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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Adriana Pereira Campo


Kátia Sausen da Motta

IMPERFECTA LIBERTATE: PETIÇÃO


AO CONGRESSO BRASILEIRO DO
LIBERTO DELFINO – 1826

CAMPO, Adriana Pereira.


MOTTA, Kátia Sausen da.
IMPERFECTA LIBERTATE: PETIÇÃO AO CONGRESSO
BRASILEIRO DO LIBERTO DELFINO – 1826. R. IHGB, Rio
de Janeiro, a. 176 (467):289-304, abr./jun. 2015

Rio de Janeiro
abr./jun. 2015
289

IV – DOCUMENTOS
DOCUMENTS

IMPERFECTA LIBERTATE: PETIÇÃO AO CONGRESSO


BRASILEIRO DO LIBERTO DELFINO – 1826
IMPERFECTA LIBERTATE: PETITION FROM FREEDMAN
DELFINO TO THE BRAZILIAN CONGRESS – 1826
Adriana Pereira Campos1
Kátia Sausen da Motta2

Resumo Abstract
O documento transcrito contém petição de certo The document transcribed here contains a pe-
Delfino, supostamente liberto, contra prisão ile- tition by someone whose first name was Del-
gal. Estão anexadas cópias da ação de escravi- fino, supposed to be a freedman, who claimed
dão movida pelo Coronel João Carneiro da Silva against an illegal imprisonment. Attached, there
contra Joaquim José Gomes de Castro por tomar are copies of the lawsuit filed by Colonel João
Delfino como seu cativo e carta de alforria. Con- Carneiro da Silva against Joaquim José Gomes
tém ainda o relatório da Comissão de Legisla- de Castro’s taking Delfino as his slave; there is
ção Civil e Criminal da Câmara dos Deputados also a copy of a carta de alforria (a certificate
com o indeferimento da súplica. A petição foi of freedom issued to an ex-slave). The document
apresentada aos representantes legislativos em contains a report by the House of Common’s
1826, ano de reabertura da Câmara dos Depu- Civil and Criminal Law Commission, which re-
tados. O pardo Delfino residia na Vila de Cam- jected the request. The petition was submitted
pos de Goytacazes, naquela época pertencente to the legislative representatives in 1826, when
à Província do Espírito Santo, e encontrava-se the House of Commons was reopened. Delfino
preso no calabouço da Corte, fato contra o qual lived in Campos dos Goytacazes, a village that
dirigia seus protestos. Escravo no momento da belonged to the province of Espírito Santo. He
prisão e durante boa parte do processo, Delfino was jailed in the dungeon of the court city, and
empregara os recursos judiciais possíveis para this was what he protested against. A slave when
reclamar da injustiça da situação e da privação he was arrested and during a long part of his
de seus direitos. A petição e os documentos ane- lawsuit, Delfino used all possible legal devices
xos permitem ao leitor acompanhar os caminhos to appeal against his unfair situation and the
judiciais percorridos pelo liberto e atentar para deprival of his rights. The petition and the docu-
os significados dessa ação que o inserem nos ments attached enable the reader to follow the
debates acerca da Escravidão e do Direito no freedman’s judicial paths and to consider the
Brasil Império. meanings of this lawsuit, a subject for discus-
sions on slavery and law in Brazil Empire.
Palavras-chave: Escravidão; Brasil Império; Keywords: Slavery; Brazil’s Empire; History of
História do Direito. Law.

1 – Docente dos Programas de Pós-Graduação em História e Direito da Universidade


Federal do Espírito Santo; Pesquisadora do CNPq e da Fundação de Apoio à Pesquisa e
Inovação do Espírito Santo. Email: acampos.vix@gmail.com.
2 –1Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Espírito Santo e bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa e Inovação do Espírito
Santo. E-mail: katiasmotta@gmail.com.

