto. As discussões sobre “casamento
monogâmico”, “amor livre”, “homossexualidade”, “repressão sexual”, entre outros
temas correlatos, já receberam várias contribuições no campo do marxismo e do
anarquismo, sem haver nenhum consenso a respeito. As práticas sexuais dos indivíduos
e as relações sociais envolvidas, quando são questão de ordem pessoal, é
responsabilidade deles e não cabe nenhuma interferência do coletivo em relação a isto.
Questões como homossexualidade, conflitos conjugais, infidelidade, feiticismo,
onanismo, práticas de amor livre, etc., são questões de ordem pessoal. Só se tornam
questão de ordem coletiva e, portanto, remetendo ao coletivo, quando compromete este
ou dilacera suas relações internas, sendo que várias delas nem sequer tem esta
possibilidade. Isto pode ocorrer devido aos casos de influência da mentalidade
burguesa, desequilíbrios psíquicos, etc., que criam problemas que atingem as relações
entre os indivíduos, mas que, num primeiro momento, devem ser resolvidos pelos
envolvidos e não remeter ao coletivo.
Assim, a sexualidade envolvida em competição, algo estrutural da sociedade
capitalista e que nenhum indivíduo está totalmente isento nesta sociedade (o que não
significa justificar ou pensar que não se deve lutar contra isto, mas sim dizer que é algo

82
que mesmo em pequena proporção está presente em todo indivíduo formado nesta
sociedade), que acaba provocando conflitos e problemas para o coletivo se tornam
problema coletivo. É necessário ter cuidado com determinadas concepções que pregam
a plena liberdade sexual numa sociedade repressiva e destruidora, pois ao invés de
liberar uma sexualidade sadia pode liberar o seu contrário, tal como alguns tipos de
perversões sexuais. Assim, há vários problemas envolvidos (inclusive que a sexualidade
está envolvida com questões prosaicas e burguesas, como a questão da propriedade
privada, herança, etc., e afetivas, sentimentais, além de valores, desequilíbrios
psíquicos, etc.) e não cabe aqui discutir isso e sim apenas deixar claro que a questão da
sexualidade é geralmente um problema de ordem pessoal, está na instância da
privacidade e intimidade individual, e só em determinados casos se torna problema de
ordem coletiva. Para os indivíduos que adotaram o casamento monogâmico e ambos
fazem parte do coletivo, devem resolver seus problemas de ordem pessoal sem envolver
o coletivo e os que apenas um indivíduo do casal se encontra no coletivo, cabe a ele
manter seus problemas desta ordem no nível pessoal, não envolvendo outras pessoas e
se estiver sendo pressionado pelo outro indivíduo do casal não-pertencente ao coletivo,
isto também é problema do militante e não do coletivo.
O que se deve fazer em determinados casos em que se iniciam conflitos
oriundos de questões envolvendo sexualidade é não se envolver em casos de ordem
pessoal e quando se trata de questões de ordem coletiva18, e não assume maior
gravidade, evitar tornar o problema ainda maior com exposição pública dos indivíduos e
utilização de meios moderados de discussão a nível mais geral como primeira forma de
intervenção, tal como o esclarecimento dos problemas envolvidos através de textos
escritos e outras formas. Assim, é preciso evitar em uma organização revolucionária a
competição e outros aspectos da sociabilidade burguesa no seu interior, não só pelos
conflitos e problemas que cria, mas também devido à reprodução de relações sociais que
se combate.

18
Seja excesso de conflitos envolvendo pessoas do coletivo, seja práticas sexuais consideradas criminosas
ou “doentias” externas ao coletivo, o que é mais grave e também se relaciona com desequilíbrios
psíquicos mais graves, tal como pedofilia, estupro, etc. Embora seja pouco provável que tais casos
ocorram com indivíduos que lutam pela autogestão social, é preciso ter em mente que, se um caso
extraordinário desses ocorre, aí torna-se necessária a intervenção coletiva, incluindo a expulsão do
referido indivíduo.
83
Também no caso das drogas há um processo semelhante. O uso de drogas
ligeiras e legais difere do uso de drogas pesadas e ilegais19. O uso de drogas é uma
questão de ordem pessoal e só se torna de ordem coletiva quando compromete ou
interfere no coletivo. O uso de drogas pesadas e ilegais tende a interferir nas práticas e
imagem do coletivo e, por isso, podem ser objeto de intervenção coletiva, desde que isto
se torne visível praticamente. No caso das drogas ilegais, é aconselhável o seu não uso
de forma alguma, pois com raras exceções, elas são drogas pesadas, mas o grande
problema é que a repressão ao seu uso pode ser pretexto para repressão de um grupo
político. Desta forma, o uso destas substâncias deve ser, pelo menos nos lugares de
reunião e encontro, evitado. Além disso, o uso de drogas pesadas pode prejudicar a
militância e a dependência química é um forte aliado da manutenção da sociedade
capitalista e já foi usada para desarticular movimentos sociais, tal como no caso dos
Panteras Negras, nos Estados Unidos. O uso de drogas leves e legais, dependendo de
alguns casos raros que são exceção, é de ordem pessoal20.
Desta forma, a organização revolucionária deve se preocupar com a
privacidade, intimidade e liberdade individual e somente intervir em questões que atinge
o coletivo. Mas não deve intervir apenas quando há práticas questionáveis. A
solidariedade é algo fundamental e um dos militantes estando com problemas que não
são de maior privacidade, como desemprego e questões semelhantes, então o coletivo
pode oferecer, enquanto coletivo ou mesmo individualmente, colaboração. Isto, nas
organizações revolucionárias ocorre naturalmente e mais por iniciativas individuais,
mas também é possível fazê-lo de forma coletiva e mais eficaz, além de não
sobrecarregar alguns indivíduos.
Assim, a ética libertária e sua base humanista-concreta devem estar presentes
em todas estas situações. Porém, em certos casos é necessária uma radicalização. A
partir de uma concepção humanista não abstrata e ingênua, partindo da perspectiva

19
Obviamente que existem inúmeras questões e definições por detrás desta problemática. O café é uma
droga, assim como a cerveja, o vinho, etc. Da mesma forma, o LSD, a maconha, a cocaína, a heroína
também são drogas. Os remédios vendidos em farmácias também são drogas e alguns deles são drogas
pesadas.
20
Algumas drogas leves, como as bebidas destiladas, possibilitam dependência química com maior
facilidade e probabilidade e por isso deveriam ser evitadas. No entanto, isto não cabe ao coletivo decidir
e sim ao indivíduo. O que o coletivo pode, desde que queira fazer e que seja consenso, é alertar para esta
possibilidade.
84
proletária e revolucionária, muitas situações devem provocar indignação e ações mais
radicais.
Um companheiro de luta que se corrompe, que adota teses conservadoras,
apesar de ser alertado e de ter formação suficiente para identificar estas coisas, deve
provocar a indignação e ser combatido21. Aí se instaura uma situação de conflito mais
radical e que leva, fatalmente, ao processo de expulsão deste indivíduo (e pode ser mais
de um, dependendo da organização, do seu tamanho e contexto, etc.), pois qualquer
organização está envolvida pela sociedade burguesa e não há como evitar a corrupção
de indivíduos, o que não se pode é aceitar isto internamente.
As demais questões organizacionais internas são variadas, mas cabe destacar
que depende do tamanho da organização. Em organizações com grande número de
militantes, bem como em regiões e locais diferentes, sendo impossível a participação
dos membros em reuniões, assembleias, etc. precisam refletir sobre suas formas
organizacionais. Em coletivos pequenos, a organização pode ser realizada via uma
equipe de responsabilidade. Por exemplo, num coletivo de apenas cinco militantes, é
possível colocar um indivíduo como responsável pela coordenação, sendo o
coordenador (e, tal como colocado anteriormente, sem poder de decisão, etc.), outro por
encaminhar atividades ou ações determinadas e assim por diante. Sendo o coletivo
muito pequeno, o que se atribui é responsabilidade e que pode ser de um ou mais
indivíduos para cada atividade. A tomada de decisão ocorre nas reuniões gerais do
coletivo, além das formas secundárias (dependendo do assunto, etc., via meios de
comunicação, como e-mail, entre outras possibilidades para determinados casos).
Em coletivos maiores, digamos, com mais de 10 pessoas, é possível pensar
numa coordenação e formação de comissões para efetivar as atividades, inclusive
porque um indivíduo pode participar de mais de uma comissão. No entanto, se tiver
pessoas em outras cidades, estados, etc., a tomada de decisões fica complicada e pode
ser definida na cidade do coletivo em questão a reunião geral, e no conjunto de
localidades, um encontro regional ou nacional. No caso de coletivos maiores, com mais
de 50 ou 100 pessoas, ou bem mais, aí além da coordenação e comissões, a formação de
núcleos se torna necessária, que pode ser por local de trabalho, moradia, estudo e, ter

