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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

JÉSSICA MADEIRA BARBOZA

TÓPICOS ESPECIAIS SOBRE O MATERIALISMO HISTÓRICO

2021
Análise do filme “Eu, Daniel Blake” através dos conceitos de E. P. Thompson

O filme analisado para a realização desta resenha foi “Eu, Daniel Blake”, dirigido por
Ken Loach, é um drama do ano de 2016, que de certa forma, denuncia muitos problemas
sociais retratados na história dos personagens. A obra mostra a vida de Daniel Blake, um
senhor que tem problemas de saúde e fica impossibilitado de trabalhar, por isso vai em busca
de um seguro, mas as coisas se tornam muito difíceis para ele, juntamente a esse personagem
principal, aparece também, uma mãe desempregada, com seus dois filhos, juntos eles passam
por diversos problemas e se ajudam. A partir destas informações iniciais, nota-se que para
entender algumas cenas da obra cinematográfica, pode-se relacionar com os textos e
conceitos de E. P. Thompson, visto que, o autor escreve sobre essas problemáticas que são
realidades da classe trabalhadora.
Primeiramente, faz-se necessário trazer ao conhecimento sobre quem foi o historiador
Edward Palmer Thompson, pois agregará na compreensão do assunto que será abordado
neste presente trabalho. O autor das obras estudadas para a análise é E. P. Thompson, nasceu
em 3 de fevereiro de 1924, e faleceu em 28 de agosto de 1993. Estudou Literatura e História
em Cambridge, foi um antifascista que lutou na 2ª Guerra Mundial, ele fundou a New Left
Review e foi o diretor durante quatro anos (1960-64), além disso, era historiador do PCGB e
um militante do PC (Partido Comunista). Um ponto importante a enfatizar sobre Thompson é
que ele rompeu com o PC após a descoberta dos crimes cometidos por Stalin em 1956, e
principalmente depois de perceber que os membros do partido se recusaram a fazer uma
autocrítica, pois para ele, a história marxista deveria ser renovada. Com isso, Thompson
funda uma história popular, onde a perspectiva é vista de baixo, ou seja, ele escreve sobre a
classe trabalhadora, privilegiando como agentes dessa história os próprios trabalhadores
anônimos, pois nota-se que por muito tempo a história foi escrita pela classe dominante.
Dessa forma, percebe-se que E.P. Thompson propôs uma nova forma de pensar a
questão da classe operária, ele parte do ponto de vista do grupo de trabalhadores pobres, fica
visível que o seu contato com essa classe trabalhadora, não apenas pelos livros, mas em suas
vivências, como dentro do ensino de adultos, onde foi professor, foi importante para formular
suas ideias. Para a presente resenha, foram utilizados os conceitos encontrados em diversas
obras do autor, em especial a sua famosa: “A formação da classe operária inglesa”. Além
dessa, também foi estudada outra obra de Thompson muito essencial para esta resenha, o
livro intitulado: "Costumes em Comum''. Contudo, será desenvolvido este trabalho,
analisando a relação entre os textos de Thompson mencionados acima com as notáveis
questões problemáticas visualizadas ao longo do filme “Eu, Daniel Blake”.
A priori, é necessário introduzir que o filme “Eu, Daniel Blake” possui muitas cenas
emocionantes, o primeiro exemplo a citar nesta presente resenha, acontece no início, quando
o senhor Daniel Blake conhece a Katie, uma mulher com seus dois filhos. Esse momento é
marcante porque os dois estão com problemas semelhantes dentro do Departamento do
Serviço Social, e procuram seus direitos; Daniel o seguro necessário para passar o tempo em
recuperação de sua saúde, e Katie precisa simplesmente ser atendida para resolver seu
problema. Percebe-se então, que logo nessa cena, pode ser realizada uma relação com o que
Edward Palmer Thompson apresenta em sua obra “A formação da classe operária inglesa”,
pois os dois personagens se identificam pelas experiências em comum que partilhavam
naquele momento, isso desenvolveu uma consciência em Blake, o deixando revoltado ao ver
a situação da moça, e por fim, tentando ajudá-la.
A relação amigável de solidariedade que é estabelecida nesse início entre os dois
permanece durante todo o filme, Daniel Blake por ser um senhor de idade, sozinho, com
problemas de saúde e agora sem emprego se depara com Katie, em uma situação deplorável
em sua moradia e ainda tendo que sustentar seus filhos. Daniel sempre ajuda Katie com
consertos em sua casa, dinheiro para as contas e com as crianças, ela por sua vez, também se
importa com ele, isso fica evidente principalmente quando, após se afastarem por um tempo,
Katie ainda o acompanha nos processos relacionados ao seu recurso, ela se junta a ele em sua
incessante busca pelos seus direitos, pois percebe tamanho descaso do Estado, e diante tudo
que vive, percebe que de certa forma, ela também é vítima das negligências do Estado.
