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FILOSÓFICA DE G ADAMER
Maria Silvério∗
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O jornalismo sob o olhar da hermenêutica filosófica de Gadamer 3
como também o próprio repórter enquanto sobre o tema. Para completar, estamos indo
pessoa. Com Heidegger a hermenêutica ga- ao encontro das fontes que também possuem
nhou o caráter ontológico do ser-no-mundo seus pontos de vista. A princípio, estamos
(Dasein), ou seja, o ser humano é um ente em uma excelente posição para compreen-
dotado de compreensões do seu próprio ser. dermos. No entanto, a busca pela objetivi-
O ato de interpretar e compreender só é pos- dade tecnicista nos impede de confrontar,
sível, portanto, devido às pré-compreensões reavaliar, ressignificar todas as opiniões di-
do ente humano. ante de nós.
Não raras são as vezes em que o repórter
Quando se ouve alguém ou quando entrevista uma fonte já em busca de uma
se empreende uma leitura, não é declaração específica que irá se encaixar per-
necessário que se esqueçam todas feitamente na matéria, estruturada de an-
as opiniões prévias sobre seu con- temão mentalmente ou no bloco de notas.
teúdo e todas as opiniões próprias. Ao longo da entrevista, caso essa “fala” não
O que se exige é simplesmente a seja declamada, o jornalista insiste em per-
abertura à opinião do outro ou à guntas que levarão o entrevistado a assumir
do texto. Mas essa abertura já in- tal ponto de vista. A interação, abertura e
clui sempre que se ponha a opinião receptividade entre jornalista e fonte não e-
do outro em alguma relação com o xiste neste caso. A aproximação com o outro
conjunto das opiniões próprias, ou é feita somente para “dar voz” a uma pers-
que a gente se ponha em certa re- pectiva e não para possibilitar um intercâm-
lação com elas (. . . ) Por isso, uma bio entre opiniões prévias, já que o jornalista
consciência formada hermeneuti- deve se manter neutro.
camente tem que se mostrar recep- O processo de apuração ao invés de se
tiva, desde o princípio, para a al- consolidar como um caminho para a inter-
teridade do texto. Mas essa recep- pretação se transforma em um instrumento
tividade não pressupõe nem “neu- de reprodução onde o repórter vai de um
tralidade” com relação à coisa nem entrevistado a outro em linhas retas, linhas
tampouco auto-anulamento, mas que normalmente percorrem sentidos opos-
inclui a apropriação das próprias tos devido à exigência de se “ouvir os dois
opiniões prévias e preconceitos, lados da história”. Paradoxalmente, o que
apropriação que se destaca destes. a hermenêutica nos mostra é que a interpre-
(Gadamer, 1999: 404-5) tação/compreensão acontece em um movi-
mento circular. Em outras palavras, a com-
Quando saímos da redação para apurar preensão do todo se dá a partir das partes e
um fato, iniciamos um processo de interpre- a compreensão destas, por sua vez, se dá a
tação. Temos uma pauta repleta de infor- partir do todo.
mações e esclarecimentos (elaborada por ter-
ceiros), normalmente temos alguns dados re- Na perspectiva de Heidegger e
tirados de outros veículos e, como não pode- Gadamer, o círculo hermenêutico
ria deixar de ser, temos a nossa percepção é, apesar de seu nome, menos um
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círculo, que por definição nos re- nalista. A imparcialidade é um dos princí-
conduz incessantemente ao ponto pios éticos da profissão e, desta forma,
de onde partimos e é nesse sentido entende-se que o jornalista que não é isento
vicioso e estéril, do que uma espi- tampouco é ético. O tema é possivelmente
ral que continuamente se alarga e o mais debatido não só pela categoria, como
abraça novas formas de questionar também pela opinão pública que frequente-
e compreender a questão que nele mente questiona a neutralidade dos veículos
nos envolve. Em certo sentido de comunicação. Todos reconhecem que os
ele é um trajecto sempre aberto de jornalistas, antes de qualquer coisa, são seres
perguntas e respostas que inces- humanos formados por valores culturais, so-
santemente se renovam pelo acto ciais e históricos. Essas condições, no en-
mesmo de o percorrer. E sendo tanto, não têm espaço no fazer jornalístico.
verdade que entramos nele em A busca pela objetividade e imparciali-
função de uma projecção e anteci- dade é auxiliada por ferramentas como o
pação de um sentido, de um con- lide e a estrutura de pirâmide invertida.
junto de preconceitos, não é menos A padronização textual de colocar logo no
verdade que descobrir o sentido primeiro parágrafo as informações mais im-
das suas partes implica a necessi- portantes (quem, o quê, quando, onde, como
dade de rever essa projecção inicial e por quê) e dar continuidade ao texto
e de reconhecer a sua natureza con- deixando as informações mais irrelevantes
jectural e provisória – e ele define- para o final, ajuda o jornalista a se distanciar
se portanto como uma relação de e neutralizar-se. Sob esta ótica, os jornalis-
co-determinação entre o todo e as tas ainda atuam como profissionais da “era
partes. (Verde, 2009: 84) do Aufklärung”, onde a essência dos homens
era reconhecida sob o título de “pensamentos
O fazer jornalístico baseado em uma racionais” (Gadamer, 1999: 281).
noção de objetividade nega ao jornalista uma Esta racionalidade faz com que o jorna-
experência autêntica e de qualidade. O tra- lista negue aquilo que é primordial para qual-
jeto circular requerido na interpretação exi- quer compreensão: os conceitos prévios.
ge deixar-se experienciar, abrir-se para novas Como todo ente humano, histórico e finito, o
possibilidades. Com isso, o jornalista que repórter é formado por preconceitos. A her-
supostamente estaria em uma posição pri- menêutica nos ensina que “os preconceitos
vilegiada para participar de uma conversação de um indivíduo são, muito mais que seus
hermenêutica acaba se transfomando em um juízos, a realidade de seu ser” (Gadamer,
mero coadjuvante de todo o processo de in- 1999: 416). Logo, se desvincular deles
terpretação e compreensão. é tarefa inatingível. Antes mesmo de nos
entendermos enquanto indivíduos, nos en-
2 Imparcialidade tendemos como parte de uma tradição. E
tradição é muito mais do que o nosso pas-
A isenção é dever de todo profissional da im- sado e os nossos valores: é o alicerce de nos-
prensa, conforme estipula o Estatuto do Jor- sos preconceitos.
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