Você está na página 1de 25

1

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ONLINE:


Questões e hipóteses de trabalho1

Wilson Gomes

O tema da participação política, como todo mundo sabe, é um dos mais tradicionais
da agenda de pesquisa sobre a democracia. No mesmo diapasão, o conjunto de
temas que relacionam participação política civil e internet - ou, num quadro mais
amplo, participação, engajamento cívico e tecnologias para comunicações digitais
online - tem sido consideravelmente visitado nas últimas duas décadas. Falo de um
“conjunto de temas” porque, a rigor, trata-se de vários veios discursivos que, de um
modo ou de outro, implicam ou consideram frontalmente o problema da participação
política mediada por tecnologias digitais.

Assim, temos, por exemplo, um conjunto de abordagens interessadas em verificar


se e em que medida a internet (entendida como o mega-ambiente de conexões via
computadores), as ferramentas e iniciativas apoiadas em tecnologias digitais,
contribuem para resolver o tão documentado déficit de participação política que
afeta, em toda parte, as democracias liberais contemporâneas (Best e Krueger,
2005; Gomes, 2005; 2005b; Marques, 2008). Teria a internet estancado a perda de
capital social ou pelo menos reduzido a velocidade com que se desfazem as redes
sociais, a confiança e as formas de reciprocidade (Bimber, 2000; Coleman e Gøtze,
2001; Hooghe, 2003)? Teria o emprego de comunicações via computadores
conseguido produzir novas formas de participação política e de engajamento cívico
e/ou introduzido novos participantes e estimulado novas formas de engajamento (Di

1
A pesquisa que possibilita este artigo é financiada com fomento proveniente do CNPq, da CAPES e da FINEP.
O autor agradece as sugestões recebidas de Camilo Aggio, Rafael Sampaio, Graça Rossetto e Maria Paula
Almada.
2

Gennaro e Dutton, 2006; Aikins, 2008)? Nesta perspectiva, o déficit de participação


não é um problema da internet, mas já que as comunicações digitais em rede
representam um conjunto novo de ferramentas para o estabelecimento e extensão
das redes sociais, para produzir novas formas de colaboração, informação e
interesse político, por que não imaginar que talvez se possa encontrar aqui alguma
alternativa de incremento de participação política e engajamento cívico (Jennings e
Zeitner, 2003; Owen et al. 2008)2?

Outro conjunto de preocupações lida com o problema das diferenças entre a


participação política em geral e a participação que se dá mediante a internet
(Krueger, 2006). Seja daquela em que as ferramentas, produtos e iniciativas online
são acessórios e complementos das modalidades já tradicionais, ou daquela outra
em que os recursos baseados na internet são meios e instrumentos essenciais para
a sua existência. De fato, podemos distinguir, no que respeita à participação política
via internet, um espectro consideravelmente amplo, em que os dois pólos são
representados; de um lado, pela participação política em que a internet (isto é, as
ferramentas, as linguagens, os produtos e os aparelhos e as máquinas de conexão
digital) é instrumental e, de outro, pela participação civil em que a internet é
essencial. Nos diversos pontos da escala que materializa o intervalo entre esses
dois pólos são situadas as diversas formas e iniciativas de participação via internet
(Krueger, 2002) ou, para simplificar, de e-participação ou participação online.

Assim, quem usa e-mail ou skype para fazer contatos políticos em vez de carta, fax
ou telefone simplesmente substituiu uma tecnologia por outra, digital, que lhe é
bastante similar, embora contenha vantagens adicionais típicas da tecnologia; do
mesmo modo que quem busca informação política em versões online de jornais da
indústria da informação, não faz muito mais do que trocar o papel por uma tela,
naturalmente com as perdas e ganhos que isso comporta. Por outro lado, quem
busca informações políticas em sites e portais já está lidando com um produto
desenhado exclusivamente para o ambiente online e quem se embrenha na
blogosfera para a mesma tarefa estará alguns graus bem mais distante do modelo
da leitura de jornais. De maneira semelhante, quem usa ferramentas de

2
Sobre a retórica pró-participação que vem em ondas a cada novo meio, vide Spinelli, 2000.
3

comunicação instantânea, como MSN ou Gtalk estará alguns graus mais distante do
modelo da troca de correspondência ou da conversa quotidiana. Estará ainda mais
distante deste modelo se emprega, para isso, o Twitter. Se passarmos ao nível mais
sofisticado das ferramentas, o quadro se repete: uma lista de discussão é algo típico
da internet, mas ainda guarda alguma analogia com a forma do debate
especializado; por sua vez, o emprego político de um site de relacionamento ou, de
forma mais genérica, de sites para redes sociais (social networking sites), é ainda
mais típico do universo digital, enquanto solicita determinadas habilidades, domínio
de ferramentas e disposição de espírito que são peculiares às pessoas que estão
constante e profundamente conectadas. Assim, uma coisa é a ação digital de quem
usa e-mails, lê jornais online e visita sites políticos, por exemplo, outra é aquela de
quem participa de fóruns, domina ferramentas para redes online, além daquelas
para conexão instantânea e para compartilhamento de vídeo e imagem, outra ainda
é a participação online daqueles que são capazes de dobrar e empregar quaisquer
ferramentas digitais para participar de iniciativas digitais com propósitos políticos.

No quadro da comparação entre as formas de participação política, emergem


perguntas tais quais as que se seguem: Heavy users da internet participariam e se
engajariam mais ou menos do que os light users? E aqueles que participam e se
engajam politicamente por meio da internet são diferentes dos que se engajam e
participam off-line (Quintellier e Vissers, 2008; Macintosh et al. 2003)? O uso da
internet para a participação política e o engajamento cívico trouxe alguma novidade
ao panorama ou se trata simplesmente de vinho velho em barris novos?3

Outros estudos ainda se ocupam com a qualidade da participação online ou se


interessam pela participação e engajamento mediante dispositivos de comunicação
digital com saída para a internet (caso de novas gerações de tecnologias portáteis
como smart phones, ipods e aparelhos semelhantes). Pergunta-se, por exemplo, se
haveria uma diferença significativa na qualidade e na efetividade entre dimensões
tradicionais da participação como militância, mobilização, manifestações, realização
de campanhas, voto etc. e a sua contrapartida digital (Polat, 2005)4. No quadro

3
Além de perguntas específicas, que dependem das características do online, como aquela se a vigilância
eletrônica do governo afeta a participação política online (Krueger, 2005).
4
Outros links dizem respeito, por exemplo, ao vínculo entre participação online, localização, exclusão
(Sylvester e McGlyn, 2010) ou entre participação online e as assimetrias de gênero (Fuller, 2004).
4

dessas inquietações, destaca-se particularmente a preocupação com o teor


democrático ou deliberativo dos empregos que se fazem dos meios online de
produção da esfera pública. O que é uma orientação típica daquele endereço de
pesquisa que considera as comunicações via tecnologias digitais à luz de
preocupações com a esfera pública e com a democracia deliberativa. De fato, há
mais de quinze anos se investigam ferramentas (fóruns e listas de discussão,
principalmente) e iniciativas (sistemas de fóruns eletrônicos baseados na internet
para a deliberação pública sobre problemas locais e nacionais, p. ex.) dedicadas à
discussão política online para se verificar se e até que ponto nelas se cumprem os
requisitos fundamentais seja da esfera pública seja de uma deliberação
normativamente fundadas (como exemplo, Dahlberg, 2007).

