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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA

LEONARDO AMARAL DA CRUZ OLIVEIRA

UTILIDADE, INTERESSE E TRABALHO:


Aritmética Política e Ilustração Luso-brasileira (1730-1777)

NITERÓI
2020
LEONARDO AMARAL DA CRUZ OLIVEIRA

UTILIDADE, INTERESSE E TRABALHO:


Aritmética Política e Ilustração Luso-brasileira (1730-1777)

Monografia apresentada à Coordenação de Gra-


duação como requisito final para obtenção de títu-
lo de Licenciado em História pelo Instituto de His-
tória da Universidade Federal Fluminense.

Orientador: Prof. Dr. Renato Franco - UFF

Niterói
2020
(FICHA CATALOGRÁFICA)
LEONARDO AMARAL DA CRUZ OLIVEIRA

UTILIDADE, INTERESSE E TRABALHO:


Aritmética Política e Ilustração Luso-Brasileira (1730-1777)

Monografia apresentada à Coordena-


ção de Graduação como requisito final
para obtenção de título de Licenciado
em História pelo Instituto de História da
Universidade Federal Fluminense.

Local, ____ de _____________ de _____.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Renato Franco
UFF

________________________________________
Leitor Crítico
Afiliações
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à UFF pela minha formação acadê-
mica ao longo deste período de graduação, em um espaço plural e aberto ao deba-
te, como também ao CNPq, que possibilitou os primeiros passos desta pesquisa pe-
la Bolsa PIBIC entre 2018 e 2019. Também agradeço os conselhos e ideias do meu
orientador, Renato Franco, como também sua paciência deste os tempos de inicia-
ção científica.
Agradeço aos amigos que fiz durante a graduação, pelo apoio, pelas conver-
sas e pela troca de ideias. Também para o amigo Wellington, que me ajudou na for-
matação deste trabalho.
Agradeço aos amigos da Igreja Presbiteriana de Barro Vermelho, da Cru
Campus e do Grupo de Estudos da Associação Brasileira de Cristão na Ciência
(ABC²) na UFF, que me ajudarem com orações, insights e debates transdisciplina-
res.
Agradeço à Jennifer, minha amiga, amada e companheira, pelo apoio nos
momentos difíceis da pesquisa.
Agradeço a toda minha família pelo apoio aos estudos acadêmicos, e princi-
palmente meus pais, pelo esforço e amparo para que concluísse essa etapa.
Por fim, agradeço e dedico este trabalho a Deus, em quem “estão escondidos
os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Colossenses 2:2), porque ele “não
menospreza nem repudia o sofrimento do aflito” (Salmos 22:24).
RESUMO
OLIVEIRA, Leonardo Amaral da Cruz. Utilidade, Interesse e Trabalho – Aritmética
Política e Ilustração Luso-Brasileira (1730-1777). Monografia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2020.

Esta pesquisa objetiva identificar os usos da Aritmética Política (1690) e de


tópicas desta obra de William Petty (1623-1687) como justificativa para as tomadas
de decisão da Coroa Portuguesa no período em que Sebastião José de Carvalho e
Melo (1699-1782) foi Secretário de Estado de Portugal. Para este fim, analisa-se a
correspondência entre Sebastião José e seu irmão Francisco Xavier de Mendonça
Furtado (1700-1769), quando este era governador do Estado do Grão-Pará e Mara-
nhão. Também se avalia a viabilidade dos conceitos ‘Iluminismo’ e ‘mercantilismo’
para classificar a política pombalina, e para tanto utiliza-se a metodologia da História
dos Conceitos como recurso investigativo.

Palavras-chave: Aritmética Política, Marquês de Pombal, Iluminismo, Mercantilismo,


História dos Conceitos.
ABSTRACT
OLIVEIRA, Leonardo Amaral da Cruz. Utility, Interest and Labor – Political Arith-
metic and Luso-Brazilian Illustration (1730-1777). Undergraduation Thesis of His-
tory at Federal Fluminense University (UFF), Niterói, 2020.

This research aims to identify the uses of Political Arithmetic (1690) and topi-
cals of this work by William Petty (1623-1687) as a justification for the decision mak-
ing of Portuguese Crown in the period when Sebastião José de Carvalho e Melo
(1699-1782) was Secretary of State. To this end, the correspondence between Se-
bastião José and his brother Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769),
when he was governor of the State of Grão-Pará and Maranhão is analyzed. The
viability of the concepts ‘Enlightenment’ and ‘Mercantilism’ to classify Pombaline poli-
tics is evaluated as well, and for that purpose, the Conceptual History methodology is
used as an investigative resource.

Keywords: Political Arithmetic, Marquise of Pombal, Enlightenment, Mercantilism,


Conceptual History.
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................... 8

1 Ascensão Política de Sebastião José de Carvalho e Melo..................................... 12


1.1 Ações governativas .......................................................................................... 15
1.2 Interpretações do legado político pombalino .................................................... 23
1.3 O que é Iluminismo? ........................................................................................ 26
1.3.1 O conceito de Iluminismo ........................................................................... 26
1.3.1.1 Perspectivas sobre Iluminismo e Estado ............................................. 28
1. 4 O que é mercantilismo? .................................................................................. 33
1.4.1 Economia política e mercantilismo............................................................. 33
1.4.1.1 Críticas à historiografia do ‘mercantilismo’ .......................................... 38

2 Recuperando os debates ....................................................................................... 43


2.1 A Importância da História Dos Conceitos......................................................... 44
2.2 Utilidade, Interesse e Trabalho ........................................................................ 48
2.2.1 A filosofia moral medieval .......................................................................... 49
2.2.2 O abandono da filosofia moral medieval .................................................... 50
2.2.2.1 Utilidade............................................................................................... 56
2.2.2.2 Interesse .............................................................................................. 61
2.2.2.3 Trabalho .............................................................................................. 64
2.2.2.3.1 Trabalho e Comércio .................................................................... 65

3 Aritmética política na administração pombalina .................................................... 68


3.1 A formação intelectual de William Petty ........................................................... 68
3.1.1 A aritmética política.................................................................................... 75
3.2 Discurso econômico na política pombalina ...................................................... 79
3.2.1 Além da aritmética política ......................................................................... 80
3.2.1 Uso da aritmética política ........................................................................... 83
3.2.1.1 A Amazônia como “laboratório” ........................................................... 84

Conclusão ................................................................................................................. 92
Bibliografia................................................................................................................. 94
8

INTRODUÇÃO

O presente trabalho abordará parte das ações de Sebastião José de


Carvalho de Melo e Castro (1699-1782) a partir de 1730, tendo como ponto de
partida seu contato com a Royal Society e o fim do reinado de D. José I em 1777.
Busca-se ter em perspectiva a identificação do uso do repertório da Aritmética
Política de William Petty neste período.
Em primeiro lugar, para tal empreendimento, é necessário realizar um breve
sumário da trajetória política de Sebastião Carvalho e em que circunstâncias ele
teria tido contato com a obra de William Petty. Quando o rei d. João V faleceu,
Sebastião Carvalho de Melo e Castro era uma figura ascendente, vinda da
diplomacia, tendo atuado em Londres (1738-1743) e Viena (1744-1749). Em 1745,
casara-se em segundas núpcias com d. Maria Leonor Ernestina, condessa de Daun,
da elevada nobreza imperial, o que lhe renderia a proteção de pessoas importantes
dos círculos cortesãos. No entanto, era um dos muitos nomes aventados para
formar parte do novo governo que se avizinhava, que, a despeito das disputas que
ganharam corpo a partir do início de 1750, teve seus secretários efetivamente
escolhidos apenas com a morte do rei. Em 3 de agosto – d. João V falecera em 31
de julho –, apesar de fortes nomes na oposição, Carvalho e Melo seria alçado ao
cargo de secretário de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros.1
O período em que esteve em Londres aproximou Carvalho e Melo da
literatura inglesa sobre razão de estado. José Sebastião da Silva Dias afirma que
“não esteve o diplomata tão absorvido pelas ocupações profissionais no estrangeiro
que não lhe sobrassem lazeres para voos mais amplos, em termos de formação,
para se realizar como político. Temos uma imagem desses voos, no recheio da
biblioteca que constituiu em Inglaterra”.2 Dias, então, propõe uma listagem das obras
adquiridas pelo enviado de Portugal a Londres, enquanto construía sua biblioteca
entre os anos de 1739 e 1743. Nessa “biblioteca londrina” de Carvalho e Melo, nota-
se a presença de diversos autores considerados como fundamentais para a
compreensão do pensamento mercantilista, entres os quais Dias destaca Thomas
Mun (1571-1641), Charles Davenant (1656-1714), Josiah Child (1630-1699), Joshua

1 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p. 202,
1983.
2 DIAS, J. S. D. S. Op.cit, loc.cit.
9

Gee (1698-1748), e o já mencionado William Petty (1623-1687).3 Contudo,


comprovar a presença da obra de Petty na biblioteca de Carvalho e Melo não é
suficiente para que se afirmem as influências de Aritmética Política nas ações
governativas do futuro Marquês de Pombal enquanto secretário de Estado. Antonio
Cesar de Almeida Santos aponta, por sua vez, a existência de manuscritos de
autoria de Carvalho e Melo que fariam referências diretas e indiretas ao conceito de
aritmética política tal como estabelecido por William Petty. Estes dois manuscritos
são intitulados Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do
mecanismo político e Mecanismo político no qual se oferece à mocidade portuguesa
uma suficiente instrução sobre os interesses do Estado (no que pertence ao
comércio e a agricultura). Neles, Sebastião José trata de responder ao problema de
como “um pequeno país, com abreviado número de povo” poderia se igualar em
riquezas e força às nações mais poderosas.4 Após citar os manuscritos pombalinos,
Santos, então, demonstra que a maneira como o problema da geração de riqueza foi
expressa nesses manuscritos é uma paráfrase do título do primeiro capítulo do livro
Aritmética Política de William Petty, em que o pensador inglês apresenta sua
primeira conclusão de seu breve tratado:

Que um país pequeno, com pouca gente, pode, por sua situação, por seu
comércio e pelas políticas que adota, ser equivalente em riqueza e poderio
a outro com território muito mais amplo e população muito maior, e
particularmente como a navegaçāo e o transporte maritimo, de maneira
excelente e fundamental, conduzem a isso.5

Um questionamento consequente à constatação da influência de Petty sobre


o pensamento de Sebastião José concerne ao que teria chamado sua atenção no
conceito de aritmética política. Que elementos poderiam oferecer ferramentas
políticas para o desenvolvimento de Portugal? Aqui, cabe uma breve síntese do que

3 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. III, p. 38,
1984.
4 BIBLIOTECA NACIONAL de LISBOA/COLECÇÃO POMBALINA (BN/PBA). Códice 686, fls. 187 a

190v. E 191 a 199 (paginado posteriormente) apud SANTOS, A. C. D. A. Aritmética política e a


administração do estado português na segunda metade do século XVIII. Jornada Setecentista,
2007, p. 146. Disponivel em:
<http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/Aritm%C3%A9tica-pol%C3%ADtica-Antonio-
Cesar-de-Almeida-Santos.pdf>. Acesso em: 19 Agosto 2019.
5 PETTY, W. Aritmética Política. In: CAMPOS, R. Os Economistas: Petty, Hume e Quesnay. São

Paulo: Abril, 1983. p. 115.


10

a Aritmética Política de Petty teria oferecido de novidade para o repertório intelectual


do período – e mais precisamente, para o embaixador português em Londres.
A novidade da chamada ‘aritmética política’ inglesa não estava no gênero
discursivo e tampouco no repertório das reflexões, mas na sua proposta de
matematização do mundo político por meio do uso estatístico de dados concretos
como modo de detectar e remediar problemas sociais. O termo ‘aritmética política’
tem origem em um tratado iniciado nos anos 1670 e publicado postumamente, em
1690, de autoria de William Petty (1623-1687), que fora secretário pessoal de
Thomas Hobbes (1558-1679).6 Fortemente influenciado pelo método empírico de
Francis Bacon (1561-1626), Petty expressava seus argumentos de forma
quantitativa, compartilhando a convicção de que a matemática deveria ser a base de
todas as ciências racionais de modo a balizar a tomada de decisões de forma
precisa. O método indutivo proposto por Bacon presumia a existência de leis
naturais e ‘mecanismos’ que regem o comportamento dos fenômenos naturais e que
são acessíveis ao entendimento humano por meio da formulação matemática.
Desse modo, opunha-se ao dedutivismo ao situar a origem do conhecimento na
experiência, a única fonte que possibilita desvendar a lei universal que funda os
feitos da natureza. Essa percepção que na política também existiriam mecanismos
está presente nos manuscritos pombalinos citados por Santos, quando Carvalho e
Melo afirma que “propõe apresentar ‘as matérias que devem constituir as regras do
mecanismo político’ [...] cujos princípios se reduzem a termos práticos e
mecânicos”.7
Entretanto, antes que se avance para uma análise mais apurada das
conexões entre a Aritmética Política de William Petty e as decisões políticas de
Sebastião José, é necessário ponderar acerca da relação deste às ideias
mercantilistas. José Luís Cardoso e Alexandre Mendes da Cunha, por exemplo,
definem as iniciativas do marquês de Pombal da seguintes forma:

6 Aritmética Política não foi publicada em vida; assim como outros importantes trabalhos de
Petty, foi publicado apenas postumamente. Dos escritos econômicos, convém ressaltar
ainda: Treatise of Taxes and Contributions, escrito em 1662; Verbum Sapienti, de 1665 e
publicado em 1691, e Quantulumcunque concerning money, de 1682 e publicado em 1695
7 SANTOS, A. C. D. A. Aritmética política e a administração do estado português na segunda metade

do século XVIII. Jornada Setecentista, 2007, loc.cit.


11

É possível ler na ação reformadora de Pombal, em particular em relação a


algumas das instituições centrais por ele criadas [...], uma perspectiva nova
de ação, informada sem dúvida por uma linhagem de ideias diferente, que,
ainda que articulada aos preceitos mercantilistas, abria-se decisiva e
irreversivelmente a novas perspectivas.8

Cardoso e Cunha realizam essa leitura tendo em perspectiva o papel do


marquês de Pombal na “entradas das Luzes em Portugal” e na “influência destas na
sua ação governativa”, concluindo que o uso de ideias marcardamente
mercantilistas foi, positivamente, matizado de inovações iluministas.9 Todavia, a
relação entre mercantilismo e iluminismo, como polos antagônicos do processo
histórico, também poderia ser alvo de um juízo “inverso”. Kenneth Maxwell, por
exemplo, afirma que as iniciativas reformistas de Carvalho e Melo eram uma
“reforma disfarçada”, que consistia em oferecer novas linguagens e símbolos
(iluministas) à estruturas mais arcaicas (mercantilismo e outras estruturas do Antigo
Regime).10 A natureza dessas conclusões indica que uma pergunta prévia teve de
ser respondida antes de avaliar o legado político pombalino como um todo, e fazê-la
novamente é crucial antes de prosseguir para o objetivo central desta pesquisa: o
quão “iluminista” ou “mercantilista” foi Marquês de Pombal?

8 CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Discurso econômico e política colonial no Império Luso-Brasileiro


(1750-1808). Tempo, Niterói, p. 69, Janeiro 2011. Disponivel em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
77042011000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 15 Julho 2019.
9 Ibid. p. 66.
10 MAXWELL, K. Marquês de Pombal: o paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p.

10.
12

1 ASCENSÃO POLÍTICA DE SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO E MELO

A fim de elucidar as ligações de Carvalho e Melo com a retórica mercantilista


e também com a iluminista é útil que se faça uma reconstrução mais detalhada,
ainda que breve, da sua vida e de sua trajetória política. Sem a percepção de que
contextos favoreceram a interação do marquês de Pombal com esses dois “polos
opostos” do pensamento europeu do século XVIII, torna-se inviável a análise de
suas ações políticas e do repertório intelectual que as tivesse fundamentado, pois a
compreensão da política de Sebastião José passa pelo entendimento que

[...] a ação de governo de Sebastião José de Carvalho e Melo será


constituída, em boa parte, mas não exclusivamente, pelo resultado de uma
análise sua dos governos europeus, fruto das suas experiências e da sua
ciclópica atividade diplomática, dos contatos pessoais com as mais variadas
personalidades estrangeiras e portuguesas.11

Nascido em Lisboa no ano de 1699, Sebastião José de Carvalho e Melo


provinha de uma família aristocrática, embora a família Carvalho fosse uma “família
modesta de pequenos fidalgos que serviram como soldados, sacerdotes e
funcionários públicos dentro dos confins de Portugal e, ocasionalmente, no ainda
extenso inípério português ultramarino”.12 Depois da morte de seu pai, a família
enfrenta grandes dificuldades financeiras e passa a depender de seu tio, arcipreste
da patriarcal de Lisboa e desembargador doutor Paulo de Carvalho e Ataíde, quando
Sebastião Carvalho deixou a capital portuguesa para cuidar de propriedades rurais
da família na cidade de Pombal, região central de Portugal (e de onde se origina o
título conferido em 1769, pelo qual ficou conhecido).13 Nesse período, à altura do
ano de 1723, Carvalho e Melo casou-se com uma viúva, d. Teresa de Noronha e
Bourbon Mendonça e Almada (1687-1739), sobrinha do conde dos Arcos, ato que
ligou o futuro marquês de Pombal à primeira nobreza portuguesa. Por conta da
proteção de seu tio arcipreste, Sebastião José teve seu ingresso garantido na Real
Academia de História, em 1733. Posteriormente, em 1738, Carvalho – sobrenome

11 RODRIGUES, L. F. M. Fundamentos ilustrados do governo pombalino para a Amazônia Colonial.


Revista de Estudos de Cultura, p. 111, Maio 2016. Disponivel em:
<https://seer.ufs.br/index.php/revec/article/view/5937>. Acesso em: 15 Agosto 2019.
12 MAXWELL, K. Op.cit. p. 2.
13 Em 1759, Sebastião José receberia o título de Conde de Oeiras.
13

pelo qual era conhecido Sebastião José – foi indicado como enviado extraordinário
de Portugal a Londres. Embora não tivesse prestado serviços anteriores à Coroa, tal
fato se deu muito por conta de alguma fama de erudito, e com o amparo de seu
primo, Marco Antônio de Azevedo Coutinho (1688-1750), que tinha acabado de ser
nomeado secretário de Estado.14
Dias afirma que a missão de Carvalho e Melo em Londres era dupla: em
primeiro lugar, estava a busca por soluções para os atritos entre Portugal e
Inglaterra acerca de acordos tratando da relação de ambos no comércio e na
navegação; segundo, Carvalho deveria estudar na própria Inglaterra “os meios e
métodos” para que Portugal se lançasse “a uma política nacional de
desenvolvimento”.15 Para tanto, Carvalho chegou a frequentar reuniões da Royal
Society, onde não apenas conseguiu informações mais detalhadas acerca das
posições britânicas, como também o contato com o repetório intelectual que o levou
a montar sua biblioteca, como referido acima.16
Não apenas sua experiência em Londres contribuiu para a formação de seu
repertório político. No ano de 1745, chegou a Viena, capital austríaca, depois de
passar novamente por Londres. Carvalho e Melo havia sido enviado com a missão
de intermediar as negociações entre a corte austríaca e a Santa Sé em Roma.
Entretando, o enviado português não via com bons olhos essa missão: no retorno à
Lisboa após o período de negociações em Londres, Sebastião José teria se
convencido da necessidade da criação de uma companhia de comércio para as
Índias Orientais portuguesas. Seu envio para Viena, em sua perspectiva, era,
segundo Dias, um “presente envenenado”, a fim de afastá-lo do centro de poder
para que seu projeto da companhia não vingasse.17 Apesar disso, sua estadia em
Viena ainda se mostrou proveitosa para sua trajetória política. Lá, Carvalho e Melo
pôde observar de maneira mais próxima e prática o repertório político das
negociações entre o Império de Áustria e a Cúria romana, que lhe serviu
posteriormente como orientação política para os conflitos entre a Coroa portuguesa
e a Igreja católica, especialmente, conforme Dias, em sua fundamentação regalista e

14 Ibid. p. 2-3; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. História de Portugal. Lisboa: A Es-
fera dos Livros, 2014. p. 393-394.
15 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.