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Kátia Sausen da Motta

RUMO AO CONGRESSO
Oferecemos ao leitor da Revista do IHGB a transcrição de uma peti-
ção remetida à Assembleia Geral do Império no ano de 1826, cujo signatá-
rio era um liberto. Documentos desse tipo eram previstos na Constituição
do Império, em seu título 8º das disposições transitórias e das garantias
dos direitos civis e políticos dos cidadão brasileiros. Em seu artigo 179
constava a normatização da inviolabilidade dos direitos civis e políticos,
cuja premissa era a liberdade, a segurança individual e a propriedade.
No parágrafo 30, previa-se particularmente que: “Todo o Cidadão poderá
apresentar por escrito ao Poder Legislativo, e ao Executivo reclamações,
queixas, ou petições, e até expôr qualquer infração da Constituição, re-
querendo perante a competente Autoridade a efetiva responsabilidade dos
infractores.” Esse direito de petição foi assimilado pela Constituição de
1824 a partir de longa tradição, cujas raízes se colocaram no alvorecer da
Idade Moderna, em especial, no right of petition, instituto que permitiu
aos súditos ingleses dirigirem representações diretamente ao rei. Segundo
Vantuil Pereira,3 o Brasil independente herdou o dispositivo da antiga me-
trópole. Os portugueses eram autorizados a denunciar atos excessivos e
desconhecidos do monarca enviando-lhe diretamente uma representação.
O direito de petição também foi consagrado na Declaração de Direitos da
Pensilvânia, de 1776, e na Constituição Francesa de 1791.

Curiosamente, encontrou-se nos arquivos da Câmara dos Deputados


um liberto, de nome Delfino, entre os demandantes de direitos civis ou
políticos.4 O objeto do protesto era sua prisão, que ele alegava ser ilegal,
pois não fora realizada a “formação de culpa” em desobediência às ga-
rantias constitucionais dos cidadãos contra encarceramentos arbitrários.
A Constituição do Império brasileiro disiciplinara o aprisionamento dos
indivíduos acusados de crimes de modo que impedisse a privação de di-
reitos, cuja culpa se encontrava em litígio. A fim de coibir arbitrariedades,
a Carta de 1824 incluiu entre as garantias dos cidadãos a prescrição das
3 – PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: Direitos do cidadão na formação do
Estado Imperial Brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010, p. 217.
4 – CEDI (Centro de Documentação e Informação - Arquivo Histórico da Câmara dos
Deputados). Requerimento de Delfino pardo, 1826, de Delfino pardo, 1826.

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Imperfecta Libertate: Petição ao Congresso brasileiro do liberto Delfino – 1826

condições legais da ordem de prisão, sob pena de tornar nulo o ato. Com
efeito legal, qualquer cidadão tinha o direito de saber o motivo de sua
prisão e os nomes de seus acusadores no prazo de 24 horas.

Liberto no curso do processo, Delfino questionava sua prisão porque


não houvera cometido nenhum crime que se pudesse imputar a um ho-
mem na posse da liberdade. “Sem culpa formada”, ele permanecia preso
porque havia uma pendência entre um negócio efetuado entre o seu ex-
-senhor e os herdeiros de seu antigo proprietário (em litígio). Observa-se
no documento transcrito, com efeito, duas questões nessa petição. A pri-
meira é o pressuposto de o liberto se considerar um cidadão do Império.
E a segunda versa sobre o ardil estabelecido pela defesa para livrar certo
escravo de seu senhor. A estratégia não era absurda quando se lê o do-
cumento, pois fora planejada sob a orientação de experiente advogado e
também herdeiro do espólio.

A petição contribui para compreender também a formação do patri-


mônio de um dos potentados familiares de Campos dos Goitacazes e sua
estratégia de acúmulo de poder. O Coronel, José Carneiro da Silva, foi o
principal representante político da família e obteve destaque no processo
de independência. Galgou postos de comando, elegendo-se deputado da
Província do Rio de Janeiro e ostentando extensa carreira nobiliárquica,
com os títulos de Fidalgo, Barão e Visconde de Araruama.5 Seu irmão,
João Carneiro da Cunha, tornara-se responsável por reivindicar patrimô-
nio familiar dos pioneiros colonizadores de Campos. E fora também o
responsável por meter na prisão Delfino, produzindo vários requerimen-
tos na tentativa de reescravizar o liberto, que antes pertencia ao morgado
de seus antepassados. Esse é o outro aspecto do documento transcrito,
pois nele se observa, apesar de todas qualidades liberais da constituição, a
forte ancoragem da escravidão no direito brasileiro. Quando se permitiu a
sobrevida das leis lusitanas depois da independência, as ações de escravi-
dão mantiveram-se válidas em todo o território nacional. As Ordenações,

5 – MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, Tâmis Peixoto. Azeredo Coutinho, Vis-


conde de Araruama e a Memória sobre o Comércio dos Escravos de 1838. Revista de
História, n. 152, 2005, p. 116-118.