PARTICIPAÇÃO PARA QUÊ?

Desta breve revisão dos temas e questões centrais do debate sobre participação
política e internet se depreende, portanto, que tal discussão é vibrante, fundamental
e está longe de se esgotar. Isso não obstante, têm sido deixadas de lado questões
de princípio que, em minha opinião, precisam ser chamadas ao centro da discussão.
O fato é que o debate sobre participação online é tributário daquele mais amplo e
tradicional sobre participação política. Por essa razão, tende a ser parte de um
debate mais largo e, na maior parte das vezes, restringe-se a questões relacionadas
à aplicação de argumentos e pressupostos melhor examinados e discutidos em
campos como a teoria política ou a teoria democrática. Por isso mesmo, a
preocupação com a participação política online acaba herdando automatismos
conceituais, vieses e lacunas do debate tradicional.

Acredito que uma dessas lacunas diz respeito ao problema das justificações da
importância da participação civil online. Em outras palavras: por que é assim tão
relevante, num quadro de teoria democrática, a participação e o engajamento
cívicos, em geral, e online, em particular?
5

A resposta óbvia recorre, naturalmente, a uma explicação normativa e histórica da


democracia. O padrão argumentativo quase sempre inclui todas ou a maior parte
das alternativas abaixo:

a) o governo representativo dos modernos (a democracia representativa liberal) está


em descontinuidade com a democracia direta dos antigos;

b) a descontinuidade consiste justamente no fato de que na democracia direta a


participação de todos dos cidadãos produzia a decisão política, isto é a decisão que
afeta toda a comunidade política, enquanto no governo representativo a participação
civil prevista e solicitada se restringe à escolha de lideranças políticas, estas sim,
encarregadas do trabalho de tomar a decisão política;

c) os governos representativos, apesar de todas as vantagens relacionadas à


ênfase nas liberdades individuais e à institucionalização do Estado baseado
integralmente no direito, padecem de um morbo antidemocrático que leva os
representantes e o sistema político em geral a se distanciarem e desconectarem
progressivamente da esfera civil, dos seus interesses, opiniões e vontade. Como a
esfera civil resulta ser o âmbito vital da comunidade política democrática, única
instância que realmente justifica e legitima a própria democracia, quando a
representação dela se afasta, não importando qual seja a razão para tanto,
empobrece e definha a democracia e a cidadania.

d) esta tendência autocontraditória das democracias contemporâneas resulta em


uma redução ao mínimo da participação do cidadão na condução dos negócios
públicos e na espoliação crescente do seu status de soberano do Estado
democrático.

O argumento é basicamente verdadeiro e sensato, mas dele se podem tirar


conseqüências insustentáveis ou irrealistas. Pode-se derivar dele, por exemplo, a
idéia de que a substituição dos governos representativos por democracias diretas
seria não só normativamente justificada, mas um projeto político realizável nos
estados modernos. E que participação para valer (isto é, democraticamente
relevante) seria apenas aquela em que parte do reconhecimento de que “todo o
poder é do povo” e de que a representação política seria, no fundo, uma usurpação
6

– naturalmente a ser removida. Ademais, participação para valer seria apenas


aquela em que todos os membros da comunidade política pudessem participar ou,
pelo menos, uma participação de massa. Esta perspectiva (no fundo, apenas uma
idéia-limite) incluiria, portanto, dois aspectos: uma dimensão anti-representação
(pelo menos adversária da representação eleitoral liberal) e uma dimensão de
participação total (o ideal é a participação de todos)5.

Este argumento se apresenta na cena da teoria democrática e nos discursos


políticos na esfera pública desde as revoluções burguesas e, desde então, os
governos representativos não dão o menor sinal de que possam ser substituídos por
projetos de democracia direta à antiga. Se o sindicalismo desde o século XIX e, por
fim, as revoluções proletárias do século XX, não conseguiram impedir que o modelo
das democracias representativas fosse historicamente vencedor, não será a internet
a modificar o estado das coisas. A perspectiva, portanto, não se sustenta em sede
histórica, para não mencionar a instância teórica.

No quadro da filosofia da democracia, a participação civil não é, em princípio, um


fim em si mesmo. A participação não tem um valor intrínseco, a não ser para o
benefício privado do próprio participante, como outras atividades como fazer dieta,
exercício físico ou se divertir. Mas esta esfera de benefícios exorbita o âmbito
específico da democracia, cujo objeto específico está relacionado ao vínculo
coletivo, ao contrato social. Não importando como seja nomeada a instância coletiva
em questão - comunidade política, da pólis, do Estado... -, a democracia é um
sistema que cuida do que é comum ao coletivo. A participação não é um valor
democrático por ser um valor em si mesmo, mas apenas na medida em que pode
produzir algum benefício para a comunidade política. Caso contrário qualquer
participação civil (na Ku Klux Klan ou na Hitlerjunge) seria boa para a democracia.
Na verdade, a participação política sempre foi pensada como meio cujo fim era, no
caso dos antigos, a materialização da autonomia do povo para se autogovernar,
para gerir diretamente a comunidade política. O poder, o kratein, do démos (para
ficarmos na base etimológica de democracia) se manifesta enquanto ele próprio se

5
Um artigo recente (Wallace e Pichler, 2009) acrescenta – e examina –outro ângulo do repertório da demanda
por participação: a questão da felicidade.
7

concede deliberativa e deliberadamente a Lei sob a qual vive, evitando, com isso,
viver sob qualquer outra potestade. Participar é um privilégio concedido ao démos
(historicamente, pela reforma de Clístenes) e um meio para se assegurar o
autogoverno civil.

