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A Secretaria de Estado da Cultura apresenta a publicação LABIRINTOS DA ICONOGRAFIA

• Esta publicação faz parte da exposição Labirintos da Iconografia, realizada pelo museu de 29 de junho a 14 de agosto de 2011.
• Todos os direitos pertencentes aos autores e ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Esta publicação não pode ser
reproduzida, em todo ou em parte, por quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito dos autores.
• Publicado em 2014.

© Museu de Arte do Rio Grande do Sul


© Gaudêncio Fidelis
© José Francisco Alves

Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca Pública do Estado do RS, Brasil)

L119 Labirintos da Iconografia. / organizado por Gaudêncio Fidelis.


Porto Alegre, Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 2014.
220p.

Catálogo de exposição.

1. Arte contemporânea. 2. Museografia. 3. Iconografia. 4. Museu


Curadoria. I. Fidelis, Gaudêncio. II. Título

CDU: 7.036 (058)

Realização Apoio Patrocínio Financiamento

• Este projeto é financiado pelo PROCULTURA/RS, Lei no 13.490/10, através do ICMS que você paga
9

O
Governo de Estado do Rio Grande ções, assim como suas características inovadoras e
do Sul apresenta, através daquele seu potencial em promover a visibilidade do acervo
que podemos considerar o mais im- que o museu possui. As parcerias com outras institui-
portante museu de arte do Estado, ções do Estado não têm sido realizadas simplesmente
um projeto editorial composto por por mera rotina institucional, mas demonstram que
um conjunto de publicações que o museu dialoga a partir de proposições férteis que
mostra a relevância das exposições realizadas pelo visam promover possibilidades desafiadoras de apre-
museu, a partir do início desta gestão em 2011. Estas sentar novos projetos de exposições e acrescentar co-
publicações são dedicadas às exposições Do Atelier nhecimento na área na medida que o realiza. Assim,
ao Cubo Branco, Labirintos da Iconografia, O Mu- o MARGS dá mais um passo na consolidação de
seu Sensível: Uma Visão da Produção de Artistas uma trajetória que já completou 60 anos e se mostra
Mulheres na Coleção do MARGS, Alien: Manifes- digna de uma instituição que conquistou o imaginá-
tações do Disforme e Economia da Montagem: Mo- rio e a estima de sua comunidade. Ao longo da traje-
numentos, Galerias, Objetos. tória do MARGS, podemos identificar um conjunto
Acervos museológicos são a prova do fortaleci- de ações que consolidaram esta instituição como uma
mento cultural de uma comunidade na medida que das mais importantes do país na área museológica.
promovem a salvaguarda de um patrimônio artísti- A realização destas publicações atesta o alto ní-
co e cultural para gerações futuras. Preservá-los é vel de qualificação que o MARGS atingiu ao longo
apenas a primeira parte de uma tarefa continuada destes anos e que vem se consolidando ainda mais
que museus devem promover. Exibir estas obras de desde que foi iniciada esta gestão. Através de uma
maneira original e inovadora é a consequência de pro- política cultural de qualificação institucional, o Go-
gramas relevantes que o governo deve desenvolver em verno do Estado assegura a preservação e a visibili-
suas instituições para consolidar um senso de histó- dade do patrimônio sob sua guarda, garantindo um
ria e promover o exercício da rotina institucional. futuro promissor para nossas instituições museológi-
Com estas publicações o MARGS atesta mais cas, colocando-as em uma relação de igualdade com
uma vez a importância de seu programa de exposi- seus mais importantes pares nacionais.
UM NOVO MODELO CURATORIAL: O MÉTODO LABIRÍNTICO DE CURADORIA E AS ESTRATÉGIAS DE JUSTAPOSIÇÃO 19

mento (horizontal ou vertical, longitudinalmente ou nando política, conceito, significado e produtivi-


em realinhamento frontal), o alinhamento conceitual dade curatorial, na medida em que possibilitaria
advindo da predisposição espacial e aquele do espaço constituir outros meios de negociação do espaço
redefinido pela colocação da obra na exposição. Sen- com a obra, levando em consideração não somen-
do assim, é necessário repensar a topografia da dis- te analogias formais, mas também vários outros
persão espacial da curadoria, cuja performatividade fatores em um contexto de justaposição. 9
observamos continuamente no espaço de exposições.
Dois outros aspectos precisam ser considerados A instituição de um método labiríntico de cura-
por um projeto curatorial que considere o reposi- doria permitiu ao museu avançar em uma abordagem
cionamento espacial e temporal das obras no espa- crítica de suas coleções, agenciando um considerável
ço de exposições: o da realidade estética e de seus conjunto de exposições que deram maior legibilidade
aspectos puramente formais e o da justaposição ao acervo como um todo, assim como a obras em
conceitual das obras em relação ao contexto. Caso específico. A forma física dessas exposições, ou seja,
uma exposição não consiga redimensionar os prin- sua estrutura museográfica, também se mostrou fun-
cípios de experiência estética para um novo pata- damental para estabelecer a lógica de métodos expo-
mar de realinhamento conceitual, é pouco provável sitivos em outro patamar, distante dos métodos tra-
que ela obtenha sucesso em produzir conhecimento 8 dicionais e obsoletos de realizar exposições que ainda
inovador a partir da produção artística ou acerca se pratica em grande parte dos museus brasileiros.
de sua proposição curatorial como modelo exposi-
tivo. Outras transformações no âmbito do aparato ***
museológico precisam ser operadas; porém, sem um
método curatorial diferenciado, não seria possível Vale salientar o quão atrasado é aquele que podemos
realizar tal interferência de maneira mais efetiva. considerar o mais antigo e recorrente procedimen-
Os métodos tradicionais já não ofereciam mais as to de realizar uma exposição através da escolha de
ferramentas necessárias para o desenvolvimento das “nomes de artistas”, em vez de tais escolhas serem
exposições que gostaríamos de realizar no MARGS. definidas pela inclusão “de obras” a partir de uma
Conforme escrevi em outra ocasião: proposição curatorial. A esperada lista de artistas
é geralmente constituída de uma elite de privilegia-
Minha percepção era a de que, embora os mé- dos, considerados pelo curador (ou organizador) da
todos não cronológicos empregados até então sa- exposição como sendo um grupo de relevância para
tisfizessem diversas considerações necessárias à que possam ter suas obras exibidas conjuntamente.
rearticulação do cânone, como os princípios da O conjunto de obras que será exibido na exposição,
experiência não linear e a desconstrução da lógica definido assim como um “espelho” dos nomes dos ar-
produtiva da genialidade artística (ao situar os tistas que as representam, é então colocado sob uma
artistas em ordem hierárquica de relevância de justificativa de ordem temática e muito raramente de
produção de sua obra), ainda faltavam alguns re- teor conceitual. Um elenco de estrelas: assim pode-
quisitos a serem preenchidos com o objetivo de su- mos definir esse grupo privilegiado de eleitos. Sob o
perar determinadas limitações impostas pelo apa- ponto de vista da montagem, o procedimento mais
rato de exposições. O principal deles talvez tenha recorrente tem sido aquele de colocar esses artistas
sido a excessiva contaminação do significado pelo lado a lado, sendo que o seu conjunto de obras per-
raciocínio intercultural do arranjo entre conjun- manece então agrupado, acentuando a disputa de
tos de obras que apresentavam alguma familiari- espaço e a distinção política de cada artista ao re-
dade e, ao mesmo tempo, excessiva acomodação presentar a si mesmo como símbolo de uma marca,
da lógica produtiva formalista, a qual assegurava estilo, personalidade ou tendência.
a essas obras nada mais do que uma paralela co- Estas não eram (ou em alguns casos que ainda ve-
locação no espaço, muitas vezes sem conseguir ul- mos) exposições com obras, mas exposições de artistas
trapassar analogias exclusivamente formais. Um e suas representações, algo muito próximo das repre-
modelo labiríntico teria então a incumbência de sentações nacionais que encontrávamos nas grandes
satisfazer um conjunto de necessidades, combi- exposições internacionais e, muitas vezes, em bienais10

