Você está na página 1de 4

RESENHA: SENNET, RICHARD.

A CORROSÃO DO CARÁTER
Publicado em 04 de julho de 2009 por Francieli Ferreira Pontes

Richard Sennett, professor de sociologia da Universidade de Nova York e


da London School of Economics escreveu em 1998 o ensaio sobre ética do
trabalho A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo
capitalismo. Sennett, neste ensaio, dá continuidade a sua pesquisa e reflexão
sobre as novas relações de trabalho no capitalismo moderno e suas
conseqüências no caráter individual. É autor também de outros ensaios e livros
como Carne e Pedra, O declínio do Homem Público e The Hidden Injuries of
Class (com Jonathan Cobb), Este longo ensaio inicia-se como uma conferência
feita na Universidade de Cambridge em 1996 por Sennett. Segundo o autor, a
permanência no Centro de Estudo Avançado em Ciências Comportamentais lhe
proporcionou tempo suficiente para escrever esta obra. Além disso, o autor
evidencia suas experiências pessoais com trabalhadores americanos ao longo de
sua vida e, a partir de tais experiências, passa a refletir sobre as relações de
trabalho, o caráter pessoal e as suas transformações no novo capitalismo.
Com base em sua definição de caráter: “traços pessoais a que damos valor
em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (p.10),
Sennett passa a questionar as relações de trabalho contemporâneo e suas
implicações nos valores pessoais como a lealdade e os compromissos mútuos.
Como definir nossos traços pessoais, nosso valor em uma sociedade onde tudo
é efêmero, onde a flexibilidade, ou seja, o poder de se ajustar a qualquer meio
é tido como valor? Não é possível construir um caráter em um capitalismo
flexível, onde não há metas a longo prazo, pois a construção deste depende de
valores duradouros, relações duradouras, de longo prazo, isto não é possível em
uma sociedade onde as instituições vivem se desfazendo ou sendo
continuamente reprojetadas.
Para discutir esta questão, Sennett recorre à várias fontes, como dados
econômicos, narrativas históricas e teorias sociais como de Max Weber e Adam
Smith e, ainda, à sua vida diária , seu método é como de um antropólogo,
segundo o próprio autor. A obra é dividida em oito breves capítulos, onde se
define o tempo capitalista, se compara o velho capitalismo e o novo, mostram-
se as dificuldades de se compreender as novas relações de trabalho, o ataque
do capitalismo ao caráter pessoal, a mudança ética do trabalho, os sentimentos
despertos nos indivíduo como o fracasso, o desnorteamento, a depressão e, por
fim, como lidar e viver neste meio? Há remédio para os males do trabalho? São
as respostas para estas questões que Sennett procura nesta discussão.
No primeiro capítulo, Deriva, Sennett relata a história de duas gerações
norte-americanas, Enrico e Rico, filho de Enrico. Este relato serve como
comparação entre dois modelos de trabalhadores. O trabalhador fordista,
burocratizado e rotinizado, que planeja sua vida e suas metas se baseando em
um tempo linear, cumulativo e disciplinado, que constrói sua história e
expectativas a partir de uma progressão de longo prazo. E o trabalhador
flexibilizado do capitalismo mais recente, que muda de endereço
freqüentemente, não estabelece laços duráveis de afinidade com os vizinhos,
muda de emprego constantemente, não planeja suas metas a partir de
expectativas de longo prazo, ou seja, vive uma vida de incertezas, vida sem
laços duráveis. O trabalhador flexível não possui laços duráveis nem com sua
própria família. Segundo Sennett, a dificuldade de se estabelecer laços duráveis
está corrompendo o caráter e como isso acontece é demonstrado ao longo do
ensaio.
A rotina era o grande mal do velho capitalismo, segundo Adam Smith ela
embrutecia o espírito, na tentativa de se livrar deste mal a nova sociedade
buscou flexibilizar o tempo, de forma a não ficar presa a uma rotina, a uma
programação. Esta negação da rotina, do velho capitalismo, pode ser vista na
negação do modo de vida de Enrico por seu filho Rico. Rico se esforça para não
demonstrar nenhum laço ou vestígio do trabalhador braçal que buscava o Sonho
americano como que era seu pai, Rico quer fugir da rotina. O grande problema
é que esta rotina baseada no tempo linear foi substituída por novas formas de
domínio e controle. No velho capitalismo fordista, o poder e o controle eram
visíveis, o patrão no alto do escritório controlava e supervisionava o trabalho
dos operários, regulava o tempo. O novo capitalismo flexibilizou o tempo, os
produtos são cada vez menos duráveis, seguindo a dinâmica de curto prazo, os
empregos são temporários. Contudo, esta lógica de desburocratização
concentrou o poder ainda mais nas mãos dos capitalistas que, agora, são
invisíveis dentro das empresas. A aparente liberdade dada ao trabalhador
através do trabalho em equipe, onde ele decide o que fazer sem o patrão lhe
dar comandos, na verdade colocou o trabalhador ainda mais sob o comando do
capitalista. Isso aconteceu porque ele já não domina mais o que faz, a
atomização cada vez maior das tarefas fez com que não se precisasse mais de
tanta preparação, treinamento por parte do trabalhador, como consequência
este deixou de possuir o domínio sobre seu emprego, por isso ele sempre está
mudando de área, de empresa, de função, já não possui vínculos fortes com
suas tarefas, com seus colegas. A ausência de apego ao longo prazo com seu
trabalho, a não formação de laços duráveis acabou flexibilizando e por fim
