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ISSN 2237-9126

V. 14, Nº 26
226
IMAGENS MIDIÁTICAS E/OU MIDIATIZADAS: TEMPORALIDADES E HISTORICIDADES
Resumo Abstract

Este trabalho mostra o This article shows the partial result


resultado parcial da práxis do of documentary photography
fotodocumentário realizada por praxis conducted by students of
estudantes do segundo ano the second year of Journalism at
de Jornalismo da Universidade the State University of Londrina. The
Estadual de Londrina. O projeto Professor Dr. Paulo Boni’s research
de pesquisa do professor Dr. Paulo project De Lewis Hine to Sebastião
Boni De Lewis Hine a Sebastião Salgado: the use and repercussions
Salgado: o uso e as repercussões of the social denunciation
do fotodocumentarismo de documentary photography as
denúncia social como instrumento an instrument of transformation
de transformação na sociedade in society was the starting point
foi o ponto de partida para esta for this activity. Following the two
atividade. Seguindo as duas references, Hine and Salgado,
referências, Hine e Salgado, e and theoretical contributions such
aportes teóricos como Dubois, as Dubois, Sontag and Collier, the
Sontag e Collier, os estudantes students photographed recyclable
fotografaram catadores de lixo garbage collectors and the Cooper
reciclável e a Cooper Região, Região, in Londrina-PR, to find out
em Londrina-PR para conhecer in the conditions and problems of this
loco as condições e os problemas category at their own place. The
dessa categoria. O objetivo foi objective was to ratify the role of
ratificar o papel do jornalista de the journalist to bring up images
trazer à tona, imagens e situações and situations of what happens in
do que acontecem na sociedade, society, to provoke reflections and
para suscitar reflexões e interrogar to question the conscience of the
a consciência da população. population.

Palavras-chave: Fotodocumentário; Keywords: Documentary


Lewis Hine; Sebastião Salgado; photography; Lewis Hine; Sebastião
Jornalismo. Salgado; Journalism.

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IMAGENS MIDIÁTICAS E/OU MIDIATIZADAS: TEMPORALIDADES E HISTORICIDADES
Introdução 16 anos, para ajudar no sustento de
sua mãe, viúva, e de mais três irmãs.
Uma das principais correntes
Trabalhou em uma tapeçaria,
do fotodocumentarismo é a de
foi vendedor, entregador de
denúncia social, que retrata
encomendas, lenhador e zelador.
temas relacionados com o ser
Em 1899, conheceu Frank Manny,
humano e seu ambiente, aponta
líder nacional do movimento
e denuncia problemas de origem
progressista pela reforma na
social. São fotografias que não
educação, que lhe introduziu
se preocupam apenas com o
ao Movimento Progressista
estético; mas principalmente em
Americano e o ajudou a ingressar
denunciar problemas. É por meio
na Universidade de Chicago,
delas que as pessoas adquirem
onde estudou filosofia, sociologia
conhecimento sobre episódios
e educação. Essa formação lhe
inaceitáveis que ocorrem na
possibilitou captar imagens ricas
sociedade e podem se mobilizar e/
em informações socioeconômicas
ou agir para modificar a situação.
e culturais. Como afirma Boni (2008,
Sem elas, milhares de indivíduos,
p.3) foi na “Ethical Culture School,
afetados por problemas sociais
de Nova Iorque, que Hine realizou
como miséria, guerras, intolerância
seu primeiro trabalho como
étnica e religiosa, não receberiam
fotógrafo ao captar imagens de
ajuda humanitária.
Segundo Boni (2008, p.2) estudantes”, e não parou mais.