No modelo moderno de democracia, aquela do governo representativo, a


participação direta e de todos os concernidos pelas decisões que afetam a
comunidade política foi certamente restringida. Entre o Estado e a pólis há uma
gigantesca diferença de dimensões e uma não menor diferença na complexidade
dos problemas da vida pública (para ficarmos em dois itens de um rol
consideravelmente conhecido) que tornaram inviável reproduzir na experiência
societária moderna as estruturas deliberativas e participativas da experiência
comunitária antiga. A representação (os representantes, na verdade), de fato,
assumiu uma grande parte das funções que eram exercidas pela participação direta
do cidadão, mas teria invalidado ou esgotado o propósito da participação civil?

Nos ambientes de esquerda, tende-se a pensar que sim. E mesmo fora da cultura
de esquerda, pode-se mostrar como a representação permitiu o surgimento ou a
manutenção, no seio da democracia, da instituição social que chamamos de
“sistema político” (campos e agentes profissionais encarregados da atividade,
crescentemente “profissionalizada”, da política). O sistema político contemporâneo
tende, como se sabe, a se desconectar da base civil da sociedade (da cidadania,
em suma), exceto pelo episódio eleitoral, quando os cidadãos entram com os votos
e o sistema político provê o pessoal especializado para ser votado e escolhido para
constituir a esfera da representação política. A excessiva autonomia do sistema
político traz consigo freqüente e crescentemente uma (ilegítima) autonomia da
esfera da decisão política, que controla a forma institucional da comunidade política,
que é o Estado, praticamente sem liame que a mantenha atada e submetida ao
controle daquele que desta comunidade deve ser o único soberano, o cidadão. Por
isso, tornou-se um hábito o argumento que sustenta, em sede teórica, que o
governo representativo tende a produzir um avanço colonizador, do sistema político,
sobre o território dos direitos de participação direta e efetiva do cidadão nos
negócios públicos; assim como faz parte da paisagem argumentativa crítica a
afirmação de que os estados liberais contemporâneos, por largos estratos, está fora
8

do controle cognitivo do cidadão por ser pouco transparente e porque em grande


parte se põe fora do alcance da obrigação de se explicar diante da cidadania.

Antes de tudo, há de se objetar que o fato de uma instituição (a representação),


circunstancialmente, produzir uma conseqüência nociva (a excessiva autonomia da
esfera de decisão política, p. ex.) não a torna normativamente reprovável, a não ser
que se demonstre que não se de trata de efeito acidental, mas de uma das suas
características essenciais (cf., a propósito, Taylor 2010). Uma correlação dessa
espécie não tem sido demonstrada na literatura de teoria democrática.

Parece-me que, ao contrário, a democracia dos antigos e o governo representativo


dos modernos estejam em continuidade, pelo menos na medida em que pretendem
assegurar os aspectos essenciais da democracia: o princípio da igualdade política, o
corolário das liberdades, os procedimentos da deliberação livre e da aplicação do
princípio da maioria na tomada de decisão política, o corolário de que o Estado é
posse da cidadania e de nenhum outro soberano. A representação surgiu diante da
impossibilidade de participação de todos em todas as instâncias da decisão política;
mas tentou produzir garantias para que o propósito que era próprio da participação
civil total e constante (o autogoverno, a autonomia, a soberania popular) não fosse
destruído pelos representantes e pela representação. Ora, a deontologia da
transparência, da prestação de contas, do sistema de pesos e contrapesos
materializou-se no design institucional do governo representativo justamente para
evitar que a representação destruísse a soberania popular, sem a qual um regime
deixaria automaticamente de ser democrático. Desse modo, é claro que tendências
contra a transparência e a accountability não são apenas contrárias à democracia
dos antigos; são violentamente contrárias também à democracia dos modernos. Na
verdade, estas instituições e mais as eleições constantes para reavaliação do
colegiado dos representantes, instituições para sondagem direta da opinião e da
vontade dos cidadãos (plebiscitos e referendos), dentre outros, foram inventadas
como forma de assegurar aquilo que se expressava, nas comunidades da
antigüidade, mediante a participação direta.
9

PARA QUE PARTICIPAÇÃO ONLINE?

A democracia digital

Voltemos ao online depois desta digressão necessária. Se a participação online não


se dirige, realisticamente, nem à constituição de um cidadão-total (um cidadão
devotado integralmente à participação) nem à substituição da representação pelo
governo direto dos cidadãos ativos e participantes nos negócios públicos, qual é,
então, o seu propósito? Principalmente se este propósito tiver que ser não apenas
democraticamente justificável como também realisticamente plausível. Em outras
palavras, qual o sentido de se falar em e de se prover a participação online dada a
configuração atual dos Estados democrático-liberais?

Proponho um passo lateral, para inserir a discussão sobre a e-participação num


quadro menos usual, a saber, naquele relacionado à chamada democracia digital6.
Entendo por democracia digital qualquer forma de emprego de dispositivos
(computadores, celulares, smart phones, palmtops, ipads...), aplicativos (programas)
e ferramentas (fóruns, sites, redes sociais, medias sociais...) de tecnologias digitais
de comunicação para suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas
políticas e sociais do Estado e dos cidadãos em benefício do teor democrático da
comunidade política.

Por “teor democrático” e “requisitos da democracia” tenho em vista aspectos


relacionados ao conceito de democracia que são comumente aceitos no padrão dos
Estados democráticos modernos, numa lista que inclui, pelo menos, a garantia e/ou
o aumento das liberdades de expressão, de opinião e de participação, a garantia
e/ou o aumento dos meios e oportunidades de accountability ou de transparência
pública dos governos via internet, a garantia e/ou aumento das experiências de
democracia direta, numa base online, mais instrumentos e oportunidades de
participação do cidadão nas esferas de decisão sobre políticas públicas e
6
Uma perspectiva que em nosso grupo de pesquisa vem sendo adotada desde a metade da década passada,
como se depreende da idéia, por nós desenvolvida, de graus de democracia digital, em que a participação é
um dos componentes na elaboração da escala para a avaliação da qualidade democrática do universo digital.
Cf. a esses respeito Silva, 2005 e Gomes, 2005b.
10

administrativas dos governos, incremento do pluralismo, da representação das


minorias e da consolidação dos direitos de indivíduos e dos grupos socialmente
vulneráveis.

Pode-se notar facilmente, neste quadro, que se mantém no projeto de democracia a


idéia da representação política, assim como a de participação. Pois bem, de que se
precisa para se produzir um projeto adequado de democracia digital? A prudência
obriga a que se considere o conjunto das dimensões envolvidas num projeto desta
natureza, evitando soluções ou perspectivas parciais. Em minha opinião, o primeiro
aspecto a ser considerado são iniciativas com alto teor democrático, socialmente
interessantes, tecnologicamente bem resolvidas e atraentes do ponto de vista do
design. Iniciativas são projetos ou idéias que articulam ferramentas, dispositivos e
aplicativos para realizar determinadas funções dedicadas a resolver problemas ou
alcançar propósitos específicos. O projeto de petições online do parlamento
britânico7 (Miller, 2009), a cidade digital de Hoogeveen (Jankowski e Van Os, 2002),
o projeto Youngscot8 (Macintosh et al. 2003), o Minnesota e-democracy9, o projeto
E-democracia da Câmara dos Deputados10, Transparência Brasil11 e Contas
Abertas12, por exemplo, são iniciativas.