corrompendo o caráter, pois este depende de tempo para se consolidar na
medida em que só podemos definir quem somos, o valor que temos quando
buscamos a valorização de nós pelos outros. Ou seja, só definimos nosso caráter
quando constituímos laços duráveis que permitam nos situar dentro de um meio
social.
O novo capitalismo, pois, se caracteriza pela capacidade imediata, a
flexibilização, o risco, a alienação completa do indivíduo, “não se mexer é
tomado como sinal de fracasso, parecendo a estabilidade quase uma morte em
vida” (p.102). Mudar o tempo todo faz a pessoa se esquecer da realidade a qual
pertence, no antigo capitalismo a consciência de se pertencer a uma classe era
facilmente perceptível, no capitalismo atual não se sabe a que grupo social se
pertence. Esta realidade pode ser vista quando Sennett pergunta a alguns
padeiros a que classe pertencem, dizem indefinidamente serem da classe
média. No jogo capitalista atual todos acreditam serem potenciais vencedores,
sabem que os vencedores fazem parte de um minúsculo grupo, porém não se
mexer é condenar-se ao fracasso. “O risco é um teste de caráter; o importante
é fazer o esforço, arriscar a sorte, mesmo sabendo-se racionalmente que se está
condenado a fracassar” (p.106). Assim, os indivíduos se vêem esvaziados moral,
social, cultural e politicamente. As relações humanas se tornam uma simulação
teatral, relações sem poder, sem autoridade. Desta forma, a construção de uma
história de vida que una as pessoas fica impossibilitada, pois não há padrão e
nem responsabilidade. As pessoas estão sujeitas ao sentimento de fracasso.
Neste sentido, as pessoas mais velhas ou mais experientes são vistas
como decadentes, fracassadas, pois flexibilidade, risco, não combinam com
acumulação de experiência, de tempo de vida. A história de Rose é um bom
exemplo dado pelo autor, ela admite “não ter mais coragem” (p.107). “As atuais
condições da vida empresarial encerram muitos preconceitos contra a meia-
idade. Dispostos a negar o valor da experiência passada da pessoa” (p.107).
Além disso, este exemplo demonstra como o novo capitalismo se tornou
desnorteante e deprimente, criou éticas contrárias à autodisciplina e à auto-
modelação da ética de trabalho como a descrita em A ética protestante e o
espírito de capitalismo de Max Weber. O poder está presente, mas a autoridade
está ausente. O repúdio da autoridade e da responsabilidade permite a fuga das
greves e das crises, já que não há laços fortes o suficiente para haver uma
coesão. Não há nenhuma autoridade para reconhecer nosso valor, estamos à
deriva do fracasso, estamos à deriva de nós mesmos. O pronome nós é temido
pelos capitalistas, temem o ressurgimento dos sindicatos, assim no capitalismo
moderno não dá motivos para as pessoas se unirem, “há história, mas não
narrativa partilhada de dificuldade e portanto tampouco destino partilhado”
(p.176). Para Sennett, um regime assim não pode se preservar por muito tempo.
A corrosão do caráter foi escolhido pela revista Business Week como um
dos dez melhores livros de 1998 devido a sua crítica ao ambiente de trabalho do
capitalismo moderno, tido como mais humano do que as insalubres e monótonas
fábricas do velho capitalismo. Para Sennett, a aparente melhoria das condições
de trabalho tão elogiadas, não passam de pura ilusão, a verdade é que o caráter
humano foi profundamente corrompido. A lealdade, os compromissos pessoais
são impraticáveis, é a desumanização total do ser humano. Assim, o autor
consegue demonstrar como esta corrosão acontece utilizando exemplos reais,
ao optar pela narrativa e não puramente o uso de estatísticas e tabelas,
consegue dar vida, expressão, para provar sua hipótese inicial de que as novas
relações do novo capitalismo flexível corromperam e corrompem o caráter do
ser humano. A partir desta conclusão o autor leva o leitor a refletir sobre o tipo
de sociedade que está sendo construída, uma sociedade em que os indivíduos
não se vêem necessários uns aos outros, ou seja, é o individualismo nascido da
burguesia industrial do velho capitalismo levado ao extremo, potencializado.
Por conseguinte, pode-se inclusive traçar um paralelo entre a visão de
Sennet e as teses dos filósofos Foucault e Hannah Arendt. Para Foucault os
indivíduos exercem “papéis” dentro de uma sociedade baseada em relações de
poder, na sua mais conhecida obra “Vigiar e Punir”, o filósofo mostra como essas
relações de poder mudaram e mudam ao longo da história, relações que estão
o tempo todo se reconfigurando. Da mesma forma, Sennett analisa o capitalismo
dos finais do século XX e suas relações de trabalho a partir da reconstrução das
mudanças e reconfigurações ocorridas no capitalismo desde a época em que
surgiram os primeiros trabalhos pensando este sistema como algo configurado,
como a análise de Adam Smith em A Riqueza das Nações do século XVIII, até a
consolidação do chamado capitalismo flexível, onde, diferentemente do antigo
capitalismo da análise foucaultiana, o poder existe, mas a autoridade é invisível,
porém a ausência desta autoridade visível não extingue as relações de poder
entre trabalhadores e capitalistas. Aliás, este ponto sobre a crise na autoridade
também é destacada por Arendt em “Entre o passado e o futuro” no capítulo
sobre o que é autoridade, onde ela vê nesta crise, assim como Sennet, algo que
corrompe o ser humano.

Bibliografia de apoio:
ARENDT, Hannah. O que é autoridade? In: Entre o passado e o futuro.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.

Você também pode gostar