Analisando a problemática em questão, fica evidente na citação a seguir, a ideia de
“consciência de classe”, que pode ser observada na situação descrita acima, esta é explorada
por Edward Palmer Thompson em seu livro intitulado: “A formação da classe operária”, a
partir disso, compreende-se o porquê Daniel Blake teve aquela atitude de falar com os
seguranças uma alternativa para resolverem a situação complicada em que Katie estava..
“Pois estou convencido de que não podemos entender a classe a
menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de
processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante
um considerável período histórico. Nos anos entre 1780 e 1832 os
trabalhadores ingleses em sua maioria vieram a sentir uma identidade de
interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores.” (THOMPSON,
E.P. A formação da classe operária inglesa. p.10)
Dentro deste contexto, outra parte que vale enfatizar, acontece mais no meio do filme,
é quando Daniel Blake se revolta com as péssimas condições que encontra na empresa ao
procurar seu seguro e decide escrever no muro do banco, em forma de manifestação pelo
pedido do seguro. Naquele momento, quando os funcionários viram o feito, acionaram a
polícia, enquanto os policiais chegavam para levar Blake para delegacia, muitas pessoas se
reuniram no local e o aplaudiram, nota-se que isso aconteceu porque toda aquela multidão, de
alguma forma, entendia o que Blake estava passando, pois já passaram por algo semelhante.
Paralelamente, uma importante questão de Thompson a ser informada sobre esse mesmo
episódio do filme, são as ideias expostas na parte intitulada de “Economia moral da multidão
inglesa no séc XVIII”, que está presente em sua obra “Costumes em Comum”, afirma que há
uma tolerância por parte da multidão pobre sobre alguns atos, isso foi o que aconteceu com
aquelas pessoas ao aplaudirem Daniel, invés de considerarem o seu ato um vandalismo.
Além das passagens citadas acima, observa-se alguns pontos importantes nos
acontecimentos com Katie, como foi informado anteriormente, ela era uma mãe solteira com
seus dois filhos pequenos passando dificuldades por não ter nenhuma renda. São diversas as
cenas que mostram essas sérias e lamentáveis circunstâncias que a personagem se encontra,
uma delas é a parte no qual Katie está no mercado e compra o que precisa para alimentar seus
filhos, mas leva um item de higiene sem pagar, o segurança percebe, vai até ela para resolver.
É notório, que ao se encontrar em situação de vulnerabilidade, sem poder comprar nem o
básico que uma pessoa precisa para viver, a personagem Katie se depara na necessidade de
roubar, esse ato pode ser analisado através do que Thompson escreve sobre “Economia moral
dos pobres”, pois na lógica daquela moça, o furto era a única opção, o que se torna aceitável
para ela em vista de suas necessidades.
Continuando nesta mesma linha de pensamento, há outra parte marcante da obra
cinematográfica para utilizar como exemplo, o caso observado do personagem China, um
vizinho de Daniel Blake, um jovem que trabalha em um galpão e está indignado com as
péssimas condições, a grande carga horária e com o pouco salário que recebe. Por isso, ele
decide tentar outro meio de ganhar dinheiro, assim ele compra tênis falsificados para vender
por um preço mais barato que os originais, com o intuito de lucrar mais. Sobre esse
acontecimento, o tema “Economia moral da multidão inglesa no séc XVIII” que contribui
com o conceito de “Economia moral dos pobres” mencionado anteriormente, é importante
pois faz compreender que, as pessoas que apoiavam o jovem China nessas vendas, não
reprovaram essa atitude dele e nem o denunciaram, pois diante da realidade difícil que todos
vivenciavam, essa opção se tornava justificável, como é notado na fala do personagem ao
responder Daniel Blake, reclamando sobre receber três libras e setenta e nove centavos por
trabalhar durante quarenta e cinco minutos.
Consoante as problematizações escritas até aqui, é importante pontuar sobre a parte
em que Edward Palmer Thompson se detém para desenvolver o tema: “Economia moral da
multidão inglesa no séc XVIII”, onde expõe ideias sobre essa “Economia moral dos pobres”.
O assunto base dessa questão é o que ele chama de “motins”, a discussão sobre o que eram e
como foram realizados esses “motins da fome” durante o século XVIII na Inglaterra, no qual
basicamente pode-se resumir em manifestações e protestos em decorrência da fome. Inicia-se
então, diversas problemáticas e ideias em cima desse processo histórico, no trecho abaixo
encontra-se a informação para o entendimento das relações feitas com o filme até aqui:
“Por noção de legitimação, entendo que os homens e as mulheres da
multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou
costumes tradicionais; e de que em geral, tinham o apoio do consenso mais
amplo da comunidade.” (THOMPSON, E. P., p.152)

