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INSTITUTO DE HISTÓRIA
NITERÓI
2020
LEONARDO AMARAL DA CRUZ OLIVEIRA
Niterói
2020
(FICHA CATALOGRÁFICA)
LEONARDO AMARAL DA CRUZ OLIVEIRA
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Renato Franco
UFF
________________________________________
Leitor Crítico
Afiliações
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à UFF pela minha formação acadê-
mica ao longo deste período de graduação, em um espaço plural e aberto ao deba-
te, como também ao CNPq, que possibilitou os primeiros passos desta pesquisa pe-
la Bolsa PIBIC entre 2018 e 2019. Também agradeço os conselhos e ideias do meu
orientador, Renato Franco, como também sua paciência deste os tempos de inicia-
ção científica.
Agradeço aos amigos que fiz durante a graduação, pelo apoio, pelas conver-
sas e pela troca de ideias. Também para o amigo Wellington, que me ajudou na for-
matação deste trabalho.
Agradeço aos amigos da Igreja Presbiteriana de Barro Vermelho, da Cru
Campus e do Grupo de Estudos da Associação Brasileira de Cristão na Ciência
(ABC²) na UFF, que me ajudarem com orações, insights e debates transdisciplina-
res.
Agradeço à Jennifer, minha amiga, amada e companheira, pelo apoio nos
momentos difíceis da pesquisa.
Agradeço a toda minha família pelo apoio aos estudos acadêmicos, e princi-
palmente meus pais, pelo esforço e amparo para que concluísse essa etapa.
Por fim, agradeço e dedico este trabalho a Deus, em quem “estão escondidos
os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Colossenses 2:2), porque ele “não
menospreza nem repudia o sofrimento do aflito” (Salmos 22:24).
RESUMO
OLIVEIRA, Leonardo Amaral da Cruz. Utilidade, Interesse e Trabalho – Aritmética
Política e Ilustração Luso-Brasileira (1730-1777). Monografia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2020.
This research aims to identify the uses of Political Arithmetic (1690) and topi-
cals of this work by William Petty (1623-1687) as a justification for the decision mak-
ing of Portuguese Crown in the period when Sebastião José de Carvalho e Melo
(1699-1782) was Secretary of State. To this end, the correspondence between Se-
bastião José and his brother Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769),
when he was governor of the State of Grão-Pará and Maranhão is analyzed. The
viability of the concepts ‘Enlightenment’ and ‘Mercantilism’ to classify Pombaline poli-
tics is evaluated as well, and for that purpose, the Conceptual History methodology is
used as an investigative resource.
Introdução ................................................................................................................... 8
Conclusão ................................................................................................................. 92
Bibliografia................................................................................................................. 94
8
INTRODUÇÃO
1 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p. 202,
1983.
2 DIAS, J. S. D. S. Op.cit, loc.cit.
9
Que um país pequeno, com pouca gente, pode, por sua situação, por seu
comércio e pelas políticas que adota, ser equivalente em riqueza e poderio
a outro com território muito mais amplo e população muito maior, e
particularmente como a navegaçāo e o transporte maritimo, de maneira
excelente e fundamental, conduzem a isso.5
3 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. III, p. 38,
1984.
4 BIBLIOTECA NACIONAL de LISBOA/COLECÇÃO POMBALINA (BN/PBA). Códice 686, fls. 187 a
6 Aritmética Política não foi publicada em vida; assim como outros importantes trabalhos de
Petty, foi publicado apenas postumamente. Dos escritos econômicos, convém ressaltar
ainda: Treatise of Taxes and Contributions, escrito em 1662; Verbum Sapienti, de 1665 e
publicado em 1691, e Quantulumcunque concerning money, de 1682 e publicado em 1695
7 SANTOS, A. C. D. A. Aritmética política e a administração do estado português na segunda metade
10.
12
pelo qual era conhecido Sebastião José – foi indicado como enviado extraordinário
de Portugal a Londres. Embora não tivesse prestado serviços anteriores à Coroa, tal
fato se deu muito por conta de alguma fama de erudito, e com o amparo de seu
primo, Marco Antônio de Azevedo Coutinho (1688-1750), que tinha acabado de ser
nomeado secretário de Estado.14
Dias afirma que a missão de Carvalho e Melo em Londres era dupla: em
primeiro lugar, estava a busca por soluções para os atritos entre Portugal e
Inglaterra acerca de acordos tratando da relação de ambos no comércio e na
navegação; segundo, Carvalho deveria estudar na própria Inglaterra “os meios e
métodos” para que Portugal se lançasse “a uma política nacional de
desenvolvimento”.15 Para tanto, Carvalho chegou a frequentar reuniões da Royal
Society, onde não apenas conseguiu informações mais detalhadas acerca das
posições britânicas, como também o contato com o repetório intelectual que o levou
a montar sua biblioteca, como referido acima.16
Não apenas sua experiência em Londres contribuiu para a formação de seu
repertório político. No ano de 1745, chegou a Viena, capital austríaca, depois de
passar novamente por Londres. Carvalho e Melo havia sido enviado com a missão
de intermediar as negociações entre a corte austríaca e a Santa Sé em Roma.
Entretando, o enviado português não via com bons olhos essa missão: no retorno à
Lisboa após o período de negociações em Londres, Sebastião José teria se
convencido da necessidade da criação de uma companhia de comércio para as
Índias Orientais portuguesas. Seu envio para Viena, em sua perspectiva, era,
segundo Dias, um “presente envenenado”, a fim de afastá-lo do centro de poder
para que seu projeto da companhia não vingasse.17 Apesar disso, sua estadia em
Viena ainda se mostrou proveitosa para sua trajetória política. Lá, Carvalho e Melo
pôde observar de maneira mais próxima e prática o repertório político das
negociações entre o Império de Áustria e a Cúria romana, que lhe serviu
posteriormente como orientação política para os conflitos entre a Coroa portuguesa
e a Igreja católica, especialmente, conforme Dias, em sua fundamentação regalista e
14 Ibid. p. 2-3; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. História de Portugal. Lisboa: A Es-
fera dos Livros, 2014. p. 393-394.
15 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.
205, 1983.
16 MAXWELL, K. Op.cit. p. 6; CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op.cit. p. 73.
17 Ibid. p. 8.
14
do Marquês de Gouveia, tratava dos assuntos particulares do rei sobretudo na educação dos filhos
adulterinos. Após a morte do Cardeal da Mota procurou substituí-lo na direção dos assuntos de Esta-
do.
22 Alexandre de Gusmão (1695-1753) foi diplomata, responsável por negociar o Tratado de Madri,
assinado com a Espanha em 1750. Entre as décadas de 1730 e 1750, foi secretário particular de D.
João V e, nessa condição, teve grande influência nas decisões régias.
23 Diogo de Mendonça Corte Real (c.1696-1736) era filho bastardo, nascido em Madri, do diplomata e
morte do irmão). Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), por sua vez,
foi governador da província do Grão-Pará e do Maranhão, cujo território, à época,
cobria todo o vasto vale do Rio Amazonas, e quando retornou à Lisboa, trabalhou
bastante próximo de Carvalho e Melo como ministro dos negócios ultramarinos.
Ambos participaram significativamente dos planos políticos de Sebastião José.
Maxwell afirma que a lealdade de Paulo de Carvalho e Mendonça Furtado ao
secretário de Estado era tal que “a família era muito unida. Nem Mendonça Furtado
nem Paulo de Carvalho se casaram, e ambos combinaram seus recursos financeiros
e propriedades no interesse de Pombal”.25
25 MAXWELL, K. Op.cit. p. 3.
26 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 397.
27 Ibid. p. 399.
16
28 MAXWELL, K. Op.cit. p. 21-24; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 397-
400.
29 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 59,
1982.
30 Importantes também são os eventos da repressão à revolta dos taberneiros do Porto, em 1757, e a
expulsão dos jesuítas de Portugal em 1759, que serão mencionados adiante, quando da análise do
repertório intelectual de Sebastião José de Carvalho e Melo.
31 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 404.
17
32 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 407. Cf. MAXWELL, K. Op.cit. p. 19,
96; mencionando as reformas do sistema tributário português que entregaram sua administração ao
“primeiro-ministro”.
33 Ibid. p. 412.
34 VIEIRA, I. G. As artes de governar no período pombalino. Revista 7 Mares, Niterói, v. II, p. 99,
113, 1982
36 MAXWELL, K. Op.cit. p. 17.
37 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 392-393.
18
coroa. Naquele período, o conde de Oeiras teria trazido para si o controle o controle
sobre o Tesouro como ocupante do cargo de Inspetor-Geral, “uma vez que este ha-
via sido planeado para que seu ocupante ficasse muito próximo do monarca e, por
implicação, do primeiro-ministro”,38 esta racionalização ocorreu com um objetivo tri-
plo, que consistia em, primeiro, recuperar e organizar os registros contáveis, ainda
lidando com as complicações causadas pelo terremoto de 1755; segundo, tornar o
Estado português mais eficiente para o desenvolvimento e, assim equiparar-se às
grandes nações, como Inglaterra e França; terceiro, esta reforma buscava a inova-
ção política e superação do paradigma anterior no trato com as finanças do reino.39
Outro fator a se considerar nas ações reformistas de Carvalho e Melo é a
aplicação do Tratado de Madri de 1750, assinado pelo rei d. João V pouco antes de
seu falecimento, firmado com o rei Fernando VI de Espanha. O tratado visava reor-
ganizar as fronteiras entre os territórios portugueses e espanhóis na América, vindo
assim a substituir o Tratado de Tordesilhas de 1494, visto que ambas as nações não
respeitavam mais os limites acordados. Tendo em vista, também, os danos que o
terremoto de 1755 trouxe aos registros oficiais, iniciativas de Sebastião José como a
criação do Erário Régio (e outras que serão mencionadas adiante) tinham por objeti-
vo conhecer e proteger as riquezas de Portugal, e mais especificamente, do território
do Brasil, dos avanços territoriais da Espanha, visto o histórico de disputas pela Co-
lônia de Sacramento,40 como também evitar uma invasão inglesa, possibilidade que
cogitava Sebastião José desde 1741, quando ainda embaixador em Londres, afir-
mava que a “inveja do nosso Brasil, tão forte nos corações britânicos, no final irá le-
vá-los a atacar a América portuguesa”.41
A esta altura, cumpre ponderar acerca da existência (ou não) de um “projeto
político” idealizado por Carvalho e Melo. Mesmo após dizer que sua pretensão era
recuperar o repertório intelectual de Sebastião José, Maxwell acredita que o mar-
quês de Pombal era “um adaptador pragmático e sutil”, que foi capaz de
do século XVIII. Jornada Setecentista, 2007, p. 145. Cf. MAXWELL, Op.cit., p. 95; RODRIGUES, L.