21
Claro que isso pressupõe ter certeza do processo de corrupção, ou da gravidade do problema, e uma
discussão no interior do coletivo que seja pautada pela racionalidade e não emotividade e sem
interferência de outros tipos de questões, tais como conflitos pessoais.
85
reuniões próprias como forma de tomada de decisão. No caso além dos núcleos, é
necessário articular reuniões gerais, assembleias (para deliberações de questões mais
fundamentais) e, tendo coletivos em outras cidades, estados, encontros (com ou sem
assembleia) regionais ou nacionais.
Obviamente que é possível pensar numa organização que tende a crescer, mas
é preciso estar atento que o processo de crescimento de uma organização revolucionária
aponta para uma maior tendência à burocratização, à ampliação de conflitos e
reprodução da sociabilidade capitalista (competição, por exemplo), possível corrupção
ou cooptação de indivíduos, etc. Isso se deve ao fato de que as organizações maiores
possuem maior tendência à burocratização, pois aumenta o número de pessoas e
dificulta o contato pessoal, cria necessidade de maior divisão de tarefas, tende a
aumentar a separação entre inativos, ativos e superativos, sendo que os primeiros
tendem a ser um número maior, a homogeneidade em formação teórica é enfraquecida,
etc. Isso reforça também os demais processos, pois assim tende a aumentar a
competição interna, a facilidade de cooptação e corrupção de indivíduos do coletivo
(pois não há contato permanente e existem alguns mais afastados), etc. Isso é mais grave
quando se trata de organização que é nacional, pois soma-se a isto as diferenças
regionais, o maior distanciamento, etc. Por isso, talvez seja necessário transformar a
organização em diversas organizações associadas, onde em cada localidade há auto-
organização com maior facilidade de se estruturar e buscar se autogerir.
Essas questões, bem como outras, no entanto, ganham maior concreticidade
com a estruturação da organização, o que depende dos seus integrantes, da formação
teórica, da experiência dos componentes, das atividades e diversas outras
determinações, ganhando novos contornos de acordo com as necessidades de cada caso
concreto. E, obviamente, em regimes ditatoriais a coisa se modifica drasticamente,
assim como em diversas situações alheias à organização também tem efeito em sua
forma de estruturação interna. Essas são linhas gerais para pensar a organização
revolucionária e isso depende das condições concretas externas e internas, mas
oferecem algumas ideias de como tentar constituir uma auto-organização
revolucionária.

86
ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA, PROLETARIADO E SOCIEDADE CIVIL

A luta de classes na produção é o elemento fundamental do processo


revolucionário. É nela que se forma as formas de auto-organização (comitês de greve,
conselhos de fábrica, conselhos operários, etc.) que efetivam as lutas autônomas e
podem ser tornar órgãos da revolução social e da autogestão da futura sociedade. Esta
luta de classes na produção aponta para a transformação das relações de produção
capitalistas.
Contudo, os operários não existem apenas nas unidades de produção, eles
vivem na sociedade capitalista, possuem representações, valores, sentimentos,
inconsciente, bem como vivem outras relações sociais, na família, comunidade,
coletividades diversas, além de relações sociais indiretas (meios oligopolistas de
comunicação, etc.). Neste contexto, o que o operário faz na fábrica é determinado pelas
relações sociais estabelecidas nelas, mas também pelas relações sociais exteriores, que
lhe proporciona uma cultura, representações, valores, informações, interesses1.
Logo, há uma tendência no interior da unidade de produção (fábrica, minas,
canteiro de construção civil, empresa agrícola, etc.) de que a luta cotidiana se amplie,
tornando-se lutas autônomas. Isso depende das lutas internas e cotidianas, mas também
das lutas externas, fora das unidades de produção, ou seja, das lutas de classes na
sociedade civil. Nesse sentido, a concepção de Otto Rühle (1975) segundo a qual o
operário fora da fábrica é um pequeno-burguês é correta, mas incompleta. Sem dúvida,
a hegemonia na sociedade civil é da burguesia, mas ela não reina absoluta e deixar de
lutar nesse campo é apenas facilitar tal dominância cultural. É preciso compreender que
a hegemonia burguesa não é absoluta e que existe uma constante luta cultural na

1
Mesmo porque ninguém nasce operário, pode nascer numa família proletária, o que lhe proporciona um
pertencimento mediado de classe, ou seja, o indivíduo é proletário devido sua família. Isso gera a
tendência relativa de pertencimento à classe proletária no futuro quando adentrar na juventude ou vida
adulta. A vida na fábrica ou unidade de produção, no entanto, só existe depois, quando seu
pertencimento de classe torna-se imediato.
87
sociedade civil, com predomínio da mentalidade, representações, valores, etc., que estão
de acordo com os interesses da classe capitalista e/ou de suas classes auxiliares, mas que
existem formas de resistência cultural, que apontam para outros valores, representações,
etc. e que em alguns momentos históricos, localidades, etc., se torna mais forte e
contribui com as lutas de classes na produção.
Além da hegemonia burguesa, que ocorre no plano cultural, há também os
aparatos estatais (educacional, repressivo, jurídico, etc.), as instituições da sociedade
civil, as formas de lazer, os meios de comunicação, a família e suas relações concretas,
entre diversas outras formas de relações sociais. Isso tudo reproduz o processo de
competição, os conflitos sociais, a luta de classes e por isso existe uma produção
cultural marginal de caráter crítico e contestador, tentativas de ruptura, insatisfação,
inconsciente coletivo que é a recusa inconsciente da sociedade burguesa.
As lutas de classes na sociedade civil remetem para a questão cultural, a
questão do consumo e distribuição, bem como a questão da política institucional e o
conjunto das relações sociais, que reforçam uma determinada mentalidade (com valores,
sentimentos, representações correspondentes), determinados interesses (imediatos em
contraposição a interesses de classe), informações, processos políticos e sociais. No
fundo, a hegemonia burguesa ocorre na sociedade civil, que é onde a mentalidade
burguesa, os valores dominantes, as representações dominantes, etc., reinam e garantem
a adesão ao capitalismo por parte não só das classes privilegiadas (burguesia,
burocracia, intelectualidade), mas das classes desprivilegiadas (proletariado,
campesinato, lumpemproletariado, subalternos, etc.).
Nesse sentido, as lutas de classes na sociedade civil são fundamentais, não só
por reproduzirem as lutas de classes e abrirem brechas com as manifestações, lutas,
processos de confronto por necessidades básicas (habitação, alimentação, transporte,
saúde, educação, etc.), o solo onde ocorrem lutas urbanas, lutas juvenis, disputas
políticas, luta cultural, etc., mas também por interferir nas lutas de classes na produção,
no processo de valorização. As lutas salariais, por mais limitadas que sejam, abrem
espaço para avanço de lutas mais amplas e abrem o confronto entre capital e trabalho,
ou seja, entre as duas classes sociais fundamentais.
O proletariado é a classe revolucionária de nossa época, pois sem ele é
impossível a constituição da sociedade autogerida, pois sua própria existência é que

