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O JORNALISMO SOB O OLHAR DA HERMENÊUTICA

FILOSÓFICA DE G ADAMER

Maria Silvério∗

Índice continuidade frente às novas tecnologias,


dificuldade para se afirmar enquanto campo
Introdução 1 autônomo de conhecimento na academia, di-
1 Objetividade 2 cotomia entre os profissionais que trabalham
2 Imparcialidade 4 empiricamente e os pesquisadores da área.
Conclusão 5 De um lado, a sensação de que a teoria não
Referências Bibliográficas 5 se aplica à prática e é desnecessária, de outro
a certeza de que a prática só é possível em
comunhão com a teoria. Tantos paradoxos
Resumo
fazem com que os atores que atuam no fazer
O jornalismo é constantemente con- jornalístico continuem desnorteados e o
frontado com diversos dilemas, críticas e jornalismo parece não evoluir.
crises referentes ao seu modo de ser. Mais do No meio desse cenário movediço, este
que nunca, as novas tecnologias da comuni- artigo pretende lançar uma reflexão acerca
cação e da informação exigem uma reflexão do fazer jornalístico sob a ótica da her-
do fazer jornalístico e do papel do profis- menêutica filosófica de Gadamer. Para tanto,
sional na construção da notícia. Este ar- é fundamental demarcar a especificidade
tigo propõe repensar dois pilares fundamen- epistemológica do jornalismo, que não está
tais do jornalismo, objetividade e imparcia- clara nem para os pesquisadores da área
lidade, a partir de conceitos da hermenêutica (Meditsch, 2007). A disciplina só ganhou
filosófica de Gadamer. status acadêmico no Brasil em 1947. O
Palavras-chave: Jornalismo, Objetivida- jornalismo é academicamente identificado
de, Imparcialidade, Hermenêutica, Gadamer. como pertencente ao campo das ciências
da comunicação, ciências humanas, ciên-
cias sociais ou até mesmo das ciências
Introdução aplicadas. Pelo menos uma coisa é certa:
vive em constantes o jornalismo não faz parte das ciências
O JORNALISMO
crises. Crise de credibilidade junto
à opinião pública, incerteza quanto à sua
naturais, biológicas ou exatas. Portanto, é
primordial que os jornalistas reconheçam
que sua função não é narrar os acontecimen-

ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa).
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tos aos leitores/telespectadores/ouvintes, 1 Objetividade


levando uma “verdade única” até eles, como
A objetividade é um dos fundamentos bási-
fazem os cientistas em seus laboratórios
cos do jornalismo. Mas afinal, o que é ob-
ao buscarem a explicação de determinados
jetividade jornalística? Como nos mostra
fenômenos.
Sousa (2001), esta noção advém de três
Apesar da indefinição epistemológica, não
diferentes raízes. Uma delas é a de que o jor-
restam dúvidas que o jornalismo pertence
nalismo seria “um espelho da realidade” e o
às humanidades e, como nos mostra Berlin
jornalista apenas faria a mediação entre ela e
(1997), pelo menos desde Giambattista Vico
o público, ideia defendida pela Teoria do Es-
(1668-1744) a tradição humanística está se
pelho. Outra matriz, explicitada por Schud-
contrapondo à racionalidade e objetividade
son, seria a adoção da objetividade enquanto
científica, já que não é possível compreen-
método de garantir a noção de fé nos fatos, já
der os homens, a sociedade ou a história apli-
que nos primórdios do jornalismo as notícias
cando os mesmos métodos e regras que uti-
eram escritas como se os jornalistas fossem
lizamos para explicar os fênomenos naturais.
oniscientes. Há também a ideia postulada
É a partir da noção de que as humanidades
por Tuchman de que a objetividade seria um
são disciplinas interpretativas que iremos
método de ritual estratégio, como a citação
recorrer à hermenêutica filosófica gadame-
de fontes e a descrição factual de ocorrên-
riana para refletir acerca dos dois principais
cias verificáveis, como forma de transfor-
pilares do jornalismo: objetividade e impar-
mar rapidamente acontecimentos em notí-
cialidade.
cias e ao mesmo tempo resguardar o jorna-
Em sua obra mais notória, Verdade e
lista de acusações e processos. “Para grande
Método, Gadamer reforça a ideia de que
parte dos jornalistas, objectividade é essen-
as humanidades não devem ser metodolo-
cialmente descrever factos verificáveis e ve-
gizadas e sim interpretadas e compreendidas.
rificados, citar fontes credíveis, contrastar
Influenciado pela fenomenologia de Heideg-
fontes. Com estes procedimentos, atingiriam
ger e a sua noção de Dasein (o homem ser-
a objectividade” (Sousa, 2001: 46). Desta
no-mundo), Gadamer fundamenta sua her-
forma, percebemos que os valores da Teoria
menêutica na noção histórica-linguística da
do Espelho somados à ideia de aplicação do
compreensão. O sujeito (intérprete) e o ob-
método de rituais estratégicos por parte de
jeto (texto/obra de arte...) dialogam entre
um sujeito neutro e anulado ainda dominam
si em busca de um entendimento que os
a ideologia jornalística.
levará a uma fusão de horizontes (o limite
Vemos que o fazer jornalístico, que será
de visão/compreensão de cada um) em que a
referenciado aqui como o processo de apu-
pré-comprensão do intérprete (indissociável
ração e produção de notícias, é desenvolvido
de tradição e historicidade) é confrontada
como uma fórmula física ou matemática cuja
com o que está no objeto, possibilitando ao
soma de “fonte A + fonte B - repórter = rea-
sujeito uma compreensão dotada de novos
lidade”, logo, “notícia = verdade”. Desde
sentidos.
o início deste processo, cometemos equívo-
cos que não só menosprezam o jornalismo