F. M. Op.cit., p. 109, acerca do medo de anexações espanholas de territórios portugueses na
América.
41 Cf. MAXWELL, K. Op.cit. p. 4.
19
Reformador. Topoi, Rio de Janeiro, v. XII, loc.cit , Janeiro/Junho 2011. Disponivel em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100075>. Acesso em: 4
Setembro 2019. Cf. RODRIGUES, L. F. M. Op.cit., p. 105; VIEIRA, I. G. Op.cit., p. 99-100.
45 SANTOS, A. C. D. A. Op. cit. loc.cit. Dias, por sua vez, explica a relação entre prática política e
teoria política da seguinte forma: “A prática política não é um produto mecânico da teoria política.
Supõem-na, com formulação explícita ou em estado meramente implícito; reflete-a, com mais ou me-
nos entorses, com mais ou menos desvios; mas obriga-a também a correções centrais ou periféricas
e ajusta-a ao particular das conjunturas ou dos momentos. É por isso que estudar a teoria política de
uma corrente, de um governo ou de uma época não equivale a conhecer a respectiva prática política,
e vice-versa. As contradições, as indefinições, as perplexidades, os contágios, são inseparáveis do
teoria política, mas são-no, não menos, da prática política e das relações entre uma e outra. O linear
não existe no real da História e deve ser expulso da historiosofia”. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e
Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p. 185, 1983.
20
José, foi formada a partir da ocupação da cidade por cerca de 3 mil soldados, da
demissão do Senado da Câmara do Porto e da dissolvição da Casa dos Vinte e
Quatro, que representava os taberneiros. Seguiu-se a isto a aplicação de penas di-
versas a 300 pessoas, mais a condenação de outras 26 à morte, que foram enforca-
das e, mais tarde, decapitadas, e tiveram suas cabeças expostas em paus na entra-
da da cidade como demonstração exemplar do vigor do poder real.52
Além da repressão à revolta dos taberneiros, as reformas ligadas ao poder
que os jesuítas tinham em Portugal também contribuíram para que Carvalho e Melo
alcançasse poder para aplicação de seu projeto político de reforma em várias fren-
tes. Incialmente, Sebastião José parecia ser um protegido dos inacianos quando dos
primórdios de sua carreira política, e tal fato permaneceria não obstante as reclama-
ções feitas acerca das missões jesuíticas por Gomes Freire de Andrade (1685-
1763), governador do Rio de Janeiro, e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, seu
irmão, à época governador do Grão-Pará e do Maranhão. Ambos enviaram ao futuro
conde de Oeiras relatórios apontando as complicações que os jesuítas causavam às
aplicações do Tratado de Madri, como também o poderio dos religiosos sobre as
populações indígenas, que os utilizavam como mão de obra. É também preciso con-
siderar a reação dos jesuítas no Brasil à criação da Companhia Geral de Comércio,
que abriu margem para medidas violentas contra os jesuítas, como a ordenação de
prisões e deportações de críticos da Companhia, punição que alcançou também os
mercadores que partilhavam das críticas, sendo também afetados pela dissolvição
da Mesa dos Mercadores de Lisboa seguida da criação da Junta do Comércio. É
nesse período que surgem a publicação de escritos antijesuíticos do ministro de d.
José I, embora o rompimento com os inacianos tenha iniciado com a expulsão dos
confessores da família real em 1757, e após acusação de participação dos jesuítas
no processo dos Távora, que julgou o atentado ao rei d. José I, a ordem seria extinta
em todos os domínios portugueses, em 1759.53
Costuma-se identificar como um dos princípios intelectuais para as ações go-
vernativas do marquês de Pombal a doutrina de que existiria uma ordem natural
que, de algum modo, seria coerente com os propósitos divinos estabelecidos pelo
54 Ibid. p. 429-430.
55 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 114.
56 Id. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 46-52, 78-79.
57 Ibid. p. 47.
23
dendo uma “monarquia pura”, em que o rei é soberano tanto sobre a Igreja quanto
sobre os súditos e as cortes.58
Esta argumentação não fui útil apenas para justificar a expulsão dos jesuítas
de Portugal, foi também utilizada quando do rompimento da monarquia portuguesa
com a Santa Sé no ano de 1760, quando ocorreu o casamento do irmão do rei d.
José, o príncipe d. Pedro, com sua sobrinha, d. Maria, a princesa da Beira. Na oca-
sião, em junho daquele ano, o núncio apostólico havia sido expulso pela demora em
buscar a aprovação da cerimônia em Roma, o que foi visto como um insulto; em ju-
lho, o enviado português a Roma e os residentes portugueses na cidade foram ex-
pulsos.59 O rompimento com o papado, que durou nove anos, foi um período em que
o conde de Oeiras teria iniciado reformas mais efetivas em prol da “secularização”
do Estado, pondo a administração da Igreja em Portugal sob gerência mais severa
da Coroa, e trazendo reformas no sistema educacional que, anteriormente dominado
pela escolástica dos jesuítas, agora passaria a ser direcionado por uma proposta de
racionalização por meio do estudo do jusnaturalismo e das obras de Francis Bacon
(1561-1626), René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704) e Isaac Newton
(1643-1727).60
58 Ibid. p. 53-54.
59 MAXWELL, K. Op.cit. p. 99; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 406. Aqui,
diferente de Maxwell, é relatado apenas que o núncio apostólico não foi avisado da cerimônia.
60 MAXWELL, K. Op.cit., p. 10-14.
61 Cf. MONTEIRO, N. G. Kenneth Maxwell: Pombal, the Paradox of the Enlightenment. E-Journal of
62 Em BOXER, C. R. The Portuguese Seaborne Empire, 1415- 1825. Oxford, 1963. p. 191 apud
MAXWELL, K. Op.cit. p. 1-2.
63 MAXWELL, K. Op.cit., p. 10. Cf. RODRIGUES, L. F. M. Op.cit., p. 105.
64 CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op.cit., p. 65-88
65 Ibid. p. 69, 82.
66 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 45.
67 KOSER, R. Die Epochen der absoluten Monarchie in der neueren Geschichte, Historische
Zeitschrift, n.61, p. 246-287, 1889), mencionado em OUTRAM, D. The Enlightenment. 4ª. ed. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2019. p. 27.
68 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 45.
25
69 Ibid. p. 112.
70 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. III, p. 112,
26
71 SEN, A. Foreword. In HIRSCHMAN, A. O. The Passions and the Interests. Princeton: Princeton
University Press, 2013. p. XIV-XVIII.
72 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.
185.
73 HIRSCHMAN, A. O. The Passions and the Interests. Princeton: Princeton University Press, 2013.
p. 69. Aqui, Hirschman faz menção ao conceito de ‘dimensão tácita’ de Michael Polanyi. Cf. PO-
LANYI, M. A Dimensão Tácita. Edição Portuguesa, 2020.
27
Ainda que seja possível traçar tendências intelectuais comuns, elaborar uma
definição última do que seria “Iluminismo” é uma tarefa laboriosa, pois deve-se ter
em vista que o Iluminismo era entendido de maneira diversa mesmo entre os “ilumi-
nistas” do Setecentos. Dorinda Outram argumenta que “no século XVIII, os contem-
porâneos sabiam que quando um italiano chamou esse movimento de ideias de
Illuminismo, ele quis dizer algo diferente da palavra Lumières, que teria sido usada
por um amigo na França, ou da palavra Aufklärung, comum nos estados alemães”.76
A historiadora inglesa apresenta, ainda exemplos que ilustram essa diversidade de
definições. Enquanto o filósofo judeu Moses Mendelssohn (1729-1786) definia o Ilu-
minismo como um processo de “educação para o uso da Razão, disponível a todos”,
Friedrich Schiller (1759-1805) percebia na estética o elemento crucial para definir
Iluminismo. Immanuel Kant (1724-1804), por sua vez, veria o Iluminismo como “a
libertação dos homens da imaturidade auto imposta”. Contudo, seu artigo “O que é o
Iluminismo?” seria recebido como uma sátira por apresentar “tantas interpretações
distintas do Iluminismo que estariam em uso no reino da Prússia, cujo rei, Frederico
II, replicava em sua própria personalidade todos os significados contraditórios de
‘Iluminismo’ presentes no artigo de Kant”. Outram assim demonstra que Frederico II
se autointitulava “esclarecido”, chegando até mesmo a dirigir a Academia de Ciência
de Berlim, no entanto, ao mesmo tempo, “também era interessado em manter o po-
77 Ibid. p. 1-2.
78 Ibid. p. 7.
79 Cf. tópico 1.2 acima.
29
plica os limites para definir que ações e discursos políticos são fruto de ideias ilumi-
nistas e quais têm origem em discursos e estruturas mais antigas.82
Os anos 1970 foram marcados por um ceticismo crescente quanto ao concei-
to de “despotismo esclarecido”, bem como quanto à possibilidade de uma “investiga-
ção adequada” acerca das relações entre Iluminismo e Estado. “Os céticos”, diz Ou-
tram, “confundiram um conceito impreciso com uma realidade que é mais complexa
e interessante”. Seria muito difícil crer que “monarcas e seus ministros se isolaram a
ponto de não terem notícia dos debates acalorados sobre governo e sociedade que
aconteciam fora de seus palácios”. O relacionamento e correspondência de figuras
como Catarina de Rússia e Frederico II com Diderot (1713-1784) e Voltaire (1694-
1778) seria um caso que favorece a crítica ao ceticismo.
