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Importância dos animais domésticos sentinelas na identificação de áreas de


risco de emergência de doença de Chagas

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André Luiz Rodrigues Roque Ana Maria Jansen


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Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical XXIV Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas
Vol: 41 (Suplemento III), 2008 XII Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Leishmanioses

Importância dos animais domésticos sentinelas na identificação


de áreas de risco de emergência de doença de Chagas

The importance of sentinel domestic animals to identify risk areas to the


emergence of Chagas disease
André Luiz R. Roque1 e Ana Maria Jansen1

RESUMO
Apresentamos resultados da infecção de animais silvestres e domésticos por Trypanosoma cruzi em três áreas de surtos de doença de Chagas aguda
por via oral, além de uma área controle. O papel dos animais domésticos como sentinelas é discutida como medida de vigilância epidemiológica na
identificação de áreas de risco.
Palavras-chaves: Trypanosoma cruzi, Surtos orais de doença de Chagas, Reservatórios, Animais sentinelas.

ABSTRACT
We report results of Trypanosoma cruzi infection in wild and domestic mammals from three areas where orally acquired Chagas disease outbreaks
occurred in Brazil, moreover a control area. The importance of domestic animals as sentinels is discussed in order to identify risk areas.
Key-words: Trypanosoma cruzi, Chagas disease oral outbreaks, Reservoirs, Sentinel animal species.

Classicamente a doença de Chagas se caracterizava por Não é de hoje que surtos de doença de Chagas aguda (DCA)
ser prevalente em populações rurais, onde eram encontrados pela ingestão de alimentos contaminados são documentados. Mas
numerosos insetos vetores nas casas de pau-a-pique. A apenas recentemente esse perfil epidemiológico de transmissão
eliminação da transmissão domiciliar por Triatoma infestans deixou de ocorrer em casos esporádicos para adquirir um
resultou que o Brasil, e outros países da América do Sul, fossem importante papel na epidemiologia da doença de Chagas, em
considerados livre desta modalidade de infecção pela Comissão especial após a morte de 3 pessoas durante surto ocorrido em
Intergovernamental do Cone Sul1. Entretanto, a transmissão Navegantes/SC, em 20052.
vetorial extradomiciliar, transmissão vetorial domiciliar ou Nesse trabalho, avaliamos a infecção por Trypanosoma cruzi
peridomiciliar sem colonização do vetor, e a contaminação de
em animais silvestres, sinantrópicos e domésticos imediatamente
alimentos por triatomíneos infectados representam desafios para
após a ocorrência dos surtos em Navegantes/SC (2005), Redenção/
os quais as medidas de controle adotadas contra o T. infestans
CE e Cachoeiro do Arari/PA (2006). Uma quarta área, Panacauera,
não são eficazes.
município de Igarapé-Mirim/PA (2007), que não apresentava
O Trypanosoma cruzi é um parasito multi-hospedeiro capaz casos agudos, também foi avaliada. Nosso objetivo foi o de buscar
de infectar mais de uma centena de espécies de mamíferos e um melhor entendimento dos fatores enzoóticos envolvidos nesse
nestes, quase todos os tecidos. Entre seus vetores estão incluídos novo/primitivo perfil epidemiológico de transmissão, bem como a
dezenas de espécies de triatomíneos da família Reduviidae. Quase identificação de fatores comuns de risco que possam ser utilizados
todas suas formas evolutivas são capazes de infectar (à exceção em programas de vigilância sustentável.
da forma epimastigota) e essa infecção se dá por diferentes vias:
contaminação de pele e mucosas com fezes de triatomíneos Os cenários encontrados nas três áreas de surtos agudos foram
infectados, transfusional, congênita e oral. A plasticidade biológica descritas anteriormente3. A região de Panacauera caracteriza-se
do T. cruzi resulta em ciclos de transmissão na natureza que se por ser uma região Amazônica alagada que apresenta severa
caracterizam por serem multivariáveis, complexos e peculiares substituição da vegetação original por palmeiras de açaí. Esta
em escala temporal e espacial. região apresentou uma situação inteiramente distinta das demais
onde surgiram surtos: a população local não aponta para a
observação de fauna de mamíferos na região, com escassos relatos
1. Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos, Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, de ocorrência do marsupial Didelphis marsupialis.
Rio de Janeiro, RJ
Apoio Financeiro: IOC/FIOCRUZ, VPSRA/FIOCRUZ, CGLab/MS, PAPES/FIOCRUZ, Nas 4 localidades, pequenos mamíferos silvestres e
CNPq, FAPERJ. sinantrópicos foram capturados utilizando-se armadilhas do tipo
Endereço para correspondência: Dra. Ana Maria Jansen. Laboratório de Biologia “live-traps” Tomahawk® (Tomahawk Live Traps CO.) e Sherman®
de Tripanosomatídeos/IOC/Fiocruz. Av. Brasil, 4365 – Pavilhão Carlos Chagas, 3º
andar – Manguinhos, 21040-900, Rio de Janeiro/RJ.
(H.B. Sherman Traps Inc.) dispostas em transectos montados em
Tel: 55 21 2598-4324; Fax: 55 21 2560-6572 diferentes habitats. O esforço total de captura (armadilhas/noite)
e-mail: jansen@ioc.fiocruz.br foi de 820 (Navegantes), 960 (Redenção), 1100 (Cachoeiro do

