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APOSTILA 1
PSICOLOGIA E TRABALHO HUMANO
Autores: Milton Athayde*, Wladimir Ferreira de Souza* e Vladimir Athayde**1

Esta disciplina pretende colaborar para compreender a dimensão psicológica


presente em sua vida e especialmente no seu futuro estágio profissional e, concluído
o curso, em seu trabalho.
Vamos iniciar nossa reflexão sobre uma experiência absolutamente fundamental
para nós, humanos, vivermos: O TRABALHAR.
O que é viver, o que é trabalhar, que mundo é esse, o do trabalho? Ou que mundos
são esses, os do trabalho, considerando seu caráter complexo e de múltiplas faces.
Trabalho-produto e trabalho-processo. Um trabalho que pode se configurar em um
produto técnico, como um automóvel, ou um serviço, como em uma consultoria. Quais
as características destes produtos, como o trabalho se processa, como nele nos
comportamos, em que contextos organizacionais, estabelecendo que relações, ao longo
dos tempos e na sociedade atual? E no futuro, ele poderá ser diferente?

1. Trabalhar: uma experiência constitutiva e estruturante


Trabalho é uma palavra polissêmica, usada com diversas significações. Só na
sociedade capitalista ela passa a ser utilizada como uma categoria universal e fundadora
de toda a vida social. O mais frequente hoje é que as pessoas considerem o trabalho como
algo evidente, óbvio. A Psicologia, enquanto ciência, interroga esta obviedade. Sim, pois
não se trata de uma experiência simples, banal, embora esteja sendo simplificada e
banalizada com certa frequência e até mesmo degradada. Na verdade, trata-se de nossa
forma de estar no mundo, uma experiência vital, incontornável, constitutiva da espécie e
estruturante da vida psicológica. Ela é complexa, uma potência enigmática, exigindo
muito cuidado de cada um de nós para não deixar decair sua nobreza, gerando perda de
sentido e adoecimento.
O mais frequente é que se considere como sinônimos TRABALHO e EMPREGO,
como se o trabalhar se reduzisse ao plano econômico e jurídico. Ao perguntar a um adulto:
- “o você que faz?”, a resposta em geral remete ao emprego da pessoa. Nesta situação ele
tem um contrato – formal (jurídico) ou informal (de palavra) – com alguém ou uma

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* Docentes do Departamento de Psicologia Social e Institucional do IP/UERJ e membros do Grupo de
Pesquisa Actividade UERJ/CNPq, responsáveis pela disciplina CHO –IP/FAF/UERJ, em 2014/2.
** Docente da FAETEC-RJ, membro do Gr Pesq Actividade.
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organização, em que vende seu conhecimento, sua força de trabalho em troca de uma
remuneração, um SALÁRIO. Ou seja, trata-se neste caso do regime de salariato, uma
relação empregatícia juridicamente estabelecida entre um trabalhador e aquele que o
contrata (seu patrão). No Brasil, só no século XX, esta relação virou Lei, o que se chama
vulgarmente de “carteira assinada” – a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) – leis
criadas e consolidadas no período de governo de Getúlio Vargas. Estar empregado
representa mais que a sobrevivência, é um modo de estar socializado, de ter
reconhecimento social, de ter prestígio intra e extra grupal.
Como já se pode perceber, não foi sempre assim na vida da espécie humana, nos
diferentes tempos históricos, nas diferentes sociedades. E mesmo hoje esta dificuldade de
entendimento continua presente, sendo mais evidente quando se trata de trabalho
doméstico. Só mais recentemente é que foi assegurado que o serviço prestado por alguém
na casa de outro também é trabalho e deve ser juridicamente considerado emprego. Não
obstante, o trabalho realizado por mães e esposas no âmbito doméstico quase nunca é
considerado trabalho. Ele é naturalizado como uma atividade inerente às mulheres. No
caso do Brasil, esta determinação de gênero se cruza com a cultura escravista.
TRABALHO NÃO É SINÔNIMO DE EMPREGO!
A TROCA – SEMPRE DESIGUAL – ENTRE TRABALHO REALIZADO E
SALÁRIO PAGO FOI INVENTADA EM UM DETERMINADO MOMENTO DA
HISTÓRIA HUMANA