Por sua vez, as publicações que Franco Venturi (1914-1994) fez de muitos
textos sobre economia, história e comentários políticas na Itália setecentista, cujos
autores “também eram assessores governamentais, mostrou sem dúvida a impor-
tância das ideias iluministas na elaboração de políticas e atitudes governamentais”.
A partir disso, surgiram novas perspectivas que giravam em torno da premissa de
ser o Iluminismo um “facilitador para a modernização”, embora o problema de defini-
ção conceitual continue, dessa vez com o foco transferido de ‘Iluminismo’ para ‘mo-
dernização’.83
Pode-se ainda citar a crítica marxista ao conceito de ‘despotismo esclarecido’.
A abordagem marxista defendia que o Iluminismo era irrelevante para o absolutismo,
visto que o Iluminismo era uma ideologia burguesa, enquanto as monarquias eram
tentativas de reafirmação dos interesses de uma aristocracia feudal. Desse modo, “o
Iluminismo servia apenas como uma ‘superestrutura ideológica’ para encobrir as
contradições de valores e interesses”. Outram aponta quais seriam os problemas da
visão marxista, que podem ser sintetizados em não perceber que muitas das monar-
quias – especialmente as do leste europeu – não presenciaram o surgimento signifi-
cativo de uma burguesia, como também é difícil classificar grande parte da aristocra-
cia europeia do século XVIII como “feudal”. Por fim, também existe a dificuldade de
aplicar a premissa marxista que os grupos sociais são apenas receptivos ou influen-
ciados por programas intelectuais apenas diretamente relacionados com seus inte-
82OUTRAM, D. Op.cit.. p. 28
83Ibid. p. 28-29. Dorinda Outram menciona, especificamente, as seguintes obras de Franco Venturi:
Settecento Riformatore, de 1969, e Utopia and Reform in the Enlightenment, de 1971.
31
84 Ibid. p. 29-30.
85 Ibid. p. 30.
32
86 Ibid. p. 31.
87 Ibid. p. 31-32.
33
1. 4 O QUE É MERCANTILISMO?
in the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 69,
p. 3, Janeiro 2012. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-
page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>. Acesso em: 5 Julho 2019; OUTRAM, D. Op.cit. p. 54.
93 PINCUS, S. Op. cit. p. 12.
35
gem, sendo a principal delas a natureza prática desse tipo de pensamento econômi-
co. Segundo Dorinda Outram:
Essa dificuldade, todavia, não impede que alguns procurem traçar elementos
centrais do que constituiria ‘mercantilismo’. Ainda de acordo com Outram, o “mercan-
tilismo, em geral, defendia que a verdadeira riqueza estaria nas manufaturas, no
acúmulo de metais preciosos e nas restrições econômicas a competidores comerci-
ais.” Com a expansão da economia, seriam acrescentados os tópicos da “unificação
do Estado e da balança comercial favorável” ao conjunto de características que “uni-
ficariam” discursos mercantilistas.95
Cardoso e Cunha também concordam que ‘mercantilismo’ é um termo volátil,
pois se trata de uma base de conhecimento que se recompôs ao longo de três sé-
culos, por sua vez, o período pombalino incorporava uma série de autores influenci-
ados por ideias ilustradas. Além do que já foi descrito acerca de ‘mercantilismo’
quando foi apresentada a definição de Dorinda Outram, pode-se acrescentar o ar-
gumento dos autores acerca do papel das colônias em “funcionar no sentido de ga-
rantir o abastecimento de matérias-primas e bens de consumo, quer para uso direto
nas metrópoles, quer para fins de reexportação. Para além disso, pretendia-se tam-
bém que estas funcionassem como um mercado protegido para a colocação dos
produtos fabricados nas metrópoles”. A esse papel é dado o nome de ‘pacto coloni-
al’, que, segundo os autores portugueses, seria alvo das reformas de Pombal em
virtude de das consequências prejudiciais que Portugal enfrentava por uma balança
comercial desfavorável em relação à Inglaterra.96
102 Ibid. p. 26, 34. Johann von Justi foi citado em PARRY, G. Enlightened Government and Its Critics
in Eighteenth-Century Germany. Historical Journal, vol. 6, p. 182, 1963.
103 Ibid. p. 40.
104 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 94.
105 OUTRAM, D. Op. cit. p. 58-59.
106 Ibid. p. 60.
38
economia, que tinha de ser imposta pelo governante a fim de que se alcançasse o
bem-comum. Nas palavras de Albert Hirschman,
A partir dos debates traçados até aqui, o percurso estabelecido indica que o
problema é, na verdade metodológico, tanto para definir ‘iluminismo’ quanto ‘mer-
cantilismo’. A proposta desta pesquisa, neste momento, não é afirmar uma invalida-
de total de ‘mercantilismo’, mas analisar a viabilidade do que foi defendido por Do-
rinda Outram quanto ao conceito de ‘Iluminismo’: perceber que o período denomina-
do mercantilista seria, ao invés de um corpo homogêneo de conhecimento, um “con-
junto de debates”.
Qual seria o erro, então, da proposta de classificar ‘mercantilismo’ como uma
“escola”, um “sistema”? É proveitoso aqui utilizar as conclusões de Quentin Skinner
acerca do estudo de textos na História das Ideias: é preciso evitar tanto o equívoco
de enfatizar de maneira restrita a autonomia dos autores em relação ao contexto
como, por outro lado, a dependência dos autores em relação ao contexto. É comum,
109 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, p. 3-
5, 47, 1969. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-page/10.2307/2504188>. Acesso em: 3
Agosto 2019. Skinner ainda afirma (p. 5) que “é de fato a verdade, e não o absurdo, da alegação de
que todas essas atividades devem ter alguns conceitos característicos que parece fornecer a principal
fonte de confusão.”
110 PINCUS, S. Op. cit. p. 4-7.
111 Id. Ibid. p. 4.
112 JUDGES, A. V. The Idea of a Mercantile State. Transactions of the Royal Historical Society,
mesma linha ao concluir que “na vida real a política é realizada pelos governos e os
governos são compostos por homens que, quaisquer que sejam suas ideias pré-
concebidas e quaisquer que sejam seus objetivos finais, lidam em contextos particu-
lares com problemas específicos”.113
No entanto, o próprio Coleman afirmou que seria difícil abandonar o termo
‘mercantilismo’, pois “etiquetas históricas têm um talento notável para a sobrevivên-
cia”.114 O abrandamento, por assim dizer, da crítica de Coleman ao “mercantilismo
como sistema” ocorreu por dois motivos: em primeiro lugar, tanto Judges como Co-
leman “não ofereceram uma narrativa como contraposição à síntese mercantilista”.
Em segundo lugar, o próprio Coleman ofereceu um modelo interpretativo distinto no
ano de 1957, porém, nesse modelo havia ainda mais ênfase na “política prática”, o
que deixa pouco espaço para avaliar o pensamento político – ponto que foi ressalta-
do em diversas críticas.115 Assim, a ideia de “mercantilismo como um sistema” conti-
nuou a ser defendida pelas gerações seguintes de historiadores, especialmente
aqueles dedicados aos estudos da Histórica Econômica e da Histórica Atlântica.116
Entretanto, para compreender esse vasto universo de relações que se con-
vencionou chamar ‘mercantilismo’, entende-se que é necessário recuperar os deba-
tes intelectuais, contextualizando-os. Assim, temas caros ao universo mercantilista,
como a geração de riquezas, por exemplo, ganham novas dimensões ao se recupe-
rar o repertório de ação mobilizado pelos agentes históricos, entre os séculos XVII e
XVIII, sobretudo.
Hirschman aponta que, pela ausência das disciplinas de Economia e Ciência
Política, também eram ausentes as “fronteiras interdisciplinares” que hoje tanto
guiam quanto limitam os debates sobre tópicas de interesse amplo: “Como resulta-
do, filósofos e economistas políticos poderiam variar livremente e especular sem ini-
bições sobre as prováveis consequências da, digamos, expansão comercial para a
paz ou do crescimento industrial para a liberdade”.117 Steven Pincus reforça esse
ponto ao afirmar que os “debates ocorreram tanto na metrópole quanto na periferia.
113 COLEMAN, D. C. Eli Heckscher and the Idea of Mercantilism (1957) in COLEMAN, D. C. (ed).
Revisions in Mercantilism. Londres: Methuen, 1969. p. 117 apud PINCUS, S. Op. cit. p. 7-8.
114 COLEMAN, D. C. Mercantilism Revisited. Historical Journal. n. 4. vol. 23 p. 791 apud PINCUS, S.
Op. cit. p. 8.
115 PINCUS, S. Op. cit. p. 8.
116 Ibid. p. 8-12.
117 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 3.
41
politizado e intenso “entre aqueles que acreditavam ser o comércio, de fato, um jogo
de soma zero, e aqueles que acreditavam que um crescimento econômico substan-
cial e global, advindo do trabalho humano, era possível e desejável”.123 Pincus men-
ciona dois personagens centrais desse debate: Walter Raleigh (1552-1618), que de-
fendia que recursos eram escassos e, portanto, o acúmulo de metais preciosos de-
veria ser a principal fonte de riqueza de um país (cumpre ressaltar, é um dos pontos
tidos como centrais do ‘mercantilismo’), e John Smith (1580-1631), que em oposição
a Raleigh, não acreditava na finitude dos recursos, e propunha uma “organização
eficiente” do trabalho nas colônias para gerar novas riquezas.124
Desse modo, é possível concordar com Pincus, quando afirma que “A alega-
ção de que os modernos acreditavam que o comércio era uma batalha bárbara entre
Estados-nações concorrentes por um conjunto severamente limitado de recursos
agrários era apenas uma verdade parcial. Alguns políticos, escritores mercantis, co-
merciantes e clérigos defendiam essa posição. Mas muitos não o fizeram”.125 A partir
do momento em que essa verdade parcial é tomada como um paradigma necessá-
rio, perde-se de vista que, apesar de os governantes dos Estados tomarem decisões
a partir de restrições locais, “existiam divergências profundas sobre políticas econô-
micas” e que essas “diferenças ideológicas moldaram as formas pelas quais os go-
vernantes interpretavam essas limitações”.126
Contudo, ressalte-se que a crítica que se faz ao iluminismo não deve ter o
mesmo tratamento que os questionamentos feitos ao conceito de mercantilismo. En-
quanto o ‘Iluminismo’ pode ser entendido como uma classificação panorâmica do
“conjunto de debates”, muito em virtude de os contemporâneos terem, em alguma
medida, se identificado com as Luzes, no caso do mercantilismo essa aplicabilidade
torna-se mais difícil. Se existem várias definições de ‘Iluminismo’ no século XVIII, o
mesmo não pode se dizer de ‘mercantilismo’ – o que inviabiliza, por consequência, a
precisão da identificação do marquês de Pombal com “ideias mercantilistas”. Mostra-
se mais frutífero, portanto, compreender a racionalidade econômica e recuperar os
debates acerca da geração de riqueza, identificando os embates intelectuais a partir
da eleição arbitrária de algumas tópicas.
