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DOSSIÊ DO PROFESSOR PALAVRAS 12

TEXTOS COMPLEMENTARES

SEQUÊNCIA 0 – Diagnóstico Texto 4

Apreciação crítica do romance


Não há tantos homens ricos como mulheres bonitas que os mereçam,
Helena Vasconcelos
Jane Austen ainda tem os seus (poucos) detratores, que talvez lhe não perdoem (nem
compreendam) que, a partir de uma tão limitada e doméstica “experiência de vida” tenha escrito seis
romances canónicos. Mas, duzentos anos após a sua morte, o que sobretudo surpreende é que a
multidão de leitores (e de outros fanáticos admiradores) da autora de Persuasão não tenha parado de
crescer. E a obra da escritora inglesa soma já uma tal quantidade de edições e traduções, de
adaptações e versões (cinematográficas e televisivas), de estudos e teses, de citações e homenagens,
de paródias e recriações (literárias e outras), que, quando soube que o romance de estreia de Helena
Vasconcelos revisitava o “universo” de Austen, não consegui deixar de abordá-lo com alguma
inquietação. Que depressa se revelou infundada. Não Há Tantos Homens Ricos Como Mulheres
Bonitas Que Os Mereçam é, no seu programa algo provocatório e na sua quase perfeita execução um
exímio romance (podem aproveitar a frase para futuras badanas).
A protagonista é uma jovem mulher da classe média lisboeta, com pais cientistas muito viajados e
casa nas Avenidas Novas, que, “contrariando o espírito do tempo, decidiu seguir uma carreira
dedicada ao estudo das Humanidades”. (…) Leitora “voraz”, que “aprendera quase tudo nos livros”,
terá aprendido com Jane Austen que o “prazer sensato” não só é alcançável como também desejável.
E eis que a nossa austeniana heroína (Ana Teresa também quer ser feliz à sua maneira e não lhe falta
sensibilidade e bom senso) duplamente, e com malícia, nos interpela e provoca: ao fazer da
banalidade de uma vida doméstica imaginada um ideal (…) e ao propor-se guiar a sua mesma
existência pela “filosofia expressa por Austen nos seus romances”. Tal fé na literatura talvez seja
quixotesca, mas Ana Teresa, ironicamente, tem os pés e a imaginação bem assentes na terra e parte
para Londres. Quer escrever uma tese sobre Austen e sobre a felicidade.
A primeira parte do romance (…) trata das andanças da heroína pela Inglaterra, em busca da vida e
obra de Jane Austen. A narração é feita na terceira pessoa, por um narrador insuspeito e seguro, com
sobriedade e clareza, muito saudavelmente desprovidas de qualquer ênfase. Por tão raro, o feito até
parece novidade. Correm paralelamente a história de Ana e a de Jane. Nenhuma delas parasita a
outra. E tal equilíbrio, em casos semelhantes, não é menos raro. (…)
Regressada a heroína a Lisboa, há uma evidente alteração do tempo e do ritmo do romance, na
segunda parte e na brevíssima terceira. Surge uma personagem secundária que em alguns
segmentos assumirá, a partir daí, a narração. Esta personagem, um ex-professor de Filosofia Política
que ganhou muito dinheiro escrevendo best-sellers (de ficção, certamente) sob pseudónimo, servirá
também, mas não fundamentalmente, para ilustrar um olhar “misógino” sobre a autora de Orgulho e
Preconceito. E também Marianne, a avó de Ana Teresa, que já conhecemos desde a primeira parte do
romance (…) e que preferiria que a neta “se entregasse a Shakespeare” e não à prudente (para não
dizer conformista) Austen, desata a contar a sua própria história. (…) Esta mudança de foco induz
também um olhar retrospetivo sobre certos episódios da primeira parte do livro. Há, porém, uma
percetível precipitação do romance em direção ao seu fim. Que, embora, caprichoso, não nos proíbe
que imaginemos a nossa heroína, despachada a tese sobre Jane Austen e a felicidade e
acomodando-se à vida lisboeta (“Quem disse que Lisboa é uma cidade bonita?”), não nos proíbe,
dizíamos, que imaginemos a nossa heroína feliz. Pelo contrário.

Mário Santos, “Finais felizes”, Público | Ípsilon, 18 de março de 2016, p. 27.

Tópicos de análise
1. Assunto do texto.
2. Organização interna.
3. Atualidade do tema.
4. Confronto entre duas apreciações críticas.

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