Percebe-se também, outras partes do texto em que Thompson explana sobre suas
ideias relacionadas à "Economia moral dos pobres”, fica claro no seguinte trecho uma
asserção sobre a questão da aceitação dos atos com base no bem-estar comum, como já foi
mencionado anteriormente neste trabalho.
“Embora essa economia moral não possa ser descrita como política
em nenhum sentido mais avançado, tampouco pode ser descrita como
apolítica, pois supunha noções definidas, e apaixonadamente defendidas, do
bem-estar comum- noções que na realidade encontravam algum apoio na
tradição paternalista das autoridades; noções que o povo, por sua vez, fazia
soar tão alto que as autoridades ficavam, em certa medida, reféns do povo.”
((THOMPSON, E. P., p.152)

Portanto, com um fim trágico, o filme termina com o falecimento de Daniel Blake por
um infarto, no dia em que iria passar pelo processo de pedido do seu recurso de reintegração
de seu seguro desemprego, ou seja, o senhor Daniel Blake perdeu a sua vida lutando pelos
seus direitos, que mesmo assim não foram concedidos. Assim, as cenas estimulam a uma
profunda reflexão sobre a qualidade de vida da classe trabalhadora, ao mostrar a de Daniel
Blake, além de uma grande revolta, pois mesmo passando por problemas de saúde, o
personagem se depara com muitas dificuldades que o sistema impõe, empecilhos que
praticamente o impedem de conseguir o seguro e deixam uma única opção, que era ter que
trabalhar novamente, Daniel se recusa pois de acordo com seus médicos, sua saúde estava
debilitada. Assim, não desistindo de tentar, Daniel não aguenta toda a pressão que passa, e no
dia que seria decisivo, ele infarta. No funeral de Daniel, Katie vai a frente fazer uma
homenagem, ela começa a ler a carta que achou junto a Daniel, escrita para ser lida no dia do
recurso, nela ele se pronuncia e protesta dizendo que é um cidadão e exige seus direitos, essa
parte leva a um profundo pensamento sobre como a vida da classe trabalhadora pobre é
dificultada e consequentemente desvalorizada, Daniel perde sua vida ainda sem conseguir o
tão desejado e necessário recurso. Por fim, conclui-se que o filme “Eu, Daniel Blake” foi por
inteiro, um exemplo claro sobre os conceitos que Thompson disserta em suas obras, visto
que, retrata a dura realidade vivenciada por trabalhadores pobres.

REFERÊNCIAS:

THOMPSON, Edward. P. (1987). A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da


liberdade. Vol. I 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 204 páginas.

THOMPSON, Edward P. (1987). A Formação da Classe Operária Inglesa: A maldição de


Adão. Vol. II 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra (publicado em 2002). 347 páginas.

THOMPSON, Edward P. (1987). A Formação da Classe Operária Inglesa: A força dos


trabalhadores. Vol. III 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra (publicado em 2002). 440 páginas.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
“Eu, Daniel Blake”. Direção: Ken Loach, 2016.
https://www.youtube.com/watch?v=129PJIj-q6E

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