2 RECUPERANDO OS DEBATES
1 MACINTYRE, A. After Virtue. Nova Iorque: Bloomsbury Academic, 2013. p. 12. Cf. KOSELLECK,
R. Futuro Passado. Rio de Janerio: Contraponto, 2012. p. 97.
2 MAIFREDA, G. From Oikonomia to Political Economy. Farnham: Ashgate Publishing, 2012. p. 1-
2.
3 HARRISON, P. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimto, 2017. p. 18-19.
4 MAIFREDA, G. Op. cit. p. 2-5.
44
da própria política como uma esfera distinta do exercício do poder na primeira mo-
dernidade.5
5 PINCUS, S. Rethinking Mercantilism: Political Economy, the British Empire, and the Atlantic World in
the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 69, p.
33, Janeiro 2012. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-
page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>. Acesso em: 5 Julho 2019.
6 KOSELLECK, R. Futuro Passado. Rio de Janerio: Contraponto, 2012. p. 117.
7 Ibid. p. 97.
45
Sem conceitos comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não
pode haver unidade de ação política. Por outro lado, os conceitos
fundamentam-se em sistemas político sociais que são, de longe, mais
complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades
linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave.8
8 Ibid. p. 98.
9 Ibid. p. 101.
10 Ibid. p. 102.
11 HARRISON, P. Op. cit. p. 13.
12 KOSELLECK, R. Op. cit. p. 103.
13 Ibid. p. 105.
46
O sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso. Um conceito,
ao contrário, para poder ser um conceito, deve manter-se polissêmico.
Embora o conceito também esteja associado à palavra, ele é mais do que
uma palavra: uma palavra se torna-se um conceito se a totalidade das
circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa
palavra é usada, se agrega a ela. [...]
14 Ibid. p. 115.
15 Ibid. p. 106.
16 Ibid. p. 108.
17 Ibid. p. 109.
47
18 Ibid. p. 109-110.
19 Ibid. p. 108, 111. Cf. HIRSCHMAN, A. O. The Passions and the Interests. Princeton: Princeton
University Press, 2013. p. 41.
20 Ibid. p. 111, 113.
21 HARRISON, P. Op. cit. p. 21.
48
ceituais surgem mais por disputas intelectuais entre atores que mobilizavam deter-
minadas tópicas que pelo aparecimento de novos conceitos de modo plenamente
independente.22 Em vista disso, tratar-se-á agora dos conflitos conceituais da Primei-
ra modernidade que permitiram o surgimento de novas perspectivas acerca da gera-
ção de riqueza, da qual a Aritmética Política de William Petty é resultado.
C.) e a teologia cristã, cujo ponto alto se deu com Tomás de Aquino (1225-1274).
Como esse diálogo permeava outras esferas além da moral, ele se tornou uma es-
pécie de “moldura intelectual”,24 que foi substituído quando começou-se a questionar
sua validade a partir da redefinição de diversos conceitos, especialmente o de ‘natu-
reza’.25 Esse processo implicou em uma alteração de significado dos conceitos ‘utili-
dade’, ‘interesse’ e ‘trabalho’, que serão analisados adiante.
24 Cf. SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, p.
49, 1969. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-page/10.2307/2504188>. Acesso em: 3
Agosto 2019.
25 HARRISON, P. Op. cit. p. 69-71.
26 Ibid. p. 99.
27 MACINTYRE, A. Op. cit. p. 146.
28 TOMÁS DE AQUINO. Compendium of Theology 1.10.172. Saint Louis, Herder: 1948. p. 186 et.
Desse modo, assim que as ações dos sujeitos fossem julgadas e avaliadas
estarem em conformidade com seus fins, os seres humanos alcançariam “glória” por
ter agido de modo excelente, isto é, “com virtude”. Isso está relacionado com a per-
cepção que, nesse tipo de linguagem moral não existia a distinção entre o que as
coisas “parecem ser” e o que elas “são de fato”, o que se tinha era um “realismo to-
do-abrangente”, em que o “ser” e “dever ser” estavam imbricados.30
Um dos fatores que certamente contribuiu para esta longa permanência foi a
influência da filosofia natural, que ganharia uma renovação após uma “redescoberta
de uma versão ‘espessa’ da tradição clássica”, especialmente “aquela representada
nas obras de Aristóteles que foram preservadas no mundo árabe”. Nesse momento,
a filosofia natural ganha uma “revisão” a partir da teologia cristã e então passa-se a
afirmar que o conhecimento dos ‘fins’ adivinha de duas formas – pelas Escrituras e
pela natureza. Essa perspectiva, conhecida como os “Dois Livros”, foi a ponte cons-
truída, entre a teologia cristã e os filósofos gregos, especialmente Aristóteles.31
Em virtude dessa compreensão do papel da natureza como um indicador das
diretrizes morais imprimidas por Deus na natureza, instituições como universidades
como Bolonha (1150), Paris (c. 1200) e Oxford (1220) foram criadas, fornecendo
uma estrutura para o engajamento com estudos da natureza, gerando um ambiente
intelectual no qual as ideias de que o conhecimento contemplativo de Deus por meio
das Escrituras e da natureza era o fim último florescessem e se norteasse o cresci-
mento da virtude, criando assim a “moldura intelectual” da Europa ocidental até o
século XVII.32
30 Ibid. p. 146-147, 153. Para ver alguns críticos deste paradigma na modernidade, cf. HIRSCHMAN,
A. O. Op. cit. p. 11-12.
31 HARRISON, P. Op. cit. p. 70, 80.
32 HARRISON, P. Op. cit. p. 80, MACINTYRE, A. Op. cit. p. 196.
51
deveria ser”.36 Essa alteração de perspectiva, que intenciona analisar as “coisas co-
mo são”, isto é, da maneira que é observável pelos sentidos, implicou uma transfor-
mação de significado em diversos conceitos-chave. Um exemplo é o uso de ‘moral’,
em que antes do século XVI, significava a “moral de uma história”, isto é, seu sentido
“prático”, que direcionava as ações dos sujeitos a determinados fins. No século XVII,
já é possível notar que ‘moral’ estava mais atrelado às práticas realizadas por al-
guém – especialmente quando se tratava do juízo acerca do comportamento sexual.
Tal mudança se tornou possível porque o conceito ‘moral’ deixou de estar atrelado à
filosofia natural e a sua busca pelos propósitos escondidos na natureza por Deus a
serem revelados pela contemplação; sendo esta conclusão fruto do crescimento da
defesa de uma “justificação racional” para a moral, que estava ligada à “ciência” e
sua rejeição da abordagem contemplativa.37
É preciso, agora, esclarecer que “ciência” estava surgindo no século XVII. É
comum atribuir a esse período a classificação de “Revolução Científica”, mas o uso
da palavra “ciência” para esta época é um anacronismo, uma vez que essa designa-
ção só passa a significar um “corpo de conhecimento distinto” (ou melhor, uma “enti-
dade”) a partir do século XIX.38 Para alcançar maior precisão, é mais útil lançar mão
do conceito de ‘filosofia experimental’, que era, inclusive, uma tópica discursiva co-
mum.39
Uma contribuição importante para a legitimação da nova filosofia experimental
– e, por conseguinte, a crítica à filosofia natural – veio da reforma protestante. A re-
jeição da interpretação alegórica das Escrituras em favor da interpretação literal foi
um recurso que consolidou uma tendência pelo sentido literal presente desde o hu-
manismo na renascença. Por exemplo, Martinho Lutero (1483-1546) cria que a in-
terpretação alegórica era para “mentes fracas” e “homens ociosos”, visto que no
sentido literal estava “toda substância, natureza e fundamento da Escritura Sagra-
da”. Também João Calvino (1509-1564) defendia o sentido “histórico” ou “literal” do
36 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 12-13. Hirschman cita a introdução da parte III do Tratado Teológico-
Político.
37 MACINTYRE, A. O. Op. cit. p. 59-60, OUTRAM, D. The Enlightenment. 4ª. ed. Cambridge:
40 LUTERO, M. The Babylonian Captivity of the Church. In: Three Treatises. Filadélfia: Fortress
Press, 1970. p. 146, 241; HAZLETT, I. Calvin’s Latin Preface of His Proposed French Edition of
Chrysostom’s Homilies: Translation and Commentary. In KIRK, J. (org). Humanism and Reform.
Oxford: Oxford University Press, 1991. p. 129-150 apud HARRISON, P. Op. cit. p. 88. Cf. MCGRATH,
A. The Intellectual Origins of the European Reformation. 2ª Ed. Oxford: Blackwell Publishing,
2004.
41 HARRISON, P. Op. cit. 88-94. cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 10-12. Neste parágrafo, reconhece-se a
1857-1874. p. 349 et. seq., _____. Novum Organum I. xxiii in The Works of Francis Bacon. v. 4. p.
51 apud Harrison, Op. cit. p. 88-89. Cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 153.
54
45 MACINTYRE, A. Op. cit. p. 103-105. Sobre o Sínodo de Dordrecht, cf. ISRAEL, J. I. The Calvinist
Revolution of the Counter-Remonstrants, 1618-1621. In _____. The Dutch Republic: Its Rise,
Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford: Oxford University Press, 1995. p. 450-477.