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que permaneceram em uso ao longo do século XIX, continham disposi-


tivo herdado do Direito Romano. No Direito Quiritário, o ônus da prova
cabia a quem contestava a liberdade, mas se verá da transcrição apresen-
tada que o indivíduo reclamado precisou fazer prova dela sine dolo malo
(de boa-fé). A liberdade, portanto, conferida aos homens ou mulheres es-
cravizados fragilizava-se sobremodo, pois a escravidão se tornava, desse
modo, a presunção de sua condição, e não a liberdade.

É certo que o leitor poderá encontrar outras qualidades do documento


que não se aponta nesta introdução, pois estamos convencidas da riqueza
e complexidade da realidade nele retratada. A transcrição e a publicação
nesta Revista do IHGB objetivam que novas olhares e outras questões
possam ser suscitadas desse importante testemunho inédito do mundo es-
cravo do Brasil do Oitocentos.

TRANSCRIÇÃO
Fl. 1

À Comissão de Petições em 17 de julho de 1826.

À Comissão de Justiça em 18 de Julho de 1826.

Indeferido

Em 7 de maio de 1827.

Augustos e Digníssimos Senhores

Delfino pardo forro foi arbitrariamente preso por um João Carneiro


da Silva6 com o frívolo pretexto de que o Suplicante era escravo de um
vínculo7 encravado na Fazenda do Quissamá no Distrito dos Campos de
6 – Suposto administrador da Fazenda Quissamã. Na época da petição possuía o título de
Coronel e acumulou, alguns anos mais tarde, o título de Barão de Ururai, Comendador da
Ordem da Rosa e da Ordem de Cristo. Era irmão de José Carneiro da Silva, o Visconde de
Araruama.
7 – Vínculo são os bens pertencentes a um único dono. Livro 4º, Tít. 100, item 4 das
Ordenações Filipinas: “Esta Ordenação somente haverá lugar na sucessão dos Morgados
e bens vinculados patrimoniais (...)”. Como a dissensão envolvendo Delfino se sustentava

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Goytacazes, e de que ele era e é administrador ou por faz ou nefas, por


morte do legítimo administrador o Coronel João Antonio de Barcellos8
que ali fora barbaramente assassinado.

Preso o suplicante, e mandado ao Calabouço desta Corte por aque-


le seu suposto Senhor com o pretexto de que se receava do Suplicante,
apareceu em campo em defesa dele Joaquim José Gomes da Silva Castro,
que havia comprado o Suplicante a um dos herdeiros daquele assassinado
e a quem este em sua vida o havia doado.

Correu um processo em o Juízo Criminal do Bairro de S. José e este


processo é composto de requerimentos e pura chicana, só com o fim de
retardar a soltura do Suplicante.

Joaquim José Gomes da Silva Castro exibiu em Juízo o título de


domínio e posse da pessoa do Suplicante, e devendo ser em um [isertro?]
manutenido enquanto senão anulasse por meios ordinarios a validade da-
quele título, muito pelo contrário tem sucedido por que Gomes tem sofri-
do a privação daqueles direitos; e o Suplicante tem continuado a gemer
entre os horrores do Calabouço.

Gomes de Castro cançado do insulto com que

Fl. 1v

o Judiciário há sido tratado por aquele ser contendor, e levado mais


do impulso de uma beneficência bem entendida do que uma ambição cul-
posa libertou o Suplicante pela Escritura de nº 1.

Desde então começou o Suplicante afigurar no processo como um


cidadão, parecendo que com esta qualidade garantida pelo Projeto de
Constituição ele senão deveria demorar preso sem culpa formada, mui-
numa disputa de sucessão, os contendores usavam a expressão vínculo em referência à
fazenda Quissamã em relação ao Morgado de Capivari que caberiam ao antigo senhor do
forro Delfino.
8 – O Coronel João Antônio Barcelos Coutinho sucedeu na administração da Fazenda
Quissamã o irmão natural, Inácio Julião de Barcelos. Era primo e ex-cunhado de João
Carneiro da Silva. Morreu assassinado em 1825, aos 42 anos.