8. O espaço museológico pode ser considerado essencialmente um labirinto de intrincados artifícios construídos pelo aparato museológico. Os
diversos caminhos interpretativos que o visitante deve adotar naquele espaço fazem dele o lugar por excelência de decisões, sejam elas morais,
intelectuais ou artísticas.
9. Gaudêncio Fidelis, “Justaposição no Labirinto: Observações Preliminares Para uma Teoria de Design, Montagem e Diagramação Conceitual em
Exposições Museológicas”, in Catálogo Geral, Raul Holtz (org.). (Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 2013), 52.
10. Talvez a Bienal de Veneza seja uma das únicas a manter ainda o formato de representações nacionais. As Bienais de São Paulo e do Mercosul
já abandonaram tais formatos.
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e grandes exposições temáticas de larga escala. Mais a XXV Bienal Internacional de São Paulo, curada
recentemente, as bienais abandonaram esta visão por Paulo Herkenhoff em 1998, que ficou conhecida
atrasada das representações nacionais, reminiscente como a Bienal da Antropofagia.12
das grandes feiras e ingressaram em territórios mais Não muito tempo atrás, era impensável que
sofisticados de organização. Vez por outra elas ain- curadores colocassem lado a lado, em exposições,
da mergulham novamente no território privilegiado artistas que tivessem uma produção de natureza
da representação individual do artista. Em grande discrepante, seja por juntar artistas “consagrados”
parte podemos dizer que os artistas não participam com outros ainda com menos prestígio no meio, seja
de bienais, mas estão representados nelas. Por se- pela chamada qualidade de suas obras ou ainda por
rem exposições extremamente competitivas e de high diferenças geracionais.13 Somente aqueles curadores
profile, a disputa por essa representação é acirrada à frente de seu tempo o fi zeram, em alguns projetos
e precedida de lobbies e jogos de influência. Muitos curatoriais que se tornaram marco na história de
curadores, por outro lado, concebem tais exposições exposições. Contudo, muitas vezes as exposições
como um território de visibilidade, em que a lista de que vemos são realizadas através da formulação de
artistas participantes representa um dos seus mais listas com base em influência junto aos agentes de
esperados momentos, tanto quanto a exposição em poder (curadores, historiadores, críticos e diretores
si. Sim, ele é inevitável ao creditar-se aos artistas de instituições, entre outros), assim como são con-
a legitimidade de suas obras. Mas é preciso conce- sumadas pelo grau de influência e prestígio junto
bê-las como sendo uma “lista” definida em razão da a esses mesmos agentes. Ainda hoje podemos ver
escolha da obra (ou obras), que irá representar estes exposições como estas sendo realizadas, embora o
artistas e não apenas um conjunto de nomes, consi- fato de construir projetos curatoriais com base em
derados apenas pela sua importância, pelas relações distinções de privilégio e representação da imagem
de amizade ou contatos políticos. Assim, o elenco de pública do artista seja uma concepção atrasada e
artistas deve surgir depois que suas obras sejam esco- conservadora − não apenas conservadora em ter-
lhidas, ou seja, depois que o sentido da presença das mos das implicações políticas, mas também em
mesmas derem significado ao conjunto de objetos que termos de uma tipologia de modelos de exposições.
integram a exposição. Pensar uma exposição com base em listas de
Há uma radical diferença entre conceber uma artistas para realizar projetos curatoriais para mu-
exposição pela “exposição de artistas” (ou seja, uma seus, e não em obras, não faz mais sentido. Não é
lista de nomes considerados de relevância) e uma possível constituir uma exposição conceitualmente
“exposição de obras”. Talvez esta seja uma das mais coerente e inovadora que não seja pensada pela in-
radicais mudanças operadas nos modelos de exposi- clusão de obras e pelo papel que cada uma delas
ções contemporâneos, a qual se originou nos museus, (isolada ou em conjunto) desempenha na exposi-
visto que estes possuem acervos e trabalham com ção. E é fundamental, tanto para o público quan-
obras, e migrou posteriormente para alguns projetos to para a própria legibilidade da obra do artista,
curatoriais fora deles, embora ainda seja um caso que as exposições não sejam apenas celebratórias e
raro, sobretudo se levarmos em conta o vasto núme- representativas de personalidade e estilo, mas que
ro de exposições realizadas a cada ano ao redor do acrescentem inovação a uma já larga história de ex-
mundo. Ainda assim, quando muitas dessas exposi- posições internacionais. Incorremos, além disso, em
ções eram realizadas nos museus, as escolhas eram outra questão: a de que o maior avanço que se pode
feitas com base no nome dos artistas e de seu pres- conceber em termos de concepção curatorial é uma
tígio, mesmo porque as obras canônicas pertencem mudança no sentido de organização de exposições,
quase que exclusivamente aos artistas considerados daquelas que são “vitrines” de representações de ar-
pela crítica os mais “importantes” no meio artístico. tistas para aquelas que são realizadas através de
No Brasil, uma das primeiras exposições de grande uma reunião de obras com propósitos específicos e
porte realizada na forma de escolha de obras,11 em claros tanto esteticamente quanto conceitualmente.
vez de uma lista de artistas nela representados, foi Nesse modelo, as exposições passam a ser realiza-

11. A curadoria da bienal atingiu esse objetivo na montagem da parte brasileira da exposição e nas exposições especiais. No que se refere a
representações estrangeiras, a curadoria articulou, tanto quanto possível, uma tentativa de coerência ao conceito da exposição (o conceito de
antropofagia) junto aos curadores responsáveis pelas representações nacionais.
12. A estruturação da exposição pelos critérios de escolha de obras causou descontentamento de alguns artistas que tiveram suas obras escolhidas
para a exposição à revelia de sua vontade. O motivo foi o fato que o procedimento teria ocasionado uma perda da oportunidade de terem sua
produção mais recente mostrada em um evento de extrema visibilidade internacional.
13. Curadores e organizadores de exposições em geral sempre foram os principais responsáveis por manter essa “hierarquia qualitativa”, receosos de
serem criticados pelos próprios artistas ou de sofrerem pressões do meio se viessem a quebrar tais normas. Cabe lembrar que muitos dos indivíduos que
organizavam essas exposições eram historiadores de arte, sendo que a academia é a mais conservadora quando se trata de assegurar tais distinções.
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são indispensáveis, pois colocam obras em confronto galeria continham aberturas que possibilitavam entrever
ou em paralelo, gerando um novo conjunto de sentidos as paredes e obras do espaço maior e vice versa.
que se apresentam a partir da fricção entre a obra e Podemos conceber ainda o modelo labiríntico como
sua experiência em comparação a outras na exposição. uma multiplicidade risomática nos termos de Gilles De-
A experiência sensorial do labirinto foi assinalada por leuze e Félix Guattari. Seu sistema de network antige-
Bernard Tschumi quando escreveu que “o espaço é nealógico é fundamental para a estratégia curatorial em
real porque ele afeta meus sentidos, antes de afetar questão. A exposição se expande em direções as mais
minha razão. A materialidade de meu corpo coincide diversas, introduzindo novas possibilidades de articula-
com a materialidade do espaço, ao mesmo tempo em ção que podem ser consideradas extremamente relevan-
que luta contra ela”.22 Um método labiríntico de cura- tes para uma nova estrutura organizacional de projetos
doria implicaria portanto em uma redefinição do senti- curatoriais, e inclusive, de novos modelos de exposições.
do prioritário da visão para aquele dos outros sentidos,
que incluiriam o olfato, o tato, a audição e o paladar. ***
Ao percorrer um
labirinto, o “caminhan- Um método labirín-
te” deve realizar es- tico de curadoria re-
colhas; analogamente, quer uma abordagem
em uma exposição, o não cronológica das
visitante terá de cons- obras, 25 realizada atra-
tituir suas avenidas vés de justaposições
interpretativas. Nessa que produzem con-
FIG. 1 perspectiva, o curador trastes, confrontos ou
Exposição Reduções do Sentido
com curadoria de José Francisco pode desempenhar o paralelismos. Há uma
Alves, curador-chefe do MARGS. papel duplamente simi- articulação interna ao
Exposição realizada dentro da ex-
posição Economia da Montagem: lar àquele de Dédalo, o significado que precisa
Monumentos, Galerias, Objetos arquiteto da mitologia ser articulado progres-
de Curadoria de José Francisco
Alves. De 22 de agosto à 28 de que construiu o labirin- sivamente de uma obra
outubro de 2012. Museu de Arte to, a saber: definindo a a outra, causando tanto
do Rio Grande do Sul.
estrutura da exposição, uma perda da estrutura
ou guiando o visitante [FIG 1] cristalizada do signifi -
ao longo do percurso, tal como aquele representado pelo cado quanto um ganho em sua ampliação, graças ao
fio de Ariadne,23 na abertura de possibilidades e na ins- acréscimo do sentido agregado ao espaço conceitual
tituição de caminhos para desvendar o sentido da expo- das obras. Na ausência de um método não crono-
sição, como o significado das obras naquele contexto. In- lógico, o arranjo entre elas deverá necessariamente
terioridade e exterioridade passam a ser uma dicotomia pressupor que a descaracterização da lógica linear
inexistente na medida em que a circulação e o percurso seja deslocada para um nível superior, ou seja, para
demarcam uma falta de bordas. Na exposição Economia grupos de obras, períodos ou conjuntos, que seriam
da Montagem: Monumentos, Galerias, Objetos,24 por demovidos de sua costumeira linearidade cronológica
exemplo, foi tratada desta questão, com a inclusão de para então assumir a característica própria de novas
uma exposição dentro da outra, chamada Reduções do estratégias de exibição não linear. A desconstrução
Sentido. A segunda, incluída dentro da primeira, com da estrutura cronológica tornaria possível uma rede-
curadoria do mesmo curador, incluiu um espaço de uma fi nição dos princípios de consideração linear que são
pequena galeria dentro do espaço maior onde Economia tão comuns em exposições. O processo de descons-
da Montagem estava localizada [FIG. 1]. As paredes da trução dos pressupostos hierárquicos inclui não só o