46 Ibid. p. 106.
47 Ibid. p. 150.
48 SPINOZA, B. Tratactus Theologico-Politicus. Parte III, Introdução apud HIRSCHMAN, A. O. Op.
cit. p. 14.
49
HARRISON, P. Op. cit., p. 96-97.
56
curso moral e também das investigações sobre a natureza foram criadas, uma vez
que a teleologia que surgiu da interação filosófica entre o cristianismo e Aristóteles
era subjacente aos debates intelectuais. Uma das principais bases a serem elabora-
das foi a que afirmava ser a ‘utilidade’ o critério para avaliar decisões morais e os
benefícios tanto de recursos naturais como de ideias. Por sua vez, isso implica afir-
mar que os benefícios da contemplação do mundo natural, que eram recebidos “in-
ternamente”, passam a ser buscados nas consequências observáveis (logo, “exter-
nas”) das escolhas e desejos humanos.50 Isso é observado, por exemplo, quando
Francis Bacon afirma que seu objetivo ao criar um novo método de estudos da natu-
reza era priorizar “aquelas que preparam e alteram os corpos naturais”. 51
2.2.2.1 Utilidade
Para Agostinho, há uma distinção entre uso (uti) e desfruto (frui) do mundo.
Segundo ele, o cristão deveria usar o mundo, e não desfrutar dele, pois a fruição do
cristão está em Deus, e o mundo deve ser usado para que “as coisas invisíveis de
Deus sejam vistas claramente” – uma referência à interpretação alegórica das Escri-
turas e da natureza. Em Agostinho, essa assertiva está baseada em sua ideia de
Ordem dos Amores (Ordo Amoris), em que Deus é a plenitude, o amor último, e
quando não se desfruta dele – nem se usa do mundo para ir até ele – ocorre um
“desordenamento dos amores”, e daí a importância de “usar o mundo” e não “desfru-
tar dele”. A ideia agostiniana de “usar o mundo” foi refletida também em Tomás de
Aquino, quando afirma que a felicidade humana consiste na contemplação de Deus,
e que para tal deve-se usar a natureza, encontrando a ordem (telos) moral que leva
até Deus. Esse esforço era necessário pois Adão, ao desobedecer a Deus, teria
perdido a capacidade de distinguir a ordem moral nas criaturas. A razão sozinha ti-
nha alguma eficácia, porém precisava da revelação para atingir seu propósito, que é
o progresso (profectus) à virtude (para tanto, retoma-se o conceito de Dois Livros).52
Com a crítica à interpretação alegórica e à escolástica medieval, em virtude
de sua fundamentação em Aristóteles, por um dos percursos possíveis, a ideia de
‘utilidade’ deixa de descrever aquilo que auxilia para o desenvolvimento de qualida-
des interiores para estar relacionada àquilo que é exterior, ou seja, observável. A
relação entre ‘utilidade’ e observação também é feita em Francis Bacon, ainda que
com intenções distintas. O projeto da nova filosofia experimental também ligava-se
ao conceito de ‘progresso’, mas enquanto em Tomás de Aquino este era um “pro-
gresso à virtude”, ou seja, um aprimoramento moral “interior”, identificável, em pri-
meiro lugar, para aquele que se lançava à contemplação das Escrituras e da nature-
za, em Bacon a filosofia experimental “proporá a si um tipo de verdade que produzirá
satisfação à mente ao atribuir causas a coisas há muito descobertas, e não produzi-
rá a verdade que levará a nova garantia de obras e nova clareza de axiomas”. A ên-
fase aqui está no conhecimento das causas de coisas descobertas (isto é, já obser-
vadas), e o crescente acúmulo desse conhecimento que é, também, observável: “a
perfeição das ciências [virá] não da celeridade ou habilidade de qualquer inquiridor,
mas da sucessão [delas]”.53
Assim, a tópica da ‘utilidade’ foi mobilizada para justificar a “nova filosofia”.
Para o caso inglês, Peter Harrison apresenta críticos como Robert South (1634-
1716), teólogo de Oxford, que questionavam a “utilidade” da filosofia experimental,
usando como fundamento a ética da virtude conforme o diálogo medieval entre cris-
tianismo e aristotelismo. A pergunta central girava em torno do propósito da investi-
gação intelectual. Os defensores da antiga filosofia natural, como Meric Causabon
(1599-1671) afirmavam que a formação do indivíduo para seu aprimoramento moral
era o alvo do exercício do intelecto, e a nova filosofia experimental se preocuparia
apenas com a satisfação da curiosidade acerca de assuntos irrelevantes para o
aperfeiçoamento moral – isto quando sua ênfase na “transformação do mundo” não
era acusada de pelagianismo.54
A defesa da filosofia experimental consistiu em defender sua utilidade, princi-
palmente, em oferecer subsídios para a teologia cristã. A afinidade entre as críticas
da teologia protestante e dos adeptos da filosofia experimental operou para que este
tipo de argumentação fosse construído na Inglaterra. Uma vez que a humanidade
perdeu, em Adão, a capacidade de compreender o mundo natural e compreender a
verdadeira essência das coisas por conta do pecado (aqui, uma referência à doutri-
53 BACON, F. The English Translation of the Novum Organum, 1.81; 1.84. In The Works of Francis
Bacon. p. 80, 82 apud HARRISON, P. Op. cit. p. 133-134.
54 HARRISON, P. Op. cit. p. 136-141; OUTRAM, D. Op. cit. p. 111-112. Cf. MCCORMICK, T. William
Petty and the Ambitions of Political Arithmetic. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 155.
58
na do Pecado Original), tal deficiência poderia ser amenizada a partir da filosofia ex-
perimental. Francis Bacon assim argumenta na abertura de A Grande Instauração
(1620):
Digo, pois, que foi observado pelo ilustre lorde Bacon e por alguns outros
engenhosos modernos que a filosofia deveria ser um instrumento de
trabalho para descobrir aqueles auxílios que a providência colocou na
natureza a fim de nos assistir contra as inconveniências desta condição e
fazer aplicações de coisas que venham a servir ao benefício universal.56
55 BACON, F. The Great Instauration. In WEINBERGER, J. (ed). New Atlantis and The Great Instau-
ration. Harlan Davidson, 1989. p. 1. Cf. HARRISON, P. Op. cit. p. 100.
56 GLANVILL, J. Modern Improvements of Useful Knowledge. In Essays on Several Important Sub-
jects in Philosophy and Religion. Londres: 1676. p. 35 apud HARRISON, P. Op. cit. p. 138-139.
59
Por fim, faria uma advertência geral a todos; que considerem quais são os
verdadeiros fins do conhecimento e que não o procurem nem pelo prazer da
mente, nem pela contenda, nem pela superioridade aos outros, nem pelo
lucro, ou fama, ou poder, ou qualquer uma dessas coisas inferiores; mas
pelo benefício e uso da vida; e que aperfeiçoem e governem em caridade.
Pois foi da avidez pelo poder que os anjos caíram, da avidez pelo
conhecimento que o homem caiu; mas da caridade não pode haver
excesso, nem anjo ou homem jamais correram perigo por isso.
Os pedidos que tenho que fazer são estes. Por mim mesmo, não digo nada,
mas em nome do assunto em questão peço aos homens que acreditem que
não se trata de uma opinião, mas de um trabalho a ser realizado; e ter
certeza de que estou trabalhando para estabelecer os alicerces, não de
alguma seita ou doutrina, mas da utilidade e poder humanos. Em seguida,
peço que eles lidem de maneira justa com seus próprios interesses, e que
deixem de lado todas as divergências e preconceitos em favor dessa ou
daquela opinião, para iniciarem uma discussão acerca do bem comum, e
que sejam agora libertados e protegidos pela segurança e auxílio que
ofereço dos erros e impedimentos do caminho, para que apresentem-se e
participem naquilo que resta fazer.57
57 BACON, F. The Great Instauration. In WEINBERGER, J. (ed). New Atlantis and The Great Instau-
ration. Harlan Davidson, 1989. p. 16-17. Cf. HARRISON, P. Op. cit. p. 144.
58 HARRISON, P. Op. cit. p. 144-145.
60
59 Ibid. p. 120-126; OUTRAM, D. Op. cit. p. 120-121. Doravante, ambas serão usadas como sinôni-
mos.
60 HARRISON, P. Op. cit. p. 148-149.
61 Ibid. p. 149-152. Cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 143.
61
tureza seria facilitado pela descrição matemática de leis naturais, tornando a com-
preensão dos mecanismos naturais claros e objetivos para que a intervenção huma-
na para realizar seus desígnios fosse eficaz.62 Deste modo, vê-se que na Inglaterra
a teologia protestante forneceu subsídios intelectuais para que houvesse essa tran-
sição para uma redefinição de conceitos já presentes na teologia medieval, a partir
de uma nova perspectiva de caráter “experimental”.
Como consequência dessa percepção, as decisões morais eram justificadas
de acordo com sua conformidade a leis morais ou quanto aos resultados observá-
veis das ações dos sujeitos. Ambas as alternativas eram derivadas do pressuposto
da existência de postulados universal possíveis de identificação e descrição por lin-
guagem matemática. Tal pressuposto implicou o surgimento do que Peter Harrison
classifica como “sociedade disciplinar”, em que instituições diversas foram criadas
(como as comunidades e sociedades “científicas”) ou ressignificadas (como as uni-
versidades e escolas) a fim de tornar indivíduos úteis por meio da instrução do co-
nhecimento dos e na conformação aos postulados universais.63
2.2.2.2 Interesse
65 Ibid. p. 16.
66 Ibid. p. 15-19.
67 Acerca dos debates sobre a definição de “alquimia”, cf. MCCORMICK, T. William Petty and the
paixões eram ruins e quais outras seriam boas, ou pelo menos úteis para refrear as
ruins. Destarte, foi crescendo o uso da palavra ‘interesse’ para designar o papel das
“paixões de contrapeso”, ou seja, aquelas paixões úteis que eliminavam ou diminuí-
am o prejuízo das paixões ruins. Contudo, ressalva é necessária, uma vez que exis-
te uma distinção entre os usos do singular e do plural de ‘interesse’. Segundo
Hirschman, as vantagens econômicas de pessoas ou grupos eram designadas por
‘interesses’, enquanto ‘interesse’ significava “a totalidade das aspirações humanas”.