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to menos por um objeto puramente cível. Requereu a sua soltura, como


tinha incontestável direito e o Juiz hoje, o Doutor Francisco José Alves
Carneiro, lhe indeferiu aquela súplica com o seu silêncio.

Proferia e a sentença de n. 2 em favor do Suplicante. Apelou dela


o Suplicado, e neste momento requeriu o Suplicante a mesma requerida
soltura, e o Ministro se opõem à ela com pretexto de que se havendo
apelado da sentença não podia ele deferir a semelhante justa e justíssima
pretenção.

Agravou-se deste deferimento o Suplicante para a Casa de Suplica-


ção, e este Tribunal que deveria ser o mais vigilante executor da Consti-
tuição, denegou provimento ao Suplicante com outro pretexto semelhante
ao primeiro, dizendo que em quanto senão soubesse em que efeitos se
deveria receber a apelação, não se podia afirmar que aquele Ministro ha-
via feito agravo.

Admira que todos aqueles Magistrados não

Fl.2

atendessem que o Suplicante como liberto é um cidadão que como


tal não pode ser preso, e menos continuar a existir em prisão, sobre pen-
dência de questões civis, e sem a presença de um crime em processo!

Admira que se autorizem prisões arbitrárias, que senão faça diferen-


ça do estado antigo da escravidão do Suplicante ao estado de Cidadão de
que ele hoje logra.

Admira que conhecendo-se no processo a qualidade de Cidadão na


pessoa do Suplicante continua o mesmo processo contra ele como dantes.

Que tem o Suplicado Carneiro com o Suplicante? Proponha as ações


que quiser contra aquele Gomes e Castro que comprou e libertou o Supli-
cante, porque contra este nada mais pode ter visto que a liberdade surtiu
os seus efeitos.

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Imperfecta Libertate: Petição ao Congresso brasileiro do liberto Delfino – 1826

Proponha as ações que quiser, se assentar que o Suplicante pode ser


objeto de um vínculo, apesar de não ser estável a sua existência; proponha
as ações que quiser, porém no meio de tudo o Suplicante há de ser Solto;
muito mais porque preso se lhe dificultam os meios de sua defesa.

Atente este Augusto e Digníssimo Congresso na ferida que sofreu a


Constituição neste negócio, e o Suplicante espera que os seus males se
melhorem.

Fl.2v

Para os Augustos e Digníssimos Senhores que providenciem este


caso com a urgência que elle exige.

E.R.M.

Exmo. Procurador Maurício Miguel Boom

Reconheço e afirmo em fonte por ser do.

Fl.2

atendessem que o Suplicante como liberto é um cidadão que como


tal não pode ser preso, e menos continuar a existir em prisão, sobre pen-
dência de questões civis, e sem a presença de um crime em processo!

Admira que se autorizem prisões arbitrárias, que senão faça diferen-


ça do estado antigo da escravidão do Suplicante ao estado de Cidadão de
que ele hoje logra.

Admira que conhecendo-se no processo a qualidade de Cidadão na


pessoa do Suplicante continua o mesmo processo contra ele como dantes.

Que tem o Suplicado Carneiro com o Suplicante? Proponha as ações


que quiser contra aquele Gomes e Castro que comprou e libertou o Supli-
cante, porque contra este nada mais pode ter visto que a liberdade surtiu
os seus efeitos.

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Adriana Pereira Campos
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Proponha as ações que quiser, se assentar que o Suplicante pode ser


objeto de um vínculo, apesar de não ser estável a sua existência; proponha
as ações que quiser, porém no meio de tudo o Suplicante há de ser Solto;
muito mais porque preso se lhe dificultam os meios de sua defesa.

Atente este Augusto e Digníssimo Congresso na ferida que sofreu a


Constituição neste negócio, e o Suplicante espera que os seus males se
melhorem.

Fl.2v

Para os Augustos e Digníssimos Senhores que providenciem este


caso com a urgência que elle exige.

E.R.M.

Exmo. Procurador Maurício Miguel Boom

Reconheço e afirmo em fonte por ser do.