22. Bernard Tschumi, “Questions of Space: The Pyramide and The Labyrinth (Or The Architectural Paradox)”, Studio International (September/
October, 1975), 140.
23. O fio de Ariadne tornou-se símbolo da continuidade narrativa. Metaforicamente, podemos considerar a sua figura como aquela cuja predispo-
sição é a de guiar o espectador pelos meandros do significado.
24. Exposição realizada pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul, com curadoria de José Francisco Alves, de 22 de agosto a 28 de outubro de 2012.
25. Thierry de Duve assinalou o fato de que a cronologia é o resultado de determinada visão ideológica e enfatizou o interesse em uma perspectiva
não cronológica a respeito da história da arte: “Os museus estão repletos de teorias, assim como de obras. O conjunto de salas, a divisão em
períodos, o reagrupamento das obras, os nomes dos estilos, os cartéis, são conceitos operacionais, muitas vezes altamente carregados de ideologia
que impõem uma leitura particular da história. Eles são o trabalho de historiadores da arte, mas são também os historiadores da arte que são ca-
pazes de contestá-los, desmontá-los, problematizá-los. Nada diz que a história da arte deva ser ensinada em ordem cronológica ou ser periodizada
como ela costuma ser; hoje os historiadores da arte mais interessantes são, muitas vezes, pessoas que fazem incursões em vários períodos, estão
cientes da problematização de sua área pelas ciências humanas e têm um olho na arte contemporânea”. Thierry de Duve, Faire école (ou lare faire?)
(Geneva: Musée d’art modern et contemporain e Les presses di réel, 2008), 121.
UM NOVO MODELO CURATORIAL: O MÉTODO LABIRÍNTICO DE CURADORIA E AS ESTRATÉGIAS DE JUSTAPOSIÇÃO 25

estabelecimento de tais relações, mas sua disposição cluí naquela exposição a obra O Museu Vazio, de
no espaço, defi nindo a colocação de obras em uma Ilya e Emilia Kabakov. A experiência foi não so-
estrutura organizacional que possibilite alterar a mente física, mediada pela presença no próprio es-
regularidade simétrica de sua disposição formal. Ao paço da obra (uma grande construção que lembra a
fazê-lo, a exposição introduz outros mecanismos de sala de um museu de meados do século 18, ausente
articulação conceitual entre obras para muito além de obras), mas complementada pela experiência
da justaposição conceitual. de negociar, articular e conceber a obra dentro da
A organização de uma exposição que pressupo- exposição e finalmente acompanhar a detalhada e
nha um método labiríntico de organização curatorial minuciosa construção, que foi realizada com precisão
exige o reposicionamento das obras em dois níveis em seus mínimos detalhes. O Museu Vazio26 é uma
de articulação: aquele do espaço, que deve ser al- obra poderosa e emblemática, cuja possibilidade de
terado significativamente nas orientações verticais experiência pelo visitante é no mínimo inesquecível.
e horizontais, da colocação e do deslocamento das A consciência da ausência física naquele espaço
obras relativamente deslocadas de sua costumeira e a possibilidade de reflexão através da mediação
posição; e aquele das relações conceituais que envol- do vazio propiciavam uma condição única de refle-
vem a rearticulação de paralelismos e contrastes, es- tir não apenas sobre todas as características que
sencialmente estabelecidos através de justaposições presumidamente conhecemos em relação ao poder
e analogias de diversas ordens, entre elas formais, de existência da arte, a falta dela como um sinto-
conceituais, políticas ou de qualquer outro registro ma de miséria institucional, mas também sobre a
que seja considerado pertinente. sua temporária ausência, que demarca um campo
O modelo labiríntico pode então ser descrito da experiência da ordem da falta. Quem trabalha
como aquele que tenta apresentar novas possibilida- em espaços destinados a exposições já experienciou
des de leitura para a produção de determinado artis- o vazio daquele espaço, seja horas antes da mon-
ta ao deslocar a linearidade temporal da disposição tagem de uma exposição, momento que antecipa
cronológica − ainda que muitos outros modelos fa- a chegada e a montagem das obras, seja durante
çam o mesmo − para fora do centro gravitacional da o posterior vazio deixado pela desmontagem de-
exposição. Uma exposição de caráter labiríntico ar- pois de fi nalizado o evento. O primeiro momento,
ticula conceitualmente a produção em uma equação que antecipa a montagem, é quase sempre carre-
de espacialização, alterando a costumeira percepção gado de excitação propiciada pela possibilidade do
que temos de determinada obra, introduzindo novos espaço generosamente vazio que se mostra como
mecanismos de exibição no contexto expositivo. Me- um campo aberto de possibilidades, uma tabula
didas como adoção de um procedimento não cronoló- rasa aberta a realizações. O segundo é carregado
gico na exposição das obras, deslocamento delas em da sensação de perda, deixado pela ausência das
relação ao seu lugar tradicional de exibição, conside- obras em estado de pleno abandono, depois de uma
rando-se disposição espacial, quebra de hierarquia por marcante presença das obras no espaço e da forte
modalidade artística, relevância, status canônico, es- impressão de sua ausência quando deixam no local
cala e localização semântica (ausência da base para a onde estavam expostas.
exibição de esculturas, por exemplo, e a criação de ou- Para quem já assumiu a responsabilidade de
tros mecanismos), constituem o fundamento do méto- administrar um espaço de exposições, defi nir como
do adotado em uma exposição com esse caráter. Para será ocupado e arcar com o peso da responsabilida-
construir uma exposição de caráter labiríntico, seria de que isso representa, a dimensão do vazio é ainda
necessário transformar o espaço vazio em um campo mais marcante. Trata-se, porém, de um tabu a ser
de propriedades labirínticas, e tal construção precisa discutido, especialmente porque expressar sentimen-
antes de tudo ser criada através das obras. tos sobre o vazio museológico implica uma condição
de propriedade que eticamente se mostra complexa
*** de ser tratada, sobretudo quando se fala de espa-
ços públicos ou mesmo aqueles privados de caráter
Minha experiência (ou pelo menos uma consciência) público. A manifestação de qualquer sentimento ao
do espaço vazio do museu/galeria, e o poder evo- campo da institucionalidade parece demonstrar a
cativo da ausência, tornou-se mais forte quando aproximação de uma distrofia do rigor institucional
organizei a exposição Fronteiras da Linguagem que logra mostrar-se pessoal e voltado para uma
para a 5ª Bienal do Mercosul, ocasião em que in- disposição do ego. Quando se trata de instituições,

26. Para uma visão detalhada sobre a montagem da obra O Museu Vazio, ver Gaudêncio Fidelis, “A Site-Especificidade da Memória”, in Da Escultura
à Instalação, Porto Alegre, Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2004, 207-237.
UM NOVO MODELO CURATORIAL: O MÉTODO LABIRÍNTICO DE CURADORIA E AS ESTRATÉGIAS DE JUSTAPOSIÇÃO 27