205, 1983.
16 MAXWELL, K. Op.cit. p. 6; CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op.cit. p. 73.
17 Ibid. p. 8.
14

anticurialista nas disputas com os jesuítas.18 Carvalho e Melo também retornou a


Portugal casado com d. Maria Leonor Ernestina (1721-1789), a condessa de Daun –
abençoado pela imperatriz Maria Teresa (1717-1780); este casamento foi crucial
para elevar o nome de Sebastião José aos mais altos níveis da nobreza e torná-lo
forte candidato aos postos mais importantes do Estado.19
No momento em que Sebastião José se destacava entres os principais nomes
a ocuparem postos nas secretarias do reino, a Secretaria dos Negócios do Reino
estava ocupada pelo padre Pedro da Mota e Silva,20 entrevado em casa desde 1741,
e Carvalho e Melo teve de enfrentar a oposição aberta de Frei Gaspar da
Encarnação,21 concorrendo com ninguém menos que Alexandre de Gusmão,22 que
era desde os anos 1740, secretário pessoal de d. João V e mentor do Tratado de
Madri, assinado no início de 1750. Em 3 de agosto, Melo e Castro era alçado ao
cargo de secretário de Estado dos Negócios da Guerra e Estrangeiros, em uma
disputa que teve o apoio da rainha viúva, amiga da esposa do então futuro Marquês
de Pombal; o terceiro escolhido foi o de Diogo de Mendonça Corte Real23 para a
Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar. Os novos nomes eram experimentados
diplomatas, como, aliás vinha sendo a maior parte dos secretários anteriores.24
Sebastião José, após ser escolhido para ocupar o cargo de secretário de
Estado, contou com o auxílio de seus irmãos para que seus objetivos políticos
pudessem ser materializados. Especificamente, Paulo de Carvalho e Mendonça
(1702-1770) que era sacerdote, foi nomeado cardeal pelo papa Clemente XIV, e
posterioremente tornou-se inquisidor-geral e presidente do concelho municipal de
Lisboa (posição para a qual Pombal indicou seu filho mais velho, Henrique, após a

18 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. III,


passim, 1984. Cf. CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op.cit. p. 73-74 acerca da inspiração que
Carvalho e Melo teve em Viena para reformas institucionais em Portugal, e RODRIGUES, L. F. M.
Op.cit., p. 105, para o debate entre Carvalho e Melo e o Duque Manuel Teles da Silva acerca de
tópicas vistas por ambos como cruciais acerca do estado e do futuro de Portugal.
19 MAXWELL, K. Op.cit. p. 3; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. loc.cit.
20 Irmão do principal valido do rei, o cardeal João da Mota, morto em 1747.
21 Frei Gaspar da Encarnação (1685-1752), franciscano, reformador dos Cônegos Regrantes, irmão

do Marquês de Gouveia, tratava dos assuntos particulares do rei sobretudo na educação dos filhos
adulterinos. Após a morte do Cardeal da Mota procurou substituí-lo na direção dos assuntos de Esta-
do.
22 Alexandre de Gusmão (1695-1753) foi diplomata, responsável por negociar o Tratado de Madri,

assinado com a Espanha em 1750. Entre as décadas de 1730 e 1750, foi secretário particular de D.
João V e, nessa condição, teve grande influência nas decisões régias.
23 Diogo de Mendonça Corte Real (c.1696-1736) era filho bastardo, nascido em Madri, do diplomata e

secretário de Estado de d. João V seu homônimo.


24 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. loc.cit.
15

morte do irmão). Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), por sua vez,
foi governador da província do Grão-Pará e do Maranhão, cujo território, à época,
cobria todo o vasto vale do Rio Amazonas, e quando retornou à Lisboa, trabalhou
bastante próximo de Carvalho e Melo como ministro dos negócios ultramarinos.
Ambos participaram significativamente dos planos políticos de Sebastião José.
Maxwell afirma que a lealdade de Paulo de Carvalho e Mendonça Furtado ao
secretário de Estado era tal que “a família era muito unida. Nem Mendonça Furtado
nem Paulo de Carvalho se casaram, e ambos combinaram seus recursos financeiros
e propriedades no interesse de Pombal”.25

1.1 AÇÕES GOVERNATIVAS

Muito se credita a centralização das decisões políticas em Portugal nas mãos


de Carvalho e Melo por conta dos danos que o terremoto de 01 de novembro de
1755 causou à sociedade portuguesa. Entretanto, é possível afirmar, segundo Nuno
Monteiro, que Sebastião José já seria o “primeiro decisor político” do reino, embora
não contasse com um controle total da situação.26 Ainda, de acordo com os autores,
o terremoto de 1755 criou uma catástrofe material e cultural que acelerou mudanças
em curso e permitiu condições para a mudança, que veio por meio de um "terremoto
político" e suas consequências: a possibilidade maior de intervenção do Estado, atu-
ação das secretarias de Estado como centros de decisão política, como também a
aparição de uma estrutura de "governo" no sentido mais contemporâneo.27 De acor-
do com Maxwell, essa centralização que colocou Carvalho e Melo no centro das de-
cisões políticas deriva do temor da família real diante da avaliação da catástrofe, em
que foram contabilizados entre 10 mil e 40 mil mortos (na época, teria se acreditado
mais no último número), considerando também quatro dias de incêndios e maremo-
tos por consequência dos tremores de terra. A destruição atingiu a maior parte dos
edifícios pertencentes à Coroa, especialmente o Real Teatro da Ópera, que havia
sido inaugurado em outubro daquele ano. O futuro marquês de Pombal, então, teria
se colocado ao lado do rei d. José I, dando muitas “providências”, sendo as princi-

25 MAXWELL, K. Op.cit. p. 3.
26 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 397.
27 Ibid. p. 399.
16

pais delas relacionadas à reconstrução de Lisboa, com foco no centro da cidade.28


Como resultado desta aproximação entre d. José I e Sebastião José, o fortalecimen-
to do poder real por meio da ação do secretário de Estado implicou em um fortaleci-
mento das secretarias como “estruturas supletivas de informação, petição e conse-
lho da coroa”, ocupando, assim o lugar das cortes no processo de decisões políti-
cas.29
Outro evento que serviu para a consolidação foi o atentado de 3 de setembro
de 1758, em que tiros foram disparados contra a carruagem na qual seguia o rei d.
José I.30 Em dezembro de 1758, o que havia sido julgado como acidente passou a
ser visto como crime (especialmente por parte da rainha d. Mariana Vitória), e neste
mês as prisões começaram. A partir de um processo sumário no qual a casa de Tá-
vora e outros nobres e fidalgos com alguma ligação próxima aos Távora foram acu-
sados. O uso do sobrenome Távora foi proibido, e acerca das punições, o horror foi
utilizado como exemplo do poder real:

As penas aplicadas aos inculpados no processo foram já muitas vezes


descritas, como amplamente difundida foi, tanto na própria época como na
posteridade, a iconografia, em particular as gravuras, desse momento ímpar
de terror e suplício da História portuguesa. Em Janeiro de 1759, pelas oito
horas da manhã, num cadafalso erguido em Belém, a marquesa de Távora
mais velha seria decapitada e os corpos dos demais inculpados quebrados
até à morte com inusitada crueldade, antes de se largar fogo ao cadafalso. 31

Sebastião José “na prática, assumiu o papel de primeiro ministro”, e embora


esse cargo não tenha existido de fato na Coroa portuguesa, é possível dizer que seu
uso frequente é uma tentativa de traduzir as funções exercidas pelo secretário de
Estado português, ao longo da sua trajetória política, da maneira mais assimilável
possível para aqueles que se dedicam a entender este período da História Moderna

28 MAXWELL, K. Op.cit. p. 21-24; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 397-
400.
29 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 59,

1982.
30 Importantes também são os eventos da repressão à revolta dos taberneiros do Porto, em 1757, e a

expulsão dos jesuítas de Portugal em 1759, que serão mencionados adiante, quando da análise do
repertório intelectual de Sebastião José de Carvalho e Melo.
31 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 404.
17

de Portugal.32 Durante a administração de Carvalho e Melo, o que se viu em Portu-


gal foi um momento em que os passos iniciais para o surgimento de um corpo de
funcionários especializados a trabalhar de modo “oficial” para o Estado:

[...] a governação do marquês de Pombal levou à constituição do que hoje


chamamos “Governo” – as secretarias de Estado, antecessoras dos atuais
ministérios – e à supremacia desse Governo e dos respectivos ministros
sobre as outras instituições da administração central, designadamente sobre
os conselhos, embora estes subsistissem até 1833, e sobre os Grandes do
Reino, que antes constituíam, através do Conselho de Estado, um núcleo
central no processo de decisão política.33

Este robustecimento das secretarias sob o direcionamento de Carvalho e Me-


lo permitiu-o colocar em prática uma série de ações que visavam reformar a estrutu-
ra política do Estado português a partir de “novos modos de governar”.34 Essa atitu-
de reformista era em muito motivada por uma “consciência do atraso”, presente nos
setores intelectualizados de Portugal.35 Nos debates intelectuais acerca do desen-
volvimento das nações, o país era recorrentemente citado como um exemplo dessa
decadência,36 e é possível constatar que atores políticos próximos e influentes nas
principais decisões da monarquia partilhavam dessa “consciência”, que discutiam a
defasagem cultural portuguesa fundamentados na tópica “decadentista”, que identifi-
cava como origem do atraso português, principalmente, no peso excessivo das or-
dens religiosas, nas estrutura educacional, e nas determinações do Tratado de Me-
thuen de 1703. Em virtude dessa percepção comum que Portugal carecia de refor-
mas – ainda que nem sempre estar se alinhassem com os paradigmas das Luzes –
esse grupo de atores políticos é comumente denominado de “reformistas”.37
Carvalho e Melo, por suas ações e discurso político, certamente poderia ser
enquadrado como um dos reformistas. Por exemplo, Maxwell cita a criação do Erário
Régio em 1761, “com vistas à racionalização e centralização” do fluxo de rendas da

32 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 407. Cf. MAXWELL, K. Op.cit. p. 19,

96; mencionando as reformas do sistema tributário português que entregaram sua administração ao
“primeiro-ministro”.
33 Ibid. p. 412.
34 VIEIRA, I. G. As artes de governar no período pombalino. Revista 7 Mares, Niterói, v. II, p. 99,

2014. Disponivel em: <https://www.historia.uff.br/7mares/wp-


content/uploads/2018/11/v02n04a09.pdf>. Acesso em: 9 Setembro 2019
35 Cf. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p.

113, 1982
36 MAXWELL, K. Op.cit. p. 17.
37 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 392-393.
18

coroa. Naquele período, o conde de Oeiras teria trazido para si o controle o controle
sobre o Tesouro como ocupante do cargo de Inspetor-Geral, “uma vez que este ha-
via sido planeado para que seu ocupante ficasse muito próximo do monarca e, por
implicação, do primeiro-ministro”,38 esta racionalização ocorreu com um objetivo tri-
plo, que consistia em, primeiro, recuperar e organizar os registros contáveis, ainda
lidando com as complicações causadas pelo terremoto de 1755; segundo, tornar o
Estado português mais eficiente para o desenvolvimento e, assim equiparar-se às
grandes nações, como Inglaterra e França; terceiro, esta reforma buscava a inova-
ção política e superação do paradigma anterior no trato com as finanças do reino.39
Outro fator a se considerar nas ações reformistas de Carvalho e Melo é a
aplicação do Tratado de Madri de 1750, assinado pelo rei d. João V pouco antes de
seu falecimento, firmado com o rei Fernando VI de Espanha. O tratado visava reor-
ganizar as fronteiras entre os territórios portugueses e espanhóis na América, vindo
assim a substituir o Tratado de Tordesilhas de 1494, visto que ambas as nações não
respeitavam mais os limites acordados. Tendo em vista, também, os danos que o
terremoto de 1755 trouxe aos registros oficiais, iniciativas de Sebastião José como a
criação do Erário Régio (e outras que serão mencionadas adiante) tinham por objeti-
vo conhecer e proteger as riquezas de Portugal, e mais especificamente, do território
do Brasil, dos avanços territoriais da Espanha, visto o histórico de disputas pela Co-
lônia de Sacramento,40 como também evitar uma invasão inglesa, possibilidade que
cogitava Sebastião José desde 1741, quando ainda embaixador em Londres, afir-
mava que a “inveja do nosso Brasil, tão forte nos corações britânicos, no final irá le-
vá-los a atacar a América portuguesa”.41
A esta altura, cumpre ponderar acerca da existência (ou não) de um “projeto
político” idealizado por Carvalho e Melo. Mesmo após dizer que sua pretensão era
recuperar o repertório intelectual de Sebastião José, Maxwell acredita que o mar-
quês de Pombal era “um adaptador pragmático e sutil”, que foi capaz de

38 MAXWELL, K. Op.cit., p. 96.


39 CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op.cit., p. 76.
40 SANTOS, A. C. D. A. Aritmética política e a administração do estado português na segunda metade

do século XVIII. Jornada Setecentista, 2007, p. 145. Cf. MAXWELL, Op.cit., p. 95; RODRIGUES, L.
F. M. Op.cit., p. 109, acerca do medo de anexações espanholas de territórios portugueses na
América.
41 Cf. MAXWELL, K. Op.cit. p. 4.
19

[...] servir-se do considerável acervo do pensamento português antigo, como


também de suas próprias observações em Londres e Viena. Acima de tudo,
não hesitou em agir. Na verdade, a sua ação é a sua obra permanente, para
o melhor ou para o pior, dependendo muito de quem se era.42

Santos, ao referir-se a esse debate, apresenta também a posição de Nuno


Gonçalo Monteiro, em que o historiador português afirma não existir um “plano pré-
vio desenhado Carvalho”, mas que “a coerência na ação pombalina não resulta, as-
sim, de um plano sistemático, mas de uma certa unidade dos métodos de atuação, à
qual progressivamente se irá emprestar consciência doutrinária”.43 Santos diverge
tanto de Maxwell quando de Monteiro, pois vê no posicionamento de ambos uma
busca por um “projeto político oficial”, expresso na documentação produzida pelo
Estado ou quando da posse de Carvalho e Melo da secretaria de Estado, sendo as-
sim anunciada uma “cartilha política”, por assim dizer. Santos, então, demonstra
concordar com uma historiografia que surgiu nos anos 1980, e que percebe nas cor-
respondências e “providências” originadas do Trono “um desejo expresso de ‘civili-
zar a nação’”.44 Desse modo, é anunciada sua concordância com José Sebastião da
Silva Dias, quando este afirma que “a prática política” ainda que permeada por con-
tradições, pode ser fruto de um “projeto político definido”.45

42 MAXWELL, K. Op.cit., p. 169-170.


43 MONTEIRO, N. G. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. p. 101 apud
SANTOS, A. C. D. A. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do
Reformador. Topoi, Rio de Janeiro, v. XII, p. 86, Janeiro/Junho 2011. Disponivel em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100075>. Acesso em: 4
Setembro 2019. Cf. RODRIGUES, L. F. M. Op.cit., p. 111, em que o autor defende a posição que
deriva de uma “abordagem psicológica” do legado político do Marquês de Pombal, em que Carvalho e
Melo teria agido mais baseado em “ressentimento e obsessão” que, necessariamente, por princípios
ideológicos. Esta abordagem está presente em LOPES, A. Enigma Pombal. Nova Documentação.
Tentativa de Interpretação. Lisboa, Roma Ed., 2002.
44 SANTOS, A. C. D. A. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do

Reformador. Topoi, Rio de Janeiro, v. XII, loc.cit , Janeiro/Junho 2011. Disponivel em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2011000100075>. Acesso em: 4
Setembro 2019. Cf. RODRIGUES, L. F. M. Op.cit., p. 105; VIEIRA, I. G. Op.cit., p. 99-100.
45 SANTOS, A. C. D. A. Op. cit. loc.cit. Dias, por sua vez, explica a relação entre prática política e

teoria política da seguinte forma: “A prática política não é um produto mecânico da teoria política.
Supõem-na, com formulação explícita ou em estado meramente implícito; reflete-a, com mais ou me-
nos entorses, com mais ou menos desvios; mas obriga-a também a correções centrais ou periféricas
e ajusta-a ao particular das conjunturas ou dos momentos. É por isso que estudar a teoria política de
uma corrente, de um governo ou de uma época não equivale a conhecer a respectiva prática política,
e vice-versa. As contradições, as indefinições, as perplexidades, os contágios, são inseparáveis do
teoria política, mas são-no, não menos, da prática política e das relações entre uma e outra. O linear
não existe no real da História e deve ser expulso da historiosofia”. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e
Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p. 185, 1983.
20

Qual era o alcance deste “projeto político” de Carvalho e Melo? De acordo


com Dias, quando se estudam as inúmeras “relações” que Sebastião José enviara a
Lisboa enquanto diplomata e também as “providências” emanadas da Secretaria de
Estado, conclui-se que o objetivo do projeto político pombalino era a “reestruturação
do econômico e do ultramarino de Portugal”, com ênfase em “três núcleos de inte-
resses: o comércio, a navegação e, em lugar menos saliente, a indústria”, que pare-
ciam ao estadista português como “realidades solidárias”, que se influenciavam mu-
tuamente.46 Nesse quesito, dentre as medidas reformistas adotadas pelo secretário
de Estado, especialmente entre os anos 1750-176047, destacam-se a criação da
Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro (1756) e a Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1757), que por meio dos monopólios,
pretendia controlar a qualidade dos produtos exportados dos territórios portugueses,
como também controlar de modo mais efetivo o fluxo das riquezas de Portugal tanto
na Europa quanto na América.48 Esse momento ficaria marcado por ter o secretário
de Estado português reorganizado “o aparelho comercial de acordo com os conheci-
dos parâmetros mercantilistas”,49cujos parâmetros teriam sido adotados por Carva-
lho e Melo após sua experiência diplomática, em que teve de investigar “as técnicas
mercantilistas” que ocasionaram “a riqueza e o poder surpreendentes e crescentes
de França e Grã-Bretanha”,50 tendo, então, Sebastião José retornado a Portugal e
assumido a secretaria de Estado “imbuído de convicções mercantilistas”.51
Contudo, a criação das companhias e, consequentemente, dos monopólios
não viria sem o enfrentamento da insatisfação dos pequenos produtores. No caso da
Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, que controlava a quali-
dade e o preço os vinhos produzidos na cidade do Porto e arredores, os taberneiros,
temerosos de uma possível limitação dos postos de trabalho em virtude do aumento
do preço dos vinhos e da quebra das tavernas, organizaram uma sedição na cidade
do Porto em fevereiro de 1757, em que realizaram um saque ao edifício da Compa-
nhia, seguido de outra agitação em março. A repressão, comandada por Sebastião

46 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 148-149,


1984.
47 Cf. SANTOS, A. C. D. A. Op.cit. p. 80; RODRIGUES, L. F. M. Op.cit., p. 11-112.
48 MAXWELL, K. Op.cit., p. 95-97.
49 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 402.
50 MAXWELL, K. Op.cit., p. 10.
51 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 28.
21

José, foi formada a partir da ocupação da cidade por cerca de 3 mil soldados, da
demissão do Senado da Câmara do Porto e da dissolvição da Casa dos Vinte e
Quatro, que representava os taberneiros. Seguiu-se a isto a aplicação de penas di-
versas a 300 pessoas, mais a condenação de outras 26 à morte, que foram enforca-
das e, mais tarde, decapitadas, e tiveram suas cabeças expostas em paus na entra-
da da cidade como demonstração exemplar do vigor do poder real.52
Além da repressão à revolta dos taberneiros, as reformas ligadas ao poder
que os jesuítas tinham em Portugal também contribuíram para que Carvalho e Melo
alcançasse poder para aplicação de seu projeto político de reforma em várias fren-
tes. Incialmente, Sebastião José parecia ser um protegido dos inacianos quando dos
primórdios de sua carreira política, e tal fato permaneceria não obstante as reclama-
ções feitas acerca das missões jesuíticas por Gomes Freire de Andrade (1685-
1763), governador do Rio de Janeiro, e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, seu
irmão, à época governador do Grão-Pará e do Maranhão. Ambos enviaram ao futuro
conde de Oeiras relatórios apontando as complicações que os jesuítas causavam às
aplicações do Tratado de Madri, como também o poderio dos religiosos sobre as
populações indígenas, que os utilizavam como mão de obra. É também preciso con-
siderar a reação dos jesuítas no Brasil à criação da Companhia Geral de Comércio,
que abriu margem para medidas violentas contra os jesuítas, como a ordenação de
prisões e deportações de críticos da Companhia, punição que alcançou também os
mercadores que partilhavam das críticas, sendo também afetados pela dissolvição
da Mesa dos Mercadores de Lisboa seguida da criação da Junta do Comércio. É
nesse período que surgem a publicação de escritos antijesuíticos do ministro de d.
José I, embora o rompimento com os inacianos tenha iniciado com a expulsão dos
confessores da família real em 1757, e após acusação de participação dos jesuítas
no processo dos Távora, que julgou o atentado ao rei d. José I, a ordem seria extinta
em todos os domínios portugueses, em 1759.53
Costuma-se identificar como um dos princípios intelectuais para as ações go-
vernativas do marquês de Pombal a doutrina de que existiria uma ordem natural
que, de algum modo, seria coerente com os propósitos divinos estabelecidos pelo

52RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 403.


53RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 396 et. seq. Cf. VIEIRA, I. G. Op.cit. p.
108-109 para ver a correspondência de Gomes Freire de Andrade acerca do poderio jesuítico no
Brasil. A correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado será analisada adiante.
22

Criador. Essa ordem, por sua vez, consubstanciava-se na sociedade na maneira em


que esta existia, com seus corpos “distintos e naturais”, que formavam a “constitui-
ção natural do reino, traduzida no Direito”.54 Essa doutrina, conhecida pelo nome de
jusnaturalismo, tem sua origem nos escritos de Hugo Grócio (1583-1645) e Samuel
Pufendorf (1632-1694), ambos tendo suas obras catalogadas na biblioteca de Car-
valho e Melo.55 O objetivo do jusnaturalismo era encontrar um “direito natural válido
para todos os homens, de todas as crenças e nações”, porém sem recorrer à teolo-
gia e à Revelação como pressupostos, dependendo apenas da “reta razão” para es-
te empreendimento intelectual. Uma vez que esta doutrina procura ser marginal à
teologia, nela afirma-se a separação ente as esferas ‘temporal’ e ‘espiritual’, ambas
com autoridades distintas, sendo o Rei responsável por cuidar do “gládio temporal”,
ou seja, tendo autoridade máxima visando a proteção da sociedade civil, e a Igreja
responsável pelo “gládio espiritual”, ou seja, tendo autoridade máxima a fim de guiar
a fé dos cristãos.56
O projeto reformista pombalino, segundo Dias, serviu-se do jusnaturalismo
para criticar o controle jesuítico de algumas instituições do reino, principalmente nas
ligadas às estruturas educacionais. A doutrina do direito natural reforçou o regalismo
português, justificando de maneira mais intensa o controle do Estado no que con-
cerne aos bens e estruturas ‘temporais’ da Igreja. O padre António Pereira de Figuei-
redo (1725-1797), um dos principais intelectuais do regalismo no período de Sebas-
tião José fora secretário de Estado, defendia que “não há Estado na Igreja, mas a
Igreja está no Estado”. Tal afirmativa regalista era uma oposição à doutrina ultra-
montana, que defendia a autoridade da Santa Sé sobre todas as instâncias eclesiás-
ticas, como também autoridade moral sobre o rei.57 Nesse debate entre regalistas e
ultramontanos, uma contribuição importante para a posição regalista foi a publicação
da Dedução Cronológica e Analítica (1767), de autoria de José Seabra da Silva
(1732-1813). Nela, pretende-se reconstituir a história de Portugal desde o reinado de
d. João III, demonstrando os males ocasionados pela influência que a Companhia de
Jesus exercia na sociedade portuguesa. Segundo Dias, o texto procura situar a na-
tureza do papel do Estado tanto perante a Igreja quando a sociedade civil, defen-

54 Ibid. p. 429-430.
55 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 114.
56 Id. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 46-52, 78-79.
57 Ibid. p. 47.
23

dendo uma “monarquia pura”, em que o rei é soberano tanto sobre a Igreja quanto
sobre os súditos e as cortes.58
Esta argumentação não fui útil apenas para justificar a expulsão dos jesuítas
de Portugal, foi também utilizada quando do rompimento da monarquia portuguesa
com a Santa Sé no ano de 1760, quando ocorreu o casamento do irmão do rei d.
José, o príncipe d. Pedro, com sua sobrinha, d. Maria, a princesa da Beira. Na oca-
sião, em junho daquele ano, o núncio apostólico havia sido expulso pela demora em
buscar a aprovação da cerimônia em Roma, o que foi visto como um insulto; em ju-
lho, o enviado português a Roma e os residentes portugueses na cidade foram ex-
pulsos.59 O rompimento com o papado, que durou nove anos, foi um período em que
o conde de Oeiras teria iniciado reformas mais efetivas em prol da “secularização”
do Estado, pondo a administração da Igreja em Portugal sob gerência mais severa
da Coroa, e trazendo reformas no sistema educacional que, anteriormente dominado
pela escolástica dos jesuítas, agora passaria a ser direcionado por uma proposta de
racionalização por meio do estudo do jusnaturalismo e das obras de Francis Bacon
(1561-1626), René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704) e Isaac Newton
(1643-1727).60

1.2 INTERPRETAÇÕES DO LEGADO POLÍTICO POMBALINO

Devido à mescla entre elementos mercantilistas e iluministas no legado políti-


co do marquês de Pombal, procurou-se uma terminologia que pudesse sintetizar
estes dois corpos de conhecimento que se demonstraram antagônicos no desenrolar
da História. Uma das nomenclaturas utilizadas para descrever o período reformista
sob a administração de Carvalho e Melo é ‘despotismo esclarecido’.61 Maxwell ar-
gumenta que Pombal foi um dos nomes ilustres do despotismo esclarecido – ao lado
de Catarina II de Rússia (1729-1796), Frederico II de Prússia (1712-1786) e José II
de Áustria (1741-1790) – e cita António Ribeiro dos Santos (1745-1818), um dos

58 Ibid. p. 53-54.
59 MAXWELL, K. Op.cit. p. 99; RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit. p. 406. Aqui,
diferente de Maxwell, é relatado apenas que o núncio apostólico não foi avisado da cerimônia.
60 MAXWELL, K. Op.cit., p. 10-14.
61 Cf. MONTEIRO, N. G. Kenneth Maxwell: Pombal, the Paradox of the Enlightenment. E-Journal of

Portuguese History, Coimbra, v. II, p. 110-119, 2013. Disponivel em:


<http://hdl.handle.net/10316.2/30730>. Acesso em: 22 Junho 2020.
24

principais intelectuais na defesa do projeto político pombalino. Ribeiro dos Santos,


em um momento de autocrítica conclui que Sebastião José “quis civilizar a nação e,
ao mesmo tempo, escravizá-la. Quis difundir a luz das ciências filosóficas e, ao
mesmo tempo, elevar o poder real do despotismo”.62 A partir disso, Maxwell define
as reformas da administração portuguesa do século XVIII como “uma reforma disfar-
çada”, e, também a fonte do subtítulo de seu livro acerca de Carvalho e Melo: “o pa-
radoxo do Iluminismo”.63
Pode-se acrescentar à definição de Maxwell a breve definição que Cardoso e
Cunha fazem de ‘despotismo esclarecido’, que seria a tentativa de “‘reaparelhar‘ as
estruturas próprias do Antigo Regime, de modo a continuarem existindo”, por meio
das “potencialidades transformadoras do real” presentes no Iluminismo.64 Para ilus-
trar seu ponto, os autores afirmam que três ideias centrais basearam o projeto políti-
co pombalino, nomeadamente o “mercantilismo tardio, a aritmética política e o came-
ralismo germânico”, sem, no entanto, deixar de existir abertura para outras influên-
cias, como as “ciências da administração do Estado”.65
Dias, por sua vez, classifica esse período pombalino como ‘absolutismo escla-
recido’,66 uma terminologia levemente distinta daquela defendida por Maxwell e por
Cardoso e Cunha, mas tal distinção não é sem importância, pois aponta para um
debate historiográfico acerca da relação entre ideias iluministas e Estados absolutis-
tas que teve suas idas e vindas desde a criação de ‘absolutismo esclarecido’ numa
publicação de Reinhold Koser em 1889.67 Retornando a Dias, ele afirma, no entanto,
que este ‘absolutismo esclarecido’ do marquês de Pombal não permaneceu unifor-
me, tendo sofrido alterações por “não nascer feito”, mas por ter sido construído ao
longo do tempo, embora o “colbertismo industrial” tenha sido o que garantiu o clímax
desse projeto na década de 1760.68 Dias ainda afirma ter existido em Portugal um
‘iluminismo católico’, que baseado no jusnaturalismo, encontrou um meio de ser a
ponte entre a entrada das Luzes entre os portugueses, ao mesmo tempo em que

62 Em BOXER, C. R. The Portuguese Seaborne Empire, 1415- 1825. Oxford, 1963. p. 191 apud
MAXWELL, K. Op.cit. p. 1-2.
63 MAXWELL, K. Op.cit., p. 10. Cf. RODRIGUES, L. F. M. Op.cit., p. 105.
64 CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op.cit., p. 65-88
65 Ibid. p. 69, 82.
66 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 45.
67 KOSER, R. Die Epochen der absoluten Monarchie in der neueren Geschichte, Historische

Zeitschrift, n.61, p. 246-287, 1889), mencionado em OUTRAM, D. The Enlightenment. 4ª. ed. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2019. p. 27.
68 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. I, p. 45.
25

mantinha “relações amigáveis com a igreja hierárquica”.69 Esse iluminismo católico


não se atentaria, primordialmente, a questões teológicas e metafísicas, mas a ques-
tões relacionadas à sociedade civil como também a racionalidade do catolicismo.70
Foram citadas aqui três perspectivas acerca dos matizes mercantilistas e ilu-
ministas em marquês de Pombal. Foi dito que solucionar essa problemática parece
ser um passo inicial da análise acerca da trajetória política de Sebastião José de
Carvalho e Melo. Entretanto, as três apresentam perspectivas distintas umas das
outras. Cardoso e Cunha, ao declararem Pombal como pertencente ao grupo de ato-
res políticos do ‘despotismo esclarecido’, parecem alinhados com as conclusões de
Maxwell, não obstante suas divergências acerca da relação entre o mercantilismo e
as ‘novas ideias’ iluministas. Enquanto este parece ver esta relação de modo negati-
vo, isto é, Carvalho e Melo usou do repertório iluminista para manter e reforçar estru-
turas do Antigo Regime, e portanto, arcaicas, aqueles percebem esta relação nas
decisões políticas de Pombal de maneira positiva, já que adotava um mercantilismo
“aberto a novas influências” (embora os autores não expliquem como essas influên-
cias se manifestaram). Dias, entretanto, aparece como uma terceira posição, reco-
nhecendo que houve contradições e alterações dentro do projeto político pombalino
com o avançar do tempo, ao contrário de Maxwell, Cardoso e Cunha, que defendem,
por exemplo, a influência “estrutural” do mercantilismo em Pombal; também que
existiram “dois tipos” de iluminismo em Portugal, o absolutismo esclarecido e o ilu-
minismo católico.
Na introdução, a partir de uma breve apresentação do debate historiográfico,
concluiu-se que as ponderações acerca do legado político pombalino deveriam con-
siderar “medir”, em algum nível, o quão “mercantilista” ou “iluminista” foi o marquês
de Pombal. Agora, depois de reconstituir, de maneira panorâmica a ascensão políti-
ca e as ações governativas principais de Carvalho e Melo, outra problemática surge:
dadas as divergências entre os autores supracitados acerca do sentido dos termos
‘mercantilismo’ e ‘iluminismo’, o quão precisos são esses termos? Parece que o de-
bate acerca da relação entre este dois “polos opostos” do século XVIII presume,
acriticamente, o potencial explanatório desses termos para as disputas intelectuais
do Setecentos como plenamente suficientes.

69 Ibid. p. 112.
70 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Teoria Polítca. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. III, p. 112,
26

Aqui, é necessário precaução para se evitar que tendências intelectuais, que


são efêmeras, tornem-se pressuposições analíticas, pois esse equívoco metodológi-
co prejudica, em algum nível, a compreensão do debates intelectuais no passado,
uma vez que tanto ações quando ideias têm suas consequências impensadas por
seu autores, o que dificulta (embora não inviabilize por completo) a percepção de
determinadas ideias como um corpo teórico hermeticamente fechado.71 Nesse senti-
do, Dias parece-nos correto quando afirma que “A prática política não é um produto
mecânico da teoria política”, e que, portanto, a existência de princípios, de uma teo-
ria, não anula a diversidade advinda de suas várias aplicações e das contradições
provenientes delas.72
Desse modo, é necessário recuperar os percursos e debates intelectuais
acerca de ideias que “proposições e opiniões que são presumidas por um grupo e
lhes parece tão óbvio que nunca chegam a serem articuladas por completo ou sis-
tematicamente”.73 No que concerne a esta pesquisa, isso implica avaliar as limita-
ções dos conceitos ‘mercantilismo’ ou ‘iluminismo’. Em outras palavras: se assumi-
mos que o marquês de Pombal teve influências mercantilistas e iluministas, para
uma investigação mais precisa, uma outra pergunta carece de ser respondida: como
definir ‘mercantilismo’ e ‘iluminismo’?

1.3 O QUE É ILUMINISMO?

Por Carvalho e Melo ser considerado um ‘reformista’, parece proveitoso iniciar


por uma análise acerca de como os elementos ditos ‘inovadores’ da sua ação políti-
ca são classificados, ou seja, sobre a viabilidade de Sebastião José ser identificado
em algum nível como “iluminista”.

1.3.1 O conceito de Iluminismo

71 SEN, A. Foreword. In HIRSCHMAN, A. O. The Passions and the Interests. Princeton: Princeton
University Press, 2013. p. XIV-XVIII.
72 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.

185.
73 HIRSCHMAN, A. O. The Passions and the Interests. Princeton: Princeton University Press, 2013.

p. 69. Aqui, Hirschman faz menção ao conceito de ‘dimensão tácita’ de Michael Polanyi. Cf. PO-
LANYI, M. A Dimensão Tácita. Edição Portuguesa, 2020.
27

O Iluminismo é comumente associado à Europa do século XVIII. Segundo


Nuno Monteiro, embora seja difícil definir esse período de maneira categórica, ou
estabelecer uma cronologia, é certo que o Iluminismo foi um período de “‘viragem’
nas sociedades europeias”.74 Essa “viragem” tornou-se possível pois, de acordo com
Ted McCormick, esse é o momento

quando as visões mecanicistas e corpusculares da natureza começaram a


desafiar seriamente o domínio do aristotelismo nas universidades, quando
as abordagens experimentais e químicas da medicina começaram a
deslocar a dependência tradicional de Galeno, quando a matemática
começou a afirmar sua centralidade na investigação da natureza, e quando
a ciência prática começou a competir pelo controle da agenda filosófica. 75

Ainda que seja possível traçar tendências intelectuais comuns, elaborar uma
definição última do que seria “Iluminismo” é uma tarefa laboriosa, pois deve-se ter
em vista que o Iluminismo era entendido de maneira diversa mesmo entre os “ilumi-
nistas” do Setecentos. Dorinda Outram argumenta que “no século XVIII, os contem-
porâneos sabiam que quando um italiano chamou esse movimento de ideias de
Illuminismo, ele quis dizer algo diferente da palavra Lumières, que teria sido usada
por um amigo na França, ou da palavra Aufklärung, comum nos estados alemães”.76
A historiadora inglesa apresenta, ainda exemplos que ilustram essa diversidade de
definições. Enquanto o filósofo judeu Moses Mendelssohn (1729-1786) definia o Ilu-
minismo como um processo de “educação para o uso da Razão, disponível a todos”,
Friedrich Schiller (1759-1805) percebia na estética o elemento crucial para definir
Iluminismo. Immanuel Kant (1724-1804), por sua vez, veria o Iluminismo como “a
libertação dos homens da imaturidade auto imposta”. Contudo, seu artigo “O que é o
Iluminismo?” seria recebido como uma sátira por apresentar “tantas interpretações
distintas do Iluminismo que estariam em uso no reino da Prússia, cujo rei, Frederico
II, replicava em sua própria personalidade todos os significados contraditórios de
‘Iluminismo’ presentes no artigo de Kant”. Outram assim demonstra que Frederico II
se autointitulava “esclarecido”, chegando até mesmo a dirigir a Academia de Ciência
de Berlim, no entanto, ao mesmo tempo, “também era interessado em manter o po-

74 RAMOS, R.; SOUSA, B. V. E.; MONTEIRO, N. G. Op.cit., p. 392.


75 MCCORMICK, T. William Petty and the Ambitions of Political Arithmetic. Oxford: Oxford
University Press, 2009. p. 14.
76 OUTRAM, D.Op.cit. p. 1.
28

der sobre a opinião pública e as controvérsias religiosas”. Tratando-se da definição


kantiana de Iluminismo, portanto, Outram argumenta que seria mais acurado perce-
ber em Kant o Iluminismo “mais como uma série de processos e problemáticas, do
que como uma lista de projetos intelectuais que poderiam ser resolvidos rápida e
ordenadamente”.77
Todavia, Outram não é pessimista quanto à eficácia do termo ‘Iluminismo’. É
compreensível que exista a possibilidade de, após perceber a diversidade de defini-
ções relacionadas a “o Iluminismo”, acreditar-se que essa seja “uma expressão que
falhou em abranger uma realidade histórica complexa”. Entretanto, é mais vantajoso
uma modificação no “escopo” do termo: para Outram seria mais exato perceber o
Iluminismo como “uma cápsula contendo conjuntos de debates que parecem ser ca-
racterísticos da maneira como ideias e opiniões interagiram com a sociedade e a
política”.78
Dentro desta “cápsula de debates”, uma das discussões pertinentes a serem
abordadas aqui é a relação entre Iluminismo e as concepções de governo do século
XVIII. Por conta do conceito de ‘despotismo esclarecido’, que se desdobra sobre es-
sa discussão, é necessária uma avaliação desse tópico para que se tenham ferra-
mentas analíticas mais úteis na compreensão da política pombalina, uma vez que o
marquês de Pombal é comumente classificado como um “déspota esclarecido”.

1.3.1.1 Perspectivas sobre Iluminismo e Estado

A mescla entre elementos iluministas e outros considerados “arcaicos”, como


mercantilismo e absolutismo, frequentemente levou a avaliações de que o legado
político do marquês de Pombal pode ser associado aos conceitos de ‘absolutismo
esclarecido’ ou ao ‘despotismo esclarecido’.79 Contudo, é necessário reconstituir,
ainda que brevemente, a historiografia desses conceitos para avaliar o quão abran-
gente é sua explicação do “conjunto de debates” sobre as relações entre Iluminismo
e o papel do Estado.
O conceito de “absolutismo esclarecido” aparece no trabalho dos historiado-
res alemães Wilhelm Roscher (1817-1894) e Reinhold Koser (1852-1914), em que

77 Ibid. p. 1-2.
78 Ibid. p. 7.
79 Cf. tópico 1.2 acima.
29

ambos procuram referirem-se a formas de monarquia bastante influenciadas por


ideias iluministas, voltando seus olhares para os estados germânicos, entre os quais
identificaram especialmente a Prússia de Frederico II como exemplo determinante
de “absolutismo esclarecido”. Roscher, particularmente, argumentou que “o absolu-
tismo esclarecido representa o estágio final da evolução da monarquia desde os
conflitos confessionais do século XVI”. A ideia é que as tentativas de gerar unidade
nacional por meio de unidade confessional teriam sido substituídas por iniciativas de
reis “como Luís XIV que representavam a si mesmos como os únicos e absolutos
representes de seus súditos”.80
Entretanto, Dorinda Outram afirma que essa conceituação não chamou muita
atenção na Europa ocidental até o período posterior à Primeira Guerra, quando o
Comitê Internacional de Ciências Históricas, sediado em Genebra, iniciou um projeto
de pesquisa sobre o tema que classificaram como ‘despotismo esclarecido’, na bus-
ca de uma temática unificadora entre seus membros. A criação do conceito se deu
por parte de Michel L’Héritier, secretário do comitê, que teve como influência mais
marcante para sua conclusão o estudo das relações entre Iluminismo e Estado con-
siderando o impacto de pensadores franceses nas monarquias europeias.
Esse novo conceito enfrentou críticas severas depois de 1945, que se acumu-
lariam com o tempo. Uma delas, presente em um artigo de Betty Behrens no volume
18 do Historical Journal, em 1975, afirma que Mercier de la Rivière (1719-1801) cri-
ou o termo ‘despotismo esclarecido’ (despotisme éclairé) em sua obra L’ordre natu-
rel et essentiel des sociétés politiques, de 1767; contudo seu uso era incomum no
século XVIII.81 Esse exemplo ilustra uma das críticas mais comuns ao conceito de
despotismo esclarecido, qual seja a de que a expressão é anacrônica, visto que ne-
nhum monarca se identificava politicamente nesses termos, nem que “governassem
de maneira verdadeiramente despótica, sem restrição alguma por leis, muito menos
sem disputas com elites e instituições”. Para este caso, por exemplo, Outram apre-
senta o questionamento se a monarquia inglesa, com suas restrições parlamentares,
poderia ser qualificada como absolutista. Outra crítica a ‘despotismo ilustrado’ é a
sua dependência intrínseca de pensadores franceses para a fundamentação do
conceito. Por fim, ainda é possível argumentar que ‘despotismo esclarecido’ não ex-

80OUTRAM, D.Op.cit., p. 27.


