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PALAVRAS 12 – DOSSIÊ DO PROFESSOR

Manual, p. 12

Transcrição do excerto do Programa Literatura Aqui – Vamos morrer de amor… na Literatura! (duração 10:54 min)

© AREAL EDITORES
(Pedro Lamares – narrador)

É na biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda que está guardada a mais antiga coleção de poesia
trovadoresca da Idade Medieval. O Cancioneiro da Ajuda reúne centenas de cantigas de amor.
Nelas, encontramos uma voz masculina, sentimental, que canta a beleza e as qualidades de uma
senhora inatingível. É a dimensão do sofrimento do poeta que prevalece. A morte de amor é tema
de várias cantigas, e foi desenvolvido das mais diversas maneiras pelos poetas galego-portugueses.
A morrer de amor, ou por falta dele, Literatura Aqui.

(poema Morrer de Amor, de Maria Teresa Horta)


Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso

(poema Cuidado, de Casimiro de Brito)


Cuidado. O amor
é um pequeno animal
desprevenido, uma teia
que se desfia
pouco a pouco. Guardo
silêncio
para que possam ouvi-lo
desfazer-se.

(poema Blues da morte de amor, de Vasco Graça Moura)


já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval de um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
TRANSCRIÇÕES

o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,


minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

(poema Álbum, de Wisława Szymborska, tradução de Júlio Sousa Gomes)


Na minha família ninguém morreu de amor.
Se alguma coisa houve não passou de historieta.
Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?
Alguns envelheceram até ganhar bolor.
Ninguém a definhar por falta de resposta
a uma carta molhada e dolorosa.
Apareceu sempre por fim algum vizinho
com lunetas e uma rosa.
Ninguém a desfalecer no armário de asfixia
de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar
a nenhuma impediram de ficar na fotografia.
E nunca no espírito satânico de Bosch!
E nunca pelos quintais de arma em punho!
De bala na cabeça teve a morte outro cunho
e em macas de campanha alguém os trouxe.
De olheiras fundas como após grande folia,
até esta aqui de carrapito extático,
se fez ao largo em grande hemorragia
mas não por ti, ó bailarino, e com viático.
Talvez antes do daguerreótipo, alguém,
mas dos deste álbum, ninguém, que eu verifique.
Tristezas dissiparam-se, os dias sucederam-se,
e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.

(Pedro Lamares – narrador)


Alexander Pushkin, poeta, considerado o fundador da literatura russa moderna, morreu de
amor. De amor pela sua mulher. Natasha era tida como a mais bela de São Petersburgo, e acabou
por chamar a atenção de um charmoso oficial francês. Enciumado, Pushkin desafiou-o para um
duelo. O militar francês vence o poeta russo. O grande Pushkin tinha 37 anos e morreu com o
coração partido, como tantos outros morrem de amor na literatura.

(Narradora)
Romeu e Julieta, tragédia escrita por William Shakespeare no final do século XVI, é uma das
mais populares do autor inglês e também uma das mais contadas e adaptadas ao longo dos tempos.
O romance de dois jovens que preferem a morte a viver um sem o outro, ainda hoje arranca suspi-
ros. Mas, afinal, quando se começa a morrer de amor na literatura?

(Ernesto Rodrigues, professor da Faculdade de Letras)


Na tradição ocidental, começamos no século XII. Há duas histórias notáveis, uma de Abelardo
e Heloísa e outra de Tristão e Isolda.
Abelardo tem 40 anos, é um grande filósofo, em França, e conhece uma aluna de 18. É impor-
tante perceber aqui a diferença de idade, mas sobretudo eu falarei de poucos heróis tão velhos
TRANSCRIÇÕES

quanto o Abelardo. Porque geralmente estes heróis que morrem por amor são heróis sempre ou
adolescentes ou jovens. E ele, Abelardo, é castrado. Recolhem a um convento, ambos, e Abelardo
escreve-lhe cartas. São poucas cartas, e é isso o que faz a fortuna, a felicidade hoje dos estudiosos,
porque nótemos correspondência verdadeira deles. E segundo a lenda e também uma crónica de
Gregório de Tours, quando abrem o túmulo para sepultar Heloísa, os braços de Abelardo abrem-se
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também. E esta ideia do amor, abraçados para além da vida, depois vai influenciar muita
literatura.
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(Narradora)
Mas enquanto a história de Abelardo e Heloísa foi real, tudo indica que o amor de Tristão e
Isolda não passou de pura ficção. Tristão, órfão, é criado pelo tio, e tomando um filtro do amor

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apaixona-se por aquela que virá a ser a mulher do tio. O amor, embora correspondido, será fatal
para ambos.