delas uma experiência singular. Dando continuidade à medida que ele as percorre, pois o retiram de sua
ao programa de exposições instituído nesta gestão, percepção cotidiana. Se, por um lado, tal condição
trata-se igualmente de uma exposição centrada em parece ser à primeira vista proveniente da própria
obras, e não em individualidades, salientando-se a estrutura museológica, que por sua vez é constituída
importância de cada uma delas em um campo ins- pelo aparato de exposições, por outro, as exposições
titucional de geração de conhecimento através da contemporâneas têm enfatizado cada vez mais essa
produção artística que o museu deseja privilegiar.31 característica, conduzindo a uma condição que ca-
racterizei anteriormente por museologia, como sendo
O Museu de Arte Moderna de Nova York tal- uma síndrome cujas características descrevi da se-
vez tenha sido a primeira instituição a utilizar uma guinte forma:
organização labiríntica 32 (ainda que tal perspectiva
não tenha sido anunciada claramente) para condu- Podemos supor que alguma espécie de mágica de-
zir o visitante ao longo da exibição cronológica de senvolve-se entre as paredes do museu, que enfeiti-
sua coleção por ocasião da abertura de seu novo ça, levando o visitante a uma fantasia, engajando-o
prédio em 1939. A combinação dessas duas possi- em um processo circulatório, em uma busca perpé-
bilidades, cronologia e labirinto, permitiu à insti- tua por uma viável e coerente interpretação da(s)
tuição construir com grande eficiência uma lógica obra(s). É difícil não deixar de pensar que Teseu,
que de outra forma não seria possível. Como todo nosso substituto para o espectador contemporâneo,
museu possui lacunas em sua coleção, construir sofre de museologia. (Mas, afinal, não estamos todos
coesão por meio de uma disposição espacial que sofrendo da mesma condição?)34
unisse tais rupturas através das paredes curvas e
oblíquas mostrou ser uma possibilidade factível. A museologia 35 concebida como metáfora para
Todavia, contrariamente ao ameaçador espaço do uma condição física, e mesmo para males do espíri-
labirinto, as galerias apresentavam uma significati- to, poderia ser descrita como uma síndrome de teor
va sensação de intimidade: expositivo. Podemos imaginar que ela seja preci-
pitada especialmente pela constante exposição ao
O espaço foi dividido em pequenas unidades com aparato museológico. Porém, como uma síndrome
planos irregulares e o teto foi mantido deliberada- metafórica, é também uma condição contemporâ-
mente baixo. A escala doméstica não se restringiu nea típica de um tempo em que a excessiva con-
às galerias, mas penetrou todo o edifício, começando vivência com o aparato de exposições mostra-se
com a área de entrada. [...] Outros elementos do mu- significativamente maior do que no passado. Como
seu, como o número limitado de andares, a cobertura síndrome, podemos dizer que seria uma condição
e a varanda, bem como a falta de espaços de repre- atribuída prioritariamente a profi ssionais da área,
sentação e do uso extensivo de plantas decorativas, ou a uma classe específica de indivíduos, por as-
aprofundou a analogia com uma Nova York de edifí- sim dizer, frequentadores assíduos dos espaços de
cios residenciais típicos. Os espaços de galeria foram exposições. Não obstante, museologia, 36 tal como
tornados domésticos e aproximados das casas do uma disciplina ou uma síndrome da maneira em
colecionadores privados tão intimamente associados que metaforicamente estou tentando sugerir aqui, é
à instituição. O caráter íntimo das galerias facilitou sobretudo um sinal dos tempos, uma manifestação
a estetização de arte, permitindo que o espectador da era expositiva em que vivemos.
estabelecer uma relação pessoal com os objetos ex- Pode-se dizer que parte da força produtiva de
postos.33 um projeto labiríntico de curadoria advém de um
efeito colateral resultante do universo de contami-
Podemos de fato dizer que as exposições são, nação das diversas tentativas de transformar as
em última instância, um labirinto de possibilidades tarefas curatoriais em um programa instrumental
e escolhas. Em uma perspectiva museológica, boas passível de execução. Ocorre que essa “síndrome
exposições produzem certa desorientação no visitante museológica”, como convencionei chamá-la, acarre-

31. Idem. Gaudêncio Fidelis, “Um Museu Feminista”, Fôlder da exposição, não paginado.
32. Para uma descrição mais precisa do assunto, ver Christoph Grunenberg, “The Politics of Representation: The Museum of Modern Art, New
York”, in Art Apart: Art Institutions and Ideology Across England and North America, Marcia Pointon, ed. (Manchester and New York: Manchester
University Press, 1994), 201-202.
33. Christoph Grunenberg, “The Politics of Representation: The Museum of Modern Art, New York”, in Art Apart: Art Institutions and Ideology
Across England and North America, Marcia Pointon, ed. (Manchester and New York: Manchester University Press, 1994), 204.
34. Gaudêncio Fidelis, “O Lugar da Indeterminação: Para uma Abordagem Labiríntica de Dédale,” in Dédale – Pierre Coulibeuf, Gaudêncio Fidelis
(org.), Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2009, 56.
35. A assertiva “estamos sofrendo de museologia” poderia ser metaforicamente empregada nos dias de hoje, tendo em vista a excessiva exposição
ao aparato museológico a que o indivíduo contemporâneo está exposto.
36. Não me refiro aqui à museologia como uma disciplina.
28 UM NOVO MODELO CURATORIAL: O MÉTODO LABIRÍNTICO DE CURADORIA E AS ESTRATÉGIAS DE JUSTAPOSIÇÃO

ta uma incapacidade de experiência do fenômeno ar- mente no exercício das exposições com a organização
tístico, impregnando-a de uma proposição ficcional, de obras no espaço, é indispensável que tal reflexão
metafórica, visto que procura extrair uma racionali- seja realizada continuamente.
dade produtiva da burocracia institucional, delimi- A abordagem curatorial encerra em si uma pe-
tada pela organização dos próprios modos organiza- culiaridade labiríntica, visto que a especificidade dos
cionais, gerando, em última análise, um bloqueio na métodos de trabalho só se distingue através do cará-
criatividade funcional da organização museológica. ter ético das escolhas, o que pode tornar difícil a ta-
refa de distinguir entre um método e outro. Alimen-
*** tada pela lógica de constituição para-institucional,
ou seja, de uma produtividade discursiva que, uma
A abordagem de curadores em relação às diversas vez aplicada ao pragmatismo, busca institucionalizar
tarefas de uma exposição difere consideravelmente. toda e qualquer atividade curatorial, mesmo aquelas
Contudo, de modo geral, elas estão destinadas à di- sem qualquer significado cultural, o cotidiano de ex-
ferenciação. Os curadores não operam com o mesmo posições altera as margens de coerência lógica que
senso do passado, principalmente porque a história regula as relações entre realidade e intenção. Nesse
das instituições que abrigam seus acervos é bastante sentido, a experiência vivida por uma exposição cons-
diferente. As plataformas curatoriais servem a di- titui um fato que a caracteriza como única no uni-
ferentes propósitos e envolvem abordagens diversas verso da cultura, visto que são muitos os fatores de
do passado, porque as instituições apresentam perfis dispersão discursiva que alimentam as características
diferenciados e são produtos de situações históricas que fazem de determinada exposição um campo de
igualmente diversas. Além disso, a agenda pessoal de propósitos lógico, coerente e, acima de tudo, pleno de
cada curador pode diferir tanto quanto são hoje os sentido. Portanto, as exposições compõem um con-
métodos curatoriais empregados. Divorciadas de seu junto de fatores que podemos definir como relevantes
contexto, as obras podem ser colocadas em situações em um contexto de proposições temáticas capazes
nas quais são visíveis, mas não necessariamente vis- de gerar novas possibilidades de articular obras no
tas em exposições que buscam, através da sensação espaço museológico.
estética com as obras, libertá-las definitivamente de Podemos considerar instrumental o estabeleci-
sua associação histórica e conceitual. Sabemos que mento de um método labiríntico de curadoria, espe-
não há apenas uma maneira de ver uma obra de arte cialmente quando estamos tratando de uma institui-
em um contexto, mas diversas possibilidades de con- ção museológica que ainda está à margem dos grandes
textualização que podem defini-la e situá-la diferen- centros de produção internacional de exposições e
temente, produzindo conhecimento original. cujos modelos raramente atingem a complexidade
Afinal, de onde exatamente provém o conheci- que é esperada de um museu. Ao diferenciar as ex-
mento produzido pelas exposições? Muitos abordam posições de teor museológico das exposições em ins-
tal questão, mas não explicam adequadamente como tituições não especializadas, conclui-se que, mesmo
se produz conhecimento por meio de projetos curato- que tais exposições em museus não sejam capazes de
riais ou sequer salientam a sua importância. Deve-se redefinir um campo de pensamento inovador, elas são
afirmar categoricamente que a produção de conheci- importantes porque, ao estarem alocadas no espaço
mento é, com certeza, o fator mais significativo de museológico, atestam a experiência das exposições
um projeto curatorial, ainda que haja outros fato- como sendo inerentemente problematizadas por esta-
res de relevância, como inovação estética das obras, rem naqueles espaços. As exposições têm o potencial
inovação do modelo curatorial que as constitui e as de redefinir o campo da história da arte e de deslo-
questões que geram em torno do campo de articula- car determinados princípios de formação canônica ao
ção social, com impacto na esfera pública. Se consi- provocar um desvio para o campo da diferença, cons-
derarmos uma hermenêutica das motivações, pode- tituindo assim um novo paradigma de exibição que se
remos concluir que a verdade intrínseca da produção mostra extremamente relevante para uma história de
de conhecimento é gerada fundamentalmente pela exposições e para a instituição de novos modelos de
experiência produtiva da realidade material que ali- exposições que um futuro breve nos trará.
menta a dimensão da experiência. Ao produzir novas
experiências e refletir sobre elas, estamos produzindo
conhecimento inovador e, cada vez que articulamos
novas possibilidades de experimentação no espaço de
exposições, tais prerrogativas de construção de co-
nhecimento estão a tomar forma, sem que sequer nos
demos conta disso. Para que essas reflexões sejam
consolidadas em uma produção teórica, ou simples-
38 LEGIBILIDADE, PRIORIDADE HISTÓRICA E JUSTAPOSIÇÃO COMO ESTRATÉGIAS POLÍTICAS DE ORGANIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES

curatoriais em um campo de ação política que lhes Assim, em vez de escolher nomes e realizar uma
permita transformar-se em um potencial de discus- lista de “eleitos,” cujas obras então os represen-
são que seja capaz de estabelecer novos modelos tariam na exposição, esta é constituída a partir
de investigação dos limites e alcance da prática da escolha de obras que se mostram significativas
curatorial. Tais investidas podem ser concebidas para construir uma exposição coerente e artistica-
como uma intervenção política no centro da prá- mente densa. Nesse sentido, cada obra está ali para
xis curatorial com o objetivo de alcançar um novo desempenhar um papel específico, e não para re-
patamar de intervenção para a expansão da disci- presentar o nome de um artista ou uma “assinatu-
plina, além de assegurar que tenhamos um conjun- ra”. Trata-se de um avanço significativo em relação
to de novas abordagens que sejam determinantes às convencionais plataformas de exposições coleti-
para expandir as plataformas de exposições para vas, concretizadas quando curadores escolhem uma
novos territórios metodológicos. Logo, a inclusão lista de artistas que a elas confere legitimidade. As
de obras não canônicas em exposições e o redimen- obras são indispensáveis para que exposições sejam
sionamento das estratégias de exposição viabilizam realizadas, e os museus precisam tê-las em seus
um reposicionamento da experiência artística em acervos para que seja possível colocar em prática
um novo campo de constituição de exposições. plataformas curatoriais de alta relevância.
O mecanismo de justaposição é um procedi-
mento para a produção de legibilidade e novas
possibilidades de leitura das obras em exposições.
Ele é constituído pela disposição de obras lado a
lado por motivações diversas (conceituais, históri-
cas, formais, etc.), a estratégia consiste em apontar
possibilidades de apresentar confrontos produtivos
entre obras. Esse procedimento é politicamente re-
levante na medida em que, ao eliminar a cronolo-
gia, possibilita deixar de lado a linearidade histó-
rica para advertir e lembrar o espectador de que
existem outros elementos considerados relevantes
na circulação e institucionalização da obra de arte,
assim como na formação de sua especificidade his-
tórica e artística.
Exposições como Labirintos da Iconografi a,
e outras que se seguiram, lançaram mão de me-
canismos de justaposição na constituição de suas
plataformas curatoriais, defi nidas conceitualmen-
te como um “método labiríntico de curadoria”.1
Percorrendo um arco histórico compreendido en-
tre meados do século 19 e a contemporaneidade, a
exposição estabeleceu novas possibilidades de en-
tender a experiência artística não mais pela lógica
simplificada das relações entre obras, mas pela ge-
ração de uma disposição de possibilitar novas ca-
madas de leitura criadas a partir das relações entre
obras a partir da história de Dédalo e seu labirinto,
construído para abrigar o Minotauro. Nesse caso,
a mitologia serviu como alavanca conceitual para
constituir um fértil campo de relações conceituais
entre obras.
Podemos identificar ainda o surgimento de
uma consistente redefi nição da lógica que constitui
exposições coletivas como esta, que migrou de uma
exposição “de artistas” para aquela “de obras”.

1 O método foi inaugurado justamente com esta exposição, com a curadoria de José Francisco Alves, curador-chefe do MARGS na época.
CURADORIA MUSEOLÓGICA: NOVOS PARADIGMAS SURGIRAM E UMA NOVA ESCOLA DE CURADORIA SE CONSOLIDOU 41

É
inegável que a instituição de um Dois casos em evidência são os projetos cura-
“método labiríntico de curadoria” toriais do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e
inaugurado pelo Museu de Arte do Museu dos Direitos Humanos do Mercosul, este
do Rio Grande do Sul (MARGS), último uma instituição museológica recém-criada
através da exposição Labirintos da através do Decreto nº 51.647, de 15 de julho de
Iconografi a,1 realizada em 2011, 2014,2 que já demonstra um programa visivelmente
iniciou um processo que conduziria a uma mudan- avançado no que diz respeito ao projeto de tra-
ça das mais radicais nos programas de exposições balho na área de programa de exposições. Expo-
institucionais de que se tem notícia no Rio Grande sições como Deus e Sua Obra no Sul da Amé-
do Sul. Com a ocasional abolição da cronologia e rica: A Experiência dos Direitos Humanos no
da linearidade, somada à adoção de mecanismos Sul da América [Fig. 1] e Futurama: Inovações
de justaposição na exibição de obras, um grupo de da Juventude3 [Fig. 2] posicionaram a instituição
exposições que se seguiram mudou completamente de imediato em uma condição de vanguarda em
a maneira como se organizam projetos curatorais, programas de excelência para o meio. Trabalhando
como se percebem obras e como se administram em parceria, essas duas instituições empreenderam
tanto acervos, quanto coleções museológicas. A um extenso programa curatorial que já mudou con-
grandiosidade dessa mudança é tão excepcional sideravelmente o panorama de exposições que po-
que ela sequer pode ser mensurada neste momen- demos considerar relevante, seja para uma história
to. Contudo, já é possível vislumbrá-la e verificar de exposições no contexto local e nacional, seja
sinais de que tais mudanças vieram para causar para a experiência individual do visitante. Tais
transformação: o cenário artístico se transformou exposições mudaram especialmente a política de
graças a essas exposições, mostrando que velhos gerenciamento de acervos de arte e arquivos, assim
métodos estavam obsoletos, atrasados e, porque- como a própria maneira como as exposições são
não dizer, até mesmo mostravam-se reacionários. concebidas de acordo com uma política estratégica
Hoje, a concepção de obras-primas produzi- que objetiva desafi ar os limites do cânone artístico,
das apenas por artistas “geniais” caiu por terra. promover a inclusão e redefi nir uma série de pre-
Embora a excelência seja indispensável e deva ser missas importantes para que seja possível avançar
sempre perseguida, ela não é mais apenas um fe- no panorama de projetos curatoriais para museus.
tiche, e sim uma aspiração ao que há de melhor Ainda sobre o método “labiríntico de curadoria”, é
e mais avançado. Agora essa excelência mostra-se possível assinalar que:
também transferida para a qualidade das exposi-
ções e sua inovação curatorial, tornando os proje- Partindo de uma organização curatorial labiríntica,
tos de exposições capazes de construir plataformas onde as escolhas das obras foram realizadas para pri-
que sejam interessantes para o visitante, e que lhe vilegiar uma disposição não cronológica, avançando
possibilitem uma experiência qualitativa no espaço e recuando dentro do arco histórico definido pela ex-
do museu. posição, Labirintos da Iconografia busca privilegiar

1 No início de 2011, propus ao então curador-chefe do MARGS, José Francisco Alves, realizar uma exposição utilizando tal método de abordagem
curatorial. O resultado foi a exposição Labirintos da Iconografia, que aconteceu de 21 de maio a 14 de agosto do mesmo ano.
2 O museu inaugurou de fato em 1° de abril de 2014, com a exposição Deus e Sua Obra no Sul da América: A Experiência dos Direitos Humanos
Através dos Sentidos, com curadoria de Márcio Tavares.
3 Exposição com curadoria de Ana Zavadil, de 22 de julho a 6 de setembro de 2014.
42 CURADORIA MUSEOLÓGICA: NOVOS PARADIGMAS SURGIRAM E UMA NOVA ESCOLA DE CURADORIA SE CONSOLIDOU