81BEHRENS, B. Enlightened Despotism, Historical Journal, vol. 18, 1975, p. 401–408; mencionado
em OUTRAM, D. Op.cit. p. 27-28.
30

plica os limites para definir que ações e discursos políticos são fruto de ideias ilumi-
nistas e quais têm origem em discursos e estruturas mais antigas.82
Os anos 1970 foram marcados por um ceticismo crescente quanto ao concei-
to de “despotismo esclarecido”, bem como quanto à possibilidade de uma “investiga-
ção adequada” acerca das relações entre Iluminismo e Estado. “Os céticos”, diz Ou-
tram, “confundiram um conceito impreciso com uma realidade que é mais complexa
e interessante”. Seria muito difícil crer que “monarcas e seus ministros se isolaram a
ponto de não terem notícia dos debates acalorados sobre governo e sociedade que
aconteciam fora de seus palácios”. O relacionamento e correspondência de figuras
como Catarina de Rússia e Frederico II com Diderot (1713-1784) e Voltaire (1694-
1778) seria um caso que favorece a crítica ao ceticismo.
Por sua vez, as publicações que Franco Venturi (1914-1994) fez de muitos
textos sobre economia, história e comentários políticas na Itália setecentista, cujos
autores “também eram assessores governamentais, mostrou sem dúvida a impor-
tância das ideias iluministas na elaboração de políticas e atitudes governamentais”.
A partir disso, surgiram novas perspectivas que giravam em torno da premissa de
ser o Iluminismo um “facilitador para a modernização”, embora o problema de defini-
ção conceitual continue, dessa vez com o foco transferido de ‘Iluminismo’ para ‘mo-
dernização’.83
Pode-se ainda citar a crítica marxista ao conceito de ‘despotismo esclarecido’.
A abordagem marxista defendia que o Iluminismo era irrelevante para o absolutismo,
visto que o Iluminismo era uma ideologia burguesa, enquanto as monarquias eram
tentativas de reafirmação dos interesses de uma aristocracia feudal. Desse modo, “o
Iluminismo servia apenas como uma ‘superestrutura ideológica’ para encobrir as
contradições de valores e interesses”. Outram aponta quais seriam os problemas da
visão marxista, que podem ser sintetizados em não perceber que muitas das monar-
quias – especialmente as do leste europeu – não presenciaram o surgimento signifi-
cativo de uma burguesia, como também é difícil classificar grande parte da aristocra-
cia europeia do século XVIII como “feudal”. Por fim, também existe a dificuldade de
aplicar a premissa marxista que os grupos sociais são apenas receptivos ou influen-
ciados por programas intelectuais apenas diretamente relacionados com seus inte-

82OUTRAM, D. Op.cit.. p. 28
83Ibid. p. 28-29. Dorinda Outram menciona, especificamente, as seguintes obras de Franco Venturi:
Settecento Riformatore, de 1969, e Utopia and Reform in the Enlightenment, de 1971.
31

resses econômicos e que, consequentemente, a “burguesia” e a “aristocracia feudal”


formariam um grupo homogêneo em suas relações com o Iluminismo.84
Outram ainda cita o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), que
ao publicar Crítica e Crise em 1956, trouxe a perspectiva de que a relação entre Ilu-
minismo e Estado teria sido moldada por reações aos conflitos religiosos dos sécu-
los XVI e XVII. A Reforma protestante teria permitido o surgimento da crítica de indi-
víduos e grupos feita aos diferentes monarcas de diferentes confissões de fé, cau-
sando uma desordem de longa duração na Europa. Koselleck, segundo Outram, ar-
gumenta que “a ordem foi reestabelecida a partir dos ideais de tolerância religiosa
[...] e, mais ainda, pelo apoio ao princípio de que a ‘crítica’ deveria ser cada vez mais
limitada à esfera privada”. Koselleck liga o surgimento desse cenário às ideias de
Thomas Hobbes (1588-1679), “que ao fim da Guerra Civil na Inglaterra, argumentou
pela subordinação dos clamores de moralidade individual, ou ‘crítica’, como requisito
necessário para uma ordem política forte”. Dessa forma, Outram interpreta que, para
Koselleck, “não haveria mais espaço para a ‘opinião pública’, e as instituições infor-
mais do Iluminismo (como as lojas maçônicas e conceituações semelhantes à “Re-
pública das Letras”) tornaram-se substitutos à política real, e passou, assim, a julgar
monarcas e atores políticos por ‘ideais utópicos’ e não por critérios práticos”, ou seja,
num movimento que procurava enquadrar as complexidades da política “real” em
alguma abstração teórica. Ainda segundo a historiadora britânica, “Koselleck acusa
que esses julgamentos utópicos eram 'hipócritas', na medida em que foram tirados
de uma posição de irresponsabilidade e sem a realização adequada do impacto da
'crítica' irrestrita sobre crise da antiga ordem até o final do século”.85 Como crítica a
Koselleck, Outram apresenta três questionamentos. Primeiro, é possível afirmar que
Hobbes é representativo para a crise da ‘crítica’ no século XVII? Segundo, é possí-
vel afirmar que todos os governantes da Europa “percebiam-se governando pela rai-
son d’état ao invés de valores cristãos”? Nesse sentido, a historiadora apresenta
como contra exemplo seria Maria Teresa de Áustria (a propósito, sem apresentar
muitas razões para tal, o que prejudica seu argumento). Por último, é possível afir-
mar que a ‘crítica’ iluminista foi tomada sempre pela utopia? Aqui, as publicações de

84 Ibid. p. 29-30.
85 Ibid. p. 30.
32

Franco Venturi acerca do Iluminismo italiano apontariam limitações na análise de


Koselleck.86
Qual seria, então, a solução mais viável para compreender a relação entre
Iluminismo e Estado? Dorinda Outram defende que “a tarefa hoje é encontrar uma
maneira de pensar as relações entre Iluminismo e monarquia que seja mais dinâmi-
ca, menos anacrônica, e mais sensível às pressões de contextos regionais e nacio-
nais”. Outram apresenta dois caminhos iniciais: em primeiro lugar, é necessário re-
conhecer que “grandes estados nacionais como a França não eram menos parte do
Iluminismo quanto as oligarquias mercantis de Veneza e Gênova; Estados multina-
cionais gigantescos como Áustria e Rússia coexistiam com mais de trezentos esta-
dos alemães”. Em outras palavras, isso implica assumir que diferentes modelos de
governo e estruturas políticas coexistiam como parte do ‘Iluminismo’. Em segundo
lugar, passa por também reconhecer que, apesar da diversidade de experiências
políticas, todos esses Estados tinham desafios semelhantes (não apenas entre si,
mas também aqueles que vão de encontro a quem detém o poder ao longo da Histó-
ria), como, por exemplo, “as pressões da guerra e da concorrência internacional, o
problema de obter a cooperação das elites e das pessoas comuns, os desafios do
aumento da população e da expansão econômica.”87
Dessa maneira, é interessante perceber como diferentes contextos tentaram
oferecer respostas a desafios semelhantes. Por exemplo, muitos Estados da Europa
central possuíam práticas e discursos políticos bem estabelecidos quando do surgi-
mento do Iluminismo. É o caso dos estados de língua alemã e o ‘cameralismo’, que
“tentou lidar com a ciência da, e da justificação para, a burocracia e a monarquia. O
cameralismo enfatizou a importância da riqueza de um Estado e as virtudes de um
governo forte na obtenção desse objetivo”, enquanto, na França

apesar do crescimento da "opinião pública", o poder permaneceu em grande


parte nas mãos da aristocracia, e a luta para entrar em suas fileiras foi
acirrada. Entre a classe dominante, havia pouco consenso sobre as
direções futuras da monarquia, assim como havia pouco consenso entre os
intelectuais. Poucos queriam desafiar a ordem existente, mas a opinião
estava dividida a respeito de se os poderes da monarquia deveriam ser
reduzidos (para evitar 'despotismo') ou aumentados (para alcançar reforma,
eficiência e maior equidade, por meio de reestruturações do governo,

86 Ibid. p. 31.
87 Ibid. p. 31-32.
33

finanças e o exército, em oposição a poderosos grupos de interesse


entrincheirados). Tudo isso levou à falta de consistência no apoio a ideias
reformistas e também impediu a adoção de esforços para criar e ensinar
uma ciência técnica do governo no modelo adotado nos estados alemães.88

Ainda sobre aspectos da relação entre Iluminismo e Estado, é relevante trazer


o exemplo da Prússia, em que as reformas promovidas por Frederico II conseguiram
convencer a aristocracia “a aceitar mudanças que aumentavam o poder do Estado,
subordinando seus poderes pessoais ao aparelho estatal”. Além disso, nota-se que
novos movimentos religiosos permitiram uma justificativa (teológica) para reformas
eclesiásticas via Estado, como na Prússia, após o surgimento do pietismo e do jan-
senismo.89
As argumentações de Dorinda Outram acerca das nuances no conceito de
‘Iluminismo’ são úteis para perceber que, no que concerne ao legado político pomba-
lino, a classificação “iluminista” normalmente depende da adoção seletiva das carac-
terísticas específicas dos “conjuntos de debates” como paradigmas necessários para
definir ‘Iluminismo’. A partir dos exemplos apresentados por meio da síntese da pes-
quisa de Outram, parece ser possível afirmar que o iluminismo de Carvalho e Melo é
similar ao da Prússia, especialmente pelo último exemplo demonstrado, no qual é
possível perceber similaridades quanto ao direcionamento das reformas políticas
para ampliação do poder do Estado, como também justificativas teológicas funda-
mentadas em novos movimentos religiosos para justificar a atuação do Estado, in-
clusive no aspecto ‘temporal’ da Igreja em Portugal.

1. 4 O QUE É MERCANTILISMO?

Uma vez que também é reconhecido em Carvalho e Melo um conjunto de in-


fluências ‘mercantilistas’, neste momento se alterará o foco desta análise a fim de
compreender a praticabilidade desta classificação.

1.4.1 Economia política e mercantilismo

88 Ibid. loc. cit.


89 Ibid. p. 35-36.
34

O século XVIII também marca o surgimento de um corpo de conhecimentos


denominado ‘economia política’, mais especificamente no período entre o início do
Setecentos e a Revolução Francesa de 1789. A economia política “tratava de ques-
tões ligadas ao comércio, consumo, moeda e empréstimos”, e parecia ser uma ten-
dência intelectual central do Iluminismo, embora muitos dos livros que foram funda-
mentais para o surgimento desse novo corpo de conhecimento fossem publicados
ainda no século XVII. A primeira aparição do termo está em um tratado de Antoine
de Montchrétien (1575-1621), chamado Traîté de l’économie politique, de 1615, e
seu crescimento como ferramenta analítica deveu-se à crescente atividade comerci-
al e disputas entre impérios que chegaram a resultar em conflitos e guerras coloni-
ais. A economia política teria um papel tão importante na Europa que, em torno do
ano 1800, a ‘economia política’ havia se tornado uma disciplina acadêmica estabele-
cida, analisando temáticas “sobre império e comércio, industrialização, o papel do
Estado no controle de commodities vitais”.90
Retornando ao Setecentos, a aparição da economia política no cenário inte-
lectual europeu implicou, de acordo com Dorinda Outram, o abandono de “ortodoxi-
as prévias”, que são descritas pela designação coletiva de ‘mercantilismo’. Em boa
medida, esse abandono do que ficou conhecido como mercantilismo é fruto das re-
flexões de nomes como Bernard Mandeville (1670-1733) e Adam Smith (1723-1790)
sobre economia, em que ambos, cada qual à sua maneira, contribuíram para que o
foco da discussão econômica fosse alterado do Estado para o indivíduo.91 Adam
Smith, particularmente, conectou o surgimento dos impérios modernos com o que
chamou de “sistema mercantil” no capítulo quarto de A Riqueza das Nações (1776),
e com o crescimento das traduções e a expansão da imprensa, Smith rapidamente
se tornou um clássico moderno,92 o que explica, em parte como sua percepção do
‘mercantilismo’ foi tomada como paradigmática.93
Entretanto, uma vez iniciada a empreitada de compreensão desse grande
corpo de conhecimento que ficou conhecido como ‘mercantilismo’, dificuldades sur-

90 OUTRAM, D. Op.cit. p. 43-45.


91 Ibid. p. 37, 57-58.
92 PINCUS, S. Rethinking Mercantilism: Political Economy, the British Empire, and the Atlantic World

in the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 69,
p. 3, Janeiro 2012. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-
page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>. Acesso em: 5 Julho 2019; OUTRAM, D. Op.cit. p. 54.
93 PINCUS, S. Op. cit. p. 12.
35

gem, sendo a principal delas a natureza prática desse tipo de pensamento econômi-
co. Segundo Dorinda Outram:

[...] é preciso lembrar sempre que a realidade do comércio colonial era de


portos tropicais fumegantes como Cartagena, tomados por malária e febre
amarela, entrepostos de escravos como Bordeaux e Bristol e 'fortes' na
costa da África Ocidental, pirataria e ressentimento contra a monarquia na
região da parte de traficantes de escravos, comerciantes e marinheiros, em
vez de uma obediência tranquila às regulamentações econômicos ou
interesse intelectual na teoria mais recente.94

Essa dificuldade, todavia, não impede que alguns procurem traçar elementos
centrais do que constituiria ‘mercantilismo’. Ainda de acordo com Outram, o “mercan-
tilismo, em geral, defendia que a verdadeira riqueza estaria nas manufaturas, no
acúmulo de metais preciosos e nas restrições econômicas a competidores comerci-
ais.” Com a expansão da economia, seriam acrescentados os tópicos da “unificação
do Estado e da balança comercial favorável” ao conjunto de características que “uni-
ficariam” discursos mercantilistas.95
Cardoso e Cunha também concordam que ‘mercantilismo’ é um termo volátil,
pois se trata de uma base de conhecimento que se recompôs ao longo de três sé-
culos, por sua vez, o período pombalino incorporava uma série de autores influenci-
ados por ideias ilustradas. Além do que já foi descrito acerca de ‘mercantilismo’
quando foi apresentada a definição de Dorinda Outram, pode-se acrescentar o ar-
gumento dos autores acerca do papel das colônias em “funcionar no sentido de ga-
rantir o abastecimento de matérias-primas e bens de consumo, quer para uso direto
nas metrópoles, quer para fins de reexportação. Para além disso, pretendia-se tam-
bém que estas funcionassem como um mercado protegido para a colocação dos
produtos fabricados nas metrópoles”. A esse papel é dado o nome de ‘pacto coloni-
al’, que, segundo os autores portugueses, seria alvo das reformas de Pombal em
virtude de das consequências prejudiciais que Portugal enfrentava por uma balança
comercial desfavorável em relação à Inglaterra.96

94 OUTRAM, D. Op. cit. p. 47.


95 Ibid. p. 37, 48.
96 CARDOSO, J. L.; CUNHA, Op.cit. p. 68-69, 74. Adiante, será explorado em mais detalhes a defesa

que Sebastião José de Carvalho e melo faz de princípios “mercantislistas”.


36

Outro ponto que pode ser acrescido às definições de ‘mercantilismo’ é o que


Albert Hirschman demonstra ser uma crença quanto à finitude dos recursos, numa
espécie de ‘jogo de soma zero’, no qual a prosperidade de uma nação implica, ne-
cessariamente, a ruína de outra: “seja por causa da doutrina mercantilista ou pelo
fato de os mercados serem tão limitados que uma expansão do comércio de uma
nação só poderia ser assegurada com a substituição de outra, o comércio foi carac-
terizado como ‘combate perpétuo’ por Colbert e como ‘um tipo de guerra’ por Sir Jo-
siah Child”.97
Steven Pincus, por sua vez, aponta que o elemento que traz coerência às di-
versas definições de ‘mercantilismo’ é “o fundamento subjacente do conceito de
mercantilismo: os limites do crescimento”. Pincus apresenta a razão principal para tal
conclusão, quando explica que “os mercantilistas acreditavam que viviam em um
mundo de escassez – porque propriedade e valor eram definidos exclusivamente
com referência à terra –, em que a vida econômica era necessariamente uma com-
petição feroz. Eles acreditavam, a maioria dos estudiosos afirma com confiança, que
o comércio era um jogo de soma zero”.98
Contudo, tentar encontrar na modernidade um corpo de conhecimento homo-
gêneo chamado ‘mercantilismo’ esbarra em algumas limitações. Por exemplo, é
possível mencionar as dificuldades de classificar o cameralismo germânico. Cardoso
e Cunha definem o cameralismo como parte do ‘mercantilismo’, especialmente por
meio das reflexões de Johann Heinrich Gottlob von Justi (1717-1771), apesar de re-
conhecerem nele influências de “ideias ilustradas”.99 Ainda, defendem que as refor-
mas movidas pelo cameralismo na Áustria foram inspiradoras para que marquês de
Pombal, à moda de Viena, pudesse iniciar um projeto político reformista que alme-
jasse a concentração de poderes no Estado.100 Entretanto, por conta da proposta
cameralista de que “os governantes devem tentar regular a vida de seus súditos em
detalhes para obter os objetivos econômicos vitais de uma população forte, saudá-
vel, numerosa e leal”,101 Dorinda Outram classifica o cameralismo como um dos de-
bates iluministas acerca do papel do Estado, cuja máxima expressão da “racionali-
dade” iluminista seria a assertiva de Johann von Justi:

97 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 52, 79.


98 PINCUS, S. Op. cit. p. 12.
99 CARDOSO, J. L.; CUNHA, Op.cit. p. 68-69.
100 Ibid. p. 72-74.
101 OUTRAM, D. Op. cit. p. 33.
37

Um estado adequadamente constituído deve ser exatamente análogo a uma


máquina, na qual todas as rodas e engrenagens são ajustadas com
precisão entre si, e a régua deve ser o capataz, a mola principal ou a alma -
se é que se pode usar a expressão - quem define tudo em movimento.102

Outram, ao classificar o cameralismo como constituinte de ‘Iluminismo’, evi-


dencia um outro problema, que é a redução de ideias em que o papel do Estado e
sua ação na sociedade e na economia são maiores ao conjunto do ‘mercantilismo’,
como ideias “ultrapassadas”, em comparação à novidade das Luzes. Seguindo Ou-
tram, este tipo de inferência pode ser feito ao perceber um paradoxo do Iluminismo
que se revela nos estudos acerca do cameralismo: “por causa do supremo poder
executivo ainda detido pela maioria dos governantes europeus, o destino dos pro-
gramas de reforma ainda dependia das decisões do governante, que poderia retirar
o apoio das políticas em um piscar de olhos”.103 O paradoxo do Iluminismo presente
no cameralismo – e o mesmo pode ser dito a respeito de ideias do Setecentos que
previam uma ação maior do Estado – consiste em reformar para “racionalizar” e tor-
nar o Estado mais eficiente, ao mesmo tempo em que o tamanho do Estado aumen-
ta, para tornar isso possível.
O mesmo poderia ser dito acerca dos fisiocratas. Estes, que podem ser clas-
sificados como um grupo, percebiam “a economia como mecanismo ou máquina in-
tricadamente construída que funciona independentemente da vontade dos ho-
mens”,104 movida por “certas leis objetivas descobertas pela razão humana, assim
como as leis da natureza. As leis da ‘economia política’ eram ‘naturais’, em outras
palavras, inelutáveis e anteriores à moralidade.”105 Essa convicção dos fisiocratas foi
um dos fatores que permitiu o processo de adaptação e criação de linguagens ma-
temáticas para a ‘economia política’ enquanto uma nova ‘ciência’,106 o que é usual-
mente visto como um sinal de inovação de origem iluminista, mas, por outro lado,
levou-os à conclusão de que a garantia do bem público (que, por sua vez, era fun-
damentada por meio da busca dos interesses individuais), era uma lei natural da

102 Ibid. p. 26, 34. Johann von Justi foi citado em PARRY, G. Enlightened Government and Its Critics
in Eighteenth-Century Germany. Historical Journal, vol. 6, p. 182, 1963.
103 Ibid. p. 40.
104 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 94.
105 OUTRAM, D. Op. cit. p. 58-59.
106 Ibid. p. 60.
38

economia, que tinha de ser imposta pelo governante a fim de que se alcançasse o
bem-comum. Nas palavras de Albert Hirschman,

[...] os fisiocratas advogam estranhamente a liberdade da interferência


governamental no mercado e a imposição dessa liberdade por um
governante todo-poderoso cujo interesse próprio esteja vinculado ao
sistema econômico "certo". O último arranjo é referido por eles como
"despotismo legal", ao qual eles se opõem ao "despotismo arbitrário" que é
culpado dos delitos tão bem detalhados por Quesnay.107

Os exemplos do cameralismo e da fisiocracia demonstram as limitações na


tentativa de classificar as reflexões econômicas, ou melhor, os discursos acerca da
geração de riqueza anteriores ao Iluminismo como ‘mercantilistas’. Onde estaria a
fronteira entre ‘mercantilismo’ e ‘Iluminismo’, que, por exemplo, permitiria a afirma-
ção de Cardoso e Cunha a respeito do cameralismo ser um mercantilismo “influenci-
ado diretamente por ideias ilustradas”?108 Aqui, a proposta de enxergar ‘mercantilis-
mo’ como um corpo de conhecimento homogêneo parece enfrentar as mesmas limi-
tações postas ao conceito de ‘Iluminismo’.

1.4.1.1 Críticas à historiografia do ‘mercantilismo’

A partir dos debates traçados até aqui, o percurso estabelecido indica que o
problema é, na verdade metodológico, tanto para definir ‘iluminismo’ quanto ‘mer-
cantilismo’. A proposta desta pesquisa, neste momento, não é afirmar uma invalida-
de total de ‘mercantilismo’, mas analisar a viabilidade do que foi defendido por Do-
rinda Outram quanto ao conceito de ‘Iluminismo’: perceber que o período denomina-
do mercantilista seria, ao invés de um corpo homogêneo de conhecimento, um “con-
junto de debates”.
Qual seria o erro, então, da proposta de classificar ‘mercantilismo’ como uma
“escola”, um “sistema”? É proveitoso aqui utilizar as conclusões de Quentin Skinner
acerca do estudo de textos na História das Ideias: é preciso evitar tanto o equívoco
de enfatizar de maneira restrita a autonomia dos autores em relação ao contexto
como, por outro lado, a dependência dos autores em relação ao contexto. É comum,

107 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 97-98


108 CARDOSO, J. L.; CUNHA, A. M. Op. cit. p. 69.
39

na perspectiva de Skinner, que aqueles que enfaticamente se atentam à autonomia


textual procurem estabelecer a partir de algumas similaridades entre diversos textos
um conjunto de “ideias universais” ou “conceitos fundamentais” que definiriam de
maneira plena a posição intelectual de um autor ou um grupo de autores a respeito
de uma temática – ignorando-se, assim, a importância do contexto na autoria dos
textos e na recepção destes.109
Este parece ser o erro tanto no ‘Iluminismo’ e no ‘mercantilismo’ quando são
vistos como um “sistema”, e se reflete em distintas correntes historiográficas, sejam
elas “liberais” ou “estatistas”, argumenta Pincus, todas elas partilhavam dessa pers-
pectiva de um mercantilismo sistêmico, embora com direcionamentos distintos: “de-
fensores da intervenção estatal na economia defendiam o mercantilismo como um
elemento constitutivo da modernidade, enquanto liberais acreditavam que era ape-
nas uma de transição necessária para a modernidade”.110 As consequências dessa
premissa de assumir o mercantilismo como um consenso na Europa moderna, de
acordo com Pincus, resultam em uma incompreensão do contexto que anularia o
caráter político das decisões dos impérios na colonização:

Como todos concordavam com os objetivos da colonização e concordaram


amplamente com os meios de colonização, a colonização na primeira
modernidade foi necessariamente apolítica. Já que todos os europeus
compartilhavam os mesmos objetivos e o mesmo compromisso com o
sistema mercantil, as diferentes naturezas manifestas dos vários impérios
da primeira modernidade devem necessariamente ter sido determinadas
pelo que encontraram na periferia (seu sucesso relativo em encontrar
metais preciosos) ou por desvios epistêmicos do sistema mercantil na
metrópole.111

As primeiras críticas feitas à concepção de mercantilismo como um sistema


surgiram nos anos 1930. Um artigo de 1939, escrito por A. V. Judges, afirmava que
“o mercantilismo nunca teve um credo”.112 D. C. Coleman, em 1957, seguiria na

109 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, p. 3-
5, 47, 1969. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-page/10.2307/2504188>. Acesso em: 3
Agosto 2019. Skinner ainda afirma (p. 5) que “é de fato a verdade, e não o absurdo, da alegação de
que todas essas atividades devem ter alguns conceitos característicos que parece fornecer a principal
fonte de confusão.”
110 PINCUS, S. Op. cit. p. 4-7.
111 Id. Ibid. p. 4.
112 JUDGES, A. V. The Idea of a Mercantile State. Transactions of the Royal Historical Society,

n.4, vol. 21, p. 42, 1939 apud PINCUS, S. Op. cit. p. 4.


