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19.08.2016
Aprovado em:
16.05.2017 jornalismo: uma nova
Silvia Lisboa
Doutoranda do Programa
abordagem1
de Pós-graduação em Co-
municação e Informação
da UFRGS (Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul), mestre pelo mes-
mo Programa e membro
do grupo de pesquisa
Nupejor (Núcleo de Silvia Lisboa
Pesquisa em Jornalismo) Marcia Benetti
– UFRGS/CNPq.
E-mail: lisboasilvia@
gmail.com. Resumo
Este artigo propõe uma abordagem do conceito de credibilidade a partir da ar-
Marcia Benetti ticulação do jornalismo com a corrente ilosóica da Teoria do Conhecimento e
com as teorias discursivas. Credibilidade jornalística é aqui deinida como um
Doutora em Comuni-
cação e Semiótica pela
predicado epistêmico atribuído ao enunciador e a seus relatos. Essa atribuição
PUC-SP, professora do é feita por alguém, em uma relação intersubjetiva, e amparada em valores éti-
Programa de Pós-gradu- cos e morais. Por só ganhar sentido e relevância através de uma percepção so-
ação em Comunicação e bre o outro, propomos uma nova abordagem do conceito, através da distinção
Informação da UFRGS, de duas dimensões: a credibilidade constituída do enunciador e a credibilidade
pesquisadora do CNPq e percebida pelo interlocutor. A compreensão de que a credibilidade se desdobra
líder do grupo de pesqui- nessas duas dimensões permite qualiicar a aplicação do conceito nas pesquisas
sa Nupejor (Núcleo de empíricas.
Pesquisa em Jornalismo)
– UFRGS/CNPq.
Palavras-chave: Jornalismo. Credibilidade. Conhecimento.
E-mail: marcia.benetti@
gmail.com.
Abstract
his article proposes an understanding of the concept of credibility from the
ields of journalism, philosophy, speciically the heory of Knowledge, and
the discourse studies. Journalistic credibility is deined here as an epistemic
1
Uma versão preliminar deste predicate attributed to enunciator and their reports. his assignment is made
texto foi apresentada no XII
Encontro da Associação
by someone, in an intersubjective relationship, and supported by ethical and
Brasileira de Pesquisadores moral values. By only gaining meaning and relevance through a perception
em Jornalismo (SBPJor). A about the other, we propose a new approach to the concept, through two-di-
versão atual contém revisões
importantes. mensional distinction: the constituted credibility of the enunciator and the per-
ceived credibility by the interlocutor. he understanding that credibility unfolds
in these two dimensions allows qualifying the application of the concept in
Estudos em Jornalismo e Mídia empirical researches.
Vol. 14 Nº 1
Janeiro a Junho de 2017
ISSNe 1984-6924
Keywords: Journalism. Credibility. Knowledge.
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-6924.2017v14n1p51 51
Estudos em Jornalismo e Mídia, Vol. 14 Nº 1. Janeiro a Junho de 2017 - ISSNe 1984-6924
E
mbora seja um termo fre- los – há 2,5 mil anos Aristóteles (1990) já
quente na pesquisa em jor- detalhara as evidências capazes de tornar
nalismo, o conceito de credi- um orador credível3.