Iniciativas digitais, democraticamente relevantes, são aquelas voltadas para pelo


menos um dos três propósitos abaixo:

1. Fortalecimento da capacidade concorrencial da cidadania. Um projeto de


democracia digital deve ajudar a promover o aumento e/ou a consolidar quotas
relevantes do poder do cidadão em face de outras instâncias concorrentes na
disputa pela produção da decisão política no Estado ou na esfera social, a saber,
em face das agências políticas (partidos, governo, corporações etc.) e de outros
atores com interesses políticos (aqueles típicos das agências mencionadas ou de

7
http://petitions.number10.gov.uk/
8
http://www.youngscot.org/
9
http://forums.e-democracy.org/
10
http://www.edemocracia.camara.gov.br/publico/
11
http://www.transparencia.org.br/index.html
12
http://contasabertas.uol.com.br/WebSite/
11

qualquer outra fonte de interesse político diferente daquela representada pela


cidadania, genericamente considerada).

O que pode ser convenientemente desdobrado em dois objetivos:

1.a) Aumentar a transparência do Estado e as formas de responsabilização dos


agentes políticos (argumento contra o patrimonialismo). São democraticamente
relevantes, neste sentido, iniciativas dedicadas a favorecer os controles cognitivos e
legais do Estado (objeto) por parte do cidadão (sujeito), por parte das entidades do
Estado fiscalizadoras da conduta dos agentes públicos e das instâncias da
administração pública (sujeito), bem como por parte dos órgãos e sistemas
profissionais e industriais de produção de informação sobre o Estado e os seus
agentes (sujeito).

1.b) Participação e influência civis. Têm alto teor democrático iniciativas digitais
destinadas a facilitar o estabelecimento de níveis importantes de influência, exercida
pelos cidadãos, sobre a decisão política no interior do Estado, sobre mecanismos e
processos por meio dos quais a decisão é tomada, sobre os agentes portadores da
função de tomar decisão pública, mormente da decisão legislativa e administrativa,
bem como sobre a implementação dessa decisão em normas, políticas e formas
equivalentes.

2. Consolidar e reforçar uma sociedade de direitos, isto é, uma comunidade política


organizada como Estado de Direito (argumento por direitos e liberdades). Neste
caso, é preciso assegurar que minorias políticas e grupos e setores mais
vulneráveis do corpo social tenham preservados os seus direitos, acesso à justiça e
proteção jurídica.

3. Promover o aumento da diversidade de agentes, de agências e de agendas na


esfera pública e nas instâncias de decisão política e aumentar instrumentos, meios
e oportunidades para que minorias políticas se representem e sejam representadas
na esfera pública e nas instâncias de produção da decisão política (argumento pelo
pluralismo e pelo aumento da capacidade concorrencial das minorias).
12

Um projeto adequado de democracia digital não pode certamente incluir apenas a


formatação de iniciativas. Iniciativas são meios (vide Marques, 2008; 2009) para a
consecução dos três propósitos acima indicados (aumento do poder civil, direitos e
liberdades, aumento do pluralismo e do poder das minorias). Não sendo elas
tampouco um fim em si mesmas, devem ser julgadas em função dos fins que as
orientam; mas os fins não se alcançam se os meios não forem empregados numa
circunstância específica que permita a geração dos seus efeitos. O que traz ao
centro da discussão, portanto, a questão do emprego ou uso das iniciativas digitais
e das circunstâncias ou oportunidades em que este uso pode gerar os efeitos
previstos quando as iniciativas são projetadas. Tudo se resume, portanto, a uma
pergunta: por que as pessoas empregariam tais iniciativas? Em outros termos: por
que as pessoas participariam delas?

Das razões da participação em iniciativas de democracia digital

O que nos leva da questão dos meios, e dos requisitos e propósitos a que eles
atendem, à argumentação sobre as razões encontradas pelas pessoas para
empregá-los. Dito da maneira mais simples, a resposta à pergunta acima
mencionada soa assim: as pessoas participam de iniciativas quando as consideram
uma oportunidade adequada para atingir fins desejáveis. Meios precisam ser vistos
como oportunidades. Chamo oportunidades aquela conjunção de ocasiões e
circunstâncias em que meios podem produzir fins desejáveis de maneira que os
custos (a energia despendida, por exemplo) sejam largamente recompensados
pelos benefícios (recompensas decorrentes de se alcançar a finalidade da ação).
Não imagino, naturalmente, um sujeito autotransparente, capaz de dominar cálculos
aproximados ou impecáveis sobre os lucros da sua participação. Imagino, contudo,
que as pessoas, mesmo limitadas e visitadas por valores e interesses que
condiciona e possibilitam a sua decisão de participar, sejam capazes identificar e
determinar razões para a sua participação e que tais razões (que não precisam ser
realmente racionais) funcionam como motivações suficientes para a sua ação em
geral.
13

Assim, faz parte do sistema de produção da democracia digital fazer com que
iniciativas (meios) sejam (vistas como) oportunidades vantajosas para os que dela
participem. Como isso é possível? Iniciativas precisam incluir cálculos de eficiência
ou efetividade. Uma iniciativa como um orçamento digital (vide Sampaio, 2009), por
exemplo, só se converte numa real oportunidade se, de fato, assegurar que os
resultados da participação produzam efeitos sobre o orçamento público e/ou sobre
políticas orçamentárias. Caso contrário, ela será, ao menos em parte, artimanha do
sistema político para legitimar as suas decisões jogando para o público.

Naturalmente, o cálculo de eficiência de uma iniciativa de democracia digital está


ligado ao modo como o propósito específico de uma iniciativa qualquer (orçamento
digital não têm a mesma meta de um sistema de fóruns de deliberação eletrônica,
por exemplo) se relaciona com o seu fim democrático (ligado aos três fins indicados
acima). O importante, naturalmente, é que uma vez que haja confluência do
propósito específico de uma iniciativa com a meta democrática do fortalecimento da
cidadania, a eficiência do primeiro redundará em eficiência do segundo.