(Ernesto Rodrigues, professor da Faculdade de Letras)


Tristão e Isolda têm a maior fortuna literária, as versões são várias, e isso complexifica a leitura
que possamos fazer de Tristão e Isolda. Agora, perante estes amores que são essencialmente
franco-irlandeses, se quisermos, nós temos os nossos amores e isso sim, o perder-se por amor é o
nosso Pedro e Inês. Esse é o grande exemplo de um amor que leva à perdição.

(Narradora)
D. Pedro e D.ª Inês de Castro são protagonistas da grande história de amor que se cruza com a
história de Portugal no século XIV. Razões de Estado levam à execução da mulher que D. Pedro
ama e a quem vingará a morte. A literatura também lhes faz justiça.

(Ernesto Rodrigues, professor Faculdade de Letras)


D. Pedro, quando toma o poder, decide logo dar um destino àquele amor, cristalizar aquele
amor, decidindo que ela será rainha depois de morta. Foi rainha aquela “mísera e mesquinha”,
como diz Camões n'Os Lusíadas.
Basta ler A Castro, de António Ferreira, para perceber que aquele amor foi santificado, passou
mesmo pelo casamento.

(Narradora)
Será no período do Romantismo que o amor faz mais vítimas na literatura. Data de 1774 a
publicação do livro Os sofrimentos do jovem Werther, cuja autoria é do autor alemão Goethe. A
obra teve repercussões inesperadas.

(Ernesto Rodrigues, professor Faculdade de Letras)


Conta-se que depois desse livro houve muitos suicídios na Europa. As pessoas liam e suicida-
vam-se. É o chamado efeito do wertherismo, mas nós não podemos contabilizá-lo. Esse sofri-
mento, essa paixão, vai dominar sobretudo o século XIX na Europa, embora no Camilo as teclas
sejam variadas, o colorido seja muito mais vasto, por exemplo, a história de Mariana no Amor de
Perdição; esse sim que é um amor de perdição. Enquanto Mariana pode silenciosamente atirar-se
atrás do corpo de Simão que fora atirado ao mar, no caso de Simão, Simão amava-se mais a si pró-
prio do que a Teresa. Ele quer perder-se, independentemente de quem deixe.

(Narradora)
Mas se é certo que há muitas mortes por amor na literatura, também é correto dizer que nem
todos morrem do mesmo modo.

(Ernesto Rodrigues, professor Faculdade de Letras)


Há vários tipos de morte, sobretudo na base do crime, o assassínio, o suicídio, morrer de tris-
teza, ou então para defender a castidade e a fidelidade. Há várias mortes que podem não ser físicas;
recolher-se num convento é uma morte para a vida. Os duelos e outras formas são menos comuns,
embora muitos morram de tísica, como se dizia na época, de tuberculose, a verdade é que muitas
vezes a tuberculose é uma solução, é um mau ingrediente dos romancistas para matar criaturas.

(Narradora)
Volvidos os tempos e chegados ao século XX, é caso para perguntar se ainda se morre de amor
na literatura.

(Ernesto Rodrigues, professor Faculdade de Letras)


Há muita literatura de aeroporto, ou de estação de caminho de ferro, que não entra no cânone,
no tipo de literatura de que estamos a falar, e aí sim morre-se muito. Agora nesta literatura mais
TRANSCRIÇÕES

ou menos canonizada, aí hoje não se está a morrer, porque todos nós somos bastante, por um lado,
ou cínicos ou então acreditamos pouco nesses finais, e sobretudo convém-nos que as histórias
terminem bem. Porque desde que a história termine bem, o livro vende melhor, hoje.

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