Encontramos na obra de Gonzaguinha uma música – Um Homem Também Chora


(Guerreiro Menino) – cantada também por Fagner, em cuja letra ele diz:
Um homem se humilha E sem o seu trabalho
Se castram seu sonho O homem não tem honra
Seu sonho é sua vida E sem a sua honra Não dá pra ser feliz
E vida é trabalho Se morre, se mata Não dá pra ser feliz!

Claro, toda poesia permite várias interpretações, vamos ter a ousadia de considerar
que ele está falando muito mais de ter um emprego. A vivência de felicidade,
tranquilidade, não pode ser comprada no mercado, ela é inventada, construída,
experimentada, especialmente no plano psicológico, nas relações humanas e sociais.
Na sociedade em que vivemos, sem emprego não somos nada?!... Pior: sobreviver
na situação de desemprego dá muuuuito trabalho! Além de preocupar-se
permanentemente com o perigo de não entrar ou retornar ao mercado de trabalho (assim
como o risco do desemprego é o pesadelo dos que estão empregados). Que contradição!
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Trata-se, por um lado, de desumanização, quando se impede que um humano exercite esta
experiência decisiva para sua própria humanidade. Por outro lado, há que subsistir... e
para isso pessoas são submetidas a experiências que destoam das conquistas societárias.
Estamos convivendo também com a tendencial ampliação da “informalidade”
(como dizem economistas, sociólogos e juristas). Em outras palavras, o que está sendo
imposto, na verdade, é a precarização do trabalho, sua degradação. Se no capitalismo que
se instituiu nos países do norte, com a regulação societária fordista, o emprego assalariado
formal tornou-se a modalidade de trabalho dominante, a tendência vem sendo o desmonte
do que foi sendo estabelecido no pós-Segunda Guerra.

2. Trabalhar não necessariamente adoece, mas pode ser sim nocivo...


Outra figura da música popular – Ed Mota – na música Vamos dançar (autoria dele
com Rafael Cardoso) nos canta o seguinte:
Já dirigi automóveis Vamos dançar lá na rua
Já consumi capital Vamos dançar pra valer
Eu não nasci pra Já decidi que o dinheiro Vamos dançar enquanto é
trabalho Não vai pagar, tempo
Eu não nasci pra sofrer não vai pagar Nos aplicar a viver
A minha paz

Quando ele nos canta que não nasceu “pra trabalho”, pois não nasceu “pra sofrer”,
na verdade ele está se referindo a uma dada forma de trabalhar que se caracteriza como
pura exploração, dominação, trabalho nocivo a ser mesmo recusado.
O TRABALHO NÃO É SEMPRE ESCRAVIDÃO, ELE TEM UMA DUPLA
FACE:
PODE SER POSITIVO PARA A SAÚDE, PARA VIVER MELHOR
PODE SER NOCIVO, GERAR SOFRIMENTO ADOECEDOR

Vital, constituinte e estruturante, o trabalho tem se revelado na história humana até


