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"Ouve-se dizer que a ciência está atualmente submetida a imperativos de rentabilidade econômica; na verdade sempre foi assim. O que é novo é
que a economia venha a fazer abertamente guerra aos humanos; já não somente quanto às possibilidades da sua vida, como também às da sua
sobrevivência."
(Guy Debord, Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo)

 
 
 
 
 
 
 

O mais recente filme do cineasta britânico Ken Loach nos faz sair do cinema com um nó na garganta. Quem já conhece seu trabalho, sabe o que esperar: personagens do
povo, enfrentando as agruras de uma vida com pouco dinheiro, mas com singularidades humanas inequívocas. Assim também é "Eu, Daniel Blake". E ainda que, por
vezes, o espectador já adivinhe alguns desenvolvimentos posteriores do roteiro, o filme resulta em uma obra extremamente comovente.

Vamos à sinopse: um carpinteiro com problemas cardíacos, apesar de ser aconselhado a temporariamente afastar-se de suas atividades profissionais, é considerado apto
para o trabalho pelo sistema de seguridade social do Estado Britânico. Às voltas com a burocracia para conseguir reverter esse engano e receber a sua pensão temporária,
o protagonista depara-se com uma jovem mãe solteira que também sofre com o atendimento a ela dispensado pelo governo. Esse é o ponto de partida para a amizade de
Daniel, Katie e seus filhos. E para sabermos como lutarão pela sobrevivência a partir daí.

Para o público brasileiro, "Eu, Daniel Blake" tem o atrativo extra de nos fazer entrar em contato com algumas especificidades do sistema de amparo social britânico,
ainda que dramaticamente entremos em contato justamente com a sua derrocada. Após o fim da "Era Blair", o mandato de primeiros-ministros do Partido Conservador
passou a privilegiar uma agenda de "austeridade", que corta ou dificulta a obtenção de benefícios. Segundo  matéria da BBC, em 2013 as economias conseguidas com
esse expediente mostraram-se pífias, enquanto o seu impacto no empobrecimento da população já se fazia sentir de maneira pronunciada.
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 Desde as primeiras falas, que surgem ainda quando os créditos iniciais do filme estão na tela, constrói-se para o espectador o núcleo implícito da história: após anos de
trabalho e de pagamentos compulsórios de taxas e impostos que garantiriam sua sobrevivência, Daniel Blake está sozinho. O sistema de valores no qual ele foi formado e
no qual acredita simplesmente não existe mais. Ao ficar incapacitado temporariamente para o trabalho, ele tenta manter sua dignidade e apelar aos seus direitos. No
entanto, debate-se com uma situação na qual passa a ser visto como um fardo para a sociedade e cujo comportamento desviante precisa ser corrigido. Tudo seria mais
fácil se ele humildemente compreendesse isso. Mas ele quer justiça e busca o que é seu por direito. A sua saga, porém, não fala apenas de luta. Talvez a parte mais
tocante do filme seja aquela que entrelaça toda a questão política com a importância da solidariedade.

Uma das cenas mais sutis do filme, que não diz respeito à relação franca e generosa que Blake tem com seus vizinhos e conhecidos, é quando ele é obrigado a assistir a
uma aula de como formatar o currículo para conseguir manter seu seguro desemprego. Diante de um grupo de pessoas absolutamente perdidas na ausência de
perspectivas profissionais, o professor marca no quadro uma frase: "é preciso destacar-se da multidão". Esse recurso de alguma forma explica as dificuldades enfrentadas
pelo carpinteiro. Ele se debate com um sistema cultural e político que privilegia uma ideia central:  alguns devem perecer para que alguns poucos se destaquem. E os
fracassados são algo a se deixar para trás sem dó nem pena.  Pior ainda, o fracasso parece ser contagioso. Olhar demoradamente, sentir empatia por alguém que sofre
parece conter a ameaça de tornar esse observador, também ele, um sofredor.

A possibilidade de solidariedade fica assim interditada, a noção de cidadania se esvanece, a preocupação com o bem coletivo passa a ser considerada uma ameaça à
Economia. Tudo isso se desenha no filme. E para o espectador mais inquieto, também ecoa uma pergunta que não foi feita diretamente no roteiro: a quem isso interessa?