88
institui as relações de produção capitalistas, além de poder constituir novas relações de
produção, comunistas, autogeridas. Sem a transformação do modo de produção não há
possibilidade de instituição de uma sociedade autogerida e nem de superação do
capitalismo. Nesse sentido, o proletariado é o agente do processo de transformação
revolucionária da sociedade capitalista e é através de suas lutas que esse processo pode
se concretizar.
As lutas proletárias na produção e na sociedade civil se influenciam,
complementam, revezam, fortalecem reciprocamente. Nesse contexto, as lutas
proletárias na produção tendem a se fortalecer, radicalizar, aprofundar, avançar, quando
as lutas proletárias na sociedade civil avançam, radicalizam, aprofundam. Da mesma
forma, as lutas proletárias na sociedade civil são reforçadas e ampliadas quando isso
ocorre também na produção. E isso é reforçado por lutas de outros setores da sociedade,
como da juventude, as lutas urbanas, os movimentos sociais sob hegemonia proletária,
etc. E isso é reforçado quando existem mais intelectuais engajados e colaborando com a
luta cultural através da crítica das ideologias, oferecendo ferramentas intelectuais para o
proletariado e outros efetivar sua luta, quando ocorrem crises financeiras, mudanças
conjunturais, repressão estatal, etc.
Nesse processo, a autoformação e a auto-organização na sociedade civil tende a
reforçar o mesmo processo nas unidades de produção e reciprocamente. Contudo, é
preciso reconhecer que a auto-organização tem maior tendência e facilidade de ocorrer
nas lutas de classes na produção e a autoformação nas lutas de classes na sociedade
civil. Obviamente que ambos ocorrem nas duas formas de lutas, mas em graus e
intensidade diferentes. A autoformação que ocorre junto com a auto-organização é mais
lento e relativa aos problemas organizacionais e obstáculos (burocracia sindical, etc.) e a
auto-organização na sociedade civil tende a ser policlassista e em alguns casos
artificiais, entre outros obstáculos.
A luta pela autogestão requer o desenvolvimento de formas de auto-
organização e autoformação. As duas coisas são fundamentais e se realizam no processo
da luta de classes e não numa evolução unilinear rumo ao progresso, o que significa que
pode haver retrocessos, avanços, saltos, assincronia no desenvolvimento do movimento
operário, dependendo da região, país, cultura, contexto, conjuntura, etc. As lutas de
classes na produção tendem a ser pouco vistas e percebidas pelo conjunto da sociedade,

89
pois os meios oligopolistas de comunicação, a maioria dos intelectuais, etc., não
divulgam ou pesquisam essas lutas, pois não são sua prioridade ou interesse. Os seus
avanços organizativos, de confronto com a burocracia sindical, etc., tendem a gerar um
avanço na consciência, mas a derrota e o refluxo acabam fazendo a luta voltar a um
estágio inferior e tem que recomeçar, obviamente que com algumas vantagens
cumulativas (indivíduos que avançaram, memória da luta que conseguiu ser preservada,
desilusões com burocracia sindical e partidária em diversos indivíduos, etc.).
A questão da formação é fundamental na luta pela sociedade autogerida, pois é
necessário não somente, para se concretizar a autogestão social, ter um projeto de nova
sociedade, como também ter consciência dos obstáculos, das dificuldades, da
necessidade de generalização da autogestão, etc. A revolução proletária é uma
revolução total, ou seja, social, e por isso é também uma revolução cultural. Essa
revolução cultural já tem embriões na sociedade capitalista, através das utopias, projeto
revolucionário, axionomia, teoria, etc., que são marginais, mas como a radicalização das
lutas tende a aumentar sua força e presença, bem como sua receptividade. Contudo,
quanto mais elaborada for a teoria revolucionária, no sentido de ser mais ampla, mais
fundamentada, etc., mais convincente ela será, mais pessoas atrairá, mas forte será e
assim sua colaboração com as lutas será maior e, nos momentos revolucionários, terá
um papel essencial no sentido de combater a contrarrevolução expressa nas ideologias
burocráticas, valores burgueses, etc.
Mas há um outro elemento, de certa forma presente nos anteriores, que é
fundamental. A sociedade autogerida é uma forma de sociedade na qual acaba a “pré-
história da humanidade”, ou seja, a história da humanidade começa a ser produto de sua
decisão coletiva e consciente, na qual ao invés dos seres humanos associados em sua
associação, a sociedade, serem regidos por forças alheias à sua vontade ou decisão,
passam a ser um produto coletivo e consciente. Logo, não é o cálculo racional imposto
pela acumulação capitalista, a burocracia e suas regras formais e abstratas, entre outras
possibilidades, que determinam o futuro da humanidade e sim ela mesma, consciente e
intencionalmente. Daí a revolução proletária ser social, atingir todas as relações sociais
e a cultura, sendo que esta passa a ter primazia na sociedade. A produção – e sua
determinação sobre a sociedade – passa a ser a autoprodução e autodeterminação
consciente, intencional e coletiva da sociedade. Para se chegar a isso, é necessário que

90
esse processo tenha suas sementes lançadas hoje e que comecem a germinar e no
momento revolucionário será fundamental e decisivo.
Por isso todas as formas de ativismo, praticismo que desconsideram a
importância da teoria, da cultura, das representações, caindo no anti-intelectualismo, é,
no fundo, uma posição estreita e conservadora. E contribui para a reprodução das
derrotas históricas do movimento revolucionário do proletariado. As lutas cotidianas
(individuais, reivindicativas, institucionalizadas, etc.) devem se tornas lutas autônomas
(livres das burocracias – partidária, sindical, governamental, etc.) e daí se tornarem lutas
autogeridas, o que significa que é consciente e intencionalmente autogestionária, ou
seja, busca concretizar o projeto autogestionário. Assim, a consciência é fundamental, e
quanto mais ela for desenvolvida, quanto mais se aproximar da teoria, mais o
movimento como um todo tende a avançar e conseguir concretizar seu projeto. Mesmo
porque, a constituição de uma nova sociedade, superior à sociedade capitalista, precisará
resolver os problemas, obstáculos, gerir a si mesma, o que pressupõe o saber para
conseguir efetivar isso2.
É nesse contexto que devemos colocar a questão das organizações
revolucionárias e sua relação com o proletariado na sociedade civil. A sua atuação nas
lutas de classe na produção são bastante limitadas, pois ocorre quando tem indivíduos
proletários que atuam nas unidades de produção, ou quando realizam panfletagem e
outras ações diretas nas suas portas, entre outras possibilidades. A sua atuação mais
importante advém de suas ações na sociedade civil, tendo a luta cultural um papel
fundamental, mas as outras formas também, como resistência e ação possível em todas
as instâncias sociais, inclusive nas instituições burguesas, no sentido de fortalecer a luta
cultural e a formação de centros de contrapoder, bem como contribuir com a hegemonia
proletária em diversos lugares e momentos.
Numa concepção imediatista, esse trabalho seria para realizar a revolução
autogestionária. Contudo, não se trata disso, a não ser em momentos históricos