a convivência entre obras no espaço de exposição fazê-lo, e por não inovar nesse aspecto, também
produzindo mecanismos de amostragem que venham nada fazem para impulsionar a obra dos artistas
que apresentam e a elas dar significado. Destaca-
a enfatizar o potencial artístico de cada uma dessas
se, nesse sentido, a persistência de uma experiência
obras para além de sua aparência inicial. Iconogra-
fia,no caso desta exposição, refere-se à abordagem de exposições que pouco ou nada acrescentam ao
de um tema ou assunto em termos de conteúdo e meio e que, por isso, persistem em um limbo de
imagem. Assim, a exposição busca instituir novas inatividade política que lhes confere determinada
capacidade de recorrência. Dito de outro modo,
relações entre imagens como entidades cujo potencial
artístico seja capaz de se relacionar com obras dequanto maior é a sua ineficácia na relação com o
períodos e gêneros diversos para muito além da suameio em produzir uma rede simbólica de significa-
especificidade.4 do, maior parece ser a sua intermitência.
Com a introdução de um novo modelo de cura-
Se, por um lado, há uma tendência de expo- doria que viesse a questionar os limites da expe-
sições que privilegiavam o contexto da produção riência de realização de exposições no ambiente
contemporânea, sem levar em conta seu substrato museológico, podemos identificar o grau de influên-
histórico, como se ela existisse em um vácuo, o cia que esse novo método alcançou em contribuir
modelo inaugurado rapidamente para
FIG. 1 pelo MARGS preten- que houvesse avan-
Vista da Exposição Deus e Sua
Obra no Sul da América: A Ex- de demonstrar que ços significativos em
periência dos Direitos Humanos as relações entre a algumas instituições
Através dos Sentidos Museu dos
Direitos Humanos do Mercosul – produção contempo- locais, embora ou-
Porto Alegre, RS. Curadoria de rânea e aquela que a tras tenham apenas
Márcio Tavares. De 1° de abril a
31 de maio de 2014. antecedeu é extrema- adotado uma mími-
Fotografia: Fábio De Re e Carlos Stein mente relevante para ca de seus procedi-
- VivaFoto
conferir a ambas mentos, sem de fato
sentido, assim como mergulhar na com-
significado cultural plexidade do apara-
e artístico. Trata-se to museológico. Os
também de propiciar avanços tornaram-se
ao visitante dessas então consideravel-
exposições a possibi- mente importantes
[FIG 1]
lidade de vislumbrar para que tenha sido
FIG. 2
Vista da Exposição Futurama:
essas obras históricas organizado um con-
Inovações da Juventude Museu conforme parâmetros junto de exposições
dos Direitos Humanos do Merco-
sul – Porto Alegre, RS. Curadoria
de interesse que se- de relevância que a
de Ana Zavadil. De 22 de julho a jam relevantes para a elas atribuiu uma im-
6 de setembro de 2014.
Fotografia: Fábio De Re e Carlos Stein
contemporaneidade, portância que persis-
- VivaFoto ou seja, não se trata tirá na história des-
de querer transportar sas instituições como
o visitante contempo- tendo redefi nido um
râneo para um tem- novo patamar de in-
po passado, mas de tervenção curatorial
mostrar-lhe o que es- cujas influências ex-
sas obras apresentam trapolaram as suas
de relevância para o esferas.
tempo presente em Podemos repen-
que ele vive. [FIG 2] sar inclusive o papel
A questão que parece surgir quando da reali- de instituições museológicas em restabelecer para-
zação dessas exposições é a seguinte: porque ainda digmas de intervenção cultural no ambiente local.
persistem exposições com plataformas curatoriais Se, por um lado, essa influência é por vezes limita-
rasas, que sequer contribuem para assinalar pers- da a uma geografi a cultural própria, por outro, o
pectivas de novos modelos? Justamente por não universo de expansão da curadoria adquire a partir

4 Press release da exposição Labirintos da Iconografia. Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, junho de 2011.
CURADORIA MUSEOLÓGICA: NOVOS PARADIGMAS SURGIRAM E UMA NOVA ESCOLA DE CURADORIA SE CONSOLIDOU 43

delas consideráveis contribuições, já que se trata de


expandir gradativamente o campo das plataformas
curatoriais por meio do exercício das exposições.
Tomemos por exemplo a introdução no contexto
local de mecanismos de justaposição em exposi-
ções. Apesar de o procedimento já ter sido utiliza-
do em outras exposições, principalmente depois da
24ª Bienal Internacional de São Paulo, a cha-
mada “Bienal da Antropofagia”, curada por Paulo
Herkenhoff em 1998, a consciência da relevância de
utilização de novos modelos curatoriais de exposi-
ção que venham a acrescentar possíveis mudanças
na maneira (muitas vezes atrasada) de realizar ex-
posições ainda se mostra rara no Brasil.
O principal objetivo de exposições museológi-
cas é a produção de conhecimento pela espaciali-
zação da obra de arte. Além disso, as exposições
devem desempenhar um papel político na legibili-
dade de obras de arte com vistas a dar sentido à
circulação dessas obras no desdobramento de seu
papel cultural e artístico. O método “labiríntico”
de curadoria imprime-lhe ainda outra caracterís-
tica: a de produzir exposições mais inclusivas. Tal
aspecto refere-se essencialmente à possibilidade de
abrir brechas na produção canônica e de incluir em
exposições obras que fogem à norma ou que foram
desconsideradas pela crítica e pela historiografi a
como não tendo relevância suficiente para receber
a devida atenção. Essa relevância obviamente cos-
tuma estar relacionada a um comprometimento
desses mesmos profi ssionais com as formas canôni-
cas e com as formas institucionalizadas.
Ocorre que não é mais possível conceber a
produção artística como um conjunto limitado de
obras-primas, as quais poderiam ascender ao pata-
mar daquelas mais relevantes e dignas de interes-
se. O aspecto político dessas manobras curatoriais
encontra força em um conjunto de estratégias in-
clusivas colocadas em curso para que essas obras
recebam a consideração que merecem e para que
lhes seja dada visibilidade em um contexto de re-
levância, e não apenas circunstancial. Exposições
que não apresentam uma plataforma curatorial
que proporcione considerável interesse intelectual
e que contribua para a produção de conhecimento
ingressam em um território de irrelevância que não
produz interesse histórico, imprimindo ao contexto
de exposições apenas uma experiência curatorial
“relaxada” e inconsistente que na maioria das ve-
zes não chega a ser relevante para uma história de
exposições.
DA POLÍTICA NA ARTE E DA ARTE DA POLÍTICA: APROXIMAÇÕES E INFERÊNCIAS 45

S
ão antigas as aproximações entre a arte tiguidade, aproximou os dois espaços. Desse modo,
e a política. Tal relação remonta aos es- produção artística e ação política passaram a ope-
critos filosóficos de Platão. Para ele, o rar em universos distintos na experiência moderna.
exercício da atividade política era uma A filósofa Hannah Arendt afirmou que, nos últimos
arte capaz de ser dominada por poucos.1 dois séculos, houve uma predominância do paradig-
Na Antiguidade e na Idade Média, não ma científico, utilitário e racionalista no exercício da
foram poucos os filósofos que associaram os dois do- política, razão pela qual ela acabou por se afastar
mínios nesse sentido. A política vista como arte ti- das raízes que a aproximavam da estética no período
nha certo ar elitista, oligárquico, pois as duas esferas pré-moderno.3
eram percebidas como mistérios abertos aos poucos Arendt desenvolveu boa parte de seus escritos
que conseguiam apreender seus códigos e técnicas. filosóficos tendo em vista restabelecer o significado
É provável que Nicolau Maquiavel2 tenha sido quem do político em seu tempo. Sua obra está impregnada
mais popularizou uma visão aproximada das duas do contexto mais dramático da experiência moderna:
áreas, já que para ele a política é, metaforicamen- as duas guerras mundiais, a emergência dos totali-
te, uma arte de homens em liberdade, exatamente tarismos e, principalmente, o terrível acontecimento
pelo esforço e pelo conhecimento exigidos para regrar do holocausto. Nesse momento, ação política livre foi
ações, gerir Estados e aperfeiçoar a sociedade contra subjugada por projetos utilitaristas baseados na for-
as armadilhas e dificuldades do destino. ça, na repressão e na violência como instrumento de
Na modernidade, a arte e a política tornaram-se poder. Para a filósofa alemã, os totalitarismos signi-
campos autônomos de conhecimento, pensamento e ficaram o eclipse da política em favor da violência.
ação. A especialização dos conhecimentos tornou a Assim, o pensamento arendtiano desenvolveu uma
relação entre os dois domínios menos óbvia. O proje- crítica profunda aos pressupostos intelectuais ociden-
to iluminista trouxe no seu bojo o privilégio do pen- tais que balizaram a construção do mito do progres-
samento racional-científico. Nesse processo, houve a so perpétuo e linear da humanidade, visto que esse
tentativa de levar ao estatuto de ciência para os co- paradigma engendrou também a possibilidade de os
nhecimentos humanísticos e, inclusive, começou-se a próprios seres humanos destruírem a civilização, seja
desenvolver a Ciência Política. Isso significou relegar pela via do campo de concentração, seja por meio da
à arte uma nova condição no programa de moderni- bomba atômica.
zação social e cultural, separado da esfera religiosa: Entretanto, as linhas de Hannah Arendt, ao
o meio artístico tornou-se um campo com autonomia mesmo tempo em que faziam um duro julgamento da
e certo grau de autorreferencialidade graças ao me- experiência da modernidade, pretendiam um modo
cenato e ao surgimento de um mercado para a arte. de reconciliação “com um mundo em que tais coisas
Em termos históricos, a Revolução Americana e são definitivamente possíveis” 4 por meio da recupe-
a Revolução Francesa tiveram como efeito o empo- ração de paradigmas modernos que permaneceram
deramento político da cidadania. A ideia de repre- relegados a uma condição de subalternidade. Segun-
sentação e de igualdade propiciada pela democracia do ela, somente um empreendimento compreensivo
retirou da ação política a aura divina – o que, na An- possibilitaria o entendimento acerca dos aconteci-