A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ONLINE E A PREMISSA CONCORRENCIAL

Lutas concorrenciais pela decisão política

O problema da participação online merece um novo quadro conceitual. Proponho


encaixá-lo no horizonte das questões relacionadas ao como aumentar o poder da
cidadania na comunidade política, a como se garantir e assegurar quotas
adequadas de poder político à esfera civil em face das instâncias que com ela
concorrem para influenciar a produção da decisão política e da organização da vida
pública. Em outros termos, pretendo que a discussão da questão da participação
política, em geral, e da participação online, em particular, seja situada no horizonte
de uma premissa mais ampla segundo a qual o jogo político democrático supõe e
prevê lutas concorrenciais permanentes pela busca de determinar ou influenciar a
decisão política no Estado. No quadro desta premissa, considero que a esfera civil
14

não é nem o beneficiário automático de lutas entre agentes e agências particulares


nem deve ser entendido como um mero espectador desta luta. A esfera civil é um
sujeito de interesses nas lutas democráticas que, embora seja determinante para
constituir a esfera de decisão política do Estado, na arena da luta por influência
sobre decisão política é constantemente batida por agências de interesses
particulares.

Na verdade, há três conjuntos de instâncias concorrentes com o cidadão 13. O


primeiro está sob a mira de todo mundo: o sistema político, como o domínio social
que inclui indivíduos e instituições (hábitos, normas...) dedicados à atividade
“política” em sentido estrito, ao funcionamento do Estado e à produção de leis e
políticas. O segundo também é um velho conhecido: trata-se de instâncias situadas
em vários campos sociais, como a economia ou a religião, com interesses que não
de raro se cruzam com as decisões do Estado e com o jogo político. Estas
instâncias lutam por influência sobre o sistema político e sobre a esfera de decisão
política, freqüentemente empregando para tanto o capital específico do próprio
campo (a autoridade religiosa, dinheiro...).

O terceiro concorrente é um tabu para o pensamento à esquerda e passa em geral


despercebido, mas creio que uma análise desapaixonada nos mostraria que um
grande número das instâncias representadas pelas corporações sociais são
autênticas agências políticas, disputando pelos seus interesses particulares.
Corporações sociais são instituições da sociedade, organizadas em torno de uma
agenda e de interesses particulares do coletivo que reúnem e representam.

13
Emprego freqüentemente as expressões “a cidadania”, a “esfera civil”, “o cidadão” uma em lugar da outra.
Por trás do uso, há, certamente, um conceito. A cidadania, todos sabem, é um status, jurídico e social. O civis,
o cidadão é o ente que integra a comunidade política de forma plena e por direito. Emprego o adjetivo “civil”
para me referir a qualquer dimensão relacionada ao civis, como se costuma fazer em expressões como
“sociedade civil”. Indivíduos podem cumprir muitos papéis sociais, mas o seu status de cidadão é único e tem a
ver com o contrato que o liga à comunidade política – não há civis sem civitas, sem polis, sem res publica.
Pensado em seus papéis e funções os indivíduos podem ser considerados de muitos modos; pensado como
civil ou cidadão os indivíduos têm apenas o seu papel de concernido pelo contrato que o vincula à comunidade
política e, em comunidades democráticas, como soberano da res publica. A esfera civil, portanto, é o domínio
social dos indivíduos pensados enquanto cidadãos, membros plenos e de direito da comunidade política,
proprietários do Estado.
15

Sindicatos e órgãos de classes, parte considerável dos assim chamados


movimentos sociais (o MST, p. ex.), das ONGs, dos partidos etc., são típicas
corporações sociais e, neste sentido, em larga medida semelhantes às corporações
econômicas e religiosas, empenhados e mobilizados na defesa de interesses
particulares, mesmo que a satisfação dos seus interesses se dêem à custa do
interesse geral da esfera civil.

Estas instâncias têm, em geral, escapado dos radares que detectam ameaças à
cidadania em virtude de uma peculiar taxonomia política, que, no passado, as
identificou como estruturas da sociedade civil organizada. Organizações da
sociedade civil. Antes, para alguns governos e muitos intelectuais, eles representam
a própria esfera civil, inclusive de maneira mais autêntica e moralmente justificada
do que os representantes provenientes dos sistemas políticos. Numa sociologia
conseqüente, contudo, não se vê exatamente em que consista a diferença entre as
instâncias de terceiro tipo e aquelas dos dois primeiros, enquanto em todas elas se
manifesta o mesmo princípio voltado para privilegiar o particular sobre o universal e
o interesse do grupo sobre o interesse civil ou republicano. Nem tampouco se
demonstra, por outro lado, porque a realização da agenda de uma dessas
corporações resultaria necessária e automaticamente em aumento do poder da
cidadania, pelo menos num sentido radicalmente diferente do que o faria, por
exemplo, a realização da agenda de uma igreja ou de uma corporação econômica.

Note-se, contudo, que aqui não afirmo que toda organização social é uma
corporação social, e, portanto, uma agência que concorre por influência política
sobre o Estado e a sociedade, na defesa de interesses particulares, em contraste
com o interesse geral. Há de haver instâncias sociais (portanto, coletivas) dedicadas
a sustentar, argumentar e defender o interesse cidadão, se não na forma da
representação, ao menos na forma da advocacia do interesse civil. Além disso, não
estou negando ou atacando a legitimidade política das corporações sociais como
agências políticas no quadro das democracias liberais, que admite e espera que as
forças socialmente dadas se engajem em lutas concorrenciais, naturalmente
segundo as regras do jogo. As corporações sociais, neste sentido, não são menos
legítimas que as outras agências concorrentes, provenientes do sistema político ou
16

da economia. O que afirmo e reitero é que todas elas, as corporações sociais


inclusive, concorrem com o interesse civil propriamente dito.

Em terceiro lugar, não se nega que corporações e esfera civil componham esta
dimensão da vida coletiva chamada sociedade. Que é uma circunstância da vida em
grupo, no qual o sujeito pode desempenhar vários papéis, inclusive o de membro de
uma corporação social. Mas é óbvio igualmente que os adjetivos social e civil não
coincidem, porque social indica os papéis na sociedade que o indivíduo pode
desempenhar, enquanto civil (cívico, cidadão, conforme a escolha) designa um
status na comunidade política. Também os membros do sistema político ou das
corporações da economia são cidadãos, mas enquanto agem como membros de
uma igreja ou seita, de um partido, de um lobby empresarial ou de um movimento
social com agenda particular desempenham um papel específico nas lutas
concorrenciais democráticas em defesa de interesses de uma parte da comunidade
política – suas agendas são, por definição, particulares. Por outro lado, outros
indivíduos assumem na sua relação com a política tão somente aqueles papéis (de
eleitores, p. ex.) decorrentes do seu status na comunidade política, do seu estado
de cidadão; de forma que, embora possam ser beneficiados por agendas
particulares quando nos diversos papéis que representam na vida (profissões,
gêneros, classes, localização...), são concernidos como cidadãos apenas quando
agendas gerais são representadas.