Fl.3

Carta de Liberdade e Sentença; Petição de Agravo e teor do Acordão

Diz Delfino pardo forro que ele precisa se lhe dê certidão dos Autos
de registros que correm no Juizo do Crime do Bairo de S. José de vários
documentos que se acham juntos aqueles Autos, os quais o Suplicante
apontará ao Escrivão, e como este o não faz sem despacho.

Para V. S. se sirva em dar ao Suplicante a Certidão que pede e na


forma requerida.

E.R.M

Sim. Rio 13 de julho de 1826.

Jacinto Antunes de Matos, Proprietário do Officio de Escrivão do


Crime do Bairro da Sé por sua Magestade Imperial que Deus Guarde.
Certifico que em meu poder

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Fl.3v

e Cartório se acham [dois] autos sobre a prisão e Domínio do Mulato


Delfino e nos mesmos à folhas noventa e duas se acha a Carta de Liberda-
de de teor seguinte: Escritura de Liberdade que dá Joaquim José Gomes
da Silva e Castro ao Seu Escravo pardo por nome Delfino: Saibam quan-
tos este público instrumento de Escritura de Liberdade virem que no anno
do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e vinte e
seis aos vinte seis do mês de Maio nesta Corte e Cidade do Rio de Janeiro
em meu Escritório perante mim e Tabelião apareceu o próprio Joaquim
José Gomes da Silva e Castro residente nesta Corte presentemente e por
ele foi apresentado o bilhete da Distribuição de teor Seguinte: A Castro =
Joaquim José Gomes da Silva e Castro dá Liberdade ao pardo Delfino em
vinte seis de maio de mil oitocentos e vinte e Seis = Duarte = Dizendo-me
o interrogante perante duas testemunhas abaixo assinadas que por este
momento e de hoje para sempre confere liberdade

Fl.4

gratuitamente ao Seu Escravo pardo de nome Delfino que o proferia


livre os desembaraçados e pelos bons serviços que o mesmo pardo lhe
teve prestado pelo que poderá daqui por diante conduzir-se livremente
como se forro houvesse nascido, tratar de tudo quanto lhe convier sem
que pessoa alguma o possa embaraçar rogava portanto às Justiças de Sua
Majestade Imperial façam cumprir esta Escritura que ele Outorgante por
Sua pessoa e bens se obrigava fazê-la sempre firme e Valiosa pela célebre
de livre Vontade assim me pede lhe passe estre instrumento que lhe li e
aceitou e eu Tabelião como pessoa pública e aceito em nome do Liberto
e assinou com as testemunhas presentes Manoel de Sousa Narcísio, José
da Silva e eu Joaquim José de Castro o escrevi = Joaquim José Gomes
da Silva e Castro; Manoel de Sousa; Narcísio José da Silva; e Leopoldo
[Leitte] = Isso que me reparte e este Subscrevi e a propus em em público
e passo em

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Fl.4v

o dia, mês e ano ao princípio declarado e eu Joaquim José de Castro


a subscrevi e assinei em público e passo = Em testemunho de Verdade =
estava o Sinal público = Joaquim José de Castro = Número duzentos e
oitenta digo e oito = Lugar do Selo = Pagou quarenta Réis de Selo. Rio,
vinte e nove de maio de mil oitocentos vinte e seis = Barbosa Nogueira
= É o que continha a dita carta de Liberdade outrossim diz mesmo muito
se era e mostrava estar a Sentença que me foi apontada qual é do teor
seguinte: Vistos estes autos e Requerimentos desde folhas três até folhas
sete encaminhadas ao Excelentíssimo Senhor Castro digo Excelentíssimo
Conselheiro Intendente Geral da Policia e por ele [demarcados] pelo Ofí-
cio a folhas duas no Juízo do Crime do Bairro da Sé e São José e os mais
requerimentos que de uma e outra parte se requeiram e os Embargos a
folhas cinquenta e sete e razões depois deles.