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ponto comum observado nas três áreas foi a simplificação da fauna


Arari) e 650 (Panacauera). Todos os animais foram levados ao de pequenos mamíferos. A identificação taxonômica completa e
laboratório montado em local próximo onde eram anestesiados os resultados da infecção por Trypanosoma cruzi nos pequenos
(100 mg/kg IM de Dopalen®, Vetbrands, Jacareí/SP) e tinham mamíferos examinados nas 3 áreas de surto foram previamente
seu sangue coletado. A busca ativa por animais domésticos (cães descritos3. Em Panacauera, apenas 2 roedores sinantrópicos
e porcos) ocorreu nas casas no entorno das trilhas montadas para (Rattus rattus) foram capturados em trilhas montadas próximas
coleta de pequenos mamíferos. A coleta de sangue foi realizada a habitações humanas. Os animais foram negativos nos 3 exames
através de punção de veia cefálica utilizando-se tubos vacutainer diagnósticos realizados. De todos os animais, apenas duas
contendo anticoagulante. As capturas de pequenos mamíferos espécies de marsupiais (Didelphis albiventris em Navegantes e
foram realizadas de acordo com as licenças 068/05 e 225/06 Monodelphis domestica em Redenção) foram positivos no exame
do IBAMA. Todos os procedimentos com animais seguiram à fresco. A prevalência de infecção por sorologia e hemocultivo de
protocolo aprovado no Comitê de Ética do uso de Animais da todos os grupos de animais examinados nas 4 localidades estão
Fiocruz (0179/03). contidos na Tabela 1.
O diagnóstico de infecção por T. cruzi foi baseado em: A destruição dos ecossistemas tem levado as populações de
1) Exame a fresco de sangue a fresco - através da montagem mamíferos silvestres a uma importante restrição de área e alimentos,
de uma lâmina de sangue de cada espécime examinado; 2) além de promover um maior contato com o homem. Esse cenário
Hemocultivo - realizada pela inoculação de sangue em tubos desfavorável resulta na diminuição de habitats e leva à extinção de
contento meio de NNN (Nicolle, Novy and Mc Neal) com LIT espécies que não suportam alterações ambientais. Nas três áreas de
(Liver Infusion Triptose), sendo os tubos de hemocultura surto, o risco de transmissão do parasito esteve direta ou indiretamente
examinados quinzenalmente por até cinco meses; 3) Sorologia relacionado à mudança de paisagem decorrente de ação antrópica
- através da Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI), (mau uso da terra) e à simplificação da fauna e seleção de espécies de
segundo Camargo4. Os soros foram diluídos serialmente em uma mamíferos generalistas e competentes reservatórios do Trypanosoma
proporção decrescente de 2x (1:10 – 1:1280) e testados com Kit cruzi (apresentam parasitemia patente, refletida por hemocultivo
de Diagnóstico IFI-Chagas – Bio-Manguinhos adaptado. Os soros positivo)3. Nesse cenário, a transmissão do parasito é aumentada
de roedores da família Muridae foram testados com IgG anti- rato devido: (i) amplificação da população parasitária pelas espécies
conjugado a Isotiocianato de Fluoresceína da Sigma® (St. Louis, reservatórios favoravelmente selecionadas; (ii) maiores chances
MO, EUA). Os roedores da família Echimyidae e os marsupiais de transmissão, devido ao perfil de infecção nesses competentes
foram testados com anticorpos intermediários específicos anti-Ig reservatórios; (iii) restrição das fontes alimentares de triatomíneos
de Thrichomys sp. e anti-Ig de Didelphis sp obtidos em coelhos, aos animais com parasitemias expressivas; e, conseqüentemente, (iv)
sendo a reação revelada utilizando-se IgG anti-coelho conjugado a aumento da prevalência de triatomíneos infectados.
Isotiocianato de Fluoresceína da Sigma®. Os cães e porcos foram A escassez de fontes alimentares para triatomíneos (perda de
testados com IgG anti-dog ou anti-pig conjugado a Isotiocianato fauna silvestre) e animais silvestres (destruição do ambiente) faz
de Fluoresceína da Sigma®. com que esses animais se aproximem de áreas domiciliadas, onde
A interpretação dos nossos resultados teve como base os animais domésticos passam a estar mais expostos, sendo sua
os distintos perfis de infecção dos animais que refletem infecção normalmente precedente à do homem. Nossos resultados
transmissibilidade. Exame a fresco e hemocultivo quando positivos nas 4 localidades estudadas, bem como outros estudos anteriores
(principalmente o primeiro), demonstram a parasitemia no do nosso grupo5;6 mostram que a infecção dos animais domésticos
animal em questão, o que significa uma alta chance de transmissão esteve restrita à positividade nos testes sorológicos. Nesse cenário,
ao vetor. O teste sorológico aponta para a exposição do animal a esses animais atuavam como barreiras biológicas visto que
infecção. Portanto, um animal positivo apenas no teste sorológico, estão expostos ao ciclo de transmissão, mas sem participação
demonstra estar exposto ao ciclo de transmissão, é um hospedeiro ativa na amplificação do parasito, uma vez que não apresentam
do parasita, mas naquele momento não está envolvido na hemocultivos positivos. Exatamente pelo fato da infecção desses
amplificação das populações parasitárias, ou seja, seu potencial animais precederem a do homem, os animais domésticos atuam
de transmissão ao vetor é baixa. como sentinelas de áreas com um sistema de transmissibilidade
O sucesso total de captura foi de 2.6% em Navegantes, 2.9% em do parasito altamente eficiente e, portanto, com risco iminente
Redenção, 2.4% em Cachoeiro do Arari e 0,3% em Panacauera. O de transmissão para o homem.