1 PLATÃO. República. Rio de Janeiro: Editora Best-Seller, 2002.


2 MAQUIAVEL, N. O príncipe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969 e MAQUIAVEL, N. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.
Brasília: Universidade de Brasília, 1979.
3 ARENDT, Hannah. The Promise of Politics. Nova York: Schocken Books, 2005.
4 ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993, p. 39.
46 DA POLÍTICA NA ARTE E DA ARTE DA POLÍTICA: APROXIMAÇÕES E INFERÊNCIAS

mentos políticos da primeira metade do século XX se civilizacional existente. A filósofa alemã afirmava
e, a partir desse discernimento filosófico, perceber que “os homens no plural, isto é, os homens que vi-
que, em verdade, tais eventos teriam sido antipolí- vem e se movem e agem neste mundo, só podem ex-
ticos. O investimento teórico arendtiano, portanto, perimentar o significado das coisas por poderem falar
pode ser entendido como uma tentativa de resgate da e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos”.6 Em uma
experiência política moderna diante do desastre tota- época na qual estamos imersos na era digital, em que
litário. Em Origens do Totalitarismo, por exemplo, a informação chega aos borbotões e, muitas vezes,
ela explica o modo como esses governos, em vez de tem-se dificuldade de racionalizar diante de tal volu-
exacerbarem a ação política, de fato a aniquilaram.5 me de dados, torna-se quase necessária a compreen-
Para a filósofa, o terror de Estado protagonizado são da ação política a partir daquelas características
pelos regimes totalitários teve como objetivo a des- que lhe seriam intrínsecas, ou seja, por meio da pos-
truição da pluralidade humana. Tais regimes propu- sibilidade de oferecer sentido comum a um mundo
nham, através da construção de uma uniformidade aparentemente em descontrole. A deliberação livre,
artificial, a formação de sociedades absolutamente para Hannah Arendt, conduziria à formação de sen-
homogêneas. Daí se explicaria, por exemplo, o feti- tido compartilhado sobre as coisas e sobre o mundo.
chismo totalitário por homens em uniforme, paradas Na visão arendtiana, o exercício da política seria
e afins. A ideia de uniformização humana é excluden- um ato performativo que acontece na esfera públi-
te com o posicionamento sobre a essência da política ca, tornando-se evidente a aproximação de sua per-
desenvolvido por Hannah Arendt, para quem o sen- cepção acerca da política com a arte. De fato, tal
tido da política era a liberdade. Nessa perspectiva, percepção da política como produtora de significado
a ação política existiria como um ato relacional, ou compartilhado é uma aproximação filosófica com a
seja, a viabilidade do agir político depende da inte- análise da estética desenvolvida por Kant. A esté-
ração dos indivíduos em uma comunidade. Por isso, tica kantiana apontava que a construção de sentido
a política seria o exato contrário da violência, já que na arte depende da comunidade dos homens, isto é,
o domínio físico representaria a anulação da comuni- a compreensão seria sempre relacional. Desse modo,
cação e do debate. Em termos metafóricos, pode-se o debate sobre as relações entre o meio artístico e
dizer que, entre a ponta da baioneta e o ser humano, o campo político partiriam de um mesmo ponto: a
não haveria diálogo, restando tão somente o medo. necessidade de compartilhar regras comuns para a
Dito de outro modo, somente na capacidade humana validade do debate, mesmo que tal inclinação seja
de pensar junto é que se instituiria a política e a subjetiva. Portanto, as duas instâncias nasceriam da
liberdade. permissão do dissenso e exigiriam o florescimento da
Em nosso tempo, adaptado ao utilitarismo, uma pluralidade humana. Por isso, a ação política e a arte
visão generosa da ação política parece por demais instigariam os seres humanos a pensar sobre sua con-
sonhadora. Uma vez que, para a maioria, seu sentido dição no mundo.
é apenas o de gerar melhorias na educação, na saúde, Em A Condição Humana, em um breve capítulo
na segurança, etc. A atividade política foi transforma- sobre a obra de arte, Hannah Arendt escreve:
da em mera habilidade técnica, passando a responder
a questões que, na verdade, lhe são exteriores. Sendo A fonte imediata da obra de arte é a capacidade hu-
transformada em quase sinônimo de administração, mana de pensar, da mesma forma como no homem
o critério do bom exercício político consiste na quan- a ‘propensão para a barganha e a permuta’ é a fonte
tidade de bens materiais que os governos podem pro- dos objetos de troca e sua aptidão para usar é a
porcionar. Esvaziou-se a capacidade de produção de fonte dos objetos de uso. Trata-se de capacidades do
significado da ação deliberativa, esgotou-se a crença homem, e não meros atributos do animal humano,
de que através do debate seja possível encontrar as como sentimentos, carências, necessidades, aos quais
saídas para os grandes dilemas humanos e, diante estão relacionadas e que muitas vezes constituem o
de tal descrédito, a política tornou-se mais uma ins- seu conteúdo. Essas propriedades humanas são tão
tância sem sentido em uma sociedade abarcada pelo alheias ao mundo, que o homem cria como seu lar
consumismo e pelo tecnicismo. na Terra, quanto as propriedades correspondentes
Retornar ao pensamento de Hannah Arendt de outras espécies animais, e se elas tivessem de
permitiria descortinar novas questões para o debate constituir um ambiente fabricado pelo homem para
acerca do significado da política no contexto de cri- o animal humano, esse ambiente seria um não-mun-

5 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letra, 1989.
6 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 12.
DA POLÍTICA NA ARTE E DA ARTE DA POLÍTICA: APROXIMAÇÕES E INFERÊNCIAS 47

do [non-world], um produto de emanação mais que demonstrações dos usos e abusos políticos da arte. O
de criação. O pensar relaciona-se com o sentimento nazismo foi o regime que mais explorou a potencia-
e transforma seu desalento mudo e inarticulado, do lidade da atividade artística como propaganda. En-
mesmo modo como a troca transforma a ganância tretanto, também nesse momento as artes sofreram
crua do desejo e o uso transforma o anseio deses- um imenso ataque do terror de Estado. Os nazistas
perado das necessidades – até que todos se tornem chegaram ao ponto de produzir uma exposição de
adequados a adentrar o mundo e serem transforma- “artes degeneradas” para atacar a produção de van-
dos em coisas, serem reificados. Em cada caso, uma guarda daquele período. Mais uma vez se percebe a
capacidade humana que, por sua própria natureza, aproximação dos dois campos: a atividade artística
é comunicativa e aberta-ao-mundo [world-open], é uma das primeiras instâncias a ser cerceada sob
transcende e libera no mundo uma apaixonada in- regimes políticos autoritários.
tensidade que estava aprisionada no si-mesmo [self].7 O período pós-Segunda Guerra Mundial foi um
momento de profundas transformações econômicas,
Ao entender a obra de arte como produção da di- políticas, sociais e culturais em virtude do impacto
ferença, como manifestação da pluralidade humana, devastador da guerra e de todos os traumas decor-
Hannah Arendt então a aproxima decisivamente da rentes dos totalitarismos, da explosão das bombas
ação política. A arte é vista como elemento questio- atômicas e da emergência da Guerra Fria. Tal situa-
nador do significado das coisas e produtora de novos ção engendrou uma resposta no meio artístico. Nos
sentidos compartilhados sobre a experiência de estar anos 1960, surgiu uma reação no meio artístico aos
no mundo. Segundo Kant, o exercício do artista seria processos de modernização. Foi uma movimentação
o de explorar as fronteiras da produção de “satisfa- que começou nos Estados Unidos convulsionados pe-
ção desinteressada” –e, com isso, a produção artís- las lutas pela igualdade de direitos civis e chegou até
tica torna-se uma reificação da pluralidade humana a Europa no final daquela década. Os artistas faziam
desenvolvida no ato do pensamento. Ao se adotar uma forte crítica ao racionalismo e aos projetos de
esse prisma, torna-se evidente a complementação en- modernização, tanto capitalistas quanto comunistas.
tre a arte e a política. Emerge na ação política uma Da condenação à utopia modernizadora do pe-
perspectiva estética e percebe-se o quão impregnado ríodo modernista, surgiu a arte contemporânea. Por
por mecanismos políticos encontra-se o meio artísti- isso, não há como dissociar a arte de nosso tempo
co. Logo, a política como exercício da liberdade signi- da política. Entretanto, a compreensão da política
fica resgatá-la do tecnicismo racionalista moderno e também se estendeu a novos horizontes. A nova sen-
reaproximá-la da arte. sibilidade artística– marcada pelo surgimento das
Então, o sentido político da arte estaria, em pri- instalações, pela política das performances, pela ideia
meiro lugar, no fato de que a obra de arte induziria as de intervenção –trouxe uma série de novas preocupa-
pessoas a pensar por si mesmas e, simultaneamente, ções para a arte. Por exemplo, artistas como Joseph
fazer desse pensamento algo compartilhado com o Beyuse levaram os temas da tradição e da conser-
mundo ao redor. A arte compeliria à formação de vação cultural a um status fundamental em suas
sentidos partilhados e dela dependeria. Esse ponto preocupações políticas e estéticas. Podemos afirmar
de vista associa a experiência estética à comunica- que, se a arte do modernismo estava voltada para
bilidade. Talvez seja por isso que Hannah Arendt preocupações com o futuro (particularmente em suas
chegou a afirmar que a estética tenha sido a “filosofia preocupações políticas), a arte contemporânea tem
política que Kant jamais produziu”,8 visto que o en- sua produção voltada para o presente.
tendimento kantiano do juízo estético permite e par- Conforme Andreas Huyssen, a produção artís-
te da discordância, mas exige a explicitação pública tica contemporânea opera em um campo de tensão
das opiniões. Nessa ótica, gosto é de fato algo que entre tradição e inovação, conservação e renovação,
se discute– e tal percepção do julgamento estético cultura de massas e alta cultura, sendo que os segun-
transmutada na ação política exige não só o direito dos termos já não desfrutam de privilégio em relação
de todos terem opinião, mas também a obrigação ge- aos primeiros. O sentimento, portanto, é o de que
ral da participação na esfera pública. não estamos mais destinados a completar o projeto
As formas como a arte intervém no espaço públi- da modernidade, embora nem por isso a única saída
co são as mais variadas possíveis. A produção artísti- seja a irracionalidade absoluta ou o niilismo. A arte
ca nem sempre é crítica, e o século XX é pródigo em contemporânea tem conseguido ultrapassar um telos