bilidade jornalística tem sido Se tomarmos o jornalismo como
pouco desenvolvido. Ainal, o forma e fonte de conhecimento sobre a
que signiica credibilidade? Qual é a sua realidade, podemos pensar o seu funcio-
deinição conceitual? Como os veículos namento dentro deste processo universal
jornalísticos constroem sua credibili- de busca de conhecimento estudado pela
dade diante do público? Como o próprio ilosoia. O jornalismo seria tributário de
jornalismo, como um campo do conhec- um soisticado sistema de crenças que
imento, adquire ou perde credibilidade? explica por que atribuímos credibilida-
Para enfrentar esse desaio, apresenta- de a certos relatos e não a outros. Isto é,
mos aqui a credibilidade a partir da ar- o que nos leva a coniar no jornalismo
ticulação do jornalismo com a corrente tem a ver não apenas com a sua singu-
ilosóica da Teoria do Conhecimento e laridade como conhecimento, mas com
com as teorias discursivas. o fato de ele ser um ato comunicativo
Em um primeiro momento, bus- com a função de informar alguém (LA- 2
Compartilhamos com
caremos a conceituação de credibili- CKEY, 2011). As exigências que fazemos Schmitt (2006) a ideia de
dade na filosofia para entender como ao jornalismo enquanto fonte de conhe- que o conhecimento que
esse predicado epistêmico dos enun- cimento e a maneira pela qual julgamos provém dos testemunhos tem
ciadores e de seus relatos é uma condi- sua credibilidade são, em grande medi- um acentuado caráter social.
ção vital na obtenção de conhecimento da, as exigências e a maneira pela qual Goldman (1999) criou uma
linha de investigação, batiza-
verdadeiro pelo homem. Depois, pro- atribuímos coniabilidade a qualquer da de Epistemologia Social,
poremos uma nova abordagem do con- tipo de fonte de informação. Nós temos para investigar as dimensões
ceito, diferenciando suas duas dimen- mecanismos de percepção e de julga- sociais que inluenciam a
sões: a credibilidade constituída e a mento, desenvolvidos ao longo de anos e formação e a obtenção de
percebida. Para finalizar, mostraremos que, em condições normais, nos tornam conhecimento e crenças
verdadeiras.
como a competência e a integridade de hábeis em perceber inconsistências no
quem fala são indicadores primários discurso alheio, condição absolutamen- 3
Segundo Aristóteles
de credibilidade. te essencial para a evolução da espécie e (1990), os oradores inspiram
para a vida em sociedade. coniança com base em três
evidências: a prudência
Credibilidade na ilosoia Em maior ou menor grau, um in-
(phronesis), a virtude (aretè)
divíduo precisa ter coniança na opinião e a benevolência (eunoia).
De que forma e em que condições alheia para viver em sociedade. Virtual-
o homem obtém conhecimento verda- mente todas as nossas opiniões, com en-
deiro? Quais atributos tornam uma fonte foque especial para as opiniões adquiri-
e seu relato dignos de crédito? Em que das através do que os outros nos dizem,
situações o julgamento da credibilidade são revisadas ao longo do tempo. Por
é possível? Esses são alguns dos questio- isso, Foley (2004) usa o termo “níveis de
namentos investigados pela ilosoia que coniança”, do qual podemos depreender
são úteis para a compreensão do con- que existem também “níveis de credibili-
ceito de credibilidade. O interesse dos dade”, conforme a subordinação do ora-
ilósofos da Teoria do Conhecimento se dor a valores que regem sua conduta éti-
concentra em reletir sobre os aspectos ca. Ou seja, se não temos absolutamente
universais envolvidos no processo de nenhuma informação, direta ou indireta,
conhecimento do homem, sejam os as- que deponha contra quem fala, tende-
pectos de natureza individual, sejam os mos a coniar em algum grau no seu re-
de grandeza coletiva. O objetivo desses lato. Essa coniança é calibrada conforme
ilósofos é mostrar como a percepção do o seu desempenho em nos dizer “verda-
testemunho2, como é chamado o relato des” de um modo plausível.
de terceiros, está baseada em determina- O homem é um ser social em ter-
dos princípios que, não por acaso, per- mos intelectuais. As mais persuasivas e
manecem constantes ao longo dos sécu- poderosas inluências vêm da cultura e
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o coenunciador não saiba nada previa- blemas: o que diz respeito a uma noção
mente sobre o caráter do enunciador, o mais ampla, inclusive histórica e ética,
simples fato de que um texto pertence a sobre o que sustenta a coniança em uma
um gênero de discurso ou a um certo po- fonte de conhecimento (no nosso caso, o
sicionamento ideológico induz expecta- jornalismo), e o que diz respeito à cre-
tivas em matéria de ethos” (MAINGUE- dibilidade efetiva, mensurável, percebida
NEAU, 2013, p. 71). pelos demais sujeitos (no nosso caso, a
O ethos se constitui a partir de audiência). Embora essas dimensões –
um conjunto de atributos ou valores. No credibilidade constituída e percebida –
caso do jornalismo, isso signiica que a sejam complementares, elas são distintas
credibilidade será acionada como uma e podem exigir procedimentos meto-
expectativa sempre que um texto for per- dológicos também distintos para serem
cebido, pelo interlocutor, como um tex- pesquisadas.