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como também o próprio repórter enquanto sobre o tema. Para completar, estamos indo
pessoa. Com Heidegger a hermenêutica ga- ao encontro das fontes que também possuem
nhou o caráter ontológico do ser-no-mundo seus pontos de vista. A princípio, estamos
(Dasein), ou seja, o ser humano é um ente em uma excelente posição para compreen-
dotado de compreensões do seu próprio ser. dermos. No entanto, a busca pela objetivi-
O ato de interpretar e compreender só é pos- dade tecnicista nos impede de confrontar,
sível, portanto, devido às pré-compreensões reavaliar, ressignificar todas as opiniões di-
do ente humano. ante de nós.
Não raras são as vezes em que o repórter
Quando se ouve alguém ou quando entrevista uma fonte já em busca de uma
se empreende uma leitura, não é declaração específica que irá se encaixar per-
necessário que se esqueçam todas feitamente na matéria, estruturada de an-
as opiniões prévias sobre seu con- temão mentalmente ou no bloco de notas.
teúdo e todas as opiniões próprias. Ao longo da entrevista, caso essa “fala” não
O que se exige é simplesmente a seja declamada, o jornalista insiste em per-
abertura à opinião do outro ou à guntas que levarão o entrevistado a assumir
do texto. Mas essa abertura já in- tal ponto de vista. A interação, abertura e
clui sempre que se ponha a opinião receptividade entre jornalista e fonte não e-
do outro em alguma relação com o xiste neste caso. A aproximação com o outro
conjunto das opiniões próprias, ou é feita somente para “dar voz” a uma pers-
que a gente se ponha em certa re- pectiva e não para possibilitar um intercâm-
lação com elas (. . . ) Por isso, uma bio entre opiniões prévias, já que o jornalista
consciência formada hermeneuti- deve se manter neutro.
camente tem que se mostrar recep- O processo de apuração ao invés de se
tiva, desde o princípio, para a al- consolidar como um caminho para a inter-
teridade do texto. Mas essa recep- pretação se transforma em um instrumento
tividade não pressupõe nem “neu- de reprodução onde o repórter vai de um
tralidade” com relação à coisa nem entrevistado a outro em linhas retas, linhas
tampouco auto-anulamento, mas que normalmente percorrem sentidos opos-
inclui a apropriação das próprias tos devido à exigência de se “ouvir os dois
opiniões prévias e preconceitos, lados da história”. Paradoxalmente, o que
apropriação que se destaca destes. a hermenêutica nos mostra é que a interpre-
(Gadamer, 1999: 404-5) tação/compreensão acontece em um movi-
mento circular. Em outras palavras, a com-
Quando saímos da redação para apurar preensão do todo se dá a partir das partes e
um fato, iniciamos um processo de interpre- a compreensão destas, por sua vez, se dá a
tação. Temos uma pauta repleta de infor- partir do todo.
mações e esclarecimentos (elaborada por ter-
ceiros), normalmente temos alguns dados re- Na perspectiva de Heidegger e
tirados de outros veículos e, como não pode- Gadamer, o círculo hermenêutico
ria deixar de ser, temos a nossa percepção é, apesar de seu nome, menos um

