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Com mais uma nova pandemia em expansão no planeta, os questionamentos sobre a

transmissão de doenças entre animais e seres humanos voltam a rondar a população. Não é de
hoje que se tem conhecimento de sérias doenças cujas origens estão em algum animal.
Denominadas zoonoses, essas doenças podem ser causadas por bactérias, parasitas, fungos e
vírus que entram em contato com seres humanos a partir de hospedeiros intermediários ou
definitivos como gatos, cachorros, carrapatos, morcegos, aves e bovinos. E já aqui percebemos
que os animais são tão ou mais vítimas destes microrganismos do que nós somos.

Embora os vírus da Dengue, Zika e Chikungunya tenham parte do seu ciclo de vida no
mosquito vetor Aedes aegypti, zoonoses são consideradas apenas quando vertebrados
participam do ciclo do patógeno. Entre as zoonoses mais conhecidas estão a Raiva, transmitida
por animais infectados por um vírus quase 100% fatal; a Leptospirose; causada por uma
bactéria e cuja transmissão acontece pelo contato com urina animais contaminados,
principalmente ratos; a Leishmaniose, que tem como agente infeccioso um protozoário e pode
infectar animais domésticos, selvagens e seres humanos por meio da picada de mosquito; a
Toxoplasmose, com o gato sendo seu hospedeiro definitivo e transmitidas principalmente por
carne crua e verduras mal lavadas; e a Febre Maculosa Brasileira, doença menos popular mas
altamente fatal, transmitida por carrapatos e existente principalmente nas regiões sul e
sudeste do Brasil.

Algumas teorias sobre o surgimento do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19,


dão conta que o agente infeccioso partiu de morcegos, tendo ou não passado por outros
animais e neles se modificado. Apesar de que o contato com saliva ou fezes dos bichos
contaminados seja conjecturado como principal vetor de transmissão, o fato é que muitos
apontam a cultura chinesa do uso de espécies silvestres na alimentação como culpada por esse
e outros surtos de doenças. O que não é do conhecimento de todos é que outras regiões do
mundo também caçam, criam em cativeiro e ingerem frequentemente animais selvagens e
exóticos. No caso do Brasil, por exemplo, é comum o consumo de carne de javalis de vida livre,
caçados como parte do manejo populacional, mas de saúde desconhecida, sem inspeção
animal ao abate, podendo transmitir inclusive tuberculose.

Os javalis são considerados como espécie exótica invasora no Brasil, originária de diferentes
graus de cruzamento entre o javali europeu e suínos domésticos. Em nosso país, os javalis já se
encontram presentes nos seis biomas, devido à sua alta capacidade adaptativa e escassez de
predadores naturais. Além do impacto ambiental que podem ocasionar, como o assoreamento
de nascentes de rios, o ataque e predação de espécies nativas, a sobreposição de habitat com
a fauna nativa, o hábito de escavação e perda da cobertura vegetal, há também o impacto na
agricultura e pecuária, e a possibilidade de participarem do ciclo de agentes zoonóticos. A
febre maculosa, por exemplo, é uma das doenças na qual essa espécie invasora pode ter papel
importante.

É indispensável esclarecer que os javalis não transmitem a febre maculosa. Trata-se de uma
doença transmitida por vetores, causada por bactérias do gênero Rickettsia, sendo que a mais
letal é a Rickettsia rickettsii, que é transmitida por diferentes espécies de carrapatos como o
Amblyomma sculptum e o Amblyomma aureolatum. “Os javalis podem participar do ciclo da
Febre Maculosa Brasileira a medida que mantêm e carreiam grandes populações de carrapatos

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em diferentes estágios de desenvolvimento, os quais podem estar infectados”, afirma Louise
Nicolle Bach Kmetiuk, médica veterinária e doutora egressa do Pós-Graduação em Biologia
Celular e Molecular (PGBIOCEL) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi o que Louise
percebeu no desenvolvimento de sua tese de doutorado, baseada na pesquisa da infecção por
Rickettsia spp. em javalis, cães de caça e seres humanos controladores de javalis no bioma
Mata Atlântica, região dos campos gerais no Paraná. Vale ressaltar que o artigo fruto de sua
tese foi selecionado como capa da edição da revista Plos NTD para divulgação nas mídias
internacionais de ciência como “Science Daily” e “Earth”, e sua tese selecionada pelo colegiado
de Pós-Graduação, a qual recebeu o Prêmio Curta Ciência (Three Minutes Thesis) da UFPR, em
reconhecimento à excelência acadêmica.