“Lewis Hine é o Sensibilizado pela exploração do


considerado
maior de seus expoentes e o trabalho infantil, ao longo de 10
primeiro documentarista social anos Hine vai percorrer os EUA para
do século. Ele utilizava, aberta e registrar imagens de denúncia. Ora
declaradamente, suas fotografias se disfarçando de vendedor de
como “meio” de transformações seguros, ora vendedor de bíblias,
sociais. Por meio delas, denunciou (ROBIN, 1999).
a exploração da mão-de-obra A jornada diária nas fábricas
infantil nos EUA”. era desgastante. Não havia
Hine deixou a escola e começou salário mínimo, limite para o
a trabalhar ainda adolescente, aos período de trabalho, seguro

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saúde e compensação por público pudesse se identificar com 3
Seu nome era
Sadie Pfeifer e foi
acidentes. Doenças decorrentes as vítimas. Em 1912 o governo cria fotografada ao
lado do tear, em
da exposição ao calor, aos um gabinete destinado a verificar Lancaster, Carolina
do Sul.
metais pesados, à poeira, aos as informações de Hine. A partir
lixos industriais, ao carvão mineral desse momento o processo torna-
e ao manuseio de equipamentos se irreversível. Mas a legislação só é
sem proteção eram frequentes. publicada em 1938 (ROBIN, 1999).
Seu trabalho chamou a atenção No Brasil, um dos grandes
da sociedade, que se chocou nomes do fotodocumentarismo
com a realidade das fábricas: é Sebastião Salgado. Nascido
insalubridade, periculosidade e em Minas Gerais, formou-se
exploração de mão-de-obra. Uma em Economia, casou-se com a
de suas fotografias mais famosas é pianista e arquiteta Lélia Wanick,
A Tecedeira3 que foi tomada em sua grande companheira de vida
1908. “Ele realizava entrevistas para e da fotografia. Militantes, foram
identificar os motivos que levavam obrigados a deixar o país em
as crianças a trabalhar. As razões 1969 perseguidos pela ditadura.
variavam entre empregadores “Quando embarcamos no navio,
gananciosos, pais ausentes, sabíamos que, se fôssemos
negligentes ou inválidos e, claro, identificados, seríamos atirados na
muita pobreza. As informações prisão ou torturados. Lembro de
eram vinculadas às fotografias em nosso alívio quando deixamos o
forma de legendas”, pontua Boni último porto, e o navio se afastou
(2008, p.12). definitivamente da costa brasileira
Hine trabalhava para Child rumo à França”, relembra Salgado
Labor Commits, organização que (2014, p.22).
lutava pela abolição do trabalho Em Paris, Salgado vai ter o primeiro
infantil. Em dez anos, Hine registrou contato com a fotografia. Foi na
mais de 5 mil fotos. Muitas imagens primavera de 1970, quando Lélia
com pouca condição de luz. precisava fotografar alguns prédios
Sua intenção era humanizar os para seu trabalho da faculdade
problemas da sociedade dando- de arquitetura. Compraram a
lhes um rosto por meio do qual o primeira câmera, uma Pentax,

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na Suíça. “Não sabíamos nada O que os escritores relatam com
suas penas, eu relatava com
de fotografia, mas logo achamos
minhas câmeras. A fotografia é
aquilo fantástico. Li as instruções para mim uma escrita. Queria
andar por todos os lugares onde
e, três dias depois, voltamos a
minha curiosidade me levasse,
Genebra para comprar mais duas onde a beleza me comovesse.
Mas também por todos os
objetivas. Foi assim que a fotografia
lugares onde houvesse injustiça
entrou na minha vida”, (2014, p.29). social, para melhor descrevê-la
(SALGADO 2014, p. 43).
Em 1971, começou a trabalhar
na Organização Internacional São mais de 46 anos dedicados
do Café, como economista, mas exclusivamente à fotografia.
a câmera fotográfica sempre o Foram vários livros publicados,
acompanhava pelas regiões onde entre ele Trabalhadores, Outras
visitava. “Graças ao meu trabalho Américas, Terra, Serra Pelada,
de economista, descobri a África. Êxodos, África e Gênesis, recebeu
Nesse continente,reencontrei praticamente quase todos os
meu paraíso”, ressalta (2014, principais prêmios de fotografia
p.31). “Durante minhas viagens a do mundo e realizou exposições
Ruanda, Burundi, Zaire, Quênia e por vários países. Seu trabalho foi
Uganda, percebi que as fotos que merecidamente reconhecido.
tirava me deixavam mais feliz do Mas quando questionado se ele
que os relatórios que precisava considera sua fotografia como
escrever”. E foi essa paixão que instrumento de transformação
fez Salgado deixar a Economia social, ele responde:
de vez e investir na fotografia.
Nenhuma foto, sozinha, pode
“Estávamos em 1973, eu tinha 29 mudar o que quer que seja
na pobreza do mundo. No
anos e escolhi, de comum acordo
entanto, somadas a textos,
com Lélia, interromper minha a filmes e a toda a ação das
organizações humanitárias e
promissora carreira para me tornar
ambientais, minhas imagens
fotógrafo independente”, afirma fazem parte de um movimiento
mais amplo de denuncia
(2014, p. 34).
da violencia, da exclusão
ou problemática ecológica.
Esse meios de informação
contribuem para sensibilizar
aqueles que as contemplam a