Tabela 1
Prevalência de infecção por Trypanosoma cruzi (sorologia – RIFI e hemocultivo) em animais provenientes de três áreas com ocorrência de surtos de doença de Chagas
Aguda (Navegantes/SC, Redenção/CE e Cachoeiro do Arari/PA) e uma área controle sem ocorrência de casos agudos (Panacauera/PA).
Navegantes Redenção Cachoeiro do Arari Panacauera
Sorologia Hemocultivo Sorologia Hemocultivo Sorologia Hemocultivo Sorologia Hemocultivo
Cães 50,0% 0,0% 18,7% 0,0% 41,7% 0,0% 4,0% 0,0%
Porcos n.e. n.e. n.e. n.e. 72,7% 0,0% 60,0% 0,0%
Animais Silvestres 59,1% 38,5% 78,6% 22,7% 38,7% 91,7% 0,0% 0,0%
ne: não examinado.

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Outro fator importante que deve ser levado em consideração AGRADECIMENTO


na definição de áreas de risco é a micro-regionalidade das
características de manejo dos animais domésticos. Em Cachoeiro Agradecemos a todos os envolvidos dos laboratórios de
do Arari e Panacauera, os cães ficam mais restritos a áreas Biologia de Tripanosomatídeos e de Biologia e Parasitologia
domiciliares enquanto os porcos são criados de maneira semi- de Mamíferos Silvestres Reservatórios, Instituto Oswaldo Cruz,
extensiva. Por esse motivo, eles se expõem muito mais ao ciclo da Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde e
silvestre de transmissão e apresentaram maiores prevalências Secretarias Estaduais de Saúde de Santa Catarina, Ceará e Pará.
de infecção. O contrário pode ser observado em áreas rurais
onde os porcos são criados confinados e os cães circulam entre
as casas e os fragmentos de mata remanescentes. A presença REFERÊNCIAS
de cães de hábitos estritamente domiciliados sorologicamente
positivos, como observado em Navegantes, sinaliza a presença 1. Schofield CJ, Jannin J, Salvatella R. The future of Chagas disease control. Trends
in Parasitology 22: 583-588, 2006.
de um ciclo de transmissão bem próximo ao domicílio. Por
2. BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
outro lado, a prevalência de infecção maior em animais criados Gerenciamento do Risco Sanitário na Transmissão de Doença de Chagas Aguda
de maneira semi-extensiva (porcos de Cachoeiro do Arari, por por Alimentos. Nota Técnica no 35, 19 de junho de 2008.
exemplo) indica que a transmissão está ocorrendo longe das 3. Roque AL, Xavier SC, da Rocha MG, Duarte AC, D'Andrea PS, Jansen AM.
casas, mas dentro das áreas de interface entre os ambientes Trypanosoma cruzi transmission cycle among wild and domestic mammals in
three areas of orally transmitted Chagas disease outbreaks. American Journal of
doméstico e silvestre. Em Panacauera, onde não foi capturado
Tropical Medicine and Hygiene 79: 742-749, 2008.
nenhum animal silvestre, a prevalência de infecção em cães foi
4. Camargo ME. Fluorescent antibody test for the serodiagnoses of American