Febre Maculosa Brasileira

Os carrapatos são os vetores da febre maculosa, ou seja, são os que transmitem a bactéria
causadora da doença aos animais e seres humanos por meio da picada, caso estejam
infectados. Conforme a espécie de carrapato, diferentes espécies de animais como bois,
cavalos, cães, aves domésticas, roedores e, especialmente, de capivaras podem ser seus
hospedeiros intermediários e/ou definitivos. Nesse sentido, os javalis também são
considerados verdadeiros banquetes para esses parasitas.

Ocorre que, alguns animais hospedeiros de carrapatos podem também ser amplificadores de
agentes patogênicos, como as bactérias. Algumas características são importantes para que um
animal seja considerado hospedeiro amplificador de bactérias transmitidas por carrapatos, são
elas: Viver no mesmo ambiente que a bactéria; atrair carrapatos; ser suscetível à infecção;
mantê -la em seu organismo tempo suficiente para infectar carrapatos; e se reproduzir
bastante para que haja sempre animais suscetíveis à infecção. Assim, se um carrapato não
contaminado picar esse animal, será infectado, tornando-se transmissor. Esse é o caso da
capivara, comprovadamente amplificadora da febre maculosa. Voltando aos javalis, ainda não
se sabe se eles são ou não amplificadores, mas se sabe que possuem algumas das
características essenciais, como a manutenção de grandes populações de carrapatos e a alta
capacidade reprodutiva.

Esses animais exóticos estão em desequilíbrio no meio-ambiente brasileiro e seus únicos


predadores são os controladores humanos. O controle é feito ou por lazer, na forma de caça,
apesar de proibida no país, ou como forma de controle populacional (há controvérsias sobre a
efetividade). O fato é que existem pessoas que adentram matas para capturar os javalis e
levam consigo cães de caça para ajudar. Foi acompanhando essa prática que a pós-graduanda
desenvolveu sua tese e realizou algumas observações importantes do ponto de vista das
zoonoses.

O estudo realizou análises sorológicas e moleculares para Rickettsia spp. em carrapatos e


javalis, cães de caça e seres humanos controladores de javalis em duas diferentes regiões do
Brasil, sul e centro-oeste. Os resultados positivos para a bactéria foram maiores em javalis
quando comparados a cães e seres humanos e semelhante entre cães e seres humanos.
“Atividades humanas como a de controle populacional de javalis podem aumentar o risco de
exposição a carrapatos e, consequentemente, a ocorrência de doenças transmitidas por
carrapatos”, afirma Louise.

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Segundo a pesquisadora, há a suspeita de que javalis podem transportar e disseminar
carrapatos de capivaras de seus habitats originais para outros ecossistemas. “Além da
disseminação para outros ecossistemas, diferentes de áreas de beira de rios, os javalis podem
levar carrapatos e doenças transmitidas por vetores para biomas que não tenham a presença
de capivaras.” Já quanto aos seres humanos e cães de caça, o estudo encontrou exemplares de
carrapatos do gênero. “Esses achados alertam que os seres humanos controladores de javalis e
cães de caça podem ser um grupo de risco para febre maculosa no Brasil”, esclarece.

Portanto, além dos próprios javalis poderem carrear os carrapatos infectados para áreas não
consideradas endêmicas, o hábito de caça pode ocasionar o aumento da exposição à febre
maculosa, já que podem infectar seres humanos e cães, podendo também levar os parasitas
para ambiente domiciliar e peridomiciliar.

Louise explica que Curitiba não é considerada como uma área endêmica para a febre maculosa
no Brasil, apesar do número de capivaras encontradas na cidade. “Nos ambientes endêmicos
as capivaras estão em superpopulação e há a presença da bactéria e dos carrapatos que a
transmitem. Em Curitiba, a espécie está em equilíbrio no ecossistema. Além disso, há
monitoramento sorológico constante”.