Fl. 5

Se mostrou que tendo o Tenente Coronel João Carneiro da Silva feito


prender no lugar das Estivas caminho da vila de Campos o pardo Delfino
que diz ser pertencente ao Vínculo de Quissamã de que ele Tenente Co-
ronel é atual Administrador o fizera conduzir para esta Corte na sumaca
Catana para o destino por ele apontado mais que foi recolhido ao Cala-
bouço de ordem do mesmo Excelentíssimo Conselheiro a requerimento
de Joaquim José Gomes da Silva e Castro, resultando pretenderem tanto o
mencionado Tenente Coronel como o dito Gomes haverem a si o mesmo
pardo o qual hoje aparece com a Escritura de Liberdade a folhas noventa
e duas declarando pela Sua pessoa e liberdade = E porque o Embargado
José Gomes mostra pelo título mesmo terceiro a folhas que ele comprara
o dito pardo a Guilherme no [Dans?] a quantia de cuja compra se pagou a
[Cisa] como se vê do mesmo título e

Fl.5v

pelas testemunhas, desde folhas quarenta e nove até folhas cinquenta


e dois que o pardo aprisionado é o próprio Delfino por ele possuído e que

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fora preso no Caminho para esta Corte para onde o mesmo Gomes man-
dava com o Passaporte a folhas sete se passado a quinze de março deste
ano, julgo esta prova feita bastante para em virtude dela ser o Embargado
mantido a face da Lei na posse do Seu Escravo = Nem obtida a punição
que dispora dos Requerimentos e alegados do Embargante, o Tenente Co-
ronel João Carneiro, por isso que deles e mesmo das testemunhas que lhe
foram tomadas ao perpetuam [Reu?] nem [sam?] que se acham no apenso
apenas se conclui que o mencionado pardo é pertencente ao Vínculo de
que é ele Administrador a questão que é toda de domínio e que disse ser
tratada e provada com Juízo competente, isto é em Juízo Cível, ainda
disse convencer ao

Fl.6

mesmo Gomes de [injusto?] possuidor ou porque não fosse feita a a


doação do pardo aquele Guilherme que o vendeu ou porque fosse ela feita
sem direito e poder ou por outra qualquer razão que lhe assista sem que
fosse aparecer neste Juízo o papel de doação por ser ele só necessário para
a dita questão de domínio e no Juízo onde ela for tratada e não neste em
que se trata de entregar o pardo a quem dantes o possuía, que se não puder
julgar ser o Embargante pelo o ter feito prender e remeter para esta Corte
por isso que o simples ato de apreensão não pode conferir posse quando
não tinha sido [convencido?] judicialmente o Embargado que o tinha em
seu poder e o mandava a ser escravo segundo o Espírito da Ordenação
Livro Quatro título cinquenta e oito = Portanto, resutando os Embargos à
folhas oitenta e cinco pelas provas

Fl. 6v

expedidas e o mais a que dos autos se colege e disposição de Direito


e em virtude da Liberdade a folhas noventa e duas que deve ser garan-
tida bem como deveria ser aquele Direito do Embargado que a pessoa
em quanto não for convencido de injusto possuidor seja o pardo Delfino
posto em Liberdade depois que tiver prestado fiança idônea e bastante
a responder pela sua pessoa e o mais que se julgar em Juízo competen-

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te onde o Embargante [issar?] de sua Ação que lhe fica salva pois que
não é bastante para detenção do mesmo Escravo digo pardo na prisão a
cuja alegação de [posse?] da pessoa do Embargante Tenente Coronel João
Carneiro pareceu que este tem para tal caso os Recursos e mais apontados
pela Lei e pague o mesmo Embargante as custas em que o condeno pelo
processo de

Fl.7

Junho de mil oitocentos e vinte e seis = Francisco José Alves Carnei-


ro. É o que continha a dita sentença outro sem dos mesmos autos. Se na
e motrava estar a Petição de Agravo que me foi apontada a folhas cento e
treze qual é do teor seguinte: Senhor, à Vossa Majestade Imperial se agra-
va Delfino pardo forro do Benemérito Doutor Francisco José Alves Car-
neiro, Juiz nomeado pelo Regente em lugar do Doutor Nicolau da Silva
Lisboa, Juiz Criminal da Barra da Sé, e ciente sua queixa no seguinte: Em
autos de Requerimento em que João Carneiro da Silva tem encabeçado
o Agravante levando-o preso ao Calabouço e fazendo-lhe beber todos os
horrores da mais cruel perseguição como dos mesmos autos se vê desde
muito antes de abril deste ano e em que passara a figurar