40

mesma linha ao concluir que “na vida real a política é realizada pelos governos e os
governos são compostos por homens que, quaisquer que sejam suas ideias pré-
concebidas e quaisquer que sejam seus objetivos finais, lidam em contextos particu-
lares com problemas específicos”.113
No entanto, o próprio Coleman afirmou que seria difícil abandonar o termo
‘mercantilismo’, pois “etiquetas históricas têm um talento notável para a sobrevivên-
cia”.114 O abrandamento, por assim dizer, da crítica de Coleman ao “mercantilismo
como sistema” ocorreu por dois motivos: em primeiro lugar, tanto Judges como Co-
leman “não ofereceram uma narrativa como contraposição à síntese mercantilista”.
Em segundo lugar, o próprio Coleman ofereceu um modelo interpretativo distinto no
ano de 1957, porém, nesse modelo havia ainda mais ênfase na “política prática”, o
que deixa pouco espaço para avaliar o pensamento político – ponto que foi ressalta-
do em diversas críticas.115 Assim, a ideia de “mercantilismo como um sistema” conti-
nuou a ser defendida pelas gerações seguintes de historiadores, especialmente
aqueles dedicados aos estudos da Histórica Econômica e da Histórica Atlântica.116
Entretanto, para compreender esse vasto universo de relações que se con-
vencionou chamar ‘mercantilismo’, entende-se que é necessário recuperar os deba-
tes intelectuais, contextualizando-os. Assim, temas caros ao universo mercantilista,
como a geração de riquezas, por exemplo, ganham novas dimensões ao se recupe-
rar o repertório de ação mobilizado pelos agentes históricos, entre os séculos XVII e
XVIII, sobretudo.
Hirschman aponta que, pela ausência das disciplinas de Economia e Ciência
Política, também eram ausentes as “fronteiras interdisciplinares” que hoje tanto
guiam quanto limitam os debates sobre tópicas de interesse amplo: “Como resulta-
do, filósofos e economistas políticos poderiam variar livremente e especular sem ini-
bições sobre as prováveis consequências da, digamos, expansão comercial para a
paz ou do crescimento industrial para a liberdade”.117 Steven Pincus reforça esse
ponto ao afirmar que os “debates ocorreram tanto na metrópole quanto na periferia.

113 COLEMAN, D. C. Eli Heckscher and the Idea of Mercantilism (1957) in COLEMAN, D. C. (ed).
Revisions in Mercantilism. Londres: Methuen, 1969. p. 117 apud PINCUS, S. Op. cit. p. 7-8.
114 COLEMAN, D. C. Mercantilism Revisited. Historical Journal. n. 4. vol. 23 p. 791 apud PINCUS, S.

Op. cit. p. 8.
115 PINCUS, S. Op. cit. p. 8.
116 Ibid. p. 8-12.
117 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 3.
41

Eles ocorreram em diálogo com as potências imperiais europeias e não europeias.


Mas, acima de tudo, eles ocorreram”.118
Reconhecer essa natureza desses debates intelectuais evita, segundo
Hirschman, que se cometa o erro das correntes marxista e weberiana na análise do
surgimento do capitalismo. Ainda que ambas as correntes tenham conclusões distin-
tas sobre o surgimento do capitalismo, o percurso até essas conclusões parte da
percepção de que o chamado de ‘mercantilismo’ é um sistema ou “espírito” que é
superado com a chega de um novo sistema, exterior a este. Entretanto, dada a ca-
racterística “multifocal”, por assim dizer, dos debates em questão, Hirschman argu-
menta que o surgimento do capitalismo tem origem em “um processo endógeno”,119
no qual ideias que estão presentes no “espírito do capitalismo”, para usar a lingua-
gem de Weber, podem ser traçadas a períodos anteriores. Hirschman indica que os
séculos XIV e XV, especialmente a partir de Nicolau Maquiavel (1429-1527), são
pontos de partida para uma análise mais acurada.120
Se existem ideias “capitalistas” presentes no período denominado “mercanti-
lista” (ou seja, antes do capitalismo), isso aponta para a inexistência de um consen-
so acerca da geração de riqueza na Época moderna. Hirschman critica a historio-
grafia do mercantilismo pelo foco excessivo na tópica das “balanças comerciais”,
indicando que a discussão era mais ampla:

[...] qualquer pessoa que observe toda a gama de considerações sobre n e


comércio e negócios expressas nos escritos dos séculos XVII e XVIII, e não
apenas na discussão sobre a balança comercial, concluirá que os efeitos
benéficos gerais eram amplamente esperados que fluíssem da expansão do
comércio. Muitos desses efeitos foram políticos, sociais e até morais, e não
puramente econômicos [...].121

Por causa da inexistência de um “consenso mercantilista, não havia acordo


que as potências europeias precisavam tomar mais território para prejudicar seus
rivais; também não havia acordo de que as periferias coloniais precisassem estar
subordinadas ao centro metropolitano.”122 Dessa forma, havia um clima de debate

118 PINCUS, S. Op. Cit. p. 32.


119 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 4-5.
120 Ibid. p. 9-14.
121 Ibid. p. 52.
122 PINCUS, S. Op. cit. loc. cit.
42

politizado e intenso “entre aqueles que acreditavam ser o comércio, de fato, um jogo
de soma zero, e aqueles que acreditavam que um crescimento econômico substan-
cial e global, advindo do trabalho humano, era possível e desejável”.123 Pincus men-
ciona dois personagens centrais desse debate: Walter Raleigh (1552-1618), que de-
fendia que recursos eram escassos e, portanto, o acúmulo de metais preciosos de-
veria ser a principal fonte de riqueza de um país (cumpre ressaltar, é um dos pontos
tidos como centrais do ‘mercantilismo’), e John Smith (1580-1631), que em oposição
a Raleigh, não acreditava na finitude dos recursos, e propunha uma “organização
eficiente” do trabalho nas colônias para gerar novas riquezas.124
Desse modo, é possível concordar com Pincus, quando afirma que “A alega-
ção de que os modernos acreditavam que o comércio era uma batalha bárbara entre
Estados-nações concorrentes por um conjunto severamente limitado de recursos
agrários era apenas uma verdade parcial. Alguns políticos, escritores mercantis, co-
merciantes e clérigos defendiam essa posição. Mas muitos não o fizeram”.125 A partir
do momento em que essa verdade parcial é tomada como um paradigma necessá-
rio, perde-se de vista que, apesar de os governantes dos Estados tomarem decisões
a partir de restrições locais, “existiam divergências profundas sobre políticas econô-
micas” e que essas “diferenças ideológicas moldaram as formas pelas quais os go-
vernantes interpretavam essas limitações”.126
Contudo, ressalte-se que a crítica que se faz ao iluminismo não deve ter o
mesmo tratamento que os questionamentos feitos ao conceito de mercantilismo. En-
quanto o ‘Iluminismo’ pode ser entendido como uma classificação panorâmica do
“conjunto de debates”, muito em virtude de os contemporâneos terem, em alguma
medida, se identificado com as Luzes, no caso do mercantilismo essa aplicabilidade
torna-se mais difícil. Se existem várias definições de ‘Iluminismo’ no século XVIII, o
mesmo não pode se dizer de ‘mercantilismo’ – o que inviabiliza, por consequência, a
precisão da identificação do marquês de Pombal com “ideias mercantilistas”. Mostra-
se mais frutífero, portanto, compreender a racionalidade econômica e recuperar os
debates acerca da geração de riqueza, identificando os embates intelectuais a partir
da eleição arbitrária de algumas tópicas.

123 Ibid. p. 15.


124 Ibid. p. 16-17.
125 Ibid. p. 14.
126 Ibid. p. 31.
43

2 RECUPERANDO OS DEBATES

Uma das maiores dificuldades da pesquisa histórica se apresenta nas diver-


sas metodologias para produzir uma narrativa verossímil do passado. Por exemplo,
uma abordagem mais determinista, que parte dos resultados conhecidos dos pro-
cessos históricos no presente para identificar como estes foram determinados pelas
ações passadas, perceberá que os padrões para a justificativa de tomada de deci-
são no percurso até o presente variam conforme o contexto histórico.1 Um dos pro-
blemas de se estabelecer conexões automáticas com fenômenos do passado é a
aplicação acrítica de categorias atuais para entender a história, escolhendo-se sele-
tivamente elementos “mais ou menos próximos, ou que talvez se sobreponham” a
características contemporâneas.2 Assim, usando a metáfora geográfica proposta por
Peter Harrison, pode-se suspeitar que “muitas afirmações acerca de supostas rela-
ções históricas sejam confusas pela [...] projeção de nossos mapas conceituais atu-
ais aos territórios intelectuais do passado”.3
Esse tipo de equívoco atinge o campo da história da racionalidade econômi-
ca, principalmente quando se trata dos estudos acerca do ‘mercantilismo’. Especial-
mente a partir do surgimento de uma “abordagem canônica”, que percebia o surgi-
mento da ciência econômica a partir de Adam Smith, as discussões a respeito da
geração de riqueza anteriores à publicação “revolucionária” de A Riqueza das Na-
ções, de 1776, foram tratadas, no geral, sob o critério de “antecipação” dos concei-
tos econômicos mais recentes. Ainda que esta aproximação seja em algum nível
útil,4 no que tange ao período do ‘mercantilismo’, a perspectiva de que existiu uma
era “pré-Adam Smith”, na qual havia uma concordância geral na Europa em torno do
“sistema mercantilista”, impede a recuperação dos debates que mobilizaram as es-
colhas políticas relacionadas às riquezas das monarquias modernas, como também

1 MACINTYRE, A. After Virtue. Nova Iorque: Bloomsbury Academic, 2013. p. 12. Cf. KOSELLECK,
R. Futuro Passado. Rio de Janerio: Contraponto, 2012. p. 97.
2 MAIFREDA, G. From Oikonomia to Political Economy. Farnham: Ashgate Publishing, 2012. p. 1-

2.
3 HARRISON, P. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimto, 2017. p. 18-19.
4 MAIFREDA, G. Op. cit. p. 2-5.
44

da própria política como uma esfera distinta do exercício do poder na primeira mo-
dernidade.5

2.1 A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA DOS CONCEITOS

Dada a necessidade de recuperação dos debates intelectuais da primeira


modernidade, o foco desta análise estará direcionado para aqueles acerca da gera-
ção de riqueza na Época moderna a fim de um entendimento mais apurado dos con-
ceitos que mobilizaram a tomada de decisões por parte dos governantes, demons-
tra-se aqui como a História dos Conceitos aparenta ser o meio mais adequado para
tal empreitada.
A definição de História dos Conceitos realizada pelo historiador alemão Rei-
nhart Koselleck (1923-2006) é pertinente a fim de esclarecer como essa abordagem
seria a mais apta para o estudo do repertório intelectual acerca da geração de rique-
za, entendida aqui como parte de um repertório mais amplo de racionalizações eco-
nômicas que envolviam o universo das trocas na Época moderna. De maneira sim-
ples, pode-se dizer que seu objetivo está na tentativa de responder à seguinte per-
gunta: “por que somente em determinada época certos fenômenos são reunidos em
um conceito comum?”6
Koselleck apresenta, inicialmente, a História dos Conceitos como “aquela que
se ocupa, predominantemente, dos textos e vocábulos”, em contraste com a História
Social, que “deduz, a partir deles, a existência de fatos e dinâmicas que não estão
presentes nos textos”.7 Essa delimitação inicial da História dos Conceitos precisa ser
feita a partir de uma comparação e distinção da História Social, pois reconhece-se
que há uma interdependência entre os dois campos, o que pode originar confusões
no momento de identificar cada tipo de abordagem. Koselleck explica esta interde-
pendência da seguinte forma:

5 PINCUS, S. Rethinking Mercantilism: Political Economy, the British Empire, and the Atlantic World in
the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 69, p.
33, Janeiro 2012. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-
page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>. Acesso em: 5 Julho 2019.
6 KOSELLECK, R. Futuro Passado. Rio de Janerio: Contraponto, 2012. p. 117.
7 Ibid. p. 97.
45

Sem conceitos comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não
pode haver unidade de ação política. Por outro lado, os conceitos
fundamentam-se em sistemas político sociais que são, de longe, mais
complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades
linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave.8

Uma vez traçados os limites do escopo da História dos Conceitos, Koselleck


define, então, seu lugar de atuação: na identificação da “multiplicidade cronológica”
dos conceitos de um determinado corte cronológico em análise. Essa multiplicidade,
de acordo com o historiador alemão, se dá quando “a investigação do campo se-
mântico de cada um dos conceitos principais revela um ponto vista polêmico orien-
tado para o presente, assim como um componente de planejamento futuro, ao lado
de determinados elementos de longa duração da constituição social e originários do
passado.” Nessa “multiplicidade cronológica do aspecto semântico” é onde se en-
contra “a força da história.”9
Tal multiplicidade, por sua vez, encontra-se nos momentos de crise, em que
batalhas semânticas “para definir, manter ou impor posições políticas e sociais em
virtude das definições” se manifestam, de maneira que as transformações – isto é, o
“componente de planejamento futuro” presentes nessas conceituações – se manifes-
tam de modo mais evidente.10 Peter Harrison defende que o estudo desses momen-
tos de crise e debate “permitirá fazer um inventário de noções relevantes em diver-
sos pontos da História e a realizar uma avaliação das mudanças pelas quais passa-
ram”.11 Sendo assim, Koselleck afirma que o historiador tem uma “exigência metodo-
lógica mínima”, que é compreender esses momentos de conflito e debate do passa-
do a partir “das delimitações conceituais e da interpretação e dos usos da linguagem
feitos pelos contemporâneos de então”.12
O que torna a História dos Conceitos um campo autônomo e capaz de ofere-
cer recursos para a investigação histórica é o seu enfoque na “duração ou transfor-
mação dos conceitos sob uma perspectiva rigorosamente diacrônica”, possibilitando,
assim, uma avaliação mais profícua do impacto político e social de conceitos,13 uma
vez que “a retrospectiva diacrônica pode dar acesso a camadas de significado que

8 Ibid. p. 98.
9 Ibid. p. 101.
10 Ibid. p. 102.
11 HARRISON, P. Op. cit. p. 13.
12 KOSELLECK, R. Op. cit. p. 103.
13 Ibid. p. 105.
46

permanecem encobertas no uso espontâneo da língua”.14 Assim sendo, na perspec-


tiva metodológica, a História dos Conceitos desconsidera, em primeiro lugar, o que
Koselleck chama de “conteúdos extralinguísticos”, pois o foco é identificar os “pro-
cessos de permanência, alteração ou ineditismo nos significados lexicais”, antes que
esses significados sejam utilizados para análise das situações e conflitos sociais e
políticos a que fazem referência, evitando-se, assim, equívocos interpretativos.15
Segundo o próprio autor “a especialização metodológica da história dos con-
ceitos, os quais se expressam por palavras, requer um fundamento que possa dife-
renciar ‘conceito’ e ‘palavra’”.16 Assim, o conceito é mais do que uma palavra e está
imbricado de sentidos e contextos. A diferença crucial entre ‘conceito’ e ‘palavra’
consiste em que:

O sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso. Um conceito,
ao contrário, para poder ser um conceito, deve manter-se polissêmico.
Embora o conceito também esteja associado à palavra, ele é mais do que
uma palavra: uma palavra se torna-se um conceito se a totalidade das
circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa
palavra é usada, se agrega a ela. [...]

Os conceitos são, portanto, vocábulos nos quais se concentra uma


multiplicidade de significados. O significado e o significante de uma palavra
podem ser pensados separadamente. No conceito, significado e significante
coincidem na mesma medida em que a multiplicidade da realidade e da
experiência histórica se agrega à capacidade de plurissignificação de uma
palavra, de forma que seu significado só possa ser conservado e
compreendido por meio dessa mesma palavra. Uma palavra contém
possibilidades de significado, um conceito reúne em si diferentes totalidades
de sentido. Um conceito pode ser claro, mas deve ser polissêmico.17

O conceito, afirma Koselleck, reúne a variedade de experiências históricas, e


também “a soma das características objetivas teóricas e práticas em uma única cir-
cunstância”. Desse modo, a experiência histórica, quando articulada conceitualmen-
te, não apenas é descrita pelos conceitos, mas também experimentada por meio
deles. Destarte, os conceitos não podem ter sua função semântica extraída de “con-
teúdos extralinguísticos” a que se referem, como contextos políticos, econômicos e
sociais, uma vez que conceitos, simultaneamente, permitem e limitam a experiência

14 Ibid. p. 115.
15 Ibid. p. 106.
16 Ibid. p. 108.
17 Ibid. p. 109.
47

histórica. Conclui-se também que, sem articulação conceitual de uma determinada


experiência política e social, a História dos Conceitos se mostra impraticável.18
Reconhece-se também que, embora haja articulação conceitual de situações
políticas e sociais, estas não estão isentas de usos que vão tanto aquém como além
do que aparentemente foi intencionado por seus autores. Nesse sentido, a fim de
cobrir este “hiato entre os fatos sociais e o uso linguístico a eles associado”, a Histó-
ria dos Conceitos lança mão tanto da abordagem ‘semasiológica’, que busca identifi-
car as alterações de sentido em conceitos, quanto da abordagem ‘onomasiológica’,
que busca identificar as alterações nas designações.19 Assim, a melhor forma de
atingir essa meta é por meio da comparação de determinados conceitos com seus
sinônimos e antônimos, objetivando a identificação de seu valor, uma vez que, se-
gundo Koselleck, o fim último da História dos Conceitos é a História Material, ou se-
ja, a percepção de como conceitos foram mobilizados visando transformação política
e social.20
Como foi demonstrado no primeiro capítulo, a partir de uma análise dos con-
ceitos ‘iluminismo’ e ‘mercantilismo’, o uso de conceitos de forma acrítica pode resul-
tar em equívocos analíticos na pesquisa histórica. Tratando-se de debates intelectu-
ais, tal imprecisão certamente ofusca a esfera das discussões e das tomadas de de-
cisão, criando consensos e intenções que só se justificam a partir de uma visão ab-
solutamente descontextualizada. Assim, a História dos Conceitos se mostra o méto-
do mais adequado para a recuperação desses percursos, especialmente no que
concerne às disputas semânticas, pois uma avaliação histórica de categorias sociais
e políticas “mostrará como atividades díspares ou ao menos significativamente dis-
tintas vieram a ser classificadas em conjunto”, como é o caso do conceito de ‘mer-
cantilismo’ mais especificamente, pela aplicação acrítica “de categorias atuais a ati-
vidades passadas que teriam sido conceituadas por quem nelas se envolvesse de
maneira bem distinta.”21
A recuperação das disputas intelectuais, como proposta pela História dos
Conceitos, permite perceber o que Albert Hirschman chamou de “mudanças endó-
genas”. Trata-se de identificar, por meio desses debates, como transformações con-

18 Ibid. p. 109-110.
19 Ibid. p. 108, 111. Cf. HIRSCHMAN, A. O. The Passions and the Interests. Princeton: Princeton
University Press, 2013. p. 41.
20 Ibid. p. 111, 113.
21 HARRISON, P. Op. cit. p. 21.
48

ceituais surgem mais por disputas intelectuais entre atores que mobilizavam deter-
minadas tópicas que pelo aparecimento de novos conceitos de modo plenamente
independente.22 Em vista disso, tratar-se-á agora dos conflitos conceituais da Primei-
ra modernidade que permitiram o surgimento de novas perspectivas acerca da gera-
ção de riqueza, da qual a Aritmética Política de William Petty é resultado.

2.2 UTILIDADE, INTERESSE E TRABALHO

O filósofo Alasdair MacIntyre propõe a seguinte ilustração em seu livro After


Virtue: que se imagine um futuro desastroso, em que os cientistas viessem a ser
culpabilizados por uma catástrofe com dimensões globais. Em seguida, militantes
negacionistas conseguem levar um político anti-ciência ao poder, que, por sua vez,
abole o ensino de ciência nas escolas e universidades, aprisionando e executando
os cientistas remanescentes. Então, depois de um período de apagamento da ciên-
cia, surge um movimento de reação, que tenta reconstruir a ciência do passado (ou
seja, tal como conhecemo-la hoje).
Embora tal movimento conseguisse suprimir o apoio ao negacionismo, resti-
tuindo o ensino de ciência e a linguagem científica, depois de tamanho estrago, mui-
tos dos conceitos pressupostos por trás da linguagem científica já teriam se perdido
e os conceitos utilizados pelos “novos cientistas” pareceriam ter sido escolhidos por
mera arbitrariedade. O resultado seria uma linguagem fragmentária, que abriria mar-
gem para uma disputa entre visões subjetivistas dessa “ciência” e aqueles que creri-
am ser impossível conciliar este subjetivismo com as verdades encontradas na “ci-
ência”, ou melhor, no que se acredita que a “ciência” deveria ter sido.
O objetivo de MacIntyre com essa história é indicar que um percurso seme-
lhante ocorreu com a linguagem moral no Ocidente (mais precisamente, diga-se, na
Europa e América do Norte): com as transformações posteriores aos séculos XVII e
XVIII, a linguagem moral anterior foi destituída de seus pressupostos, embora faça-
se, ainda, referências a ela.23 Essa linguagem estava ligada à filosofia natural medi-
eval, que durante os séculos XIII ao XVII, condicionava as reflexões sobre moral a
partir de um diálogo proposto entre a ética da virtude de Aristóteles (385 a. C.-322 a.