O que havia em comum entes os dois significados era que apontavam para “um
elemento de cálculo e reflexão” acerca da maneira obter vantagens econômicas co-
mo também de que forma as “aspirações humanas” deveriam ser realizadas.69
Hirschman afirma que o conceito de ‘interesse’ e seu elemento de cálculo po-
dem ser remontados às reflexões de Maquiavel e àquelas inspiradas nele, que de-
ram origem às “expressões gêmeas” ‘interesse’ e ‘razão de Estado’. O objetivo de
ambas era superar a ética da virtude medieval, ao mesmo tempo em que se concen-
travam em identificar princípios racionais, imunes às paixões, que oferecessem dire-
cionamento claro ao soberano. Henri de Rohan (1579-1638) é um dos exemplos da
aplicação de ‘interesse’ aos governantes, a começar pelo título de um de seus escri-
tos: Tratado Sobre os Interesses dos Príncipes e Estados da Cristandade (1640).
Nele, o Duque de Rohan afirma que “o príncipe governa o povo, e o interesse go-
verna o príncipe”, pois “o interesse é guiado apenas pela razão”. Por conta da tradu-
ção inglesa, essa noção influenciou, posteriormente, o aparecimento de “interesse
nacional” na Inglaterra, onde ‘interesse’ tornou-se vinculado não apenas à pessoa do
príncipe – que, por sua vez, teve impacto no despertar de um debate intelectual so-
bre ‘interesse’ econômico após a Restauração (1660-1666).70
Embora houvesse o problema da definição do que significava ‘interesse’, cada
vez mais de percebia uma vinculação a aspectos econômicos. Por exemplo, Jean de
Silhon (1596-1667), em um de seus tratados, teria listado uma série de ‘interesses’,
e lamentou que cada vez mais o significado de ‘interesse’ era ligado apenas à ques-
tão da obtenção de riquezas – o que seria perceptível, segundo Hirschman, em Da-
vid Hume e Adam Smith.71
69 Ibid. p. 31-32.
70 Ibid. p. 33-37.
71 Ibid. p. 37-39.
64
2.2.2.3 Trabalho
nica” poderia corrigir seus equívocos e torná-la ainda mais clara e objetiva, conforme
asseverou John Bury (1580-1667), um dos adeptos da filosofia experimental, ao di-
zer que a mecânica e “todo tipo de invenções” favoreceria o crescimento do corpo
político como, principalmente do comércio e sua compreensão.74
74 Ibid. p. 150-157.
75 Ibid. p. 160-162.
66
76 Cf. FRANCO, R. Riqueza, pobreza e infância: o reformismo ilustrado português e a utilidade dos
expostos. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. XXVI, p. 112, Dezembro 2019.
77 BOTERO, G. La Ragion di Stato. Roma: Donzelli, 1997. p. 156 apud MAIFREDA, G. Op. cit. p.
164.
67
naturais”, e, portanto, a melhor solução era uma organização do trabalho nas colô-
nias inglesas. Carew Reynell (1563-1624), em O Interesse Inglês Descoberto E
Promovido (1685), defendeu que “o trabalho e as gentes de uma nação são a sua
força”, e que o trabalho aumentaria a população, que por sua vez, faria crescer o
comércio – e a Inglaterra poderia ficar até dez vezes mais rica se atentasse para
isso. Nas disputas políticas inglesas, Whigs tomavam a posição que o comércio era
“o verdadeiro negócio da nação”, enquanto Tories lamentavam a crescente vincula-
ção do poderio inglês ao acúmulo de riquezas ao invés das terras.78
Tal movimento de afirmação do comércio como “o verdadeiro negócio da Na-
ção” implicou em uma percepção que via nas atividades comerciais um meio de in-
cutir valores nas populações. Hirschman aponta que na França dos séculos XVII e
início do XVII o comércio era visto como uma “atividade doce”, pois por sua natureza
de ser uma atividade que exige cálculo, isto instigava nos “homens doçura, suavida-
de, calma e gentileza e é o antônimo de violência.” O filósofo escocês Francis Hut-
cheson (1694-1746) coaduna com essa assertiva quando descreve o comércio como
“um desejo pacífico” que levaria aos homens a agir com calma e racionalidade. Spi-
noza, por sua vez, via no comércio “o crescimento de interesses que são interde-
pendentes ou precisavam dos mesmo meios para serem alcançados”, o que na ex-
pansão da ordem moral e civil.79
Uma vez que o comércio tornou-se tanto um meio calculável de enriquecer
uma nação como também de expansão da “civilidade”, o crescimento do uso da ma-
temática para descrever atividades comerciais e sua natureza implicaram em uma
vinculação nascente “economia política” como uma “ciência do terceiro estado”,80
que permitia um conhecimento e controle que um soberano poderia exercer sobre
seus súditos mais viável e realista. É a partir deste ponto que William Petty elaborará
sua ‘aritmética política’, sendo este quesito que, subsequentemente, chamaria aten-
ção do Marquês de Pombal, quando este era ainda um embaixador português em
Londres.
78 PINCUS, S. Rethinking Mercantilism: Political Economy, the British Empire, and the Atlantic World
in the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 69,
p. 15-26, Janeiro 2012. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-
page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>. Acesso em: 5 Julho 2019.
79 HIRSCHMAN, Op. cit. p. 59-74.
80 MAIFREDA, G. Op. cit. p. 174.
68
1 MCCORMICK, T. William Petty and the Ambitions of Political Arithmetic. Oxford: Oxford
University Press, 2009. p. XVIII, 5. Cf. MAIFREDA, G. From Oikonomia to Political Economy.
Farnham: Ashgate Publishing, 2012. p. 2-5.
69
Ainda que não fosse um médico experiente, ele era, na opinião de [John]
Pell, "um jovem esperançoso que, por semblante e conselho, pode se tornar
extremamente útil". Fluente em francês e latim e competente em grego,
recebera dos jesuítas os elementos de uma educação clássica. Ao mesmo
tempo, ele conhecia os desenvolvimentos de ponta em matemática, filosofia
natural e medicina e conhecia pelo menos alguns dos matemáticos, filósofos
e médicos por trás deles. Ele havia recebido algum treinamento em
iatroquímica. Estimulado, sem dúvida, por seu contexto mais amplo - A
república holandesa ainda era jovem, seus arranjos constitucionais sujeitos
às controvérsia em curso - Petty também começara a manifestar outros
interesses.3
Ao longo da vida, parece que Petty tentou dialogar uma tendência à prática,
que remete à sua infância em uma família de origem artesã, com suas inclinações à
pesquisas mais “teóricas e científicas”. Seus interesses abarcavam uma vasta gama
de assuntos, indo “da mecânica prática à medicina, à reforma educacional, à meto-
dologia experimental e, muito provisoriamente, à política”, o que contribuiu para sua
formação como um “virtuoso”, aquele capaz de responder problemas de determina-
dos tipos (isto deve-se bastante à falta de fronteiras claras entre os campos de co-
nhecimento na modernidade). Esta “virtude”, expressa especialmente por meio das
invenções e experimentos da filosofia natural, era criticada por ser vista como mera
satisfação da curiosidade, ou mesmo entretenimento – o que não impediu, é claro,
de Petty prosseguir nos estudos da filosofia experimental.4
Quando retornou à Inglaterra, onde finalmente de formou em Oxford no ano
de 1650, Petty participou do que ficou conhecido como Hartlib Circle, um grupo de
intelectuais ingleses, que se constituiu em torno de Samuel Hartlib (1600-1662), em
Londres. O objetivo do grupo era o “melhoramento dos instrumentos mecânicos, da
agricultura da agricultura e das técnicas de manufatura”, o que implicava em uma
rejeição da “sistematização filosófica”. A entrada e permanência de Petty no grupo
se deve em muito às recomendações que Hartlib fez a Robert Boyle, destacando
suas habilidades na matemática e na mecânica, como também em outras áreas co-
mo navegação e processos têxteis, elogiando o escopo do conhecimento de Petty.
Quanto à ênfase conceitual do grupo, estes intelectuais eram adeptos das propostas
de “reformas universais” de Francis Bacon, principalmente a noção de “restauração
do intercâmbio original” entre a mente humana e a natureza, o que também marcou
o pensamento de William Petty, ainda que indiretamente. No Hartlib Circle, Petty
também criou uma rede de contatos que eram políticos, consistindo em apoiadores
do rei Charles I tanto como parlamentaristas e puritanos – transitar entre os dois
grupos era uma façanha considerável tendo em vista este contexto da Guerra Civil
Inglesa.5
Em razão das discussões no Hartlib Circle, William Petty solidificou sua confi-
ança no método da filosofia experimental. Para ele, os critérios para identificação da
verdade eram “a demonstração, ou os sentidos e a experimentação”. Qual justificati-
4 Ibid. p. 40, 155 cf. HARRISON, P. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimto, 2017.
p. 137
5 MCCORMICK, T. Op. cit. p. 42-45, MAIFREDA, G. Op. cit. p. 154.
71
va que procurasse outros critérios, não passava de “mera retórica”.6 Esta metodolo-
gia experimental era, assim aplicável a uma variedade de assuntos, o que explica,
em certo nível, a diversidade de temática que foram do interesse de Petty. Ele tam-
bém propunha, a partir da rejeição da “dedução racional”, que o papel da ciência7
era de promover um conhecimento válido dos processors naturais, capazes de se-
rem entendidas por aqueles de “entendimento prejudicado”, como também produzir
soluções práticas e eficazes para os problemas da sociedade. Para tanto, eu seu
projeto de reforma educacional, as disciplinas como anatomia, geometria e astrono-
mia, que permitiam “a demonstração ocular” e lidavam “com o aspecto sensível das
coisas” deveriam ser priorizadas – mudança de paradigma que fica evidenciada nas
invenções de Petty, ainda que falhassem em cumprir seus objetivos.8 Dessa forma,
Petty também lança a base para que depois possa construir uma “história do comér-
cio” a partir da aplicação da filosofia experimental na economia, a fim de entender o
comportamento humano.9
No ano de 1652, foi oferecido a Petty o cargo de Médico-Geral da Irlanda por
Charles Fleetwood (1618-1692), genro do Lorde Protetor da Inglaterra, Oliver Cro-
mwell (1599-1658) e nomeado por este no mesmo ano a Comandante Chefe da Ir-
landa. Petty seguiu-o com a incumbência de ser médico do exército e da família do
Comandante-Chefe. Este contato mais próximo com figuras do alto escalão da hie-
rarquia política inglesa o fizeram mudar progressivamente de seu status como um
“experimentalista” para um “tecnocrata”, correspondendo a seus interesses de longa
data em ter apoio financeiro e político para seus projetos de reforma. O anseio do
Hartlib Circle (e por conseguinte, de Petty) era ter um espaço, um território, para
aplicar seus desejos de Reforma Universal, e em determinado momento, a após a
reconquista de Cromwell, a Irlanda parecia um espaço plausível. Assim, Petty se
lança a criar um projeto de uma “história natural” da Irlanda, ao lado de outros hartli-
bianos, que visava identificar os principais impedimentos à transformação da Irlanda
ao século XIX, passar-se-á a usar “economia” e termos relativos para fazer menção aos debates
acerca da geração de riqueza.