7 ARENDT. Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 210.
8 ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 33.
48 DA POLÍTICA NA ARTE E DA ARTE DA POLÍTICA: APROXIMAÇÕES E INFERÊNCIAS

perigoso de abstração, não-representação e sublimi- objetivo de reposicionar o debate sobre as relações


dade, que as críticas ao modernismo em seu começo entre as duas esferas. Trata-se de demonstrar que,
sustentavam, para permitir a abertura de um novo para avaliar as relações entre política e arte em
universo crítico e criativo para a cultura e para a exposições, é necessário adensar conceitualmente
arte.9 a compreensão da política, de seus mecanismos e
Desse modo, a arte contemporânea constitui um do seu sentido no mundo atual. Também é preciso
espaço para a politização do campo artístico, tanto intensificar a importância de haver, na elaboração
de seu interior quanto em suas relações com os de- das plataformas curatoriais, uma ancoragem sólida
mais projetos sociais. Por isso, a produção contempo- na história da arte e na historiografia de exposições
rânea não torna a arte modernista obsoleta, mas joga para perceber as interferências do contexto social na
sobre ela novas luzes, enuncia parte de suas contradi- produção artística. Em síntese, superar a visão uti-
ções e evidencia contradições da própria contempora- litária da arte e da política, como propunha Arendt,
neidade. Quando apresentadas em conjunto, as pro- é fundamental nesse processo. Assim argumentou o
duções de tempos diversos inserem-se em uma nova antropólogo Clifford Geertz:
constelação política e cultural que lhes oferece novos
sentidos. Assim, a produção artística, o colecionis- A participação no sistema particular que chamamos
mo (em especial aquele realizado por instituições) e de arte só é possível através da participação no sis-
os programas de exposições passam a intervir em tema geral de formas simbólicas que chamamos de
seu contexto por meio da seletividade e da densidade cultura, pois o primeiro sistema nada mais é que um
conceitual de suas escolhas e abordagens. setor do segundo. Uma teoria da arte, portanto, é,
A explosão dos referenciais artísticos do moder- ao mesmo tempo, uma teoria da cultura e não um
nismo na construção da produção contemporânea empreendimento autônomo.10
não significou– nem significa –uma separação da
arte e da política. Ao contrário, avaliando-se minu- As duas esferas correm em paralelo, de modo
ciosamente, percebe-se que a emergência de novos a não haver sobrepujança de uma sobre outra, mas
temas nos trabalhos artísticos caminha junto com a sim cruzamentos mútuos entre os campos. Torna-se
incorporação de uma série de novos temas no âmbito evidente, assim, que a política não é apenas o que
político nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Este foi o acontece em Brasília ou Washington, mas que ela se
momento de emergência dos debates públicos acerca manifesta de diversas maneiras nos vários domínios
do ambientalismo, das preocupações com os povos da atividade humana. Contudo, a construção de uma
originários e da alteridade, do feminismo e das ques- visão holística e compreensiva sobre o tema não per-
tões queer, por exemplo. mite a quem se aventure a organizar uma exposição
Logo, pode-se facilmente caracterizar a emer- esquecer-se de que este é um projeto que parte de
gência da arte contemporânea como um momento de determinado espaço: o campo artístico. E é justa-
politização do campo artístico. Conceitualmente, é mente a partir do adensamento referente à revisão
correta a afirmativa. Entretanto, tal percepção tem histórica da produção artística que deve partir uma
servido de base para projetos curatoriais, expositi- plataforma curatorial que aborde temas políticos ou
vos e museológicos que, avaliando-se por uma ótica sociais para o desenvolvimento de uma exposição que
política simplista e conceitualmente pobre, têm cons- pretenda realizar uma intervenção política, seja no
truído projetos nos quais a arte é transformada em meio artístico, seja na sociedade como um todo.
mera ilustração de visões sobre a organização social. Nesse caso, não há saída: a arte é o ponto de
Nos últimos anos, vemos uma tendência na organiza- partida e de chegada em projetos expositivos que
ção de exposições que partem de percepções filosófi- abordam a produção artística com base em um olhar
cas ou políticas como constituidoras de plataformas político. Interferir no meio social a partir de uma
curatoriais a ponto de que a percepção programática exposição de arte com tais características pode deter-
definida torne a produção artística simples acessório minar o sucesso de uma ação militante; porém, se o
explicativo de uma defesa de determinada visão de discurso proferido pela mostra não estiver fortemente
mundo. São exposições que passaram a ser prescriti- ancorado no campo artístico, a polêmica social tor-
vas de uma política-mundo, em vez de revisoras dos na-se pueril, porque será passageira. Uma exposição
efeitos da ação política na arte. que não revisa a produção artística com olhar crítico
A retomada, neste artigo, do posicionamento de torna-se conservadora em sua estratégia de exibição,
Hannah Arendt acerca da política e da arte tem o visto que a intenção da crítica social impede a ava-

9 HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
10 GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 113.
DA POLÍTICA NA ARTE E DA ARTE DA POLÍTICA: APROXIMAÇÕES E INFERÊNCIAS 49

liação de como os processos criticados na sociedade


são repetidos irrefletidamente no meio artístico. Os
casos mais bem-sucedidos de intervenção política a
partir da arte são justamente aqueles que partiram
do campo artístico– a produção de Marcel Duchamp
é um excelente exemplo disso.
Hannah Arendt, após a tragédia de duas guerras
mundiais e do holocausto, estava imbuída do desejo
de demonstrar a necessidade de considerar a política
como elemento fundante de uma sociedade capaz de
superar os acontecimentos catastróficos do passado
pela produção de sentido comum. Ela encontrou na
estética a fortaleza teórica de seu empreendimento
filosófico. Alguns anos depois, em nosso tempo ace-
lerado, parece difícil encontrar sentido, que dirá co-
munidades de sentidos partilhados. A arte, diante
disso, pode tornar-se um oásis ou uma miragem. Um
oásis quando se encontra referenciada na revisão do
meio artístico e, com base nele, insere-se criticamen-
te no mundo. Uma miragem (ou simulacro) quando
transformada em simples ilustração de plataformas
externas. Trata-se, portanto, de recolocar a ação po-
lítica no foco da arte e a crítica de exposições em
novo patamar, já que a tensão entre política e esté-
tica, embora pareça perturbadora, simultaneamente
limita e expande nossos horizontes: é nosso drama e
nossa solução.
70

FRANCISCO STOCKINGER [Traun, Áustria, 1919 – Porto Alegre, 2009]


Touro, 1987.
Bronze.
Coleção Renato Malcon.
86

PAULO OSIR [São Paulo/SP, 1890 - 1959] JOSEPH BAIL [Limonest/França, 1862 - Paris/França, 1921]
Imigrante lituano, 1930 La petitebonne, 1896
Óleo sobre tela, 74 x 61.5 cm Óleo sobre tela, 128 x 58 cm
Acervo do MARGS Acervo do MARGS
Aquisição por transferência da Biblioteca Pública do Estado, 1955 Aquisição por compra, 1957

GALDINO GUTTMANN BICHO [Petrópolis-RJ, 1888 –


Rio de Janeiro, 1955]
Mulher tomando chimarrão, 1925.
Óleo sobre tela.
Acervo Pinacoteca Aldo Locatelli,
Prefeitura de Porto Alegre
142

Bestiário iii – retrato sem rosto


Fotografia: Tanam Hennicka
143
144
152
167
176

• Este catálogo foi composto nas fontes Goethe FF Clan, Latin Modern Roman, Latin Modern
Sans e Modern No. 20, e impresso pela gráfica Pallotti em papel Magno Satin FSC 170g/m2
com uma tiragem de 2.000 exemplares.

• Desenhado por Jaqueline Piccini no Núcleo de Design Gráfico do Museu de Arte do Rio
Grande do Sul.

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