22 Cf. HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 4, 42, 69.


23 MACINTYRE, A. After Virtue. Nova Iorque: Bloomsbury Academic, 2013. p. 20-21, 191.
49

C.) e a teologia cristã, cujo ponto alto se deu com Tomás de Aquino (1225-1274).
Como esse diálogo permeava outras esferas além da moral, ele se tornou uma es-
pécie de “moldura intelectual”,24 que foi substituído quando começou-se a questionar
sua validade a partir da redefinição de diversos conceitos, especialmente o de ‘natu-
reza’.25 Esse processo implicou em uma alteração de significado dos conceitos ‘utili-
dade’, ‘interesse’ e ‘trabalho’, que serão analisados adiante.

2.2.1 A filosofia moral medieval

Uma das características fundantes da teologia escolástica medieval é a noção


aristotélica que as “entidades tinham propensão natural a algum fim” – sendo assim
classificada como ‘teleológica’. Enquanto em Aristóteles pode-se dizer que a “natu-
reza” preparou meios para que esse fim fosse alcançado, a partir do diálogo com a
teologia cristã, passa-se a afirmar que Deus teria preparado tais meios.26 Esses fins
eram conhecidos por meio de narrativas que apontavam a indivíduos “seus papéis e
status predeterminados dentro de um ambiente bem-definido”.27 Na apropriação me-
dieval de Aristóteles, por meio de Tomás de Aquino, essa “maneira fixa” de conhecer
e alcançar determinado fim estava presente, em termos de narrativa, na revelação
de Deus por meio das Escrituras Sagradas. O conhecimento da verdade, quem em
última instância era o conhecimento de Deus por meio do estudo da sacra doctrina,
produzia virtude – que era o único meio “para que se alcance a felicidade”, que é o
fim último (no caso de Tomás de Aquino, a felicidade seria a vida eterna). Acerca
dos meios para alcançar os fins, Tomás de Aquino argumenta que “algo obtém seu
fim apenas fazendo corretamente o que é apropriado para isso”,28 ou seja, é impos-
sível alcançar um fim por diversos meios.29 Quando os homens tentam, por sua vez,
agir por meios inapropriados, se expõem a julgamento:

24 Cf. SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, v. 8, p.
49, 1969. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-page/10.2307/2504188>. Acesso em: 3
Agosto 2019.
25 HARRISON, P. Op. cit. p. 69-71.
26 Ibid. p. 99.
27 MACINTYRE, A. Op. cit. p. 146.
28 TOMÁS DE AQUINO. Compendium of Theology 1.10.172. Saint Louis, Herder: 1948. p. 186 et.

seq. apud HARRISON, P. Op. cit. p. 83.


29 HARRISON, P. Op. cit. p. 82-83, 99.
50

Desse modo, assim que as ações dos sujeitos fossem julgadas e avaliadas
estarem em conformidade com seus fins, os seres humanos alcançariam “glória” por
ter agido de modo excelente, isto é, “com virtude”. Isso está relacionado com a per-
cepção que, nesse tipo de linguagem moral não existia a distinção entre o que as
coisas “parecem ser” e o que elas “são de fato”, o que se tinha era um “realismo to-
do-abrangente”, em que o “ser” e “dever ser” estavam imbricados.30
Um dos fatores que certamente contribuiu para esta longa permanência foi a
influência da filosofia natural, que ganharia uma renovação após uma “redescoberta
de uma versão ‘espessa’ da tradição clássica”, especialmente “aquela representada
nas obras de Aristóteles que foram preservadas no mundo árabe”. Nesse momento,
a filosofia natural ganha uma “revisão” a partir da teologia cristã e então passa-se a
afirmar que o conhecimento dos ‘fins’ adivinha de duas formas – pelas Escrituras e
pela natureza. Essa perspectiva, conhecida como os “Dois Livros”, foi a ponte cons-
truída, entre a teologia cristã e os filósofos gregos, especialmente Aristóteles.31
Em virtude dessa compreensão do papel da natureza como um indicador das
diretrizes morais imprimidas por Deus na natureza, instituições como universidades
como Bolonha (1150), Paris (c. 1200) e Oxford (1220) foram criadas, fornecendo
uma estrutura para o engajamento com estudos da natureza, gerando um ambiente
intelectual no qual as ideias de que o conhecimento contemplativo de Deus por meio
das Escrituras e da natureza era o fim último florescessem e se norteasse o cresci-
mento da virtude, criando assim a “moldura intelectual” da Europa ocidental até o
século XVII.32

2.2.2 O abandono da filosofia moral medieval

Embora costume-se creditar a superação da filosofia natural ao Iluminismo, a


ênfase dada ao “movimento das Luzes” por vezes ofusca o caráter processual dos
debates intelectuais que, a nível conceitual, possibilitaram fazer surgir os programas
de reformas típicos do século XVIII. Para usar as palavras de Albert Hirschman, o
Iluminismo é visto como um “movimento independente” que surge em oposição ao

30 Ibid. p. 146-147, 153. Para ver alguns críticos deste paradigma na modernidade, cf. HIRSCHMAN,
A. O. Op. cit. p. 11-12.
31 HARRISON, P. Op. cit. p. 70, 80.
32 HARRISON, P. Op. cit. p. 80, MACINTYRE, A. Op. cit. p. 196.
51

paradigma anterior, mas, por mais que os “ilustrados” se considerassem assim, é


mais profícuo analisar as “mudanças endógenas” que possibilitam mudanças concei-
tuais que conduzem a transformações históricas.33 O Iluminismo (considerando,
aqui, as limitações já demonstradas do conceito) tem como base da sua crítica à
filosofia natural o produto de uma rede de disputas intelectuais ocorridas entre funci-
onários de alto escalão das monarquias modernas, clérigos e mercadores, desde o
século XVII, e antes do surgimento de uma “classe de intelectuais”, como ocorrido
na França do século XVIII.34
Germano Maifreda identifica três processos que teriam sido cruciais para o
aparecimento dos debates intelectuais que antecederam o Iluminismo e contribuí-
ram para lançar os fundamentos da crítica à filosofia moderna. O primeiro é o surgi-
mento do humanismo e da renascença, especialmente pelas contribuições neopla-
tônicas, como também o conhecimento prático e conquistas mercantis de comercian-
tes nos séculos XV e XVI. O segundo trata da ascensão do assim chamado "conhe-
cimento científico", que, ao alterar a visão paradigmática de natureza, permitiu o
surgimento da confluência entre "ciência" e política, filosofia, religião, economia –
alterando, assim, o “paradigma cognitivo” da Europa. O terceiro processo é a mu-
dança de "valor" dentro da classe mercantil, a partir a confluência de vários de tipos
conhecimento (teórico, estético e prático) que confluíram para uma mudança concei-
tual, a partir de uma ressignificação da imagem do mercador, e da apropriação de
“linguagem mercantil” como fundamental para um novo projeto de estudos da natu-
reza.35
Essa virada no campo conceitual produziu um interesse em entender a natu-
reza, e por conseguinte, os homens, “como eles são”. Maquiavel rejeitou refletir
acerca “das repúblicas e monarquias imaginárias” para analisar apenas a “verdade
efetiva das coisas”. Hobbes, por sua vez, dedicou-se a descrever a natureza huma-
na antes de ponderar acerca da natureza da comunidade política (commonwealth), e
Baruch Spinoza (1632-1677) em seu Tratado Teológico-Político (1670) criticou “pen-
sadores utópicos” por “não conceberem o homem como ele era, mas por aquilo que

33 Cf. HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 4, 42, 69.


34 MACINTYRE, A. Op. cit. p. 58
35 MAIFREDA, G. Op. cit. p. 8-14, 150.
52

deveria ser”.36 Essa alteração de perspectiva, que intenciona analisar as “coisas co-
mo são”, isto é, da maneira que é observável pelos sentidos, implicou uma transfor-
mação de significado em diversos conceitos-chave. Um exemplo é o uso de ‘moral’,
em que antes do século XVI, significava a “moral de uma história”, isto é, seu sentido
“prático”, que direcionava as ações dos sujeitos a determinados fins. No século XVII,
já é possível notar que ‘moral’ estava mais atrelado às práticas realizadas por al-
guém – especialmente quando se tratava do juízo acerca do comportamento sexual.
Tal mudança se tornou possível porque o conceito ‘moral’ deixou de estar atrelado à
filosofia natural e a sua busca pelos propósitos escondidos na natureza por Deus a
serem revelados pela contemplação; sendo esta conclusão fruto do crescimento da
defesa de uma “justificação racional” para a moral, que estava ligada à “ciência” e
sua rejeição da abordagem contemplativa.37
É preciso, agora, esclarecer que “ciência” estava surgindo no século XVII. É
comum atribuir a esse período a classificação de “Revolução Científica”, mas o uso
da palavra “ciência” para esta época é um anacronismo, uma vez que essa designa-
ção só passa a significar um “corpo de conhecimento distinto” (ou melhor, uma “enti-
dade”) a partir do século XIX.38 Para alcançar maior precisão, é mais útil lançar mão
do conceito de ‘filosofia experimental’, que era, inclusive, uma tópica discursiva co-
mum.39
Uma contribuição importante para a legitimação da nova filosofia experimental
– e, por conseguinte, a crítica à filosofia natural – veio da reforma protestante. A re-
jeição da interpretação alegórica das Escrituras em favor da interpretação literal foi
um recurso que consolidou uma tendência pelo sentido literal presente desde o hu-
manismo na renascença. Por exemplo, Martinho Lutero (1483-1546) cria que a in-
terpretação alegórica era para “mentes fracas” e “homens ociosos”, visto que no
sentido literal estava “toda substância, natureza e fundamento da Escritura Sagra-
da”. Também João Calvino (1509-1564) defendia o sentido “histórico” ou “literal” do

36 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 12-13. Hirschman cita a introdução da parte III do Tratado Teológico-
Político.
37 MACINTYRE, A. O. Op. cit. p. 59-60, OUTRAM, D. The Enlightenment. 4ª. ed. Cambridge:

Cambridge University Press, 2019. p. 109-110.


38 Cf. OUTRAM, D. Op. cit. loc. cit, HARRISON, P. Op. cit. p. 157-193.
39 HARRISON, P. Op. cit. passim.
53

texto contra as afirmações de apoiadores da interpretação alegórica. 40 Essa postura,


que tinha origem no princípio protestante de sola scriptura, no qual a Bíblia era a
autoridade final acerca das questões doutrinárias e eclesiásticas em razão de seu
significado claro e sem ambiguidade, também colaborou para uma crítica à “autori-
dade interpretativa do magistério católico, quanto da longa história exegética que, na
visão deles, havia obscurecido o significado do texto”.41
Visto que a interpretação alegórica das Escrituras também implicava seu uso
para a interpretação da natureza, a crítica protestante das leituras simbólicas do tex-
to bíblico foi refletida nas críticas da nova filosofia experimental às leituras simbóli-
cas da natureza, que viam no mundo natural “princípios ocultos” estabelecidos por
Deus e à própria imagem de Deus. Francis Bacon, em O Progresso do Conhecimen-
to (1605), rejeitou a interpretação alegórica por ser uma “opinião pagã”, visto que “as
obras mostram o poder e a habilidade do artesão, e não sua imagem”. A partir disso,
ele propõe um novo método de interpretação do mundo natural (seu livro Novum
Organum – 1620), que visa corrigir as “imposturas e ídolos da mente”,42 que consis-
tia fundamentalmente em “despir a natureza de seu caráter simbólico” a partir de
uma leitura baseada na matemática. Tal leitura, por sua vez, serviu de sustentação
para a ideia que Deus teria impresso no mundo leis que controlavam a natureza,
sendo tais leis capazes de serem identificadas, compreendidas e descritas por meio
da matemática. Nesse sentido, Robert Boyle (1627-1691) defendeu que o propósito
de estudar a natureza não estava em revelar princípios transcendentais, mas em
“revelar seu extraordinário design físico”, já que o significado das criaturas se acha-
va “dentro delas mesmas”, e seu descobrimento seria facilitado por meio de “experi-
mento, dissecação e ampliação artificial”. René Descartes (1596-1650) acreditava
que sendo esse tipo de conhecimento por meio de leis naturais sustentado por

40 LUTERO, M. The Babylonian Captivity of the Church. In: Three Treatises. Filadélfia: Fortress
Press, 1970. p. 146, 241; HAZLETT, I. Calvin’s Latin Preface of His Proposed French Edition of
Chrysostom’s Homilies: Translation and Commentary. In KIRK, J. (org). Humanism and Reform.
Oxford: Oxford University Press, 1991. p. 129-150 apud HARRISON, P. Op. cit. p. 88. Cf. MCGRATH,
A. The Intellectual Origins of the European Reformation. 2ª Ed. Oxford: Blackwell Publishing,
2004.
41 HARRISON, P. Op. cit. 88-94. cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 10-12. Neste parágrafo, reconhece-se a

diversidade de “humanismos”, porém, por questões de direcionamento da pesquisa, optou-se por


utilizar esta categoria de modo mais genérico para fins explicativos.
42 BACON, F. Advancement of Learning. In The Works of Francis Bacon. v. 3. Londres: Longman,

1857-1874. p. 349 et. seq., _____. Novum Organum I. xxiii in The Works of Francis Bacon. v. 4. p.
51 apud Harrison, Op. cit. p. 88-89. Cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 153.
54

Deus, haveria “motivação para a investigação empírica da natureza.43 Tais afirma-


ções fornecem recursos para um melhor entendimento a respeito de como mudan-
ças internas do ponto de vista “religioso” possibilitaram o avanço da “ciência”. Acer-
ca dessa relação entre “ciência e religião” nesse momento de virada com o protes-
tantismo e a filosofia experimental, Peter Harrison faz uma ponderação importante,
que coaduna com as noções de “mudanças endógenas” de Albert Hirschman:

É importante entender que Bacon, como muitos defensores da "nova


filosofia", não se imaginava como se estivesse despindo o universo de sua
significação religiosa. Antes, ele se apresenta como se estivesse propondo
uma abordagem verdadeiramente cristã à natureza, em comparação com
abordagens anteriores que, segundo era entendido, tinham sido
contaminadas pela filosofia pagã (daí a caracterização que Bacon faz delas
como "pagãs"). Tratou-se de uma reforma das ciências paralela à reforma
da religião que, da perspectiva protestante, teve igualmente a ver com a
purificação do catolicismo paganizado. Bacon propõe um novo modo não
alegórico de ler o livro da natureza, o que foi característico de outros
pioneiros das novas ciências. Kepler e Galileu, por exemplo, retiveram a
noção do livro da natureza, mas defenderam que a linguagem em que fora
escrito era matemática. Em vez de uma vasta tela de símbolos teológicos, o
cosmo continha inscrições escritas na parca e precisa linguagem da
geometria e da matemática.44

Essa nova percepção acerca da natureza lançou os fundamentos para uma


redefinição da linguagem moral. Se se tomou por certo que a leitura simbólica do
mundo natural era inviável, procurar nesse os ‘fins’, no sentido aristotélico, também
seria um projeto falho. Agora, inicia-se um projeto em que a justificativa pela via da
experimentação, em lugar da contemplação tomava o campo de disputas intelectu-
ais. Nesse processo, os ‘fins’ vieram a ser progressivamente substituídos por ‘meca-
nismos’ quando da reflexão acerca da natureza, expandindo-se inclusive, para ou-
tros campos discursivos. Além das questões que poderiam ser classificadas como
“estritamente morais” a partir de critérios contemporâneos, os ‘mecanismos’ com
tópica alcançaram a religião, e exemplo disso foi o debate entre protestantes calvi-
nistas e remonstrantes holandeses acerca da “mecânica da salvação”, que teve seu

43HARRISON, P. Op. cit. p. 90.


44HARRISON, P. Op. cit. p. 89. Sobre o papel da religião na modernidade, como também do conceito
de “religião” e sua relação com o surgimento da ciência moderna, cf. FUNKENSTEIN, A. Theology
and the Scientific Imagination from the Middle Ages to the Seventeenth Century. Princeton:
Princeton University Press, 1986; GAUKROGER, S. The Emergence of a Scientific Culture: Sci-
ence and the Shaping of Modernity (1210-1685). Oxford: Oxford University Press, 2009; SMITH, W.
C. The Meaning and End of Religion. Minneapolis: Fortress Press, 1991.
55

ápice no Sínodo de Dordrecht (1618-1619).45 Alasdair MacIntyre descreves os traços


desta busca de justificativa racional por meio de ‘mecanismos’:

Mas o que é tentar entender a ação humana em termos mecânicos, em


termos de condições antecedentes entendidas como causas eficientes? Nos
séculos XVII e XVIII, a compreensão da questão - e em muitas versões
subsequentes - no centro da noção de explicação mecânica está uma
concepção de invariáveis especificadas por generalizações do tipo-lei. Citar
uma causa é citar uma condição necessária ou uma condição suficiente ou
uma condição necessária e suficiente como antecedente de qualquer
comportamento a ser explicado. Portanto, toda sequência causal mecânica
exemplifica alguma generalização universal e essa generalização tem um
escopo precisamente especificado. [...] Se conhecemos a verdade de uma
afirmação que expressa uma lei genuína, isto é, também sabemos a
verdade de um conjunto de condicionais contrafactuais bem definidos.46

A consequência da adoção dessa premissa é uma mudança do ponto de visto


analítico, em que a investigação acerca de uma temática específica é eficaz em vir-
tude da previsibilidade, dada à existência de ‘mecanismos’ e ‘leis’ que são imutáveis
e se significado claro – especialmente quando expressas na linguagem matemáti-
ca.47 O problema a ser superado não estava em quão “obscuros e ocultos” os signi-
ficados eram na natureza, mas sim na limitação humana na compreensão das “leis
naturais”. Aqui, um exemplo da aplicação dessa perspectiva mecanicista pode ser
encontrado quando Spinoza declara que, em suas reflexões, decidiu “considerar as
ações e desejos humanos como se eu estivesse pensando em linhas, planos ou
corpos".48
As críticas à interpretação alegórica que se desenvolveram entre os defenso-
res da nova filosofia experimental a partir dos subsídios intelectuais da renascença e
da reforma Protestante certamente foram cruciais para causar o “Fim dos ‘fins’”, ou
seja, o abandono da filosofia natural medieval em virtude da rejeição da filosofia aris-
totélica e de seu diálogo com a interpretação alegórica, já praticada no cristianismo
desde a Antiguidade.49 Portanto, novas bases para a justificativa intelectual do dis-

45 MACINTYRE, A. Op. cit. p. 103-105. Sobre o Sínodo de Dordrecht, cf. ISRAEL, J. I. The Calvinist
Revolution of the Counter-Remonstrants, 1618-1621. In _____. The Dutch Republic: Its Rise,
Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford: Oxford University Press, 1995. p. 450-477.
46 Ibid. p. 106.
47 Ibid. p. 150.
48 SPINOZA, B. Tratactus Theologico-Politicus. Parte III, Introdução apud HIRSCHMAN, A. O. Op.

cit. p. 14.
49
HARRISON, P. Op. cit., p. 96-97.
56

curso moral e também das investigações sobre a natureza foram criadas, uma vez
que a teleologia que surgiu da interação filosófica entre o cristianismo e Aristóteles
era subjacente aos debates intelectuais. Uma das principais bases a serem elabora-
das foi a que afirmava ser a ‘utilidade’ o critério para avaliar decisões morais e os
benefícios tanto de recursos naturais como de ideias. Por sua vez, isso implica afir-
mar que os benefícios da contemplação do mundo natural, que eram recebidos “in-
ternamente”, passam a ser buscados nas consequências observáveis (logo, “exter-
nas”) das escolhas e desejos humanos.50 Isso é observado, por exemplo, quando
Francis Bacon afirma que seu objetivo ao criar um novo método de estudos da natu-
reza era priorizar “aquelas que preparam e alteram os corpos naturais”. 51

2.2.2.1 Utilidade

Para Agostinho, há uma distinção entre uso (uti) e desfruto (frui) do mundo.
Segundo ele, o cristão deveria usar o mundo, e não desfrutar dele, pois a fruição do
cristão está em Deus, e o mundo deve ser usado para que “as coisas invisíveis de
Deus sejam vistas claramente” – uma referência à interpretação alegórica das Escri-
turas e da natureza. Em Agostinho, essa assertiva está baseada em sua ideia de
Ordem dos Amores (Ordo Amoris), em que Deus é a plenitude, o amor último, e
quando não se desfruta dele – nem se usa do mundo para ir até ele – ocorre um
“desordenamento dos amores”, e daí a importância de “usar o mundo” e não “desfru-
tar dele”. A ideia agostiniana de “usar o mundo” foi refletida também em Tomás de
Aquino, quando afirma que a felicidade humana consiste na contemplação de Deus,
e que para tal deve-se usar a natureza, encontrando a ordem (telos) moral que leva
até Deus. Esse esforço era necessário pois Adão, ao desobedecer a Deus, teria
perdido a capacidade de distinguir a ordem moral nas criaturas. A razão sozinha ti-
nha alguma eficácia, porém precisava da revelação para atingir seu propósito, que é
o progresso (profectus) à virtude (para tanto, retoma-se o conceito de Dois Livros).52
Com a crítica à interpretação alegórica e à escolástica medieval, em virtude
de sua fundamentação em Aristóteles, por um dos percursos possíveis, a ideia de
‘utilidade’ deixa de descrever aquilo que auxilia para o desenvolvimento de qualida-