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círculo, que por definição nos re- nalista. A imparcialidade é um dos princí-
conduz incessantemente ao ponto pios éticos da profissão e, desta forma,
de onde partimos e é nesse sentido entende-se que o jornalista que não é isento
vicioso e estéril, do que uma espi- tampouco é ético. O tema é possivelmente
ral que continuamente se alarga e o mais debatido não só pela categoria, como
abraça novas formas de questionar também pela opinão pública que frequente-
e compreender a questão que nele mente questiona a neutralidade dos veículos
nos envolve. Em certo sentido de comunicação. Todos reconhecem que os
ele é um trajecto sempre aberto de jornalistas, antes de qualquer coisa, são seres
perguntas e respostas que inces- humanos formados por valores culturais, so-
santemente se renovam pelo acto ciais e históricos. Essas condições, no en-
mesmo de o percorrer. E sendo tanto, não têm espaço no fazer jornalístico.
verdade que entramos nele em A busca pela objetividade e imparciali-
função de uma projecção e anteci- dade é auxiliada por ferramentas como o
pação de um sentido, de um con- lide e a estrutura de pirâmide invertida.
junto de preconceitos, não é menos A padronização textual de colocar logo no
verdade que descobrir o sentido primeiro parágrafo as informações mais im-
das suas partes implica a necessi- portantes (quem, o quê, quando, onde, como
dade de rever essa projecção inicial e por quê) e dar continuidade ao texto
e de reconhecer a sua natureza con- deixando as informações mais irrelevantes
jectural e provisória – e ele define- para o final, ajuda o jornalista a se distanciar
se portanto como uma relação de e neutralizar-se. Sob esta ótica, os jornalis-
co-determinação entre o todo e as tas ainda atuam como profissionais da “era
partes. (Verde, 2009: 84) do Aufklärung”, onde a essência dos homens
era reconhecida sob o título de “pensamentos
O fazer jornalístico baseado em uma racionais” (Gadamer, 1999: 281).
noção de objetividade nega ao jornalista uma Esta racionalidade faz com que o jorna-
experência autêntica e de qualidade. O tra- lista negue aquilo que é primordial para qual-
jeto circular requerido na interpretação exi- quer compreensão: os conceitos prévios.
ge deixar-se experienciar, abrir-se para novas Como todo ente humano, histórico e finito, o
possibilidades. Com isso, o jornalista que repórter é formado por preconceitos. A her-
supostamente estaria em uma posição pri- menêutica nos ensina que “os preconceitos
vilegiada para participar de uma conversação de um indivíduo são, muito mais que seus
hermenêutica acaba se transfomando em um juízos, a realidade de seu ser” (Gadamer,
mero coadjuvante de todo o processo de in- 1999: 416). Logo, se desvincular deles
terpretação e compreensão. é tarefa inatingível. Antes mesmo de nos
entendermos enquanto indivíduos, nos en-
2 Imparcialidade tendemos como parte de uma tradição. E
tradição é muito mais do que o nosso pas-
A isenção é dever de todo profissional da im- sado e os nossos valores: é o alicerce de nos-
prensa, conforme estipula o Estatuto do Jor- sos preconceitos.