aqui, como atividade contraditória, paradoxal. Nas sociedades de produção doméstica –
como a dos indígenas brasileiros, o que denominamos experiência-trabalho não tinha um
único nome. E todas as atividades eram atravessadas pelo sagrado, não visando
acumulação de riqueza, evitando-se o caminho da guerra entre classes e o poder de
Estado.
Na Grécia antiga para designar o que chamamos hoje de trabalho fazia-se uso de
mais de um vocábulo e o chamado trabalho “manual” era menosprezado.
No ocidente, a condição humana trouxe as marcas da cultura judaica e cristã. No
caso da cristandade pode-se verificar um processo que não é unívoco. Considerando o
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Velho Testamento, por um lado (no livro do Gênesis) pode-se perceber um Deus ativo,
trabalhador, que cria o mundo em seis dias e repousa no sétimo. Por outro lado, trabalho
é considerado castigo, condenação, penitência, meio de expiação do pecado original. Com
o desenvolvimento do cristianismo, já na Idade Média, percebe-se uma polarização, o
trabalho continuou sendo visto como punição, porém servindo à saúde do corpo e da alma,
como nos mosteiros medievais (“regras monásticas”): dever-se-ia alternar trabalho
manual com oração e limitar-se à satisfação das necessidades básicas da comunidade
(evitando a acumulação). É neste contexto da vida monástica que aparece, desde o século
VI, a figura de uma fadiga patológica: a preguiça (como pecado: ociosidade, “mãe de
todos os vícios”), um relaxamento da alma, que só o trabalho e a oração poderiam
erradicar. Na Europa, trabalhar passa a ser entendido como obrigação (para os pobres),
codificado no Direito (Inglaterra: “Estatuto dos Trabalhadores”, 1349). Na Europa,
internação dos “vagabundos” no chamado Hospital Geral, deportação para as colônias
(como o Brasil), até mesmo a pena de morte (a regra, no Brasil, frente aos indígenas e
escravos transplantados da África).
No Renascimento, as fronteiras geográficas foram ampliadas pelas navegações,
assim como as descobertas científicas ofereceram uma nova percepção do universo: a
figura do Homem inverte a figura de Deus, emergindo uma cultura “humanista”: o
trabalho (inclusive o dito “manual”) passou a ser visto como expressão da força do
homem: cria-se a expressão “artes mecânicas”, ao lado das “artes liberais”. Ao mesmo
tempo, uma nova significação religiosa se acopla a esta lógica, no interior da Reforma
Protestante2: uma nova moral do trabalho se constituiu, entendendo-se que a rigorosa
dedicação profissional tinha um fim em si (permitindo manifestar no cotidiano o amor de
Deus), dignificando o homem. No entendimento de diversos pesquisadores (como Max
Weber) foi esta cultura que representou o “espírito do capitalismo” (ascetismo burguês
puritano, cujo enriquecimento aparece como sinal de sua boa conduta no mundo, de sua
predestinação) e deu base para a emergência do modo de produção capitalista. Enfim, a
positividade do trabalho vem à cena.
OU TRABALHO É CASTIGO PELO PECADO CAPITAL... MAS PODE TORNAR-
SE ÚTIL. OU TRABALHAR É EXPRESSÃO DA FORÇA DO HOMEM E O
DIGNIFICA NO EXERCÍCIO DE UMA PROFISSÃO PARA A QUAL TENHA
VOCAÇÃO. OU...

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Reformulação doutrinal iniciada na Alemanha por Lutero, no século XVI, desenvolvendo-se
inicialmente pela Europa do norte. Principal discípulo: Calvino (Calvinismo).
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Retomando o que dissemos, encontra-se em muitos textos uma visão estreita desta
história. Diz-se que a palavra trabalho, em latim, tem a mesma base da palavra tortura:
TRIPALIUM. Trata-se um instrumento de três pontas, usado na agricultura e na
veterinária, seja para ferrar ou tratar um animal de maior porte, seja para ajudar em
tratamentos de humanos e partos difíceis. Ok, também usado para o castigo, a tortura.
Enfim, esta última foi uma das possíveis utilizações desta ferramenta. Ela foi usada
também para partos difíceis, impossíveis mesmo, caso não se usasse o tripalium... Assim
como se poderia perguntar: no Paraíso, ao cuidar de si e da mãe terra, Adão e Eva já não
trabalhavam?
Só a partir de um determinado momento histórico se configurou um quadro em que
um único vocábulo passou a designar um complexo e amplo conjunto de atividades. No
caso do Brasil, o trabalho não chegou com a invasão europeia, quando se tentou escravizar
os naturais brasileiros (os índios se recusaram e num genocídio foram dizimados, neste
processo cometendo-se também o etnocídio) e em seguida povos da África (os “escravos
negros”). Ora, os índios já viviam no Brasil há muito tempo e... trabalhavam. Assim sendo
não se pode dizer que trabalho, em todos os tempos e em todos os lugares, pode ser
percebido e experimentado como tortura.