insignificante. Trypanosomiasis: technical modification employing preserved culture forms of
A utilização de mamíferos domésticos como animais Trypanosoma cruzi in a slide test. Revista do Instituto de Medicina Tropical de
São Paulo 8: 227-234, 1966.
sentinela já foi proposta na Argentina7, Venezuela8, México9
5. Herrera L, D'Andrea PS, Xavier SC, Mangia RH, Fernandes O, Jansen AM. Trypanosoma
e Estados Unidos 10 e é uma medida de fácil e imediata cruzi infection in wild mammals of the National Park 'Serra da Capivara' and its
implementação. Os cães em especial são animais de fácil surroundings (Piaui, Brazil), an area endemic for Chagas disease. Transactions of
manuseio e rastreabilidade. Sua coleta de sangue e realização the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene 99: 379-388, 2005.
de exame sorológico (ou envio do material a serviços centrais 6. Herrera HM, Rademaker V, Abreu UG, D'Andrea PS, Jansen AM. Variables that
modulate the spatial distribution of Trypanosoma cruzi and Trypanosoma
de diagnóstico) não demandam grande custo e estruturação.
evansi in the Brazilian Pantanal. Acta Tropica 102: 55-62, 2007.
Além disso, pode-se realizar o exame a partir do soro que
7. Gurtler RE, Cecere MC, Lauricella MA, Cardinal MV, Kitron U, Cohen JE. Domestic
já é coletado rotineiramente em áreas onde os cães já são dogs and cats as sources of Trypanosoma cruzi infection in rural northwestern
testados para Leishmania ou ainda aproveitar as campanhas Argentina. Parasitology 134: 69-82, 2007.
de vacinação anti-rábica para coletar sangue de uma amostra 8. Crisante G, Rojas A, Teixeira MM, Anez N. Infected dogs as a risk factor in the
representativa dos cães da área. transmission of human Trypanosoma cruzi infection in western Venezuela. Acta
Tropica 98: 247-254, 2006.
A presença de cães sorologicamente positivos reflete 9. Estrada-Franco JG, Bhatia V, az-Albiter H, Ochoa-Garcia L, Barbabosa A,
exposição ao T. cruzi e apontam para a transmissão do parasito Vazquez-Chagoyan JC, Martinez-Perez MA, Guzman-Bracho C, Garg N. Human
em áreas onde esses animais circulam. Uma vez essa medida Trypanosoma cruzi infection and seropositivity in dogs, Mexico. Emerging
Infectious Diseases 12: 624-630, 2006.
implementada, teremos um eficiente sinalizador de áreas que
10. Shadomy SV, Waring SC, Martins-Filho OA, Oliveira RC, Chappell CL. Combined use
necessitam de um trabalho mais aprofundado de investigação of enzyme-linked immunosorbent assay and flow cytometry to detect antibodies
epidemiológica e de implementação de medidas de controle e to Trypanosoma cruzi in domestic canines in Texas. Clinical and Diagnostic
educação sanitária. Laboratory Immunology 11: 313-319, 2004.

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