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O processo de interepretação/compreen- históricas. Elas acontecem a partir de uma


são só se faz possível porque tem os nossos experiência com o outro onde os precon-
preconceitos como ponto de partida. Desta ceitos de cada um são modificados, propor-
forma, todo o intéprete que se lança a uma cionando a fusão do horizonte de um com o
interpretação já possui de antemão uma ex- horizonte do outro.
pectativa, uma noção do que pretende en-
contrar. E é exatamente o contato com os Conclusão
conceitos prévios do outro que o faz refle-
tir sobre seus próprios preconceitos, reco- Não nos resta dúvida de que o jornalista tem
nhecendo outras tradições, outras visões. um vasto horizonte em sua frente. E para
“Só o reconhecimento mútuo permite a cada ampliá-lo é necessário, mais do que nunca,
um encontrar, com o outro, a palavra ou o ressignificar os valores e conceitos que fun-
ideário simbólico comum, para o qual cada damentam a disciplina. Neste aspecto, a her-
um contribui, de forma especial, com a sua menêutica filosófica gadameriana parece ser
especificidade” (Silva, 2010: 38). o ponto de partida ideal já que o que ela
Como pode então o jornalista contribuir se propõe não é nos ensinar a “interpretar e
com esse processo se a sua tradição deve, compreender mas o que é que nos acontece
por princípio ético, ser negada em nome da quando compreendemos, e assim nos trans-
imparcialidade e da objetividade? Decerto formamos” (Verde, 2009: 7). Na era da so-
não será como os hermeneutas românticos ciedade da informação, o fazer jornalístico
que acreditavam que compreender era equi- precisa transformar-se para não perder a sua
valente a calçar as botas do outro e mergu- razão de ser-no-mundo. Como nos ensina
lhar em seus pensamentos (Verde, 2009). Gadamer, precisamos ter a consciência de
O fazer jornalístico envolve vários atores, que não são os acontecimentos e a realidade
cada um com a sua tradição. Ser imparcial que pertencem ao jornalismo. O jornalismo
significa lançar-se no círculo hermenêutico é que pertence a eles.
da compreensão; abrir-se para a alteridade;
transformar-se. Deixar os preconceitos in- Referências Bibliográficas
tactos é o mais forte sinal de parcialidade e
negação da verdade. Barco, A. P. (2009). A compreensão no
A verdade, aliás, é o principal compro- jornalismo literário: um diálogo com
misso do jornalista. O Estatuto do Jornalista, a hermenêutica, disponível em: Scrib
o Códio de Ética e os diversos Manuais de [consultado a 20 de Janeiro de 2013].
Redação são enfáticos neste quesito. Mais
Berlin, I. (1997). “The Divorce between
uma vez, Gadamer e a sua obra Verdade e
Sciences and Humanities”, in: Hardy,
Método se tornam indispensáveis. A verdade
H. Against the Current. Essays in the
é, simplesmente, “verdades”. E elas não es-
History of Ideas, Londres: Pimlico, p.
tão estáticas em um dado local ou momento
80-110.
esperando para serem desocultadas através
de alguma fórmula, conjunto de regras ou Christino, D. (2009). “Jornalismo como her-
métodos. Assim como os homens, elas são menêutica da facticidade. Reflexões

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sobre uma fenomenologia da Comuni-


cação”, in: Congresso da LASA (Asso-
ciação de Estudos Latino-Americanos),
Rio de Janeiro, disponível em: Lasa
[consultado a 18 de Janeiro de 2013].

Gadamer, H.-G. (1999). Verdade e Método.


Petrópolis: Vozes, 3a edição, p. 273-
556.

Meditsch, E. (2007). “Novas e velhas


tendências: os dilemas do ensino de jor-
nalismo na sociedade da informação”,
in: Revista Brasileira de Ensino de Jor-
nalismo, I, (1): 41-62.

Schmitt, V. & Fialho, F. A. P. (2007). “Her-


menêutica jornalística: sob a luz da
física quântica”, in: Revista da Comu-
nicação Verso e Reverso, Ano XXI, 48.

Silva, M. L. P. (2010). Conceitos Fun-


damentais de Hermenêutica Filosófica,
disponível em: UC [consultado a 18 de
Janeiro de 2013].

Sousa, J. P. (2001). Elementos de Jornalismo


Impresso, Porto: Obra Juridica, p. 45-
49; 85-99.

Verde, F. (2009). O essencial sobre expli-


cação e Hermenêutica, Coimbra: An-
gelus Novus.

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