2
Os conselhos operários, por exemplo, ao se articular em nível regional e nacional, precisarão não apenas
resolver os problemas organizativos (e evitar a burocratização, o que pressupõe consciência dos perigos
da burocracia, e da mercantilização, o que também traz a necessidade de compreensão do seu
significado e riscos), como também questões técnicas e resolução de problemas de articulação,
distribuição de bens materiais, etc., que não estão dados e nem se encontram, muitos deles, em
experiências anteriores ou teorias estabelecidas (e mesmo se tivesse nessas, precisariam ser conhecidas).
Logo, o desenvolvimento da consciência é necessário antes, durante e depois da revolução, sendo que
após esta terá um progresso livre dos entraves do capitalismo.
91
específicos. Essa luta é apenas parte da luta geral que é travada também pelo
proletariado e outros setores da população, geralmente com mais percepção do conjunto
e com mais elementos que compõe uma estratégia revolucionária, mas que visa,
imediatamente, não a revolução e sim a criação de condições para sua chegada mais
cedo e para a vitória proletária quando ela ocorrer3.
Nesse contexto, não se trata de cair no “revolucionarismo”, no qual alguns
pensam que só contribuem com o processo da revolução social através da luta armada
ou de manifestações de rua, revelando uma simplificação do processo de luta de classes
e incompreensão de sua complexidade e amplitude. O revolucionarismo, que se
manifesta também através da violência, é algo natural e normal devido aos processos
constitutivos dos indivíduos (não é possível pensar numa homogeneidade dos
indivíduos que se dizem revolucionários) e das diversas determinações e divisões
sociais. Ele só é um problema real para a luta proletária quando se torna hegemônico,
gerando o aventureirismo, que, se pode ter um efeito positivo, também tende a gerar um
efeito negativo. Isso vai depender do que ele faz e gera, que, por sua vez, depende do
contexto e conjuntura política e social. E o risco do revolucionarismo é justamente não
buscar compreender a totalidade e o processo de conjuntura mais amplo, bem como o
seu imediatismo e voluntarismo que se tornam dogmas para os seus adeptos.
Do mesmo modo, o gradualismo ligado ao reformismo é outro problema a ser
combatido. Se o revolucionarismo está próximo ao vanguardismo, o reformismo está
próximo ao reboquismo. A ideia de ficar ao lado do proletariado (não-revolucionário)
acaba reforçando o seu conformismo. Mas como já abordamos isso na discussão sobre
vanguardismo e reboquismo, apenas colocamos que são posições distintas. É preciso
estar além do proletariado quando este manifesta lutas cotidianas e espontâneas, não
para combatê-las, mas para aprofundá-las, desenvolvê-las, acelerar o processo de auto-
organização e autoformação, emergindo assim o proletariado revolucionário.
Nesse sentido, torna-se fundamental a luta cultural, que pode ser dividida em
luta teórica, luta artística, luta propagandística. Esses três elementos se complementam e
reforçam reciprocamente. A luta teórica é aquela que aprofunda o saber teórico sobre a

3
Isso muda se ocorre uma mudança nas lutas proletárias abrindo tal possibilidade, o que sempre existe,
mas que nem sempre é previsível. A ascensão de lutas sociais pode servir de estopim para lutas
proletárias revolucionárias e, nesse caso, a organização revolucionária deve cumprir um papel de buscar
articular tais lutas com a luta proletária e seu aprofundamento no sentido da autonomização do
proletariado e constituição da autogestão das lutas.
92
realidade e crítica das ideologias. O seu papel é ajudar a compreender a sociedade
capitalista e as lutas de classes de forma aprofundada, fornecendo material informativo
e reflexivo para entender as lutas e assim agir mais de forma mais apropriada e
adequada diante delas, bem como superar as ideologias e concepções
contrarrevolucionárias e conservadoras (e os valores, representações, sentimentos
associados a elas), além de atrair mais pessoas para o lado do proletariado.
A luta artística remete a um conjunto de produções artísticas, desde música,
passando por teatro, filme, pintura, escultura, até poesia e literatura. É uma forma de
contribuir para a superação dos valores, sentimentos e representações dominantes e
também de combater as produções artísticas axiológicas e ideologêmicas4. A luta
artística visa constituir obras artísticas e divulgar as existentes que sejam axionômicas e
teorêmicas5, reforçando elementos para a superação da mentalidade burguesa.
A luta propagandística é um processo no qual se busca propagar, divulgar, as
produções teóricas e artísticas revolucionárias, bem como seu conteúdo, mesmo através
de sua simplificação (sem deformação), buscando fornecer elementos que ajudam na
autoformação do proletariado, inclusive recuperando sua história e lutas heroicas
passadas. Um conjunto de ações, desde os meios de comunicação, tal como a internet e
panfletagem, até as conversas junto aos contatos diversos, desde a família até os
indivíduos mais afastados, passando por colegas de trabalho, vizinhos e outros. Claro
está que isso depende da família, vizinhança, etc., pois em determinados lugares e
contexto isso é inviável.
Para realizar isso a organização revolucionária precisa garantir uma formação
mais sólida possível para seus militantes, pois a produção teórica requer toda uma
prática de estudos e pesquisas, a produção artística alguns elementos, principalmente de
conteúdo para poder conseguir avançar nas mensagens, e a luta propagandística também
não pode ser mera divulgação como fazem os meios burgueses ou mesmo leninistas, já
que não há a preocupação com a autoformação e auto-organização nestes dois casos,
além de não terem objetivo revolucionário e autogestionário. A autoformação dos

4
Axiológico quer dizer uma determinada configuração dos valores dominantes e ideologêmico um
determinado fragmento extraído e simplificado de uma ideologia (no sentido marxista do termo, ou seja,
sistema de pensamento ilusório).
5
Axionômico quer dizer determinada configuração dos valores universais (autênticos) e teorêmico um
fragmento de uma teoria, ou seja, de um universo conceitual explicativo da realidade que visa sua
transformação radical.
93
indivíduos revolucionários se torna fundamental e, mesmo sendo praticamente
impossível uma homogeneidade, mesmo em organizações pequenas, é preciso
incentivar, promover cursos, socializar o saber, facilitar o acesso a informações e
reflexões, como meio para concretizar uma luta cultural mais eficaz. Isso, inclusive, faz
parte da própria luta revolucionária, pois mais que os dogmáticos do praticismo pensem
que isso não tem valor.
Além da luta cultural, duas outras formas de luta na sociedade civil,
intimamente ligadas a ela, são possíveis: a formação de centros de contrapoder e
atuação nos movimentos sociais, bem como junto ao movimento operário. Claro é que a
luta propagandística no movimento operário, movimentos sociais, instituições
burguesas, bem como a luta teórica e artística, são formas de ação e atuação nesses
locais. Contudo, aqui destacamos duas formas de luta que são mais práticas, são ações
que carregam em si a luta cultural, mas que são também atividades práticas específicas.
A luta cultural é ação, prática, ou melhor, práxis. A participação em uma organização de
base ou revolucionária, numa manifestação, numa greve, num movimentos sociais,
também é prática, ação, embora nem sempre seja práxis revolucionária, pois esta é uma
atividade consciente e refletida, com intencionalidade revolucionária.
É possível um estudante ser crítico, produzir teoria, arte ou propaganda, sem
estar no grêmio ou centro acadêmico, sem participar de organização revolucionária, sem
ir a manifestações, reuniões, ações coletivas, etc. Contudo, o que ele produziu
intelectualmente ou divulgou é ação, prática, e se for consciente e refletido no sentido
da transformação radical das relações sociais, é práxis revolucionária. Outro estudante,
no entanto, pode participar do grêmio ou centro acadêmico, ser militante de um partido,
participar de manifestações, etc., mas não realiza nenhuma produção intelectual escrita.
Isso significa que ele executa outro tipo de ação e prática. Mas o fato de estar nessas
atividades ou organizações, por menos que se manifeste verbalmente ou sob forma
escrita, também age conscientemente e faz reflexões, por mais simples e superficiais
que sejam. Contudo, para ser práxis revolucionária necessita ser consciente e
intencional, sendo que essa intencionalidade deve ser revolucionária (e, logo, se está em
um partido, organização burocrática, não é revolucionário, mesmo que afirme isso
verbalmente). No caso de participação em organizações não-burocráticas, bem como
outras formas de ação, é possível que seja uma práxis revolucionária, desde que haja