Não há dúvida, contudo, de que, na maior parte das democracias liberais, as


instâncias que realizam um avanço colonizador mais consistente e danoso contra o
território da cidadania, sejam aquelas situadas ao redor da esfera da decisão
política, portanto aquelas dedicadas diretamente ao controle do Estado. Entretanto,
no caso de sociedades teocráticas (veja-se o Irã “redemocratizado”, por exemplo),
por outro lado, instâncias do universo religioso consistentemente avançam contra a
igualdade e a liberdade políticas, enquanto no caso das democracias “populares”
(vide a Venezuela) as corporações sociais, à parte ou em conluio com o sistema
político, buscam a satisfação do próprio interesse às expensas do interesse público,
entendido como o interesse civil.
17

Participação online e o aumento da capacidade concorrencial civil

No universo digital, quaisquer iniciativas voltadas para descolonizar o espaço da


cidadania representarão um lance de democracia digital, à medida que contribuem
para recompor padrões adequados de soberania popular. Assim como qualquer
iniciativa dedicada a garantir canais de expressões de minorias representa um
passo de democracia digital, enquanto serve para, em longo ou curto tempo,
empatar as forças envolvidas na disputa pela produção da decisão política. Em
ambas as situações, sempre está envolvido o propósito mais tradicional e
democraticamente sustentado da idéia de participação civil (a materialização da
soberania popular), mas não necessariamente iniciativas que as sustentam supõem
ou promovem participação popular. Pelo menos se tomarmos a expressão
“participar” no que sentido que lhe é próprio, como “tomar parte” em alguma coisa.

De fato, e tenho consciência de que é a primeira conseqüência paradoxal


decorrente do meu argumento, uma bem sucedida iniciativa de democracia digital
pode fecundamente contribuir para que se materialize o objeto da participação sem
pressupor ou demandar participação massiva. Uma iniciativa digital de advocacia de
interesses de uma minoria política, ou de produção de transparência sobre
procedimentos ou agentes do Estado (Silva, 2009), para ficarmos com dois
exemplos apenas, pode produzir considerável quota de empowerment civil, sem
solicitar ou contar com participação.

Ousaria avançar a hipótese de que o problema principal das democracias liberais


contemporâneas está longe de ser o da participação, em sentido estrito, mas o da
fraca capacidade concorrencial da cidadania em face de outros agentes e de outras
agências com interesse político. Embora a participação política seja importante, nem
mesmo acredito que o mero aumento de participação possa resolver a questão do
enfraquecimento político da cidadania, se não considerarmos também e
cuidadosamente qual é o objeto da participação, qual o tipo de participação
pressuposta e, sobretudo, que tipo de efeitos derivará de tal participação. A
participação pode ser inútil, inócua e do tipo errado.
18

O governo brasileiro, durante a administração Lula, para dar um exemplo, favoreceu


e demandou participação popular em muitas iniciativas, algumas, inclusive, via
internet (Marques, 2007; Marques e Miola, 2007; Miola, 2009). Mas quase sempre
supôs que a participação civil só podia ser considerada quando mediada por
coletivos sociais (organizações e movimentos da “sociedade civil”), porque,
dogmaticamente, governos à esquerda crêem que essas corporações respondam a
interesses da cidadania e não a interesses corporativos. O que é freqüentemente
falso. Assim, o governo demonstra aceitar e estimular participação civil, mas não
sabe como acolhê-la nem o que fazer com ela, porque o automatismo ideológico da
esquerda prescreve que a sociedade se autorepresente pelos “seus” coletivos,
como se os tais coletivos fossem de fato sempre orgânicos aos interesses civis em
seu sentido próprio. Num quadro como este, por exemplo, a participação “da
sociedade” pode paradoxalmente representar o aumento do poder político de uma
das instâncias que competem com a esfera civil, diminuindo o poder concorrencial
da cidadania.

Na verdade, iniciativas democraticamente relevantes, mesmo aquelas do universo


das comunicações digitais, demandam em geral quotas relevantes de ação social.
Como todo mundo sabe, participação é apenas uma das formas de ação. Direi,
portanto, o óbvio: acompanhar o noticiário político online, ler blogs de político, ver
vídeos de política no Youtube, por exemplo, é ação, mas não literalmente uma
participação política; já escrever um blog de política, fazer campanha online,
escrever petições eletrônicas, manifestar-se num fórum eletrônico ou numa consulta
orçamentária digital e postar vídeos políticos são formas de participação na vida
pública e/ou no jogo político. O primeiro conjunto de ações pode servir para orientar
o indivíduo na sua participação política e para aparelhar o grupo para o
envolvimento na vida pública. Pode até mesmo, em virtude da informação obtida,
produzir um efeito imediato de participação. O segundo conjunto de ações é
participação, em sentido estrito.

Os defensores da democracia participativa, em geral, vão afirmar que uma


sociedade democraticamente saudável seria apenas aquela com um número
19

consideravelmente alto de iniciativas do segundo tipo, nas quais se engajam um


número muito alto de cidadãos. E que, ao contrário, numa sociedade com baixo
número de iniciativas (meios e oportunidades) de participação e com pequena
participação a democracia está convalescente.

Este argumento é só parcialmente verdadeiro. Primeiro, porque sendo a


participação, principalmente, um meio de empowerment civil, a saúde democrática
de um Estado dever-se-ia medir em função do poder relativo que o cidadão tem de
fazer prevalecer a sua opinião e a sua vontade face às instâncias que com ele
concorrem na determinação da decisão política no Estado e na sociedade.
Segundo, porque iniciativas do primeiro tipo (voltadas para favorecer a ação política)
são fundamentais para habilitar e qualificar a participação, se e quando ela
acontecer, bem como para motivar o cidadão a participar. As pessoas precisam de
meios para participar tanto quanto precisam de liberdade e de informação que os
habilitem a tanto. Terceiro, porque uma democracia saudável não é
necessariamente aquela em que pessoas participem massivamente empregando
uma multiplicidade de meios, mas aquela em que todos os concernidos pelas
decisões que afetam a comunidade política possam se tornar participantes, se,
quando e no que queiram. Em suma, nem basta nem é necessário haver
participação de massa, não basta haver meios e oportunidades de participação; é
preciso que tudo isso seja moderado pela posse da informação necessária a uma
participação qualificada, relevante e efetiva e, last but not least, pela liberdade de
participar.