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respeito da capacidade que
Além da sala de aula
tempos de mudar o destino da
humanidade, (SALGADO - 2014,
As fotografias a seguir foram
p. 56).
realizadas para a disciplina
Sobre as imagens da fome na de Práticas Laboratoriais em
África, Salgado afirma que foi Fotojornalismo, ministrada pela
uma maneira de denunciá-la. professora da turma Cássia Maria
Em toda parte, essas imagens Popolin, na Universidade Estadual
suscitaram reações. “A fotografía de Londrina. O objetivo da
é uma escrita tão forte porque atividade foi registrar e conhecer
pode ser lida em todo o mundo in loco a realidade acerca da
sem tradução”, (2014, p.58). E sociedade. Como futuros jornalistas,
completa: “a única verdade é eles têm o papel social de trazer
que a fotografía é minha vida. à tona e suscitar reflexões sobre
Todas elas existem porque a vida, as condições humanas e ratificar,
a minha vida, me levou até elas”, que sanar as desigualdades
(SALGADO 2014, p.47). sociais que nos circundam, não
Em 1994, Salgado fundou sua é responsabilidade de alguns,
própria agência de notícias, mas de todos nós. O trabalho
Amazonas Images, que representa foi realizado em duplas, por isso
o fotógrafo e seu trabalho. Salgado optamos em dar os créditos para
e Lélia, autora do projeto gráfico os dois estudantes. Na figura 1, a
da maioria de seus livros, fixaram tela em primeiro plano, focada
residência em Paris. O casal tem em contraponto com o fundo
dois filhos, Juliano e Rodrigo. Juliano desfocado, nos leva a imaginar
é cineasta e dirigiu, juntamente o que ocorre por trás dela. Qual
com o também fotógrafo Wim situação iremos encontrar? Quais
Wenders, o documentário O Sal da as condições de trabalho?
Terra, sobre o trabalho de seu pai, Como afirma Dubois (BULLA 2005),
que foi indicado ao Oscar 2015 de esse exercício de regressividade,
melhor documentário. de questionamento, na fotografia
é algo que se deve buscar, é
ir além daquilo que é visível,