94
consciência e intencionalidade, com um mínimo de aprofundamento e materialização,
pois de nada adianta um saber que não se materializa nas práticas e ações. Ambos
exercem ação e prática, só que o conjunto, a primazia e o foco são mais intelectual ou
mais prático. Em ambos os casos há limitações: é preciso não enfatizar apenas a
consciência, mas exercer outras ações (tal como as acima exemplificadas, ou outras),
assim como é necessário ir além dessa ênfase na prática (que é o caso acima citado) e
buscar desenvolver (e não estagnar) a consciência, a reflexão crítica, a autoformação.
O praticismo é um derivado dessa opção que no conjunto concebe primazia e
foco na prática, quando se torna um princípio defendido conscientemente e tido como
autossuficiente ou uma ideologia. Assim se recusa a necessidade da teoria para os
militantes e o aprofundamento e desenvolvimento da consciência e autoformação. É um
retrocesso na militância política6. O intelectualismo é um derivado da opção que no
conjunto concebe primazia e foco na consciência, quando se torna um princípio
defendido conscientemente e concebido como autossuficiente ou uma ideologia. Nesse
caso se recusa as diversas formas de ação e a organização ou reunião de diversos
indivíduos para fortalecer a luta. São mais dois opostos de concepções burguesas, assim
como o vanguardismo e o reboquismo, o racionalismo e o empiricismo, o holismo e o
individualismo, duas faces da mesma moeda capitalista. Logo, tanto o praticismo quanto
o intelectualismo são duas posições estreitas e limitadas que desconhecem a
complexidade da luta de classes e que recusa não só o seu oposto como também tudo
que não lhe é idêntico. É por isso que os praticistas afirmam que “a prática é tudo” e que
nada mais vale a pena, bem como os intelectualistas dizem que nada podem ou devem
fazer além de pensar e interpretar o mundo, sob diversas justificativas (a marcha
inexorável da história, o determinismo econômico, etc.).

6
E isso às vezes é justificado com citações de pensadores revolucionários, como Marx e Pannekoek.
Alguns, ingenuamente, citam a afirmam “a prática é o critério da verdade”, afirmação que textualmente
Marx não fez, para justificar isso. O que Marx quis dizer foi que é na prática que se confirma a verdade
e por prática se entenda as relações sociais concretas, já que ele opõe o mundo real das relações sociais
ao mundo das ideias, para discutir a oposição entre materialismo e idealismo. Assim, não se trata de
nenhuma discussão sobre “prática política” ou prática e verdade sob forma abstrata e muito menos de
questão de “critério” e sim de confirmação. Ele não disse a “prática é a verdade”, pois são coisas
distintas, mas se quero saber se meu pensamento é verdadeiro, não é apelando para outras ideias ou para
ideias autossuficientes e sim através das relações sociais concretas (ou, “materiais”, em oposição a
“ideias”). Apelar para Pannekoek para justificar o praticismo é algo tão equivocado como mostra
desconhecimento deste autor, que coloca o papel fundamental da consciência no processo
revolucionário.
95
A formação de centros de contrapoder significa que a luta cultural avançou,
mas não apenas isso. Significa que nas instituições burguesas, uma nova correlação de
forças se estabelece, na qual a burocracia perde força e a participação mais ampla dos
demais envolvidos nas relações internas e externas se amplia. Isso se entrelaça com
outras lutas, especialmente as nos movimentos sociais e nos locais de trabalho, moradia
e estudo. É uma luta para reforçar as organizações de base, no sentido de aumentar a
participação e auto-organização, bem como favores uma hegemonia proletária em
contraposição à hegemonia burguesa ou burocrática.
Nas instituições burguesas, que são burocráticas, é fundamental um avanço da
luta para questionar o seu papel de reprodutor das relações de produção capitalistas e
sua organização burocrática, sendo que esses dois elementos são complementares. As
instituições burguesas agem no sentido de reproduzir as relações de produção
capitalistas e cabe ao movimento revolucionário e organizações, indivíduos, etc.,
revolucionários lutar para que tais instituições não consigam efetivar isso com eficácia e
tentar influenciar suas ações. No mesmo sentido, inclusive para conseguir isso, é
necessário reforçar a participação e auto-organização dos indivíduos atuantes no seu
interior, bem como das organizações de base e dos trabalhadores locais, buscando
influenciar as lutas internas e articulá-las com as lutas externas (do proletariado e do
movimento revolucionário no conjunto da sociedade civil e no modo de produção
capitalista), buscando aumentar o peso dos trabalhadores e outros envolvidos nas
relações sociais internas nestas instituições e enfraquecer a burocracia, o autoritarismo,
etc. Para concretizar isso é necessária uma ampla luta cultural no interior de tais
instituições (e que também é reforçado pela luta cultural no conjunto da sociedade
civil), no sentido de combater a burocracia e o objetivo de reproduzir as relações de
produção capitalistas, bem como para aglutinar pessoas nessa luta e divulgar novas
concepções, valores, etc., abrindo o caminho para a perspectiva do proletariado
revolucionário.
Nos locais de trabalho, estudo e moradia, a luta é praticamente a mesma. Em
muitos casos, os locais de trabalho são instituições burguesas (ou empresas capitalistas,
que, no entanto, buscam reproduzir sua acumulação ampliada, sob direção burocrática)
e assim a luta é a mesma, só que com o foco na questão do trabalho (é o caso, por
exemplo, dos subalternos numa universidade, que, como trabalhadores, se organizam

96
para defender seus interesses enquanto funcionários, mas avança no sentido da auto-
organização e autoformação e, ao mesmo tempo, se alia com os estudantes e sua luta e
também, quando existir, com os professores que apoiam a mesma luta) e o mesmo
ocorre com os estudantes (cuja situação nas universidades e escolas difere dos
funcionários e professores, mas que deve promover uma articulação e união, pois assim
encaminha suas lutas específicas e também lutas mais gerais, sendo que estão
articuladas e são reforçadas por outras lutas dos outros setores, já que o adversário
comum é a burocracia e a burguesia). Nos locais de moradia a questão é diferenciada,
bem como a luta nos locais de trabalho e estudo assumem novas dimensões quando
superam os limites de sua instituição (e este deve ser o objetivo, a luta é dentro da
instituição, mas cujo objetivo deve ser se ampliar para diversas outras e articulando com
diversas outras lutas). No local de moradia podem existir ou não organizações
burocráticas, tal como uma associação de bairro ou centro comunitário burocratizados,
mas cuja participação nelas não é necessária, pois é possível formar outras formas de
auto-organização sem precisar participar das já burocráticas (da mesma forma que em
uma universidade os funcionários podem criar uma forma de auto-organização e os
estudantes pode fazer o mesmo, ou, se preferirem, podem disputar as organizações de
base, no caso, os centros acadêmicos), sendo possível também buscar reconquistar as
associações de bairros, por serem organizações de base e assim desburocratizá-las7.
Essas formas de auto-organização e reconquista das organizações de base são
importantes para realizar o processo de criação de uma correlação de forças favoráveis
na luta existente na sociedade civil8, o que, por sua vez, tende a reforçar as lutas de