A sintomatologia da febre maculosa é bastante inespecífica, causando febre, dores no corpo,


pode ocorrer também o aparecimento de manchas na pele. “O tratamento deve ser feito, de
preferência, o quanto antes. Se você habita uma área endêmica e foi picado por um carrapato,
precisa ficar atento para o aparecimento de qualquer sintoma e iniciar o tratamento com
antibióticos porque a taxa de letalidade nessas áreas chega a 80%. Apesar de ser uma doença
rara, é altamente letal nessas áreas”, informa a pesquisadora.

Raiva

Os morcegos têm desempenhado papel importante como reservatórios virais, transmitindo


diversas doenças infecciosas, a exemplo da raiva – que afeta o Sistema Nervoso Central e tem
uma taxa de letalidade de quase 100%. Essa espécie é um reservatório ideal para agentes
infecciosos, pois seu organismo lida de forma diferente com os invasores e, ao invés de
estarem sempre de prontidão e com o sistema imunológico combatendo-os, os morcegos
mantêm os vírus sob controle sem destruí-los. Não causa surpresa aos pesquisadores que o
novo coronavírus tenha semelhanças com coronavírus encontrados em morcegos.

Apesar de os morcegos terem um grande potencial na transmissão da raiva, qualquer


mamífero pode ser infectado pelo vírus e, posteriormente, disseminá-lo. O contágio se dá por
meio da mordida pelo animal infectado, pois a saliva concentra grande carga viral. Cerca de 60
mil pessoas em todo o mundo morrem anualmente por conta da doença, que é praticamente
fatal.

Em sua tese de doutorado, também no PGBIOCEL, o biólogo Juliano Ribeiro pode sugerir que o
risco de transmissão da raiva de morcegos para seres humanos pode ser mais provável pelo
contado intermediário gatos, devido aos hábitos de caça inatos desses animais, o que
predispõe um contato mais próximo com indivíduos infectados. Mas também há potencial
disseminação da doença nos herbívoros, como o gado, causando grandes perdas econômicas

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para a indústria pecuária. Em ambos os casos, é extremamente importante incluir os animais
em programas de vigilância e vacinação. “Principalmente se os bichos se encontrarem em
áreas que possuem predisposição geográfica para presença de inúmeros abrigos de morcegos
hematófagos e áreas localizadas próximas a feições de enormes bacias hidrográficas”.

Morcegos hematófagos são aqueles que se alimentam de sangue. Contudo, os que não
incluem sangue em seu cardápio também podem estar infectados pelo vírus e, portanto,
transmití-lo. “Um morcego hematófago infectado pode sugar o sangue de um animal
diretamente e a transmissão vai ocorrer. Como uma população de hematófagos e insetívoros
podem ocupar o mesmo nicho ecológico, se ocorrerem brigas a transmissão pode acontecer
entre morcegos também. Na cidade, caso o animal infectado fique desorientado – sintoma da
doença – e caia, pode disseminar o vírus para outros mamíferos como o gato ou cão que vão
realizar a caça e, posteriormente, podem fechar o ciclo infectando seres humanos”, comenta
Ribeiro.

De acordo com o biólogo, o vírus da raiva age diretamente no sistema nervoso e, depois de lá
instalado, não é mais possível que anticorpos de vacina ou soro o atinjam. “Sempre que uma
pessoa é mordida por um animal do qual não tem conhecimento sobre o histórico, a indicação
é aplicar soro e vacina. Para prevenção, seres humanos do grupo de risco devem tomar a
vacina antirrábica periodicamente, bem como cães, gatos e herbívoros domésticos”.

Em seu estudo, Ribeiro tenta criar uma biblioteca de metagenômica, isto é, de materiais
genéticos recuperados diretamente a partir de amostras ambientais. “A ideia é expor todos os
genomas virais possíveis no agente infeccioso, tentando identificá-los com o objetivo de
detectar se as doenças que atingem os morcegos têm potencial para se tornar zoonoses no
futuro”.

Finalmente, precisamos entender que nem todo morcego transmite doença. Na verdade, a
maioria deles é benéfica para nossa cidade, inclusive nos diferentes Campi da UFPR. Morcegos
auxiliam na polinização, no combate a insetos e pequenos roedores.