Fl.7v

Joaquim José Gomes da Silva e Castro, Senhor que fora do agravan-


te proferiu-se depois de muita chicana só a fim de eternizar a prisão do
agravante a sentença a folhas noventa e nove nisso favorável ao agravante
então já liberto pela escritura de folhas noventa e duas = Nessa senten-
ça se mandava soltar o Agravante prestando primeiro fiança e deixou-se
ao Agravado Direito salvo para intentar as ações Civis e Criminais que
quisesse ou tem deste aos terrores pânicos que finge ter do Agravante
ou acerca da desculpa da validade ou não validade de papel de venda
de folhas seis ou da Escritura de Liberdade de folhas noventa e duas =
[Recorreu] então o Agravante já farto da prisão que sofria como Escravo
que se lhe mandasse passar as Ordens de Soltura visto que a qualidade de
escravo tinha desaparecido e em seu

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Fl.8

lugar encontra a de Cidadão este Requerimento em folhas cento e


oito e que já a folhas noventa e uma precisamente havia sido feita, teve
o deferimento de folhas cento e oito negativa estribando-se o doutor Juiz
dizendo indicar que apelada sentença como estava já não lhe cumpria a
ele nada definir. Deste despacho é que nasce o Agravo: O Agravante já
não é o escravo Delfino de Joaquim José Gomes com quem se começara
o pleito, já há um cidadão como os que do ventre livre nascem e portanto
aquelas leis que o título oitavo do Projeto da Constituição e capítulo ter-
ceiro decretou para com estes militam em favor daqueles e portanto será
um atentado contra as legisladas garantias a prisão do Agravante e con-
servação deste Estado violento. Ninguém será preso sem culpa formada?
Onde esconde a culpa? A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos
dos cidadãos

Fl. 8v

brasileiros que tem por base a liberdade, a segurança individual e a


propriedade é garantida pela Constituição do Império onde se tem guar-
dado estes Direitos ao Agravante? Antes de haver a sentença apelada já
o Agravante havia Requerido como cidadão a sua soltura. A prisão trás a
agravaria irreparável sobre esta prisão não é que precipuamente se con-
troverte nestes Autos e portanto e em atenção à injustiça que se tem fei-
to ao agravante em se ordenar a sua prisão como Escravo, essa prisão
se devesse quanto antes mandar relachar como liberto e Cidadão que é.
Portanto espera-se que se mande cumprir o Despacho específico = Pede
a Nossa Majestade Imperial que mande subir os autos na forma da Lei =
E receberá mercê = Osebio Saraiva de Carvalho. É o que continha a dita
Petição de Agravo e no censo da qual se via estar o Despacho do teor
seguinte: Re[cebam-se?] autos na forma da

Fl. 9

da lei estando por agravo. Rio quatro de julho de mil oitocentos vinte
e seis = [Garces?] = É o que o continha a dita Petição de agravo [outro?]

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[Sirva?] diz [nos mais] autos se era e mostrava estar a folhas cento e
sessenta cinco o Acordão que me fez [apensado] qual é do teor seguinte:
Acordão em Relação et cetera. Não fez agravado o Agravo pelo Juíz Su-
brogado no Despacho de que se agrava porquanto não se tendo tratado do
Recebimento da apellação. Sobre os efeitos em que deve ser recebido não
podia ser deferido de outro modo. Portanto vistos os autos lhe não dão
provimento. Rio oito de julho de mil oitocentos e vinte e seis = [Garces?]
Rocha = Doutor Figueredo = Nada mais continha a dita carta de Liberda-
de, Sentença, Petição de Agravo, e Acordão que bem e fielmente aqui fez
copiar dos próprios autos a que me dá parte em fé de o que vai esta por
mim certas conferida subscrita e

Fl. 9v

Assignada e a fez passar com observância do Despacho posto na


Petição retro. Pela dada e passada com este muita Leal e Heróica Corte e
cidade do Rio de Janeiro aos treze dias do mês de julho do ano de Nas-
cimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e vinte seis e eu
Jacinto Antonio de Mattos a fiz escrever, subscrever e assinar. Jacinto
Antonio de Mattos [assinatura] confere Jacinto Antonio de Mattos