7
Claro é que aqui não se trata de “compor” ou “participar” das associações existentes e já burocratizadas
e sim superá-las por novas associações – seja através da derrota eleitoral dos dirigentes da atual e
instauração de nova forma organizacional não-burocrática, seja através de criação de outra associação,
embora isso possa ser feito com outro nome também.
8
Obviamente que isso pressupõe uma estratégia revolucionária, ou seja, não se propõe aqui apenas
defender “horizontalidade” nas organizações e lutas reivindicativas e sim auto-organização e articulação
entre lutas reivindicativas/específicas e imediatas com lutas gerais/proletárias e a longo prazo,
revolucionárias e autogestionárias. Assim, não se trata de reformismo com discurso revolucionário
apenas para os pares (os outros supostos revolucionários, tal como alguns que querem atuar nos bairros
e outros lugares através apenas de reinvindicações limitadas e evitando propostas mais radicais e nos
encontros com outros agrupamentos revolucionários afirmam sua concepção supostamente extremista –
ou seja, são revolucionários junto com revolucionários, mas são reformistas junto com a população). Por
isso é fundamental a estratégia revolucionária e não perder de vista na prática concreta o projeto
autogestionário e a articulação das lutas a nível local, regional, nacional e mundial, na medida do
possível, em certos casos.
97
classes na produção e, caso haja ascensão das lutas sociais em geral, haverá uma maior
politização da população e maior possibilidade de emergir uma situação revolucionária.
A atuação nos movimentos sociais já é mais complicada. Isso se deve ao fato
da existência de uma hegemonia burguesa no seu interior, bem como da força da
burocracia. Os movimentos sociais expressam grupos sociais e no seu interior acaba
predominando os indivíduos de origem burguesa ou burocrática, inclusive pelos
recursos não somente individuais, mas também governamentais que flui para os cofres
de grande parte deles. A formação cultural formal dos indivíduos burgueses, burocratas
e intelectuais ajudam a manter sua hegemonia em tais movimentos. Isso é ainda mais
forte no caso de certos movimentos sociais, como o movimento negro, no qual grande
parte dos indivíduos que atuam no mesmo está numa posição superior dentro da
população negra (são burgueses, burocratas, intelectuais) e por isso são solidários com a
mentalidade burguesa e burocrática, aliados e cooptados dos governos, empresas
financiadoras, etc. Os jovens e integrantes das classes exploradas ou são marginais em
tais movimentos, ou criam pequenas organizações que não conseguem o mesmo espaço,
sendo geralmente alvos de busca de cooptação por parte das classes privilegiadas e do
Estado. O movimento feminista segue a mesma dinâmica.
A cooptação ocorre sob várias formas. Uma delas é a hegemonia cultural
burguesa na sociedade civil e nos meios intelectuais, que fornece ideologias que buscam
amenizar a radicalidade do movimento negro. O sucesso de tais ideologias e sua
reprodução por indivíduos negros cooptados, ajuda a convencer os novos militantes
sobre a justeza de tais produções ideológicas. Outro elemento é a cooptação através do
poder e do dinheiro, pois o indivíduo negro, vindo das classes exploradas e
desprivilegiadas, consegue um certo reconhecimento, cargo, dinheiro, nas organizações
burocratizadas, partidos, governos, escolas, instituições de pesquisa, e acabam, assim,
mudando o discurso e perdendo a radicalidade. Obviamente que isto não atinge a todos,
mas uma grande parte, principalmente graças à força da mentalidade burguesa.
Esse processo se manifesta também no movimento feminista, pacifista,
ecológico, entre diversos outros. Nesse sentido, é fundamental a luta cultural contra as
ideologias existentes e dominantes em tais movimentos, apesar disso ser muitas vezes
impopular e existir sempre o discurso que quer colocar o sexo, raça ou outra coisa acima

98
da questão da classe e luta de classes9. Da mesma forma, a atuação nos movimentos
sociais pelos indivíduos que são os seus supostos beneficiados (negros, mulheres, etc.) é
fundamental. Claro que há também outros movimentos sociais, como o estudantil, mas
este se manifesta nas instituições burguesas e por isso tem outra lógica, apesar do
processo de cooptação também ser poderoso e atuante, mas não tem o mesmo sentido de
ligação sentimental e de pertencimento de grupo como tem no caso do sexo e da raça10.
No caso dos movimentos sociais, a atuação pode ser através da luta cultural
externa, sem participar deles, ou interna, participando (de uma forma ou de outra, seja
criando algum produto cultural como um jornal, ou um grupo de ação e estudos, etc.).
No caso da luta cultural externa, qualquer indivíduo pode contribuir, desde a realização
de pesquisas e produções teóricas (incluindo a crítica das ideologias anteriormente
citadas) e artísticas, até o processo de divulgação do que se produziu de melhor e de
caráter revolucionário em sua história, bem como incentivo à autoformação. No caso da
luta cultural interna, trata-se de processos iguais aos anteriores acrescentando-se debates
internos, criação de auto-organização, incentivo a autoformação, etc. Além e ao lado da
luta cultural, a criação de grupos e formas de auto-organização, apresentação de
propostas alternativas, criação de estratégias revolucionárias (o que pressupõe unir as
lutas específicas do movimento com as lutas gerais do proletariado e das questões
imediatas com as da transformação social radical), etc. Isso significa lutar e deixar claro
no sentido teórico e programático a necessidade de superação do capitalismo como
forma de superação do racismo, sexismo, destruição ambiental, que são todos produtos
do modo de produção capitalista, mesmo aquilo que existiu antes, assumindo nova
forma e fundamentação na sociedade burguesa.
A atuação no interior dos movimentos sociais só tem sentido se for para
reforçar a perspectiva do proletariado no seu interior e corroer a hegemonia burguesa.
Sem dúvida, que isso depende do que se entende por movimento social. Alguns limitam
os movimentos sociais a organizações, e, obviamente, eles geram organizações, mas não

9
Trata-se da estratégia de desqualificar o discurso dos opositores ao afirmar que quem o faz não é
mulher, negro, etc., como se o mero pertencimento ao grupo fosse algo essencial – apesar de criticar o
essencialismo... – para que sua posição seja justa ou correta. Embora existam negros, mulheres, etc. que
fazem oposição, eles são desconsiderados também e estariam, no discurso ideológico, sob domínio da
concepção branca, masculina, etc.
10
Usamos sexo e não gênero, pois a ideologia do gênero é mais uma que deve ser combatida (VIANA,
2006), bem como usamos os termos raça e negro, para evitar os eufemismos (e confusões) de outras
ideologias integradoras (VIANA, 2009b; VIANA, 2009c).
99
se confundem com elas. Os movimentos sociais são ações coletivas de indivíduos,
grupos, organizações visando expressas necessidades, interesses, projetos, de
determinados grupos sociais. Isso é realizado sob formas espontâneas, ações,
manifestações, protestos, grupos informais e formais, organizações, produção cultural,
etc. Os Panteras Negras, nos Estados Unidos, é parte do movimento negro, sendo uma
organização, mas diversas outras organizações, concepções, ações e grupos informais,
existiram antes, durante e depois. O movimento negro vai muito além de um grupo ou
organização específicas. O mesmo se pode afirmar do movimento feminista, que tem no
seu interior posições distintas e variadas formas de manifestação. Assim, quando se cria
um coletivo ou ação ecológica, torna-se parte do movimento ecologista (uma de suas
formas de manifestação), enquanto que a produção intelectual voltada para a questão
ambiental, se for isolada, é algo externo, mas se for algo mais constante, também se
torna parte do mesmo, pois as representações e teorias produzidas são formas de ação e
que tem eficácia prática.
Obviamente que existem também movimentos sociais conservadores. Não se
trata aqui de tendências conservadoras nos diversos movimentos sociais e sim
movimentos que, por sua própria razão de ser, são conservadoras. O antissemitismo, por
exemplo, é um movimento social religioso conservador, pois a sua razão de ser é
combater os judeus e não abolir uma forma de opressão ou defender satisfação de
necessidades (como os movimentos sociais urbanos) ou, ainda, constituir uma nova
sociedade. Esses, obviamente, devem ser combatidos, pois não apontam para a
emancipação humana e sim para a reprodução do capitalismo. Isso é semelhante ao caso
das tendências conservadoras dominantes nos movimentos sociais, embora com a
diferença de que estes sejam menos reacionários por não ter o conservadorismo em sua
razão de ser e sim como uma proposta conservadora de pseudossolução para uma
situação de opressão ou necessidade social, entre outras possibilidades. Algumas vezes
há uma aproximação entre as duas formas, tal como se vê no Scum Manifesto, de
Valerie Solanas, cujo subtítulo é “uma proposta para a destruição do sexo masculino”, o
que por si só já mostra o seu caráter problemático.
Desta forma, é possível que as organizações (e indivíduos) revolucionárias
atuem interna ou externamente aos movimentos sociais e, em alguns casos, realize a sua
crítica em suas tendências conservadoras e reformistas. Essa é uma possibilidade que, é