Toxoplasmose

A toxoplasmose é causada por um protozoário presente nas fezes de gatos e outros felinos
que pode se hospedar tecidos de humanos e outros animais, na forma de cisto. Apesar de ser
uma das zoonoses mais comuns no mundo, a maioria das pessoas infectadas não apresenta
sintomas. O grande problema da patologia é quando afeta mulheres grávidas, durante a
gestação, podendo ocasionar aborto, nascimento de natimorto ou de crianças com icterícia,
macrocefalia, microcefalia e crises convulsivas. Indivíduos com o sistema imunológico
enfraquecido podem manifestar toxoplasmose ocular e toxoplasmose cerebral.

Ao contrário da crença popular, os gatos não transmitem a doença. A transmissão se dá pela


ingestão de água ou de alimentos contaminados por oocistos do protozoário. “Se as fezes
contaminadas com protozoários forem ingeridas, diluídas ou não, por animais e seres
humanos, podem ocasionar a doença. É possível, assim, contrair toxoplasmose a partir da
ingestão da carne mal passada de animais de produção sem inspeção sanitária, contendo os
cistos de Toxoplasma gondii”, esclarece o professor do PGBIOCEL Alexander Welker Biondo.

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De acordo com Biondo, o gato só elimina o protozoário pelo período médio de 15 dias, por
toda sua vida. “A chance de se contaminar pelo seu próprio gato é quase zero e exige falta de
higiene. É mais provável existirem donos positivos para a doença com gatos negativos, do que
o contrário. O gato teria que caçar uma ave ou um roedor contaminado ou comer carne crua
para se infectar”.

Os javalis também cruzam o caminho desta zoonose, já que podem, como hospedeiros
intermediários do protozoário, assim como animais de produção, estar infectados com o cistos
deste protozoário em sua musculatura e servir como fonte de infecção, caso haja consumo da
carne. Nesse caso, o estudo com javalis mostrou que as criações clandestinas de fundo de
quintal são as mais suscetíveis ao T. gondii. As principais medidas de prevenção da
toxoplasmose são hábitos de higiene alimentar – lavar muito bem frutas, verduras e legumes –
e o consumo de carnes inspecionadas e bem passadas e de água tratada.

Equilíbrio ambiental

O segredo para o controle das zoonoses está, de acordo com Biondo, no equilíbrio do
ecossistema. Os morcegos, por exemplo, são grandes predadores de insetos e contribuem
para o controle populacional de moscas e mosquitos, além de serem indispensáveis para a
polinização e dispersão de sementes. “Não se deve matar animais pela fama de que
transmitem determinada doença. Essa prática acaba com uma espécie nativa e abre espaço
para espécies invasoras”, afirma Juliano Ribeiro. Como consequência, outras doenças surgirão
e o controle ficará ainda mais difícil. Ribeiro também afirma que toda modificação na dinâmica
populacional natural acarreta graves implicações futuras.

Em Curitiba, mesmo que as capivaras estejam em equilíbrio no meio-ambiente e não


preocupem quanto à disseminação da febre maculosa, todos os lugares públicos em que
existem populações da espécie têm a grama cortada quinzenalmente para garantir seu
equilíbrio populacional. “Ao mesmo tempo em que devemos prover saúde e cuidar da fauna
nativa, precisamos monitorá-la constantemente”, aponta o professor Biondo.

Atividades humanas como desmatamento; matança indiscriminada; poluição atmosférica;


poluição de rios, lagos e oceanos; depredação e captura de animais; e inserção de espécies
exóticas no ambiente são as grandes vilãs do ecossistema e responsáveis pelo desequilíbrio
ecológico a curto e longo prazo.

Concluindo, a busca integrada da saúde humana, saúde animal e saúde ambiental, chamada de
saúde única, deve ser nossa como sociedade futura. A atual pandemia tem mostrado que a
saúde de tudo e todos interfere diretamente nas nossas vidas, mesmo que o problema comece
do outro lado do planeta. Cuidando dos animais, do meio ambiente e de nós mesmos talvez
seja a única forma de enfrentarmos juntos essa e as próximas pandemias.

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