Sociedades fascistas tiveram participação massiva em determinado momento e


ainda assim foram fascistas. Aliás, é importante lembrar que, historicamente, a
participação da massa não é um dado acessório do fascismo, mas uma sua
dimensão essencial, por que a massa vibrante em uníssono é que materializa a
idéia de fascio, de feixe, de vontade e energias conjugadas numa só meta. Por outro
lado, a compulsão à participação, ou qualquer outro constrangimento à liberdade
política, não parece fazer parte do repertório democrático. E, enfim, temos o
problema da participação também como fato cultural e não apenas como fenômeno
político. Quando digo “fato cultural”, não me refiro apenas à evidente diferença de
20

meios, modos e graus de intensidade de participação civil na esfera pública e nos


negócios públicos dentre as várias sociedades; penso, sobretudo, no fato de que
nos quadros culturais do ocidente estamos, neste momento, talvez, no outro
extremo do pêndulo da participação e do engajamento, talvez no extremo oposto do
que aconteceu nos anos 1960. Indivíduos estão menos propensos à participação
em projetos coletivos e ao engajamento numa agenda política hoje do que
estiveram ao redor dos anos 60. São menos engajados por circunstância e por
opção. Iniciativas democráticas para a segunda década do século XXI, inclusive
aquelas digitalmente mediadas, precisam levar em conta as pessoas reais desta
época, pouco dispostas ao engajamento permanente, pouco interessadas na
partilha coletiva de palavras-de-ordem, pouco dogmáticas e pouco ideologizadas,
muito pouco dispostas a sacrificar os seus projetos, tempos e espaços individuais
em nome de um nós qualquer. E antes que se considere isso um defeito e não uma
característica factual, desejaria que nos distanciássemos do preconceito de pensar
que, num quadro cultural como este, o cidadão com baixa disposição para um tipo
de participação muito demandante e exigente é, ao mesmo tempo e por isso
mesmo, um couch potato republicanamente imprestável e democraticamente
irrelevante.

O que não se pode é acomodar vinhos novos em odres velhos. Velhas iniciativas
podem não ser eficazes para um novo tipo de sociabilidade. E modelos de
democracia que supõem e esperam participação massiva e constante e
engajamento intenso podem ser tão irrealistas quanto se programar iniciativas para
hippies numa sociedade de yuppies. Justamente por isso, a aposta da democracia
digital parece tão interessante, a saber, em função das fecundas possibilidades de
harmonização da cultura tecnológica ao cidadão contemporâneo. Este é um
cidadão, por exemplo, que adere mais facilmente iniciativas do primeiro tipo do que
alternativas do segundo tipo. E que, mesmo quando não emprega habitualmente
iniciativas de qualquer um dos tipos, quando deseja participar usa geralmente um
percurso que vai do primeiro ao segundo tipo.

Estudos continuam a demonstrar que, genericamente tomados, os usuários de


internet não são lá grandemente interessados em participação política. Mais que
21

isso: confirmam ainda que nem sequer estão particularmente interessados em


política, em bases normais. Mas há sólida documentação de que esses usuários
podem participar da política de modo extremamente relevante em algumas
circunstâncias específicas, sendo as manifestações antiglobalização de Seattle, a
eleição de Obama (Gomes et al. 2009), o protesto iraniano no Twitter apenas três
dos casos recentes mais célebres desta participação eventual. Isso me leva à idéia
de que a participação online passa por questões relacionadas ao desejo tanto
quanto por questões relacionadas a meios, motivos e oportunidades de
participação. Se, quando assim o deseja, o cidadão puder encontrar ou criar (como
aconteceu nas eleições americanas de 2008) canais adequados de participação
(Marques, 2009), estará então assegurado o princípio segundo o qual numa
sociedade democraticamente saudável todo concernido deve poder participar,
embora nem todos os concernidos sejam sempre e efetivamente participantes. O
cidadão que usa intensamente tecnologias de conexão digital pode estar em um
estado de latência no que tange à participação e engajamento. Ainda não quer
participar ou não quer participar sempre e tanto. Mas pode estar usando iniciativas
do primeiro tipo, consumindo informação política, acompanhando iniciativas de
accountability e transparência, formando uma opinião por canais públicos e
privados, enquanto faz as outras trezentas coisas que lhe interessam tanto ou mais
do que a vida pública.

Na verdade, “na internet” há muito ou pouca vida política, a depender dos métodos
de aferição adotados. Quando se fazem surveys de participação, isto é, sai-se por aí
perguntado às pessoas se elas buscam informação política na internet, se falam de
política em seus tweets, se vêem vídeos relacionados a política no Youtube etc.,
como faz, por exemplo, o Pew Center, sempre aparece uma intensa (e crescente)
vida política online. Mas quando se mede a participação num fórum de democracia
eletrônica, num orçamento digital, na emissão de petições etc. se registram índices
de participação demograficamente insignificantes no confronto com o volume da
população, salvo raras exceções. Isso quer dizer que apenas uma parte menor da
ação ou participação política se dá mediante iniciativas digitais, embora estas sejam
as formas mais densas e fecundas de empowerment civil, já que para tanto foram
projetadas.
22

A vida política privada online das pessoas inclui, por conseguinte, mais ação do que
participação política. O que provavelmente deve nos fazer pensar em como
favorecer a que os indivíduos passem da ação em geral àquela forma de ação que é
a participação em iniciativas digitais. E aqui retornamos ao quadro inicial da
discussão sobre porque as pessoas se interessariam em empregar iniciativas
democraticamente relevantes de democracia digital. Tudo o que se pode fazer,
acredito, é criar meios de participação, oferecer oportunidades para que estes meios
possam ser usados e esperar que características incluídas nas oportunidades
(constrangimentos ou recompensas) sejam suficientes para motivar a participação.
E realmente não importa se tais iniciativas sejam oriundas do sistema político, do
Estado ou da sociedade. Um adequado encadeamento de meios, oportunidades e
motivos devem constituir a base na elaboração de qualquer iniciativa de democracia
digital realisticamente capaz de lidar com um indivíduo que, porque livre e capaz,
pode se recusar a tomar parte.