3. A questão é: QUAL TRABALHO?


Com este conhecimento que nos oferece a Psicologia histórica, não é correto dizer
que cada um de nós só trabalha em função da exigência de subsistir. Trabalha-se para
existir. Trata-se, antes de mais nada, de uma questão de desejo, sentido. Para a
Psicologia, a questão é: QUE TIPO DE TRABALHO?
É FALSA A IDÉIA DE QUE NÃO QUEREMOS TRABALHAR.
A QUESTÃO CORRETA É: QUAL TRABALHO?
PARA QUE, PARA QUEM, ORGANIZADO SOB QUAIS PRINCÍPIOS?

O que se configurou como espécie humana foi se constituindo à medida que


interferia no mundo e o alterava, transformava. E, neste mesmo movimento, interferia no
seu mundo interno – sua inteligência, seu pensamento, suas emoções. Neste processo foi
também criando valores – não matar, cuidar da cria, dos mais velhos e doentes, por
exemplo. Podemos então afirmar que o trabalho é uma experiência humana constitutiva
da espécie e organizadora do nosso sistema psicológico. Ou seja, trata-se de uma relação
dinâmica, de mútua interferência. Não se trata apenas do humano interferindo na natureza
(A→B). Trata-se de homem e natureza em mútua interferência (A↔B).
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O TRABALHO É UMA EXPERIÊNCIA HUMANA
CONSTITUTIVA DA ESPÉCIE e
ORGANIZADORA DO NOSSO SISTEMA PSICOLÓGICO

CONCLUINDO:
Ao buscar um curso universitário, cada um/a de vocês está querendo sobreviver
nesta sociedade, conseguindo um emprego em troca de um salário, ou outras formas de
“ganhar dinheiro”. O que mais pode estar em jogo no esforço de vocês? Qual sentido
pode estar contido na busca deste curso, qual sentido pode vir a ter a profissionalização
universitária de vocês?
Todo cuidado sim, pois o horizonte aponta para o melhor, mas pode acontecer o
pior. Enfim, é preciso cuidar da vida, da natureza, do trabalho, de si mesmo e dos outros.
Registramos também que o trabalho não é necessariamente adoecedor, mas pode se
tornar; então muito cuidado! Trouxemos para a conversa algumas músicas, como a Vamos
dançar, cantada pelo Ed Mota - “eu não nasci pra trabalho, eu não nasci pra sofrer”. Nesta
música se chama atenção para um tipo de trabalho indesejável, que só se suporta porque,
na sociedade em que vivemos, se precisa de dinheiro para viver. Mas esse dinheiro pode
não pagar a conta, cobrada através de um tipo de sofrimento adoecedor, que tira a saúde,
a paz e o amor. Na língua que falamos, a gíria é uma curiosa invenção, ela tem como
riqueza uma amplitude de significados presentes em cada palavra. Então na gíria podemos
dizer que neste tipo de trabalho – nocivo – a vida “dançou”, tornando impossível “dançar
pra valer”, como se deseja.
Mas é preciso não despejar no ralo o bebê junto com a água, após o banho!
A experiência-trabalho tem se apresentado na história humana de forma complexa, tendo
ao menos uma dupla face: estruturante ou desestruturante. O convite, nesta disciplina do
curso, é para melhor compreender tudo isso e poder colaborar para a “festa” do trabalho.
Mais uma vez usando a música, lembremos aquela de Chico Buarque e Milton
Nascimento, o “Cio da Terra”:
Debulhar o trigo Decepar a cana
Recolher cada bago do trigo Recolher a garapa da cana
Forjar no trigo o milagre do pão roubar da cana a doçura do mel
E se fartar de pão Se lambuzar de mel
Enfim:
É PRECISO CUIDAR DA VIDA
DA NATUREZA, DE SI E DOS OUTROS,
É PRECISO CUIDAR DO TRABALHO!
Bom estudo, até o próximo texto!

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