50 MACINTYRE, A. Op. cit. p. 264-265.


51 HARRISON, P. Op. cit. p. 136, MAIFREDA, G. Op. cit. p. 151-152.
52 HARRISON, P. Op. cit. 77-80, 132.
57

des interiores para estar relacionada àquilo que é exterior, ou seja, observável. A
relação entre ‘utilidade’ e observação também é feita em Francis Bacon, ainda que
com intenções distintas. O projeto da nova filosofia experimental também ligava-se
ao conceito de ‘progresso’, mas enquanto em Tomás de Aquino este era um “pro-
gresso à virtude”, ou seja, um aprimoramento moral “interior”, identificável, em pri-
meiro lugar, para aquele que se lançava à contemplação das Escrituras e da nature-
za, em Bacon a filosofia experimental “proporá a si um tipo de verdade que produzirá
satisfação à mente ao atribuir causas a coisas há muito descobertas, e não produzi-
rá a verdade que levará a nova garantia de obras e nova clareza de axiomas”. A ên-
fase aqui está no conhecimento das causas de coisas descobertas (isto é, já obser-
vadas), e o crescente acúmulo desse conhecimento que é, também, observável: “a
perfeição das ciências [virá] não da celeridade ou habilidade de qualquer inquiridor,
mas da sucessão [delas]”.53
Assim, a tópica da ‘utilidade’ foi mobilizada para justificar a “nova filosofia”.
Para o caso inglês, Peter Harrison apresenta críticos como Robert South (1634-
1716), teólogo de Oxford, que questionavam a “utilidade” da filosofia experimental,
usando como fundamento a ética da virtude conforme o diálogo medieval entre cris-
tianismo e aristotelismo. A pergunta central girava em torno do propósito da investi-
gação intelectual. Os defensores da antiga filosofia natural, como Meric Causabon
(1599-1671) afirmavam que a formação do indivíduo para seu aprimoramento moral
era o alvo do exercício do intelecto, e a nova filosofia experimental se preocuparia
apenas com a satisfação da curiosidade acerca de assuntos irrelevantes para o
aperfeiçoamento moral – isto quando sua ênfase na “transformação do mundo” não
era acusada de pelagianismo.54
A defesa da filosofia experimental consistiu em defender sua utilidade, princi-
palmente, em oferecer subsídios para a teologia cristã. A afinidade entre as críticas
da teologia protestante e dos adeptos da filosofia experimental operou para que este
tipo de argumentação fosse construído na Inglaterra. Uma vez que a humanidade
perdeu, em Adão, a capacidade de compreender o mundo natural e compreender a
verdadeira essência das coisas por conta do pecado (aqui, uma referência à doutri-

53 BACON, F. The English Translation of the Novum Organum, 1.81; 1.84. In The Works of Francis
Bacon. p. 80, 82 apud HARRISON, P. Op. cit. p. 133-134.
54 HARRISON, P. Op. cit. p. 136-141; OUTRAM, D. Op. cit. p. 111-112. Cf. MCCORMICK, T. William

Petty and the Ambitions of Political Arithmetic. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 155.
58

na do Pecado Original), tal deficiência poderia ser amenizada a partir da filosofia ex-
perimental. Francis Bacon assim argumenta na abertura de A Grande Instauração
(1620):

Sendo convencido de que o intelecto humano cria suas próprias


dificuldades, sem usar as verdadeiras ajudas que estão à disposição do
homem sóbria e judiciosamente; de onde se segue a ignorância múltipla das
coisas e, por causa dessa ignorância, prejuízos inumeráveis; ele [Francis
Bacon] achava que todo julgamento deveria ser feito, se aquele intercâmbio
entre a mente do homem e a natureza das coisas, que é mais precioso do
que qualquer coisa na terra, ou pelo menos do que qualquer coisa que é da
terra, poderia, por qualquer meio, ser restaurado à sua natureza e condição
perfeita e original, ou, se não for, ainda reduzida a uma condição melhor do
que aquela em que está agora.55

A defesa da ‘utilidade’ da filosofia experimental operou significados novos e


antigos desse conceito, como uma estratégia de legitimação da “nova filosofia”. Um
exemplo disso pode ser encontrado em Joseph Glanvill (1636-1680), que identifica-
va na “filosofia real” três tipos de utilidade (a filosofia experimental era “real” porque
lidava com coisas “reais”, e não definições ou axiomas). Segundo Glanvill, a primeira
utilidade da filosofia real era a promoção da virtude e da felicidade nos homens, a
segunda tratava-se do subsídio que esta filosofia forneceria à religião, pois assim os
homens veriam com maior nitidez a “glória de Deus presente nas criaturas”; em tom
similar à busca de Robert Boyle pelo design divino no mundo natural. A terceira utili-
dade consiste em defender um novo significado para este conceito, ligado ao traba-
lho para a alteração material do mundo e dos homens:

Digo, pois, que foi observado pelo ilustre lorde Bacon e por alguns outros
engenhosos modernos que a filosofia deveria ser um instrumento de
trabalho para descobrir aqueles auxílios que a providência colocou na
natureza a fim de nos assistir contra as inconveniências desta condição e
fazer aplicações de coisas que venham a servir ao benefício universal.56

Glanvill faz esta afirmação fundamentado no que Francis Bacon escreveu em


A Grande Instauração acerca do “verdadeiro propósito do conhecimento”. Bacon

55 BACON, F. The Great Instauration. In WEINBERGER, J. (ed). New Atlantis and The Great Instau-
ration. Harlan Davidson, 1989. p. 1. Cf. HARRISON, P. Op. cit. p. 100.
56 GLANVILL, J. Modern Improvements of Useful Knowledge. In Essays on Several Important Sub-

jects in Philosophy and Religion. Londres: 1676. p. 35 apud HARRISON, P. Op. cit. p. 138-139.
59

defendia que o conhecimento advindo de seu projeto da filosofia experimental deve-


ria servir para o benefício da vida humana, para o exercício da caridade e para a
construção do bem comum, que dependia dos recursos da “nova filosofia” para que
conflitos e imprecisões fossem sanados, lançando assim os fundamentos para a “uti-
lidade e poder do homem”:

Por fim, faria uma advertência geral a todos; que considerem quais são os
verdadeiros fins do conhecimento e que não o procurem nem pelo prazer da
mente, nem pela contenda, nem pela superioridade aos outros, nem pelo
lucro, ou fama, ou poder, ou qualquer uma dessas coisas inferiores; mas
pelo benefício e uso da vida; e que aperfeiçoem e governem em caridade.
Pois foi da avidez pelo poder que os anjos caíram, da avidez pelo
conhecimento que o homem caiu; mas da caridade não pode haver
excesso, nem anjo ou homem jamais correram perigo por isso.

Os pedidos que tenho que fazer são estes. Por mim mesmo, não digo nada,
mas em nome do assunto em questão peço aos homens que acreditem que
não se trata de uma opinião, mas de um trabalho a ser realizado; e ter
certeza de que estou trabalhando para estabelecer os alicerces, não de
alguma seita ou doutrina, mas da utilidade e poder humanos. Em seguida,
peço que eles lidem de maneira justa com seus próprios interesses, e que
deixem de lado todas as divergências e preconceitos em favor dessa ou
daquela opinião, para iniciarem uma discussão acerca do bem comum, e
que sejam agora libertados e protegidos pela segurança e auxílio que
ofereço dos erros e impedimentos do caminho, para que apresentem-se e
participem naquilo que resta fazer.57

A “nova filosofia” era útil porque, concomitantemente, trazia “alívio à condição


humana” e eliminava as divergências de opinião acerca do bem comum em virtude
da linguagem clara e objetiva da filosofia experimental – ou, pelo menos, essa
linguagem fornecia subsídio para isso. Desse modo, como os benefícios da filosofia
experimental eram claramente “observáveis”, em oposição à filosofia escolástica,
que, nas palavras de Bacon, era criticada por sua ênfase no “prazer da mente e da
contenda”, o conhecimento experimental está fora do alcance das críticas “por seu
potencial de amenizar as fraquezas materiais que acompanham a condição
humana”.58 E como consequência disso, surgiu um distanciamento crescente entre
os estudos do mundo natural e a teologia, dando prioridade à “ciência experimental”
em lugar da “ciência discursiva”, resultando também numa reapropriação do

57 BACON, F. The Great Instauration. In WEINBERGER, J. (ed). New Atlantis and The Great Instau-

ration. Harlan Davidson, 1989. p. 16-17. Cf. HARRISON, P. Op. cit. p. 144.
58 HARRISON, P. Op. cit. p. 144-145.
60

conceito de ‘filosofia natural’, que passou a mesclar-se com o significado de ‘filosofia


experimental’.59
Ainda acerca da argumentação pela utilidade da filosofia experimental, resta
comentar sobre a tópica do “domínio sobre a natureza”. Por conta da influência da
interpretação alegórica na Idade Média, argumentava-se que Adão conseguia distin-
guir os princípios morais ocultos nas criaturas, e assim exercia domínio sobre suas
paixões. Depois da Queda, o objetivo da contemplação da natureza, com auxílio da
contemplação das Escrituras, visava a restauração interior, e, assim, nos homens,
este domínio “sobre sua natureza” resultava em um domínio “sobre a natureza”, mui-
to em virtude deste “alinhamento” com os sinais que o mundo natural oferecia ao
direcionamento moral.60
No entanto, com o avanço do protestantismo na Inglaterra, a percepção de
que o conhecimento dos propósitos morais advinha do exame das Escrituras e de
um relacionamento correto com Deus, por conta da doutrina de justificação pela fé.
Assim, para alguns pensadores ingleses, como a natureza foi esvaziada desse po-
tencial de direcionamento moral, ela passou a ser lida como um alvo do exercício de
controle sobre a criação de divina, em que os homens teriam capacidade de usufru-
ir, ainda que em parte, dadas as consequências do pecado de Adão. Por exemplo, é
possível identificar este repertório conceitual da teologia protestante na percepção
de Francis Bacon que o propósito do conhecimento deveria consistir nos “benefícios
e usos da vida” se fundamenta, como já foi demonstrado, em procurar a restauração
do “intercâmbio original” entre a mente humana e a natureza. Aqui se manifestariam
a “utilidade e poder humanos”. Além de Bacon, Thomas Sprat (1635-1713), ao es-
crever sobre a história da Royal Society, disse que o objetivo da organização era
“restaurar o domínio sobre as coisas”, Joseph Glanvill aponta que a filosofia experi-
mental proporcionava meios para fazer a natureza servir aos “propósito e desígnios”
humanos, e Thomas Hobbes afirma no Leviatã (1651) que o papel da filosofia con-
sistiria em fazer uso dela para os benefícios da comodidade humana.61 Posterior-
mente, é o trabalho de Isaac Newton, especialmente a partir de Philosophiae Natura-
lis Principia Mathematica (1687), que solidificará a noção que o domínio sobre a na-

59 Ibid. p. 120-126; OUTRAM, D. Op. cit. p. 120-121. Doravante, ambas serão usadas como sinôni-
mos.
60 HARRISON, P. Op. cit. p. 148-149.
61 Ibid. p. 149-152. Cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 143.
61

tureza seria facilitado pela descrição matemática de leis naturais, tornando a com-
preensão dos mecanismos naturais claros e objetivos para que a intervenção huma-
na para realizar seus desígnios fosse eficaz.62 Deste modo, vê-se que na Inglaterra
a teologia protestante forneceu subsídios intelectuais para que houvesse essa tran-
sição para uma redefinição de conceitos já presentes na teologia medieval, a partir
de uma nova perspectiva de caráter “experimental”.
Como consequência dessa percepção, as decisões morais eram justificadas
de acordo com sua conformidade a leis morais ou quanto aos resultados observá-
veis das ações dos sujeitos. Ambas as alternativas eram derivadas do pressuposto
da existência de postulados universal possíveis de identificação e descrição por lin-
guagem matemática. Tal pressuposto implicou o surgimento do que Peter Harrison
classifica como “sociedade disciplinar”, em que instituições diversas foram criadas
(como as comunidades e sociedades “científicas”) ou ressignificadas (como as uni-
versidades e escolas) a fim de tornar indivíduos úteis por meio da instrução do co-
nhecimento dos e na conformação aos postulados universais.63

2.2.2.2 Interesse

A partir das discussões acerca da necessidade de compreender as coisas


“como elas são” – e por conseguinte, a “natureza humana” – percebe-se que deci-
sões são tomadas em oposição ao que seria “natural”. A fim de que se pudesse con-
trolar os indivíduos para que não agissem “segundo suas paixões” (ou “vícios”), Al-
bert Hirschman aponta algumas iniciativas surgiram procurando solucionar esse
problema.
A primeira delas remonta a Agostinho e Calvino, na qual a repressão das pai-
xões era o caminho pelo qual os homens passariam a agir conforme sua natureza.
Uma vez que existiria uma ordem dada por Deus no seu ato de criação, “qualquer
ordem social e política estabelecida é justificada por sua própria existência. Suas
possíveis injustiças são apenas retribuições pelos pecados do Homem Caído”,64 e

62 OUTRAM, D. Op. cit. p. 115-116.


63 HARRISON, P. Op. cit. p. 108. Aqui, cumpre ressaltar o diálogo de Harrison com Charles Taylor e
Michel Foucault. Cf. TAYLOR, C. Uma Era Secular. Ed. Unisnos, 2010; FOUCAULT, M. Vigiar e
Punir. Vozes, 2014.
64 HIRSCHMAN, A. O. Op. cit. p. 15.
62

caberia ao governante atuar como uma “autoridade ex machina” para reprimir as


paixões humanas.
A segunda proposta era consistia no “adestramento” das paixões. Blaise Pas-
cal (1623-1662) asseverou que os homens atingiriam grandeza quando transformas-
sem a “concupiscência em um arranjo admirável, ou em uma bela ordem”.65 Giam-
battista Vico (1668-1744) defendia que a sociedade transformaria os vícios que po-
tencialmente a destruiriam os homens em “felicidade civil” – que pode ser vista como
sinônimo de “bem comum” – e tal fato seria prova da existência de providência divi-
na. Bernard Mandeville (1679-1733), por sua vez, apresentou em A Fábula das Abe-
lhas (1714) uma “Política Habilidosa do Governante Competente”, na qual por meio
de uma moldura institucional construída de modo contingente, o soberano seria ca-
paz de transformar “vícios privados” em “benefícios públicos”. Adam Smith, por fim,
tornaria esta proposta mais palatável ao substituir em a riqueza das nações “pai-
xões” e “vícios” por “vantagem” e “interesse”.66
A terceira via para o controle das paixões é, como diz Hirschman, a tática de
“combater fogo com fogo”, ou seja, usar um conjunto específico de paixões para
combater outras. Essa proposta conseguiu estabelecer-se pois a ideia de reprimir as
paixões era apenas um modo de afastar temporariamente o problema, enquanto a
ideia de adestramento parecia marcada com elementos de transformação alquímica,
ao contrário da tendência à rejeição da alquimia,a partir do século XVII. 67 Tal posi-
ção pode ser encontrada em Francis Bacon, quando afirma em O Progresso do Co-
nhecimento (1605) que era um assunto de uso moral e civil “como colocar uma afei-
ção contra a outra e dominar uma pela outra”, e posição semelhante pode ser en-
contrada em Spinoza, quando na Ética (1677) afirma “uma afeição não pode ser res-
tringida ou removida ao menos que seja confrontada com outra afeição”. Posterior-
mente, David Hume (1711-1776) ainda diria que a razão é escrava das paixões, e
que nada poderia retirar ou amenizar o impulso de uma paixão a não ser “um impul-
so contrário”.68
Em razão do surgimento e crescente adesão à proposta de combater umas
paixões contra as outras, iniciou-se um esforço para tentar delimitar que tipos de

65 Ibid. p. 16.
66 Ibid. p. 15-19.
67 Acerca dos debates sobre a definição de “alquimia”, cf. MCCORMICK, T. William Petty and the

Ambitions of Political Arithmetic. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 50.


68 Ibid. p. 20-25.
63

paixões eram ruins e quais outras seriam boas, ou pelo menos úteis para refrear as
ruins. Destarte, foi crescendo o uso da palavra ‘interesse’ para designar o papel das
“paixões de contrapeso”, ou seja, aquelas paixões úteis que eliminavam ou diminuí-
am o prejuízo das paixões ruins. Contudo, ressalva é necessária, uma vez que exis-
te uma distinção entre os usos do singular e do plural de ‘interesse’. Segundo
Hirschman, as vantagens econômicas de pessoas ou grupos eram designadas por
‘interesses’, enquanto ‘interesse’ significava “a totalidade das aspirações humanas”.
O que havia em comum entes os dois significados era que apontavam para “um
elemento de cálculo e reflexão” acerca da maneira obter vantagens econômicas co-
mo também de que forma as “aspirações humanas” deveriam ser realizadas.69
Hirschman afirma que o conceito de ‘interesse’ e seu elemento de cálculo po-
dem ser remontados às reflexões de Maquiavel e àquelas inspiradas nele, que de-
ram origem às “expressões gêmeas” ‘interesse’ e ‘razão de Estado’. O objetivo de
ambas era superar a ética da virtude medieval, ao mesmo tempo em que se concen-
travam em identificar princípios racionais, imunes às paixões, que oferecessem dire-
cionamento claro ao soberano. Henri de Rohan (1579-1638) é um dos exemplos da
aplicação de ‘interesse’ aos governantes, a começar pelo título de um de seus escri-
tos: Tratado Sobre os Interesses dos Príncipes e Estados da Cristandade (1640).
Nele, o Duque de Rohan afirma que “o príncipe governa o povo, e o interesse go-
verna o príncipe”, pois “o interesse é guiado apenas pela razão”. Por conta da tradu-
ção inglesa, essa noção influenciou, posteriormente, o aparecimento de “interesse
nacional” na Inglaterra, onde ‘interesse’ tornou-se vinculado não apenas à pessoa do
príncipe – que, por sua vez, teve impacto no despertar de um debate intelectual so-
bre ‘interesse’ econômico após a Restauração (1660-1666).70
Embora houvesse o problema da definição do que significava ‘interesse’, cada
vez mais de percebia uma vinculação a aspectos econômicos. Por exemplo, Jean de
Silhon (1596-1667), em um de seus tratados, teria listado uma série de ‘interesses’,
e lamentou que cada vez mais o significado de ‘interesse’ era ligado apenas à ques-
tão da obtenção de riquezas – o que seria perceptível, segundo Hirschman, em Da-
vid Hume e Adam Smith.71

69 Ibid. p. 31-32.
70 Ibid. p. 33-37.
71 Ibid. p. 37-39.
64

Ao cristalizar-se como a terceira via entra paixões e vícios, ‘interesse’ tornou-


se tanto uma moda intelectual quanto um paradigma na Europa moderna. Como le-
gitimação para sua transformação em uma tópica comum na compreensão das
ações dos soberanos e dos súditos, uma vez que o interesse seria guiado pela ra-
zão, tal fato produziria previsibilidade, que por sua vez resultaria numa rede de rela-
cionamentos interdependentes, oferecendo, assim, uma ordem social mais “realista”,
o que tornaria o governo mais viável para o soberano.72

2.2.2.3 Trabalho

A categoria ‘trabalho’ também sofreu alterações em razão Da progressiva


adoção da linguagem matemática como meio fundamental de compreensão da natu-
reza. Embora existisse na modernidade certo consenso em torno da afirmação que
“o trabalho contido em um objeto determinava seu valor”, não havia uma teoria que
explicasse essa relação entre trabalho e valor que fosse de anuência geral. De
acordo com Germano Maifreda, o axioma comum mais próximo de uma teoria era
que “o trabalho para produzir algo determinava o custo do objeto e que mesmo esse
custo estava sujeito a variáveis socialmente determinadas.” O puritano John Ball
(1585–1640) pode ser citado como exemplo, por defender que o pagamento pelo
trabalho não poderia ser considerado o custo do trabalho.73
Um momento importante para que o surgimento de teorias sobre a relação
entre trabalho e valor que utilizasse da matemática como linguagem para a descri-
ção dessa relação é quando se passa a adotar o modelo de “contabilidade mercantil”
como a melhor forma de registro e análise das ações humanas. Essa inclinação po-
de ser vista em Francis Bacon e Isaac Newton, que, utilizaram este método em suas
anotações pessoais – um pequeno indício, diz Maifreda, de mudanças de um cená-
rio filosófico mais amplo. Ainda, Bacon manifestou o desejo de escrever uma “histó-
ria mecânica” que fosse um “compilado rigoroso e diligente” de todas as artes, e
posteriormente Robert Boyle manifestou o desejo que a filosofia experimental fosse
utilizada para a formulação de uma “boa história do comércio”. Mesmo que não hou-
vesse confiança absoluta nos mercadores e na sua linguagem, cria-se que a “mecâ-

72 Ibid. p. 42-52, 81-83.


73 MAIFREDA, G. Op. cit. p. 144-148.
65

nica” poderia corrigir seus equívocos e torná-la ainda mais clara e objetiva, conforme
asseverou John Bury (1580-1667), um dos adeptos da filosofia experimental, ao di-
zer que a mecânica e “todo tipo de invenções” favoreceria o crescimento do corpo
político como, principalmente do comércio e sua compreensão.74

2.2.2.3.1 Trabalho e Comércio

Devido a esta defesa da linguagem da “contabilidade mercantil” como o me-


lhor método de compreensão da natureza como um todo – e da natureza do comér-
cio, de modo mais específico – houve uma “absorção” de ‘trabalho’ em ‘comércio’.
Em boa medida, outro fator que contribuiu para esta confluência foram as discus-
sões acerca do que constituiria o “bem comum”, que estava ligada, em sua origem
latina, à cunhagem de moedas autorizadas por um governante, mas que gradativa-
mente foi ligada ao “corpo político” como um todo, considerando a ordem civil, as
leis políticas, e o número da população, sendo esta redefinição capaz de abranger
os aspectos político e econômico concomitantemente.75
O início deste processo se dá na virada do século XVI para o XVII, quando fo-
ram formulados alguns princípios que tinham a população como estratégico recurso
político e econômico para os Estados. Essas reflexões partiram de problemas objeti-
vos do ponto político – a conservação e a ampliação das repúblicas – e puderam se
valer da experiência prévia das cidades europeias que, desde a Baixa Idade Média,
vinham tentando responder ao desafio provocado pela vaga de pobres sem trabalho
definido que migravam e enchiam as ruas das cidades. No fim do século XVI, um
amplo repertório de iniciativas contra a ociosidade já estava sedimentado, e certa-
mente pôde servir de base para as formulações teóricas sobre as utilidades políticas
e econômicas da população, ou mais precisamente, das “gentes” – isto é, da popu-
lação de um reino. Sem qualquer dado estatístico fiável, essas constatações depen-
diam mais da capacidade de usar as experiências históricas como ferramenta de
exemplo e reflexão do que propriamente uma leitura objetiva e quantificável do nú-
mero de súditos.