D _____1589

C. ____ 80

1669

60

Pg 380 reis de Sello

Rio 15 de Julho de 1826

Antonio Nogueira

Fl. 10

Em branco

302 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (467):289-304, abr./jun. 2015


Imperfecta Libertate: Petição ao Congresso brasileiro do liberto Delfino – 1826

Fl. 10v

A Comissão de Legislação e de Justiça Civil e Criminal examinou


o Requerimento de Delfino, pardo, que se queixa contra um Acordão da
Suplicação de 8 de julho do presente ano, alegando que tendo sido preso
por um João Carneiro da Silva à pretexto de escravo pertencente a um
vínculo encravado na Fazenda do Quissamá do Coronel João Antonio de
Barcelos, o qual fôra ali assassinado, foi defendido no Juízo do Crime
do Bairro de São José por Joaquim José Gomes da Silva e Castro, que o
havia comprado a um dos herdeiros do dito Coronel, a quem este em sua
vida o tinha doado, acontecendo que o mesmo Joaquim José Gomes no
decurso da caxesa celebrasse uma Escritura pela qual lhe conferiu a liber-
dade; e seguindo o suplicante em seu nome os termos do processo obteve
Sentença a seu favor em 1o. de julho próximo passado, mas pretendendo
ser solto, e manutenindo na posse de sua liberdade em virtude da mesma
Sentença, assim requereu ao Juíz, o qual indeferiu o Requerimento com
fundamento de estar a Sentença appelada, e agravando deste despacho
para a Suplicação, este Tribunal não deu provimento ao Agravo pela mes-
ma razão de ser ter apelado, e não se saber que a apelação seria recebida
em um só efeito, ou em ambos, por isso que ainda não tinha sido recebi-
da. A Comissão à vista do exposto, e dos documentos, que o Suplicante
ajuntou, é de parecer que tanto o Juíz de cujo despacho se agravou, como
o Tribunal da Suplicação que não deu provimento ao Agravo, procederão
juridicamente, e que nenhuma Lei se infringiu; porque uma vez interposta
a apelação não pode se executar a sentença de que se tem

Fl. 11

apelado, enquanto não é confirmada ou revogada na Instância Supe-


rior, salvo que a apelação é recebida em um só efeito, e neste caso não se
achava a de que se trata quando o suplicante requereu a soltura. Acresce
que o suplicante não pode dizer-se Cidadão enquanto não for ultimamen-
te decidida a questão que pende sobre a sua liberdade. Portanto, a Comis-
são julga indeferível o Requerimento.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (467):289-304, abr./jun. 2015 303


Adriana Pereira Campos
Kátia Sausen da Motta

Paço da Câmara dos Deputados, 8 de agosto de 1826.

José da Cruz Ferreira

Antonio da Silva Telles

Antonio Augusto da Silva

Em 7 de maio foi lido e aprovado.

Fonte: CEDI (Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados). Reque-


rimento de Delfino pardo, 1826. de Delfino pardo, 1826.

Referências Bibliográficas
Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de
Janeiro para o ano de 1852. Rio de Janeiro: Editora Eduardo e Henrique Laem-
mert, 1852.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico
Brasileiro (Volume 3: Letras Fr-Jo). 1827-1903.
MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, Tâmis Peixoto. Azeredo Coutinho,
Visconde de Araruama e a Memória sobre o Comércio dos Escravos de 1838.
Revista de História, n. 152, 2005, p. 99-126.
ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro 4.
SILVA, Marco Polo T. Dutra. Macaé – um esboço histórico e genealógico:
a freguesia de N. Sra. do Desterro do Capivari. Disponível em: http://www.
marcopolo.pro.br/genealogia/paginas/fam_macae_cap.htm (Acesso em: 21 fev.
2015).
SILVA, Paulo R. Paranhos da. A casa de suplicação do Brasil. Rio de Janeiro:
Imprenta, 1992.
SOARES, Márcio de Sousa. Ad Pias Causas: as motivações religiosas na con-
cessão das alforrias (Campos dos Goitacases, 1750-1830). Caderno de Ciências
Humanas – Especiaria, v. 10, n.18, jul.-dez. 2007, p. 389-425.

Texto apresentado em fevereiro/2015. Aprovado para publicação em


abril/2015.

304 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 176 (467):289-304, abr./jun. 2015

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