72
em uma terra protestante e útil aos ingleses. Deste modo, Petty deu um passo deci-
sivo para sair “das fronteiras familiares da filosofia natural experimental para uma
ciência mais social e uma carreira mais política”, satisfazendo, assim, ambições e
necessidades filosóficas e pessoais – tensão que lhe custou, ao final, sua perma-
nência no Hartlib Circle, de onde saiu no ano de 1656.10
Entretanto, é a partir deste período que Petty começa a inferir que a popula-
ção não era apenas a fonte de riqueza e força de um reino, “mas também objeto de
conhecimento quantitativo e manipulação calibrada” – aliás, McCormick argumenta,
parece que esta sentença passou a ser vista como conclusão da premissa que os
súditos são a origem da riqueza de um reino, sendo a Holanda o exemplo definitivo
de como um reino tornava seus súditos úteis para a geração de riqueza. A ponte
dessas convicções com a filosofia experimental foi construída a partir das influências
de James Harrington (1611-1677), que defendia um projeto de reforma agrária fun-
damento nas “leis naturais da agricultura”, cujo princípio era a “propriedade propor-
cional” das terras.11
Para Petty, a partir de então, as tarefas da nascente política econômica e da
filosofia natural simplesmente se fundiam, com o objetivo de, ao fazer política se-
guindo os limites das leis naturais, produzir o que a natureza não conseguia por si
mesma – esta era a sua definição de “política natural”, que procurava trazer “unida-
de, indústria e obediência” em prol da “segurança comum”, via canalização de forças
naturais.12 Para tal empreitada intelectual, foi crucial a influência das Observações
(1665) de John Graunt (1620-1671), por se verificar nelas problemáticas de “política,
economia e saúde pública, com alguns comentários sobre moralidade”. Nela, Graunt
reconhecera as limitações de seu projeto, e foi deste ponto que Petty partiu para
elaborar a aritmética política.13 Desta feita, a influência baconiana no Estado, tal co-
mo propõe William Petty quando escreve Aritmética Política (e, em algum nível, co-
mo também seus contemporâneos propunham), o tornaria um “pesquisador científi-
co”, por utilizar métodos empíricos para entender e intervir na economia. Sua entra-
da na Royal Society, em 1662, seria um fator que impulsionaria seu projeto a nível
intelectual.14
Em virtude de suas inspirações na filosofia experimental, Petty tinha uma per-
cepção da ciência que era marcadamente prática, evitando teorizações mais siste-
máticas. Entretanto, foi o próprio contexto da Inglaterra que teria “tornado a aritméti-
ca política necessária”. O período da Restauração (1660-1666) se revelou um mo-
mento de disputas pela identidade religiosa da Coroa Britânica que afetam também
a estabilidade do reino a nível social e econômico. À medida que Petty aplicava a
aritmética política para entender e propor soluções aos dilemas de seu contexto, ela
foi gradativamente deixando de ser um projeto e tornando-se uma teoria cujo objeti-
vo era oferecer um ferramental em que a população pudesse ser manipulada em
favor do rei.15 Um indicador importante desta transição é que os trabalhos de Petty
não foram necessariamente "publicados" no sentido em que entendemos hoje, mas
circularam via manuscritos entre a elite política inglesa. O formato mais comum da
transmissão das ideias de Petty era uma pequena série de pequenos tratados em
que apenas tópicos eram listados, e assim, as consequências de se seguir ou não
uma determinada afirmação. O objetivo era apresentar de maneira sintética suas
habilidades administrativas para possíveis patrões. Esta estratégia evitava conflitos
políticos e o risco financeiro de custear uma publicação, mas sua eficiência dependia
do círculo da elite no qual os manuscritos circulassem – o que explica, em boa me-
dida, a falha de Petty em conseguir executar o projeto da Aritmética Política alguma
vez na vida.16
Entretanto, ainda que tenha falhado, as modificações finais no projeto da
Aritmética Política a transformaram numa “arte de governar”, que fornecia um amplo
ferramental para o governo das gentes:
14 Ibid. p. 146.
15 Ibid. p. 11, 209-210, 241, 250-255
16 Ibid. p. 6, 211-212, 270- 272.
74
A aritmética política tencionava ser ao Estado. Por mais que Petty tenha-a
transformado ao longo do tempo em um princípio, tratava-se menos de “entender a
economia” e mais da capacidade e meios de “intervenção” do Estado, por meio da
base intelectual fornecida pela filosofia natural.20 Nas palavras do próprio William
Petty, assim ele define como entende a aritmética política, que são “os usos de se
conhecer o verdadeiro estado das gentes, da terra, do capital, do comércio etc. [...] e
também os ótimos efeitos da unidade, operosidade e obediência visando a seguran-
ça comum e a felicidade particular de cada um.”21 Quando ao método utilizado pela
aritmética política, Petty afirma que
O método que adotei para fazê-lo ainda não é muito costumeiro; ao invés de
usar apenas palavras comparativas e superlativas e argumentos
intelectuais, tratei de (como exemplo da aritmética política que há tempos é
meu fito) exprimir-me em termos de número, peso e medida; de usar
apenas argumentos baseados nos sentidos e de considerar somente as
causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração
de outros as que dependem das mentes, das opiniões, dos apetites e das
paixões mutáveis de determinados homens.22
Tal afirmação demonstra a confiança que William Petty tinha no método "nu-
mérico" como uma tentativa de procurar uma estratégia de unificação entre as dife-
rentes culturas e confissões religiosas por meio de um "chão comum". A padroniza-
ção da metodologia de quantificação era importante para que se evitassem os dis-
túrbios entre governo e súditos. Deste modo, a aritmética política se tornou “um bra-
19 Ibid. p. IX.
20 MCCORMICK, T. Op. cit. p. XVIII-XIX, SANTOS, A. C. D. A. Aritmética política e a administração do
estado português na segunda metade do século XVIII. Jornada Setecentista, 2007, p. 144.
Disponivel em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/Aritm%C3%A9tica-
pol%C3%ADtica-Antonio-Cesar-de-Almeida-Santos.pdf>. Acesso em: 19 Agosto 2019.
21 PETTY, W. Aritmética Política. In: CAMPOS, R. Os Economistas: Petty, Hume e Quesnay. São
Uma vez que a riqueza do rei depende de parte dos tributos (cota pars) entre-
gues a ele, a fim se aumentar a riqueza do reino – e consequentemente, a sua – o
soberano deve ser capaz de saber “governar as gentes”, o que na perspectiva de
Petty, significa “aumentar a parcela industriosa da população”, tornando-a mais útil
para a geração de riqueza. A política, para Petty, é sobre o uso das pessoas por par-
te do governo, ou seja, independente de divisões grupais, trata-se do que o gover-
nante deve fazer para que a população seja produtiva e leal.29 Para isso, é necessá-
rio conhecer a quantidade da “população útil”, que são os “homens laboriosos e en-
genhosos”, em oposição à “população inútil”, que era dividida entre aqueles que não
foram admitidas pela primeira vez. Podem também ser distorções que
surgiram com o tempo, um afastamento da retidão da instituição original.
36 Ibid. p. 147.
37 Ibid. p. 120-125, 146-147. Cf. MCCORMICK, T. Op. cit. p. 46.
38 MCORMICK, T. Op. cit. p. 107-110, 186-229. Cf. PETTY, W. Op. cit. p. 139, 146.
79
Coutinho, de 2 de Janeiro de 1741, fls. 14v-18v. apud DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Políti-
co. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p. 217, 1983.
81
comerciais com a Inglaterra e também sobre o peso relativo que o Tratado de Me-
thuen teria na origem desses danos. Nesse relatório, Sebastião José defende os
seguintes pontos: em primeiro lugar, a visão do comércio como ponto crucial para o
enriquecimento de uma nação e põe a “riqueza respectiva" como o critério mais pre-
ciso para determinar uma riqueza de um país. A “riqueza respectiva” consiste num
esforço comparativo entre o “cabedal” de duas nações que “traficam”, isto é, que tem
relações comerciais entre si, a mais rica seria aquela que tem “mais dinheiro”. Esse
princípio, por sua natureza relativa, levanta um questionamento à afirmação de que
Pombal seria “mercantilista” por crer num sistema de jogo de soma-zero absoluto.