 Eu, Daniel Blake" reflete sobre desafio de não sucumbir em tempos de crise
Nos filmes, são os super-heróis que falam como nós gostaríamos de falar. Aprendida cedo nas aulas de roteiro, esta lição ajuda a não engessar diálogos quando se quer soar o mais realista possível; o revés é
que ela diz, também, ainda que implicitamente, que a coragem não é para qualquer pessoa. Na contramão, o longa-metragem de Ken Loach "Eu, Daniel Blake" (2016) apresenta personagens carentes e
ordinários, banais e perigosamente cativantes. Gente que fala com a coragem crua e uma paixão humana.

Nos filmes, são os super-heróis que falam como nós gostaríamos de falar. Aprendida cedo nas aulas de roteiro, esta lição ajuda a não engessar diálogos quando se quer soar o mais realista possível; o revés é
que ela diz, também, ainda que implicitamente, que a coragem não é para qualquer pessoa. Na contramão, o longa-metragem de Ken Loach "Eu, Daniel Blake" (2016) apresenta personagens carentes e
ordinários, banais e perigosamente cativantes. Gente que fala com a coragem crua e uma paixão humana. Daniel Blake é um carpinteiro que teve um ataque cardíaco e, por isso, não tem permissão médica para
voltar ao trabalho. Ainda assim, Blake se depara com uma série de processos burocrático... que impedem que ele continue recebendo um auxílio financeiro do governo enquanto não pode trabalhar. Daniel
questiona cada obstáculo colocado à sua frente; desde a apresentação do filme no consultório em que perguntas protocolares tornam-se uma forma passivo-agressiva de ameaça contra o protagonista até a
espera de quase duas horas no telefone para falar com um atendente, que avisa a Blake que precisa esperar uma ligação para poder contestar a decisão que já recebera por carta (e foi o motivo da ligação, para
começo de conversa)....

A história do filme ganha uma nova camada quando Blake conhece Katie, uma mãe solteira de duas crianças que foi expulsa pelo seu senhorio e, depois de um tempo em um abrigo, conseguiu uma casa longe de
toda sua rede de apoio, familiares e amigos. Eles se encontram em um desconforto compartilhado, de quem é vítima da negligência do Estado que os coloca em condições cada vez mais miseráveis e se recusa a
ouvi-los. A cena em que eles se conhecem se resolve em uma frase: não é possível que as circunstâncias não sejam capazes de mudar normas. Então, Daniel e Katie tornam-se ouvidos e ombros amigos

É também interessante notar como o drama é bem sucedido em seus mínimos detalhes, por exemplo, como o tempero de bom humor de Blake muda de sabor ao longo da narrativa. Se no começo as graças do
protagonista são o alívio em meio a situações que geram insegurança e sofrimento, o sentimento evolui para uma espécie de angústia, sendo impossível conter a indignação com que pessoas em vulnerabilidade
social são tratadas.... –

Com o aumento da insegurança alimentar em muitos lares brasileiros, as cenas de fome de Katie tornaram-se ainda mais devastadoras. Primeiro, há uma sequência de jantar, em que o macarrão rende três
pratos, que ela insiste que sejam de Daniel e das crianças, enquanto diz que prefere uma fruta — e morde com a mão trêmula uma maçã. A filha mais velha entrega: "Foi o que você disse ontem. E anteontem."
Uma visita ao "food bank", espaço de doação de alimentos, rende uma das cenas mais tocantes do filme, premiado com Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2016 e BAFTA Melhor Filme em 2017. Katie se
apoia discretamente nas prateleiras até desesperadamente abrir uma lata e comer um alimento cru, ímpeto que é seguido de um terrível choro de constrangimento. Com ela, Ken Loach nos questiona: o que
estamos fazendo a favor da humanidade? O diretor abraça o cotidiano e se coloca no local de escuta. "Eu, Daniel Blake" é um filme com sotaque britânico carregado que diz muito sobre o Brasil
contemporâneo..... -

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