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buscar o negativo no positivo, de Londrina. Segundo o site
atravessar camadas, “ascender da Cooper Região, a primeira
da consciência da imagem rumo atividade comercial ocorreu
a inconsciência do pensamento”. em abril de 2010, reunindo em
Para ele, uma foto sempre esconde seu quadro de cooperados 102
outra, atrás ou em torno dela; é pessoas vindas de 14 ONGs.
assim que funciona o “aparelho Atualmente são 126 cooperados.
psíquico-fotográfico”. Seis caminhões percorrem quase
88 mil domicílios, cada dia a
Figura 1 - CooperRegião coleta é realizada em um bairro
da cidade, numa parceria com
a Companhia de Trânsito e
Urbanização de Londrina, dentro
do Programa Londrina Recicla.
Os associados separam e
vendem plástico, papel, vidro e
garrafas pet. Essa união agregou
Fotografia: Jair Segundo e Hiury Alves valores às pessoas envolvidas,
Fonte: Dos autores além do valor econômico que no
final do mês é rateado o montante
Por detrás da tela, encontram- que foi comercializado, ainda há
se trabalhadores da Cooper preocupação com a segurança,
Região. Por orientação jurídica são oferecidas luvas e máscaras
do Conselho Municipal do Meio aos associados para manusearem
Ambiente e Promotoria do Meio os reciclados. A missão da
Ambiente, e pela perspectiva do cooperativa é proporcionar uma
fortalecimento dos catadores, no melhoria na qualidade de vida dos
dia 12 de setembro de 2009 mais seus catadores e da sociedade
de 100 catadores participaram da em geral, contribuindo para a
fundação da COOPER REGIÃO - preservação do meio ambiente,
Cooperativa dos Catadores de que está estampada no uniforme
Materiais Recicláveis e Resíduos dos associados (Figura 2).
Sólidos da Região Metropolitana

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Figura 2 – Conscientização ambiental “a experiência do trabalho 4
Entrevista à autora
Cássia Maria Popolin,
fotográfico com os catadores
em janeiro/2019
de recicláveis foi significativa
em diversas maneiras. Desde
a sugestão da pauta pela
professora, o ar de desafio já
tomava conta da turma: onde
ir? como abordar? como fazer
as fotos?. Foram perguntas que
todos nós, até então calouros,
fizemos tanto a professora,
quanto a nós mesmos. Mas desde
Fotografia: Jair Segundo e Hiury Alves o princípio, a professora Cássia
confiou no nosso potencial de
Fonte: Dos autores
desenvolver um bom trabalho.
E assim aconteceu. Estive
na CooperRegião, uma das
Ainda há muito o que melhorar
cooperativas de catadores que
principalmente em relação à atuam em Londrina, junto com
minha dupla de trabalho e mais
educação ambiental. Muitas
alguns colegas. Realmente não
pessoas ainda não sabem separar foi fácil encontrar um catador,
o lixo reciclável, e misturam ou no caso a cooperativa
que topasse receber alunos
eletrodomésticos, móveis, roupas de Jornalismo com câmeras
e até pneus. O trabalho de fotográficas em mãos. Rodei
diversos pontos de Londrina onde
conscientização deve ser contínuo, se reúnem catadores. Liguei
para que o material chegue até a em lojas, shoppings e fábricas
perguntando se havia algum
cooperativa melhor selecionado e
tipo de empresa terceirizada
com cuidado básico em relação para este serviço, mas a
aos vidros quebrados: embalados negativa permanecia. Até que
numa dessas ligações, consegui
e com anotação de cuidado o contato da Cooper Região
para evitar que os coletores se e eles aceitaram nos receber.
Fomos cheios de expectativas,
machuquem na hora da coleta. mas também com um enorme
A atividade prática aliada ao receio de não conseguirmos
atingir o objetivo proposto pelo
suporte teórico são fundamentais
trabalho: registrar a rotina destes
para a realização das atividades catadores, conversar com eles
e conhecer um pouco mais
do fotojornalismo. Essa vivência
suas histórias. Porém, logo na
foi de suma importância para a chegada fomos recepcionados
com sorrisos e muita simpatia.
formação dos acadêmicos de
Todos foram super gentis e a
Jornalismo. Para o estudante Jair intensidade dos relatos que
ouvimos nos emocionou.
Segundo4,
Histórias das pessoas que tiram