to jornalístico. É importante ponderar
ainda que o sujeito está sempre social- Competência e integridade: princípios da
mente situado, e estes lugares – de fala credibilidade
ou de interpretação – também deinem
a qualidade de sua enunciação ou de sua A credibilidade constituída está
percepção. amparada em noções socialmente com-
partilhadas sobre o que signiica ser “um
O enunciador não é um ponto de bom informante”, ou seja, noções de
origem estável que se “expressaria” caráter moral. Esses aspectos, já iden-
dessa ou daquela maneira, mas é tiicados por Aristóteles, permanecem
levado em conta em um quadro praticamente os mesmos até hoje. São
profundamente interativo, em uma eles: a) a competência, também chamada
instituição discursiva inscrita em de autoridade, que se refere ao conhe-
uma certa coniguração cultural e cimento técnico e verdadeiro sobre o
que implica papéis, lugares e mo- assunto abordado, e b) a integridade da
9
Há pequenas divergên- mentos de enunciação legítimos, fonte, que envolve tópicos relativos ao
cias nos textos consultados um suporte material e um modo seu caráter, como a disposição em com-
sobre a relação dos atribu- de circulação para o enunciado partilhar informações, o compromisso
tos que tornam uma fonte (MAINGUENEAU, 2013, p. 75). com a verdade, a sinceridade em expor
coniável. Em um trabalho
motivações e interesses e, sobretudo, a
de 1994, Fricker (apud
MILLAR, 2011) airma que No âmbito do conhecimento e reputação. Esses aspectos estão presentes
sinceridade e competência do discurso, a credibilidade constituída tanto nos trabalhos ilosóicos de Aristó-
são atributos do caráter da ganha relevância através da percepção teles (1990), Coady (2000), Audi (2003,
fonte. Posteriormente, ela de alguém, por meio da credibilidade 2006), Goldman (2002), Lackey (2006)
separa do caráter da fonte o
componente da competência,
percebida. Isso signiica que um sujei- e Fricker (2011)9, como em pesquisas de
talvez por considerar este to pode se construir discursivamente comunicação de Hovland e Weiss (1951,
último um aspecto de ordem como um enunciador credível, baseado 1959) e Fogg et al (2001a, 2002a).
técnica. Essa sistematiza- em atributos valorizados como com- Aspectos como competência e in-
ção parece mais clara, de petência, honestidade, coerência. Mas tegridade podem ser decompostos em
modo que a adotamos neste
trabalho.
a audiência precisa reconhecê-la como indicadores que tornam possível avaliar
tal para que o conceito ganhe valor. A o nível de credibilidade de uma fonte e
credibilidade percebida pelo leitor sofre seu discurso. Pode-se exigir que um bom
inluência direta da credibilidade cons- informante não tenha interesses persua-
tituída, mas não necessariamente estará sivos ou escusos, seja objetivo, coerente
fundada em todos os mesmos valores e responsável. Nesse caso, seu discurso
e princípios. Esta é a contribuição con- também deve carregar esses índices, que
ceitual que pretendemos trazer com este irão permitir o julgamento da credibi-
artigo. É importante compreender que, lidade percebida pelo interlocutor. As
ao pesquisar credibilidade, precisamos propriedades discursivas sinalizam para
distinguir estes dois horizontes de pro- o leitor a presença de ambos os aspectos:
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