No mais, precisamos apenas que a nossa obsessão por participação civil não nos
leve a perder de vista algumas coisas essenciais:

a) que o fortalecimento, via tecnologias digitais, de instituições do governo


representativo destinadas a evitar que o sistema político, em geral, e os governos,
em particular, apoderem-se do Estado em prejuízo da soberania popular, pode ser
um objetivo mais realista e mais eficiente do que a busca e a espera por
participação civil massiva.

b) que, para a democracia, a busca e a espera por participação massiva é muito


menos importante do que se garantir que exista um número apropriado de canais e
oportunidades para que qualquer cidadão (todo indivíduo concernido e afetado pelo
sistema de decisões da comunidade política) possa se tornar participante da esfera
pública e da vida política, em conformidade com seu desejo e motivação.

c) que iniciativas e recursos digitais voltados para assegurar os requisitos para uma
vida democrática relevante, como liberdade e informação (controle cognitivo da
23

política e do Estado), são tão importantes quanto iniciativas destinadas a promover


formas de participação civil.

d) que a participação civil não é um fim em si mesmo e que, portanto, não é


normativamente justificada simplesmente pelo fato de existir; a participação se
justifica sempre em função do seu propósito para a democracia e da qualidade
moral dos seus processos.

e) que a participação deve estar a serviço do propósito de fortalecer a esfera civil e


as minorias políticas nas lutas concorrenciais pela decisão política, de forma que
mesmo formas de participação que produzam efeitos contrários a estes não são
democraticamente justificadas.

REFERÊNCIAS

AIKINS, S. Issues and trends in Internet-based citizen participation. In: GARSON, G. D; KHOSROW-
POUR, M. (org.). Handbook of research on public information technology. Vol. 1. Londres: IGI Global,
2008, p. 31-40

BEST, S. J.; KRUEGER, B. S. Analyzing the representativeness of internet political participation.


Political Behavior, 27(2), 2005, p. 183-215.

BIMBER, B. The study of information technology and civic engagement. Political Communication, 17,
2000, p. 329-333.

COLEMAN, S.; GØTZE, J. Bowling together: Online public engagement in policy deliberation. London:
Hansard Society, 2001.

DAHLBERG, L. Rethinking the fragmentation of the cyberpublic: from consensus to contestation.


New Media & Society 9(5), 2007, p. 827–847.

DI GENNARO, C.; DUTTON, W. The Internet and the public: Online and offline political participation
in the United Kingdom. Parliamentary Affairs, 59(2), 2006, p. 299-313.

FULLER, J. E. Equality in cyberdemocracy? Gauging gender gaps in on-line civic participation. Social
Science Quarterly, 85(4), 2004, p. 938-957.
24

GOMES, W. Internet e participação política em sociedades democráticas. Revista FAMECOS, 27(3),


2005, p. 58-78.

GOMES, W. A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política. Revista


Fronteiras – estudos midiáticos, 7(3), 2005b, 214-222.

GOMES, W.; FERNANDES, B.; REIS, L.; SILVA, T. Politics 2.0: A campanha on-line de Barack Obama em
2008. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, 17(34), 2009, p. 29-43.

HOOGHE, M. Why should we be bowling alone? Result from a Belgian survey on civic participation.
Voluntas: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations, 14(1), 2003, p. 41-59.

JANKOWSKI, N. W.; Van OS, R. Internet-based Political Discourse: A Case Study of Electronic
Democracy in the City of Hoogeveen. Trabalho apresentado no Euricom Colloquium: Electronic
Networks & Democracy. Nijmegen, Países Baixos, 2002.

JENNINGS, M. K.; ZEITNER, V. Internet use and civic engagement: a longitudinal analysis. Public
Opinon Quarterly, 67(3), 2003, p. 311-334.

KRUEGER, B. S. Assessing the potential of Internet political participation in the United States: A
resource approach. American Politics Research, 30(5), 2002, p. 476-498.

KRUEGER, B. S. Government surveillance and political participation on the Internet. Social Science
Computer Review, 23(4), 2005, p. 439-452.

KRUEGER, B. S. A comparison of conventional and Internet political mobilization. American Politics


Research, 34(6), 2006, p. 759-776.

MACINTOSH, A.; ROBSON, E.; SMITH, E.; WHYTE, A. Electronic democracy and young people. Social
Science Computer Review, 21(1), 2003, p. 43-54

MARQUES, F. P. J. A. Internet e oportunidades de participação política - Um exame dos websites de


senadores brasileiros e norte-americanos. Revista Fronteiras – estudos midiáticos, 9, 2007, p. 155-
166.

MARQUES, F. P. J. A. Participação política e Internet: Meios e oportunidades digitais de participação


civil na democracia contemporânea, com um estudo do caso do estado brasileiro. Tese de
doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas
da Universidade Federal da Bahia. 2008.

MARQUES, F. P. J. A. Internet e Participação Política no Caso do Estado Brasileiro: Um Relato de


Pesquisa. Em Questão, 15, 2009, p. 219-247.

MARQUES, F. P. J. A.; MIOLA, E. Internet e Parlamento - Um estudo dos mecanismos de participação


oferecidos pelo Poder Legislativo através de ferramentas online. E-Compós, 9, 2007, p. 1-20.

MILLER, L. E-petitions at Westminster: The way forward for democracy? Parliamentary Affairs, 62(1),
2009, p.162-177.
25

MIOLA, E. A Deliberação online em ambientes institucionais: Um estudo do fórum de discussão do


portal da câmara dos deputados. Contemporanea, 7(2), 2009, p. 1-24.

OWEN, A. L.; VIDERAS, J.; WILLEMSEN, C. Democracy, participation and life satisfaction. Social
Science Quarterly, 89(4), 2008, p. 987-1004.

POLAT, R. K. The internet and political participation: Exploring the explanatory links. European
Journal of Communication, 20(4),2005, p. 435-459.

QUINTELLIER, E.; VISSERS, S. The effect of Internet use on political participation: an analysis of survey
results for 16-year-olds in Belgium. Social Science Computer Review, 26 (4), 2008, p.411-427.

SAMPAIO, R. C. Diferentes modos de participação: alguns impactos da introdução da internet no


Orçamento Participativo de Belo Horizonte. Comunicação & Política, 27, 2009, p. 51-78.

SILVA, S. P. Graus de participação democrática no uso da internet pelos governos das capitais
brasileiras. Opinião Pública, 11(2), 2005, p. 450-468.

SILVA, S. P. Estado, democracia e internet: requisitos democráticos e dimensões analíticas para a


interface digital do Estado. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia. 2009.

SPINELLI, M. Democratic rhetoric and emergent media: The marketing of participatory community
on radio and the internet. International Journal of Cultural Studies, 3(2), 2000, p. 268-278;

SYLVESTER, D. E.; McGLYN. The digital divide, political participation, and place. Social Science
Computer Review, 28(1), 2010, p. 64-74.

TAYLOR, L. Re-founding representation: Wider, broader, closer, deeper. Political Studies Review, 8,
2010, p. 169-179.

WALLACE, C.; PICHLER, F. More participation, happier society? A comparative study of civil society
and the quality of life. Social Indicator Research, 93, 2009, p. 255-274.

Você também pode gostar