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IMAGENS MIDIÁTICAS E/OU MIDIATIZADAS: TEMPORALIDADES E HISTORICIDADES
do lixo dos outros o sustento de A fotografia é mágica e
suas famílias. E que no meio de
sempre invisível: não é ela que se
tantos objetos quebrados, latas
e garrafas, montanhas de papel vê, mas um discurso que se faz
e livros rasgados, conseguem desencadear em torno dela. Bulla
trabalhar com um sorriso no rosto.
Posso dizer que este trabalho foi (2005) define a fotografia como a
um dos que mais me marcou na “representação de uma realidade,
graduação até agora. Me senti
completamente realizado após que transmite significado, produz
finalizar as fotos e apresentá- sentido, provoca emoções, fala
las na sala. Meu maior orgulho
de alegrias, solidão, dor...”
desta pauta foi ter conseguido
correr atrás e não desistir, mesmo Na figura 3, A Catadora, nos
que a princípio os obstáculos remete à fotografia A Tecedeira
parecessem intransponíveis. Sou
grato à professora Cássia por nos (1908). Assim como a menina
desafiar dessa forma que tanto de Hine, A Catadora, flagrada
nos fez crescer e amadurecer
tanto no Jornalismo, quanto na por Bueno e Petinatti interroga a
sensibilidade de contato com o consciência de quem a vê. Nas
ser humano.”
palavras de Didi-Huberman (2013)
a imagem é um movimento de
mão dupla entre olhar e ser olhado.
E, neste movimento, o olhar
Pelos olhos da câmera
através da câmera registra uma
Como afirma Collier (1973, p.1), senhora de idade trabalhando
“a máquina fotográfica não se como catadora para completar
apresenta como um remédio o salário da aposentadoria.
para nossas limitações visuais, A fragmentação e o recorte
mas como uma auxiliar para oferecem a ela uma singularidade.
nossa percepção”. E acrescenta: Como destaca Sontag (2004, p.13),
“somente a sensibilidade humana Essa insaciabilidade do olho que
pode abrir os “olhos” da câmera” fotografa altera as condições
do confinamento na caverna:
e ver além do retângulo do visor.
o nosso mundo. Ao nos ensinar
Com a câmera nas mãos, o um novo código visual, as fotos
fotógrafo se torna narrador, ajuda modificam e ampliam nossas
ideias sobre o que vale a pena
as pessoas a verem o mundo de olhar e sobre o que temos o
outros ângulos e a refletir sobre direito de observar. Constituem
uma gramática e, mais
questões sociais que se inserem importante ainda, uma ética de
em seu discurso. ver.

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Ou como afirma Dubois (1994, que eu faço, os adultos que eu
p.161), faço são partes representativas do

a foto aparece como uma todo, são representações uns dos


fatia, uma fatia única e singular outros”, afirma Salgado.
de espaço-tempo, literalmente
cortada ao vivo. Centésimos
de segundos captados pelo Figura 3 – A Catadora
abrir e fechar das cortinas
do obturador. O olhar atento
seleciona a imagem no visor
como uma tesoura recorta a
cena, separando o que é mais
interessante do que é acessório,
uma leitura de mundo que um
olhar apenas convencional
jamais teria acesso.

A exemplo de Sebastião
Fotografia: Tiago Bueno e Lucas Petinatti
Salgado,que afirmou em entrevista
Fonte: Dos autores
a Paulo Boni (2008) também
optamos por não colocar nomes
Na figura 4, também foi utilizado
nos personagens fotografados.
o preto e branco, que deixa a
A Catadora representa todas
cargo do repertório imaginativo
as senhoras que trabalham
do leitor o preenchimento das
para completar sua renda,
lacunas deixadas pela ausência
independente da região do país
de cromia (MARTINEZ, 2005). Por ser
que ela está. “Eu nunca fiz isso. Eu
o oposto da fotografia em cores,
fotografo personagens genéricos,
ela também se opõe ao que se
personagens que representam o
vê na realidade, afinal, o mundo
todo, e que diferença faz saber
que percebemos é colorido, e,
o nome deles? Eu trabalho numa
assim, o preto e branco propõe
escala ampla, em que não faz
uma leitura diferente do mundo,
sentido eu colocar o nome numa
daquilo que não se enxerga ou
criança do Movimento Sem
daquilo que não se quer enxergar.
Terra do Brasil ou do Movimento
Como pontua Salgado (2014,
das Tribos do Sul da Índia ou do
p.128), “com o preto e branco e
Movimento da Liberação das
todas as gamas de cinza, posso
Filipinas, entende? As crianças