Em seguida, Sebastião José defende que o equilíbrio desta balança comercial “faz a
do poder”, citando o exemplo da França, que após passar por crises em virtude de
guerras, teria percebido que o estímulo “ao negocio de seos vassalos” era mais pro-
veitoso que “dilatar seus domínios”. Ainda na Rellação dos Gravames, é possível ver
uma defesa do comércio de matérias-primas, chamadas de “mercadorias grossei-
ras”, porque esta atividade alimentaria uma cadeia de produção tanto em Portugal
quando nas colônias por conta dos “produtos mais finos” feitos a partir daquelas,
organizando assim o trabalho nos domínios portugueses. Também, segundo Carva-
lho e Melo, além das matérias-primas serem de grande valor para exportação as
matérias primas permitem que um Estado se alivie “de tantos membros inúteis”, por
meio do trabalho e do comércio dos inúmeros produtos criados a partir da matéria
prima. Este trabalho corta na raiz “os insultos da ociozidade e da indigência” e, por
meio do trabalho, era possível conseguir meios para “servir a sociedade” e também
para de casarem-se, e por consequência aumentando o número da população – a
“principal riqueza de todos os estados”. O comércio de matérias-primas, pelo seu
valor de exportação, também acabaria atraindo estrangeiros aos domínios portugue-
ses, resultando em maior “número dos povos”.45 Na Rellação, pode-se resumir o
argumento de Pombal da seguinte forma: a melhor maneira da Coroa utilizar seus
súditos é estimulando-os ao comércio de matérias-primas, pois isso resulta num sis-
tema em que a riqueza pessoal aumenta, atraindo mais pessoas para o mesmo sis-
tema, e assim, fazendo crescer o Estado.
45 Biblioteca Nacional, Coleção Pombalina, Cód. 635: Rellação dos Gravames, fls. 236, e
Cód. 657, carta para o cardeal da Mota, de 19 de Fevereiro de 1742, fls. 81v-84, apud DIAS, J. S. D.
S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 28-35..
82
Sebastião José teve contato com os textos de William Petty quando esteve
em Londres a serviço da Coroa Portuguesa. Em carta ao seu primo Marco Antônio
de Azevedo Coutinho, datada de 1742, ele revela as vantagens da aritmética política
em relação às “especulações dos livros antigos”, e os benefícios que ela teria trazido
à Inglaterra no período de Oliver Cromwell:
Guilherme Patti (como Carvalho e Melo chama Petty) propôs um método se-
guro que serviu de inspiração para que o secretário de Estado português escrevesse
dois manuscritos acerca do “mecanismo político”,53 em que os interesses do Estado,
nomeadamente a agricultura e o comércio, deveriam ser expandidos a partir de um
método que avaliasse “o número de habitantes do país que se quer tratar”, como
52 Biblioteca Nacional, Coleção Pombalina, Cód. 657: Carta de Carvalho e Melo para Marco António
de Azevedo Coutinho, de 19 de Fevereiro de 1742, fl. 84-85 apud DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e
Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 120.
53 Cf. Introdução.
84
Toda esta piedade cristã, que os nossos soberanos têm tido até agora para
a extensão da fé e para salvar estas miseráveis gentes, e todo o zelo de
utilizar ao Reino com as preciosas drogas destes sertões e de enriquecer
aos vassalos, não só se têm baldado, mas continuando o presente sistema
se perderão, como se têm perdido, e se não poderão restabelecer da
máxima e total ruína a que têm chegado.56
508-509.
86
59Ibid.
60Carta ao Rei... 1752 in M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 221.
61 Carta ao novo Secretário de Estado... 1756 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era
Entretanto, isto tais afirmações devem ser levadas em conta ao lado das ava-
liações que Mendonça Furtado fazia de seu trabalho na Amazônia, como quando,
por exemplo, escreve em 1752 a Sebastião José lamentando “não ter férias nem
descanso”, por ter em suas mãos “além de um povo rude, ignorante e totalmente
corrompido, uma quantidade de frades obsoletos, soberbos, poderosos e cheios de
ambição”, o que evidencia um descontentamento com a resistência ao modo como a
Coroa desejava “tornar úteis” os indígenas e os gêneros produzidos nos aldeamen-
tos.63 Nesse sentido, tratando posteriormente acerca da “ambição” dos frades, Men-
donça Furtado relata em 1754 e 1755 temores de uma “conspiração jesuíta” em vir-
tude das ações para reforma do estado, especialmente em virtude da criação da
Companhia de Comércio.64 Tais preocupações mesclavam-se com o que se perce-
bia como sinais de esperança, sendo um dos mais significativos os elogios à utilida-
de dos povoadores da vila de Macapá para o crescimento da agricultura e comércio
do Estado,65 consistindo no cultivo dos gêneros “que dizem respeito aos negócios de
fora” (como “cravo, cacau, salsa, cupaúbas”) como também “fazer salgas de peixe,
manteigas e tartarugas, que pertence ao negócio da terra”.66
Os povoamentos, aliás, eram o empreendimento que sintetizava as tópicas
apresentadas no discurso econômico pombalino. Embora a preocupação com a
ocupação do território fosse anterior a este período,67 ela ganha novas ênfases com
a política pombalina, que são perceptíveis já na época em que Carvalho e Melo e
diplomata em Londres, quando afirmava suspeitar que ingleses tencionavam criar
colônias “nos sertões setentrionais do Rio da Prata” e atrair o dinheiro de cristãos
406.
64 Cf. Carta a Sebastião José... 1754, Carta de 12 de julho de 1755 in M. C. D. A Amazônia na Era
68 Cf. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.
285-294.
69 Carta de Sebastião José a F. X. M. F.... 1753 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era
Pombalina. v. I, p. 508-509.
70 Carta a Sebastião José... 1754 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. II, p.
209.
71 Instruções Régias... 1751 in M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 75.
72 Ibid. p. 72-73; Papel no qual... in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. III, p.
1147.
73 SANTOS, A. C. D. A. Op.cit. p. 83 et seq.
89
característica informativa dos povoamentos, ‘política’, que pode ser vista no aspecto
civilizador dos povoamentos, e ‘comércio’, percebida no estímulo dos povoadores e
nativos à atividade comercial e sua utilidade. Tais ênfases podem ser encontradas,
de modo resumido, em uma das instruções dadas a Mendonça Furtado a respeito de
seu trabalho como governador do Grão-Pará e Maranhão, no ano de 1751:
p. 86.
78 Carta a Sebastião José... 1752 in Ibid. p. 365. Cf. Carta ao capitão Beron de Schomberg... 1756 in
de evitar a ruína do Estado, cuja raiz estava nas inúmeras fraudes cometidas pelo
povo.79 Por meio dessas medidas, era esperado que a expansão do comércio “pode-
rá com o tempo remediar tudo”.80
Visto que os dois projetos caminhavam lado a lado, o que garantiria o funcio-
namento desta combinação era o incentivo de povoadores e índios ao trabalho e ao
comércio, que deveria vir tanto das ordens de Mendonça Furtado como da pregação
da Companhia de Jesus.81 Um exemplo significativo da importância deste incentivo é
quando Mendonça Furtado, em 1756, escreve para Sebastião José um pequeno tra-
tado, listando em cem pontos as razões dos jesuítas abusarem da autoridade que
lhes foi concedida sobre o aldeamento e a escravidão dos índios. Nele, Mendonça
Furtado lamenta o abandono do projeto inicial dos aldeamentos pelos inacianos, que
consistia em “os instruírem nos mistérios da [...] fé católica, os civilizassem e os situ-
assem em partes acomodadas para a sua vida e costumes, e para se fazerem co-
municáveis no comércio com os moradores, com recíproca utilidade de uns e ou-
tros”, trabalhando em terras úteis ao Estado (isto é, que poderiam ser utilizadas de
acordo com os critério da Coroa),82 tornando-os assim “cristãos econômicos e civis,
para gozarem não só dos bens espirituais, que são só os sólidos, mas também dos
temporais, que legitimamente lhes pertencem”.83
É justamente nesta questão da identificação e organização de ofícios úteis à
Coroa Portuguesa que se encontra a menção explícita ao conceito de aritmética po-
lítica como um princípio organizador:
Pombalina. v. I, p. 503.
81 Instruções Régias... 1751; Carta a Diogo de Mendonça... 1752 in MENDONÇA, M. C. D. A
406.
83 Papel no qual F.X.M.F. mostra em 100 itens que o negócio que os padres fazem não é licito nem
conservam, enquanto lhes não pedem as dívidas que têm contraído; e que
logo que se lhes pedem, é preciso fugirem, porque além dos negros e
ferramentas que se lhes dão fiadas – como tudo o que os mesmos negros
comem e vestem, não têm por onde paguem. Fundando-se nestes
certíssimos fatos, a máxima universalmente recebida na Aritmética Política,
que gradua os ditos mineiros pelo que a eles lhes pertence, abaixo dos
remendões dos sapateiros, e dos soldados rasos; e pelo que toca ao
Estado, pelos menos úteis de todos os Vassalos.
Pelo que respeita aos outros casais que por ora aqui devem ficar, me tem
ocorrido mandar fundar outra Vila no rio Xingu, aonde as terras são
excelentes estabelecendo entre as povoações dos índios que há no mesmo
rio uma de brancos, que possam comunicar com eles, para se irem assim
civilizando; e me pareceu que seria também não só útil, mas sumamente
importante se V. Maj. fosse servido declarar que não só não induz infâmia o
casamento dos brancos com as índias, mas, contrariamente, conceder-lhes
alguns privilégios que entendo é o único meio de podermos povoar este
largo Estado, e de dar a conhecer aos naturais dele que os honramos e
estimamos, sendo este o meio mais eficaz de trocarmos o natural ódio que
nos têm pelo mau tratamento e desprezo com que os tratamos, em amor à
boa fé, fazendo os interesses comuns, sem cujos princípios não é possível
subsista e floresça esta larga extensão de país.88
CONCLUSÃO
87 Cf. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 106,
1984; SANTOS, A. C. D. A. Op. cit. p. 85.
88 Carta ao Rei... 1753 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 518-519.
89 Carta a Sebastião José... 1754 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. II, p.
186.
93
BIBLIOGRAFIA
PINCUS, S. Rethinking Mercantilism: Political Economy, the British Empire, and the
Atlantic World in the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary
Quarterly, Williamsburg, v. 69, p. 3-34, Janeiro 2012. Disponivel em:
<https://www.jstor.org/preview-page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>.
Acesso em: 5 Julho 2019.
2019.