100
claro, depende de algumas condições que não são geradas apenas pela organização
revolucionária. Nesse contexto, o estágio da luta proletária é fundamental, inclusive
para que a hegemonia burguesa nos movimentos sociais seja enfraquecida. Daí o foco
da organização revolucionária deve ser mais no proletariado do que nos movimentos
sociais. Apesar disso e dentro das possibilidades existentes, é necessário atuar em
relação (interna ou externa) aos movimentos sociais, pois eles também influenciam o
movimento operário.
Esse conjunto de propostas é a ação possível, especialmente para momentos
não-revolucionários, e pode parecer muito pouco para os vanguardistas e para os que
concebem a revolução como insurreição armada e conquista do poder estatal, na qual o
grupo se torna o agente revolucionário em substituição ao proletariado. Claro está que a
concepção aqui não é vanguardista e nem praticista, que nisso se aproxima do
vanguardismo em alguns momentos. Também não é intelectualista ou reboquista. Esses
obstáculos existentes e influentes no movimento revolucionário devem ser superados
para que ele contribua mais efetivamente com o movimento operário e a revolução
proletária.
Claro também que tais propostas encontram dificuldades em se realizar
completamente, pois existem as dificuldades individuais, a conjuntura e contexto nos
quais os indivíduos estão envolvidos, épocas de menor empenho de determinadas
pessoas, menores possibilidades de ação e articulação, etc. No entanto, apesar das
dificuldades, é necessário buscar concretizar, mesmo que parcialmente, essas propostas,
pois isso abre espaço para o avanço na luta e sua concretização mais ampla
posteriormente e junto com o avanço da luta proletária, que pode ter saltos em certos
momentos históricos devido a questões conjunturais e crises do capitalismo, pode
colaborar mais efetivamente com a revolução proletária e instituição da autogestão
social.

101
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da presente obra foi abordar teoricamente a questão da organização


revolucionária. Sem dúvida, é um trabalho incompleto, pois diversas questões
precisariam ser aprofundadas ou abordadas, tais como a questão dos partidos políticos,
dos sindicatos, da relação entre discurso-prática, da relação entre indivíduo e classe, dos
movimentos sociais, entre inúmeros outros. Alguns destes assuntos foram tratados
sumariamente, pois demandaria um espaço enorme e comprometeria a obra com uma
extensão muito grande e já existem outros trabalhos que aprofundam essa discussão, tal
como no caso dos partidos políticos (VIANA, 2013; MICHELS, 1980), para citar só um
exemplo. Outros, não foram tratados ou foram apenas mencionados, mas em obras
futuras e desdobramentos posteriores devem ser contemplados, se já não o foram, tal
como a questão da repressão e dos cuidados em relação à mesma.
No conjunto, a presente obra cumpriu com o seu papel ao tratar de questões
essenciais e pouco discutidas nos meios libertários a respeito da organização
revolucionária. A questão da organização, muitas vezes relegada a segundo plano, seja
devido ao individualismo, forte influência burguesa na sociedade em seu conjunto e até
em indivíduos que se autodenominam revolucionários, seja devido ao praticismo ou
outros problemas que existem nas lutas de classes, é um problema a ser debatido mais
amplamente. A recusa da burocracia e do vanguardismo leva, muitas vezes, à recusa da
organização, o que é uma confusão entre formas e processos distintos. O vanguardismo
e a burocracia são relações sociais concretas, sendo que o primeiro tem toda uma
ideologia legitimadora e mesmo quando aparece sem declarar ou buscar se legitimar
ideologicamente, é bem visível em seu dirigismo e burocratismo. A burocracia é uma
relação social concreta entre dirigentes e dirigidos e se distingue de outros tipos de
relações sociais, não sendo sinônimo de organização.
O fundamental que a presente obra quis passar é que a organização
revolucionária é importante no processo de luta de classes e para a vitória da revolução
proletária e que ela pode ser uma forma de auto-organização dos revolucionários e que
102
precisa ter clareza de seus objetivos, meios, concepções, além de que deve cuidar do
processo de auto-organização interno, não reproduzindo o burocratismo. A luta de
classes ocorre em todos os lugares, como já dizia Korsch, e essa luta se influencia
reciprocamente, o que demonstra a importância de uma organização revolucionária que
atue e contribua com a hegemonia proletária e a luta em geral dos trabalhadores, seja na
forma de produção cultural (teórica, artística, propagandística) ou em atuação direta na
sociedade civil.
O resultado final de um processo histórico determinado, como o golpe de
estado bolchevique em 1917, é resultado de múltiplas determinações, entre elas a luta
proletária, a luta dos revolucionários, a luta das demais classes e estas lutas se
manifestam em diversos lugares (nos conselhos operários, no campo, nas ruas, etc.) e
sob diversas formas (teoria, propaganda, produção cultural em geral) e a existência de
uma compreensão mais clara do marxismo autêntico e uma força maior em sua ação
(bem como união com outras tendências próximas que também se iludiram com o
bolchevismo), principalmente mostrando o que era o Partido Bolchevique e a
necessidade de destruição do aparato estatal pelas formas de auto-organização do
proletariado, poderia ter contribuído, e, quem sabe, até conseguido, obter outro
resultado histórico.
Por isso, ao invés de se preocupar fundamentalmente com a imagem da
organização, o que os militantes de partidos (entre outros) dizem, a simpatia popular
imediata e geral, as possibilidades de atendimento de reivindicações imediatas, a
organização revolucionária tem que pensar no futuro, pois é isto que lhe caracteriza
como sendo revolucionária: o seu objetivo é a revolução, a transformação radical do
conjunto das relações sociais, e não lutas presentes por elas mesmas, estas só possuem
sentido ao colaborar com a concretização desse objetivo. Não se trata, portanto, de
“lutar por lutar” e sim lutar para fortalecer um projeto (autogestionário) e tendência real,
a autogestão social. O foco é no futuro e no que se faz no presente que colabora com sua
concretização. O hoje só tem importância pelo que ele reforça como tendência para o
amanhã.
E é justamente por pensar no futuro que a organização revolucionária pode
desprezar as pequenas do presente, as disputas por cargos e picuinhas políticas menores
que são, no fundo, reproduções da sociabilidade burguesa. Ao mesmo tempo, não cai no