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IMAGENS MIDIÁTICAS E/OU MIDIATIZADAS: TEMPORALIDADES E HISTORICIDADES
me concentrar na densidade das Esse é o papel do jornalista.
pessoas, suas atitudes, seus olhares Estampar nas páginas dos jornais
(...) quando contemplamos uma ou nas redes sociais imagens
imagem em preto e branco, ela que despertem e sensibilizem os
penetra em nós, nós a digerimos, leitores, causando inquietações.
e inconscientemente a colorimos”. Parafraseando Sontag (2003, p. 13)
Para Saramago (1995), “a é isto o que a desigualdade social
experiência dos tempos não tem faz. Ela dilacera, despedaça,
feito outras coisas que dizer-nos esfrangalha, eviscera, devasta.
que não há cegos, mas cegueiras...
e o tempo é o parceiro que está Figura 4 - Trabalho solitário
a jogar do outro lado da mesa”. E
nesse jogo a fotografia entra para
nos mostrar o que muitas vezes
somos incapazes de ver. Pode
despertar o olhar latente e invadir
nossa consciência, fazendo-nos
sair de si mesmo e trazendo o
mundo para dentro de si. Quantos
carrinhos como esse cruzam nosso Fotografia: Bruna Melo e Maria Caroline
caminho, e diante de quantos Monteiro
deles paramos para nos perguntar Fonte: Das autoras
sobre a dignidade e a condição
humana? Como reitera Sontag Na definição de Saramago
(2003, p.12), nenhum de “nós” (1995), as mãos são os olhos dos
deveria ser aceito como algo cegos. Na foto a seguir (Figura
fora de dúvidas, quando se trata 5), as mãos desta catadora de
de olhar a dor dos outros (...) As papel também são os olhos de
fotos são meios de tornar “real” quem insiste em não querer ver
(ou “mais real”) assuntos que as mais uma injustiça social. Poucas
pessoas socialmente privilegiadas, imagens mostram tão pouco, e,
ou simplesmente em segurança, simultaneamente possuem tanto
talvez preferissem ignorar”. significado. O plano de detalhe,

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neste caso, é responsável por conotativas, ora oferecendo
transformar as mãos no centro de informações ao intelecto, ora ao
interesse da fotografia, colocando- afeto. A fotografia é mágica e
as para representar o personagem sempre invisível: não é ela que
a quem elas pertencem. Sabe-se vemos, mas um discurso que
que a catadora está ali, mas que nos faz desencadear em torno
não ficou retida pelo recorte, é dela, não é mero registro visual
o que Dubois (1994) denomina e mimético, mas é capaz de
de fora-de-campo, ou espaço provocar questionamentos e
off, que ao mesmo tempo que tornar-se pensativa. Como sintetiza
está ausente do campo de Andrade (2002, p.114),
representação, marca sua relação olhar para o mundo é uma
de continuidade com o recorte condição, compreendê-lo por
meio desse olhar é uma busca
selecionado. eterna, instigante e fascinante.
A unicidade de um olhar, de um Fascinante porque é pela
contemplação da beleza do
detalhe que nos sensibiliza, não se mundo que nos encantamos
pode traduzir em palavras, mas em e nos apaixonamos. Instigante
porque a vontade de mergulhar
imagens. Imagens que circundam em seu desconhecido pode nos
o pensamento e que encontram levar ao diferente e transformar
o que estamos viciados a
voz num retângulo silencioso enxergar.
chamado fotografia. Ou como
ainda escreve Saramago (2005) E neste momento, as mãos

sons exteriores vão repassando que trabalham levam-nos a


o véu da inconsciência em que uma viagem de identificação e
estamos envolvidos. interiorização; nas palavras de

A imagem das nos Martinez (2005) buscamos dentro


mãos
lança vários olhares e diferentes de nós uma explicação justa
indagações. Nesta fotografia para que essas pessoas sofram
a câmera atuou como uma tanto assim, sem que parte da
extensão dos um culpa recaia sobre nossos próprios
olhos,
instrumento da percepção, e ombros.
congelou fragmentos carregados
de mensagens denotativas e

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IMAGENS MIDIÁTICAS E/OU MIDIATIZADAS: TEMPORALIDADES E HISTORICIDADES
Figura 5 – As mãos são os olhos dos cegos de imagens que nos inundam
diariamente. A exemplo de Hine
e Salgado se não discutirmos e
não interrogarmos a consciência
da sociedade, mais cedo ou mais
tarde seremos acometidos pela
cegueira de sentimento.

Figura 6 – Abandono

Fotografia: Tiago Bueno e Lucas Petinatti

Fonte: Dos autores

A Figura 6 é um apelo silencioso


diante de nosso olhar. Codogno
e Mendes ressaltam por meio da
fotografia objetos “abandonados”
que representam o descaso e a Fotografia: Bruno Codogno e Leonardo
falta de conscientização de uma Mendes
parte da sociedade que não se Fonte: Dos autores

deu conta da importância da


reciclagem. Mais uma vez o papel
do jornalista como educador Considerações finais
ambiental, divulgando e alertando
O fotodocumentarismo, seja
sobre as graves consequências
ele de denúncia ou não, é
para a sociedade e o planeta. Ver
uma importante ferramenta de
já não é mais um fenômeno ótico
comunicação. Trabalhar essa
ou biológico, faz parte da maneira
vertente da fotografia em sala de
como se codifica e decodifica
aula é oferecer aos estudantes
o mundo que nos circunda. É,
e futuros profissionais uma visão
antes de tudo, uma maneira de
humanizada do Jornalismo. Como
interpretar, de dar sentido, de
afirma os autores Alves e Sebrian
criar e recriar a chuva ininterrupta
(2008, p.14) “ao invés de os

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profissionais se preocuparem com responsabilidade de “ter olhos
o imediatismo dos fatos e com a quando os outros os perderam”,
sua descrição podem transmitir para não sermos acometidos pela
aos seus leitores quem são os cegueira da indiferença. Esse é o
agentes dos fatos, as pessoas que papel do fotodocumentário. Essa
os vivenciaram, por meio do relato é a função do Jornalista.
de histórias, experiências, conflitos
e sentimentos”. No jornalismo
humanizado, ainda segundo os
autores, “os protagonistas sociais
não seriam meros figurantes das
afirmativas dos especialistas,
mas sim o ponto de partida e de
chegada do fazer jornalístico”.
Como afirma Salgado (2016,
p.7), devemos permitir que a
“câmera fotográfica seja um
microfone” para dar voz a quem
precisar. A práxis do fotojornalismo
ao longo do curso de Jornalismo
ratifica essa premissa e incentiva os
futuros profissionais a se moverem
pela empatia, se colocando no
lugar do outro. Saramago, ao final
do livro Ensaio sobre a Cegueira,
reitera a importância de olhar a
nossa volta e faz um convite ao
leitor: parar, fechar os olhos e ver,
se questionar se é assim que os
homens verdadeiramente são ou
se é preciso cegarem-se todos
para que enxerguem a essência
de cada um. E nos coloca a

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IMAGENS MIDIÁTICAS E/OU MIDIATIZADAS: TEMPORALIDADES E HISTORICIDADES
Referências

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2004.

Site

Cooper Região. Disponível em: http://www.cooperregiao.com/site/.


Acesso em 29 de junho de 2019.

ISSN 2237-9126 V. 14, Nº 26 241

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