103
voluntarismo pensando que o futuro é o presente, o presente é de luta, o futuro é a
realização. No presente lutamos, algumas coisas superamos, outras almejamos superar e
algumas não conseguimos apesar de desejar. Uma das promessas do futuro em uma
sociedade autogerida é a realização do humanismo real e concreto, mas na nossa
sociedade, ele é possível apenas parcialmente, pois não é possível tratar de forma
humanista aqueles que reprimem, matam, torturam, para citar apenas um exemplo. O
humanismo radical, concreto, é uma luta e só com a concretização de novas relações
sociais é que se torna generalizado, assim como a autogestão. As supostas “revoluções
no cotidiano” e “individuais” são quimeras falsas e apenas hipocrisia de alguns.
Obviamente que muita coisa é preciso e é efetivamente superado pelos revolucionários,
mas nem tudo, uma transformação total dos indivíduos dentro do capitalismo é uma
impossibilidade prática e ilusória. Da mesma forma, planos detalhados do futuro sobre a
vida cotidiana e diversas outras coisas é algo problemático e que se esquece de que
quem faz tais planos são indivíduos dessa sociedade, do presente, e envolvido com ele,
podendo ser apenas um reprodutor de concepções burguesas ou desequilíbrios
psíquicos1, e não algo que seja desejável e expressão da natureza humana.
A proliferação de organizações revolucionárias e ampliação das lutas
revolucionárias é algo de grande importância para a emancipação humana. A presente
obra cumpriu o seu papel em realizar uma reflexão sobre tal forma organizacional,
mesmo que de forma relativamente incompleta, e que pode ter o efeito prático, por
mínimo que seja, no reforço desse processo de proliferação e ampliação da luta. A
proliferação de organizações revolucionárias significa, no fundo, um avanço geral da
luta e sua articulação regional, nacional, mundial, significa o reforça da tendência
revolucionária-autogestionária. Assim, uma vez existindo um conjunto de organizações
revolucionárias articuladas regional, nacional e/ou mundialmente, seria necessário

1
Por isso é extremamente problemático valorar tudo que é reprimido e condenado na atual sociedade,
pois esta mesma sociedade cria desequilíbrios psíquicos e os indivíduos desequilibrados podem se
colocar como “modelo” a ser seguido e generalizado na sociedade futura, o que pode ser apoiado por
outros por pensar que sendo resistência ou vítima de opressão é natural e deve ser defendido. Além
disso, a força dos valores dominantes, das ideologias burguesas que tentam assimilar as concepções
revolucionárias, são suficientes para se ter cuidado com tais posicionamentos. Somente se existisse um
indivíduo sem nenhum valor burguês, nenhum desequilíbrio psíquico, nenhuma idiossincrasia
comprometedora, nenhuma influência de ideologias burguesas, é que poderia imaginar detalhes e com
certeza como seriam as relações pessoais, por exemplo, na sociedade autogerida. Tal indivíduo não
existe e, portanto, a articulação revolucionária deve se centrar nos aspectos mais gerais e consensuais, o
que não impede que indivíduos e grupos defendam causas específicas, desde que não queiram impô-las
e generalizá-las. O que é inaceitável é querer transformá-las no eixo central da proposta revolucionária.
104
aprofundar a discussão sobre isso. Esse é algo que aqui foi pouco explorado, pois a
necessidade premente do tempo presente é refletir sobre a base que ao se desenvolver,
promove novas necessidades e produções teóricas. A articulação das organizações
revolucionárias será objeto de obra futura, de acordo com o que esperamos que seja em
breve uma situação futura, o que significa que uma nova sociedade está germinando na
atual, nas fábricas, ruas, casas, empresas, campos, minas, bairros, escolas, e nós não
reforçamos a reprodução do existente e sim lutamos por sua abolição e pela
emancipação humana. A cada avanço, um novo avanço é possível, e cada vez mais se
contribui com o objetivo final, a autogestão social.

105
REFERÊNCIAS

BERNARDO, João. Capital, Sindicatos e Gestores. São Paulo: Vértice, 1987.

BERNARDO, João. Dialéctica da Prática e da Ideologia. Porto: Afrontamento, 1991.

BERNSTEIN, Eduard. Socialismo Evolucionário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BRINTON, Maurice. Os Bolcheviques e o Controle Operário. Porto: Afrontamento,


1975.

FROMM, Erich. Análise do Homem. 13ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

FROMM, Erich. O Dogma de Cristo. 5ª edição, Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

IBRAHIM, José. Comissões de Fábrica. São Paulo: Global, 1986.

KAUTSKY, Karl. As Três Fontes do Marxismo. Rio de Janeiro: Centauro, 2002.

LÊNIN, Wladimir. Como Iludir o Povo? São Paulo: Global, 1979.

LÊNIN, Wladimir. Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. 6ª edição, São Paulo,


Global, 1989.

LÊNIN, Wladimir. Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético. Belo


Horizonte: Oficina de Livros, 1988.

LÊNIN, Wladimir. O Estado e a Revolução. São Paulo: Global, 1987.

LÊNIN, Wladimir. Que Fazer? São Paulo, Hucitec, 1978.

LENINE, Wladimir. Carta a um Camarada sobre as Nossas Tarefas de Organização.


In: LÉNINE, Wladimir. Partido Proletário de Novo Tipo. Lisboa: Edições Avante,
1975.

LUXEMBURG, Rosa. A Questão da Organização da Socialdemocracia Russa. In:


LUXEMBURG, Rosa. A Revolução Russa. Petrópolis, Vozes, 1991.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma Social ou Revolução? São Paulo, Global, 1986.

MARX, Karl Contribuição À Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo,


Martins Fontes, 1983.
106
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo:
Hucitec, 1992.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas. In: Marx, Karl e outros. A Questão do
Partido. São Paulo, Kairós, 1978b.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. In: LASKY, Harold. J. O


Manifesto Comunista de 1848. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis,


Vozes, 1988.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo, Global, 1985.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa, Presença, 1979.

MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelmann. 5ª Edição, Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1986.

MEIJER, H. Canne. O Movimento dos Conselhos Operários na Alemanha (1918-1921).


Coimbra: Centelha, 1976.

MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília, UnB, 1980.

PANNEKOEK, Anton. A Revolução dos Trabalhadores. Florianópolis: Barba Ruiva,


2007.

PANNEKOEK, Anton. Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários. Rio de Janeiro:


Rizoma, 2012.

REIS FILHO, Daniel Aarão. A Revolução Alemã: Mitos e Versões. São Paulo:
Brasiliense, 1984.

RÜHLE, Otto. A Revolução Não é Tarefa de Partido. In: AUTHIER, Denis. A


Esquerda Alemã: Doença Infantil ou Revolução? Porto: Afrontamento, 1978.

RÜHLE, Otto. Da Revolução Burguesa à Revolução Proletária. Porto, Publicações


Escorpião, 1975.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios sobre o Materialismo Histórico-


Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. São Paulo: Ideias e Letras,
2014.

107
VIANA, Nildo. Anton Pannekoek e a Questão Sindical. In: BRAGA, Lisandro e
VIANA, Nildo (orgs.). Anton Pannekoek e a Questão da Organização. Rio de Janeiro:
Achiamé, 2011.

VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. In: SANTOS, Cleito Pereira e VIANA, Nildo
(orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009b.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. 4ª edição, Rio de Janeiro: Zagodoni,


2014b.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional


no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

VIANA, Nildo. Gênero e Ideologia. In: VIANA, Nildo (org.). A Questão da Mulher.
Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 20066.

VIANA, Nildo. Manifesto autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008b.

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Idéias e


Letras, 2009.

VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Rio de Janeiro: Elo, 2008a.

VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos? Brasília: Kíron, 2013.

VIANA, Nildo. O Que São Partidos Políticos? Goiânia: Edições Germinal, 2003.

VIANA, Nildo. Raça e Etnia. In: SANTOS, Cleito Pereira e VIANA, Nildo (orgs.).
Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009c.

VIANA, Nildo. Rosa Luxemburgo e a Autogestão Social. Rio de Janeiro: Rizoma, 2013.

108

Você também pode gostar