74 Ibid. p. 150-157.
75 Ibid. p. 160-162.
66

No que se refere à tradição intelectual que percebeu no crescimento do nú-


mero de súditos um importante meio para a conservação e a expansão das repúbli-
cas, Giovanni Botero (c. 1544-1617) e suas reflexões em A Razão de Estado (1589)
são de suma importância, visto sua abordagem das tópicas de ‘valor’ e ‘trabalho’ no
contexto político e social. Em Botero, o emprego estratégico de determinadas cate-
gorias sociais em funções úteis tornou-se uma tópica associada ao bom governo e
uma maneira eficaz de dar utilidade a grupos previamente considerados “inúteis”.76
Uma população numerosa, afirma, alimenta o exército, enriquece o fisco, aumenta o
comércio. O aumento de súditos é, primeiramente, um assunto doméstico, cujas di-
retrizes eram dadas por meio do fomento à agricultura, ao comércio, à indústria e
aos matrimônios, mas também um tema de política externa, porque integrava o nú-
cleo de preocupações para conservar os Estados. Os braços à disposição do prínci-
pe não deveriam ser uma questão exclusivamente numérica, étnica ou nacional,
mas resultado do máximo esforço para agregar povos de diferentes culturas e ori-
gens sob uma mesma autoridade. Todo esforço de integrar populações heterogê-
neas do ponto de vista cultural caminha ao lado de um conjunto programático de
formas de incutir valor nos súditos, pois, segundo Botero, o potencial manual e inte-
lectual de uma população advém do valor adquirido por meio do trabalho:

E, como as artes lutam com a natureza, alguns podem me perguntar qual


dos dois é o principal em ampliar qualquer lugar e torná-lo mais populoso - a
fertilidade do solo ou a indústria do homem. Sem dúvida, a indústria,
primeiro porque as coisas feitas pela mão modeladora do homem são
maiores e de preço muito superior às coisas geradas pela natureza, de
modo que a natureza oferece o material e o objeto, mas a sutileza e a arte
do homem dão a variedade indescritível das formas. A lã é o fruto simples e
áspero da natureza: quantas coisas adoráveis, quão diversas e multiformes
são feitas dela pelas artes?77

Outros exemplos acerca de como o trabalho engrandeceria pode uma nação


são John Smith, quando nos debates a respeito do crescimento das riquezas ingle-
sas por meio das colônias, afirmou que a Inglaterra deveria imitar os holandeses,
porque “seu poderio foi construído sobre o trabalho, e não na busca por recursos

76 Cf. FRANCO, R. Riqueza, pobreza e infância: o reformismo ilustrado português e a utilidade dos
expostos. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. XXVI, p. 112, Dezembro 2019.
77 BOTERO, G. La Ragion di Stato. Roma: Donzelli, 1997. p. 156 apud MAIFREDA, G. Op. cit. p.

164.
67

naturais”, e, portanto, a melhor solução era uma organização do trabalho nas colô-
nias inglesas. Carew Reynell (1563-1624), em O Interesse Inglês Descoberto E
Promovido (1685), defendeu que “o trabalho e as gentes de uma nação são a sua
força”, e que o trabalho aumentaria a população, que por sua vez, faria crescer o
comércio – e a Inglaterra poderia ficar até dez vezes mais rica se atentasse para
isso. Nas disputas políticas inglesas, Whigs tomavam a posição que o comércio era
“o verdadeiro negócio da nação”, enquanto Tories lamentavam a crescente vincula-
ção do poderio inglês ao acúmulo de riquezas ao invés das terras.78
Tal movimento de afirmação do comércio como “o verdadeiro negócio da Na-
ção” implicou em uma percepção que via nas atividades comerciais um meio de in-
cutir valores nas populações. Hirschman aponta que na França dos séculos XVII e
início do XVII o comércio era visto como uma “atividade doce”, pois por sua natureza
de ser uma atividade que exige cálculo, isto instigava nos “homens doçura, suavida-
de, calma e gentileza e é o antônimo de violência.” O filósofo escocês Francis Hut-
cheson (1694-1746) coaduna com essa assertiva quando descreve o comércio como
“um desejo pacífico” que levaria aos homens a agir com calma e racionalidade. Spi-
noza, por sua vez, via no comércio “o crescimento de interesses que são interde-
pendentes ou precisavam dos mesmo meios para serem alcançados”, o que na ex-
pansão da ordem moral e civil.79
Uma vez que o comércio tornou-se tanto um meio calculável de enriquecer
uma nação como também de expansão da “civilidade”, o crescimento do uso da ma-
temática para descrever atividades comerciais e sua natureza implicaram em uma
vinculação nascente “economia política” como uma “ciência do terceiro estado”,80
que permitia um conhecimento e controle que um soberano poderia exercer sobre
seus súditos mais viável e realista. É a partir deste ponto que William Petty elaborará
sua ‘aritmética política’, sendo este quesito que, subsequentemente, chamaria aten-
ção do Marquês de Pombal, quando este era ainda um embaixador português em
Londres.

78 PINCUS, S. Rethinking Mercantilism: Political Economy, the British Empire, and the Atlantic World
in the Seventeenth and Eighteenth Centuries. The William and Mary Quarterly, Williamsburg, v. 69,
p. 15-26, Janeiro 2012. Disponivel em: <https://www.jstor.org/preview-
page/10.5309/willmaryquar.69.1.0003?seq=1>. Acesso em: 5 Julho 2019.
79 HIRSCHMAN, Op. cit. p. 59-74.
80 MAIFREDA, G. Op. cit. p. 174.
68

3 ARITMÉTICA POLÍTICA NA ADMINISTRAÇÃO POMBALINA

O percurso realizado até aqui objetivou indagar acerca da viabilidade da aná-


lise da política pombalina a partir de categorias todo-abrangentes como ‘Iluminismo’
e ‘mercantilismo’. Concluiu-se que a partir de uma reavaliação conceitual da história
do Iluminismo e dos usos de ‘Iluminismo’, este conceito possui validade analítica
considerando as limitações já demonstradas, enquanto que ‘mercantilismo’, por sua
vez, apresenta a necessidade de recuperação das disputas intelectuais acerca da
geração de riqueza na modernidade (empreitada que, nesta pesquisa, foi realizada
de maneira sintética), visto que este conceito não explica as justificativas conceituais
para as tomadas de decisão das monarquias europeias. Tendo esclarecido tais pon-
tos, pondera-se, agora, a respeito da aritmética política em si e de seu uso na políti-
ca pombalina.

3.1 A FORMAÇÃO INTELECTUAL DE WILLIAM PETTY

A fim de elucidar a trajetória de influência intelectuais que levaram William


Petty a escrever Aritmética Política, e criando, assim, este conceito, é necessário
abrir mão de interpretações canônicas da economia, pois tal abordagem impede
uma clara percepção sobre os contextos e as decisões dos agentes que participa-
ram das disputas intelectuais nesta tópica – por exemplo, quando, a partir desta
premissa, se considera a aritmética política sob a categoria ‘pré-Smithiana’. Outras
interpretações das reflexões de Petty colocam-na como uma espécie de “prenuncia-
dora” das ciências demográficas e da estatística, como de seu uso na política. Em-
bora haja algum nível de verdade nestas afirmações, incorre em anacronismo a ten-
tativa de pegar estas consequências identificáveis da história da aritmética política a
partir de e depois de Petty e colocá-las como resultados que, em certa medida, já
estariam premeditados quando da criação da aritmética política.1
Em relação à formação intelectual de William Petty, percebe-se que esta era
de natureza bastante “eclética”, ainda que se considere a falta de delimitação mais
precisa das fronteiras entre diversos tipos de conhecimento disponíveis no período,

1 MCCORMICK, T. William Petty and the Ambitions of Political Arithmetic. Oxford: Oxford

University Press, 2009. p. XVIII, 5. Cf. MAIFREDA, G. From Oikonomia to Political Economy.
Farnham: Ashgate Publishing, 2012. p. 2-5.
69

que só se desenvolveu a partir do século XIX. Nascido na cidade de Romsey, na


Inglaterra, no ano de 1623, Petty cresceu em uma família de artesãos ingleses, de-
pois, adolescente foi educado em um colégio jesuíta na Normandia, quando jovem,
frequentou universidades holandesas e círculos intelectuais parisienses, antes de
retornar à Inglaterra. Em solo inglês, participou de grupos acadêmicos em Oxford e
esteve em debates filosóficos em Londres, na década de 1640. Ao longo desta jor-
nada, especialmente quando da educação jesuítica, Petty teve acesso às novas
ideias no cenário intelectual europeu, especialmente aquelas ligadas à filosofia ex-
perimental e aos estudos da mecânica. Consequentemente, conheceu também a
crítica que essa filosofia fazia da escolástica. Sua educação consistiu na Normandia
consistiu em um diálogo com a filosofia de Aristóteles e outros clássicos, como tam-
bém autores como Thomas Hobbes e Francisco Suárez (1548-1617), que segundo
Ted McCormick influenciou as noções de secular e sagrado de Petty.2
Aos 22 anos de idade, Petty deixou saiu da Holanda em direção à Paris, dei-
xando momentaneamente os estudos acadêmicos em medicina, com o objetivo de
encontrar Thomas Hobbes para apresentá-lo a sua refutação ao astrônomo Christen
Sorensen Longomontanus (1562-1647). Petty e Hobbes tornam-se amigos em 1645,
e no ano seguinte, ele seria para Hobbes “um colega e um secretário” concomitan-
temente. A esta altura, a partir das influência de Hobbes, Petty adicionou habilidades
em ótica e geometria – como também sua aplicação na política – à uma vasta lista
de habilidades trazidas consigo da Holanda:

Ainda que não fosse um médico experiente, ele era, na opinião de [John]
Pell, "um jovem esperançoso que, por semblante e conselho, pode se tornar
extremamente útil". Fluente em francês e latim e competente em grego,
recebera dos jesuítas os elementos de uma educação clássica. Ao mesmo
tempo, ele conhecia os desenvolvimentos de ponta em matemática, filosofia
natural e medicina e conhecia pelo menos alguns dos matemáticos, filósofos
e médicos por trás deles. Ele havia recebido algum treinamento em
iatroquímica. Estimulado, sem dúvida, por seu contexto mais amplo - A
república holandesa ainda era jovem, seus arranjos constitucionais sujeitos
às controvérsia em curso - Petty também começara a manifestar outros
interesses.3

2MCCORMICK, T. Op. cit. p. 14-25.


3Ibid. p. 35, 38. A citação de John Pell se encontra em Pell to Charles Cavendish, 15/25 November
1645, in PELL, J. John Pell (1611–1685) and His Correspondence with Charles Cavendish: The
Mental World of an Early Modern Mathematician. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 441.
70

Ao longo da vida, parece que Petty tentou dialogar uma tendência à prática,
que remete à sua infância em uma família de origem artesã, com suas inclinações à
pesquisas mais “teóricas e científicas”. Seus interesses abarcavam uma vasta gama
de assuntos, indo “da mecânica prática à medicina, à reforma educacional, à meto-
dologia experimental e, muito provisoriamente, à política”, o que contribuiu para sua
formação como um “virtuoso”, aquele capaz de responder problemas de determina-
dos tipos (isto deve-se bastante à falta de fronteiras claras entre os campos de co-
nhecimento na modernidade). Esta “virtude”, expressa especialmente por meio das
invenções e experimentos da filosofia natural, era criticada por ser vista como mera
satisfação da curiosidade, ou mesmo entretenimento – o que não impediu, é claro,
de Petty prosseguir nos estudos da filosofia experimental.4
Quando retornou à Inglaterra, onde finalmente de formou em Oxford no ano
de 1650, Petty participou do que ficou conhecido como Hartlib Circle, um grupo de
intelectuais ingleses, que se constituiu em torno de Samuel Hartlib (1600-1662), em
Londres. O objetivo do grupo era o “melhoramento dos instrumentos mecânicos, da
agricultura da agricultura e das técnicas de manufatura”, o que implicava em uma
rejeição da “sistematização filosófica”. A entrada e permanência de Petty no grupo
se deve em muito às recomendações que Hartlib fez a Robert Boyle, destacando
suas habilidades na matemática e na mecânica, como também em outras áreas co-
mo navegação e processos têxteis, elogiando o escopo do conhecimento de Petty.
Quanto à ênfase conceitual do grupo, estes intelectuais eram adeptos das propostas
de “reformas universais” de Francis Bacon, principalmente a noção de “restauração
do intercâmbio original” entre a mente humana e a natureza, o que também marcou
o pensamento de William Petty, ainda que indiretamente. No Hartlib Circle, Petty
também criou uma rede de contatos que eram políticos, consistindo em apoiadores
do rei Charles I tanto como parlamentaristas e puritanos – transitar entre os dois
grupos era uma façanha considerável tendo em vista este contexto da Guerra Civil
Inglesa.5
Em razão das discussões no Hartlib Circle, William Petty solidificou sua confi-
ança no método da filosofia experimental. Para ele, os critérios para identificação da
verdade eram “a demonstração, ou os sentidos e a experimentação”. Qual justificati-

4 Ibid. p. 40, 155 cf. HARRISON, P. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimto, 2017.
p. 137
5 MCCORMICK, T. Op. cit. p. 42-45, MAIFREDA, G. Op. cit. p. 154.
71

va que procurasse outros critérios, não passava de “mera retórica”.6 Esta metodolo-
gia experimental era, assim aplicável a uma variedade de assuntos, o que explica,
em certo nível, a diversidade de temática que foram do interesse de Petty. Ele tam-
bém propunha, a partir da rejeição da “dedução racional”, que o papel da ciência7
era de promover um conhecimento válido dos processors naturais, capazes de se-
rem entendidas por aqueles de “entendimento prejudicado”, como também produzir
soluções práticas e eficazes para os problemas da sociedade. Para tanto, eu seu
projeto de reforma educacional, as disciplinas como anatomia, geometria e astrono-
mia, que permitiam “a demonstração ocular” e lidavam “com o aspecto sensível das
coisas” deveriam ser priorizadas – mudança de paradigma que fica evidenciada nas
invenções de Petty, ainda que falhassem em cumprir seus objetivos.8 Dessa forma,
Petty também lança a base para que depois possa construir uma “história do comér-
cio” a partir da aplicação da filosofia experimental na economia, a fim de entender o
comportamento humano.9
No ano de 1652, foi oferecido a Petty o cargo de Médico-Geral da Irlanda por
Charles Fleetwood (1618-1692), genro do Lorde Protetor da Inglaterra, Oliver Cro-
mwell (1599-1658) e nomeado por este no mesmo ano a Comandante Chefe da Ir-
landa. Petty seguiu-o com a incumbência de ser médico do exército e da família do
Comandante-Chefe. Este contato mais próximo com figuras do alto escalão da hie-
rarquia política inglesa o fizeram mudar progressivamente de seu status como um
“experimentalista” para um “tecnocrata”, correspondendo a seus interesses de longa
data em ter apoio financeiro e político para seus projetos de reforma. O anseio do
Hartlib Circle (e por conseguinte, de Petty) era ter um espaço, um território, para
aplicar seus desejos de Reforma Universal, e em determinado momento, a após a
reconquista de Cromwell, a Irlanda parecia um espaço plausível. Assim, Petty se
lança a criar um projeto de uma “história natural” da Irlanda, ao lado de outros hartli-
bianos, que visava identificar os principais impedimentos à transformação da Irlanda

6 MCCORMICK, T. Op. cit. p. 60.


7 Sabendo das limitações da categoria “ciência”, apresentadas no capítulo 2, aqui usar-se-á para fins
explicativos “ciência” para referir-se ao conhecimento e investigação intelectual das leis naturais co-
mo proposto pela filosofia experimental, em oposição à “Ciência”, como um corpo distinto de conhe-
cimento e entidade social, fenômeno surgido a partir do século XIX.
8 Ibid. p. 62, 81-82.
9 Ibid. p. 72. A partir daqui, reconhecendo a inexistência de um campo da “ciência econômica” anterior

ao século XIX, passar-se-á a usar “economia” e termos relativos para fazer menção aos debates
acerca da geração de riqueza.
72

em uma terra protestante e útil aos ingleses. Deste modo, Petty deu um passo deci-
sivo para sair “das fronteiras familiares da filosofia natural experimental para uma
ciência mais social e uma carreira mais política”, satisfazendo, assim, ambições e
necessidades filosóficas e pessoais – tensão que lhe custou, ao final, sua perma-
nência no Hartlib Circle, de onde saiu no ano de 1656.10
Entretanto, é a partir deste período que Petty começa a inferir que a popula-
ção não era apenas a fonte de riqueza e força de um reino, “mas também objeto de
conhecimento quantitativo e manipulação calibrada” – aliás, McCormick argumenta,
parece que esta sentença passou a ser vista como conclusão da premissa que os
súditos são a origem da riqueza de um reino, sendo a Holanda o exemplo definitivo
de como um reino tornava seus súditos úteis para a geração de riqueza. A ponte
dessas convicções com a filosofia experimental foi construída a partir das influências
de James Harrington (1611-1677), que defendia um projeto de reforma agrária fun-
damento nas “leis naturais da agricultura”, cujo princípio era a “propriedade propor-
cional” das terras.11
Para Petty, a partir de então, as tarefas da nascente política econômica e da
filosofia natural simplesmente se fundiam, com o objetivo de, ao fazer política se-
guindo os limites das leis naturais, produzir o que a natureza não conseguia por si
mesma – esta era a sua definição de “política natural”, que procurava trazer “unida-
de, indústria e obediência” em prol da “segurança comum”, via canalização de forças
naturais.12 Para tal empreitada intelectual, foi crucial a influência das Observações
(1665) de John Graunt (1620-1671), por se verificar nelas problemáticas de “política,
economia e saúde pública, com alguns comentários sobre moralidade”. Nela, Graunt
reconhecera as limitações de seu projeto, e foi deste ponto que Petty partiu para
elaborar a aritmética política.13 Desta feita, a influência baconiana no Estado, tal co-
mo propõe William Petty quando escreve Aritmética Política (e, em algum nível, co-
mo também seus contemporâneos propunham), o tornaria um “pesquisador científi-
co”, por utilizar métodos empíricos para entender e intervir na economia. Sua entra-

10 Ibid. p. 84-95, 103, 125.


11 Ibid. p. 103, 119, 127-130, 173-175
12 Ibid. p. 147, et seq.
13 Ibid. p. 131-134, 177.
73

da na Royal Society, em 1662, seria um fator que impulsionaria seu projeto a nível
intelectual.14
Em virtude de suas inspirações na filosofia experimental, Petty tinha uma per-
cepção da ciência que era marcadamente prática, evitando teorizações mais siste-
máticas. Entretanto, foi o próprio contexto da Inglaterra que teria “tornado a aritméti-
ca política necessária”. O período da Restauração (1660-1666) se revelou um mo-
mento de disputas pela identidade religiosa da Coroa Britânica que afetam também
a estabilidade do reino a nível social e econômico. À medida que Petty aplicava a
aritmética política para entender e propor soluções aos dilemas de seu contexto, ela
foi gradativamente deixando de ser um projeto e tornando-se uma teoria cujo objeti-
vo era oferecer um ferramental em que a população pudesse ser manipulada em
favor do rei.15 Um indicador importante desta transição é que os trabalhos de Petty
não foram necessariamente "publicados" no sentido em que entendemos hoje, mas
circularam via manuscritos entre a elite política inglesa. O formato mais comum da
transmissão das ideias de Petty era uma pequena série de pequenos tratados em
que apenas tópicos eram listados, e assim, as consequências de se seguir ou não
uma determinada afirmação. O objetivo era apresentar de maneira sintética suas
habilidades administrativas para possíveis patrões. Esta estratégia evitava conflitos
políticos e o risco financeiro de custear uma publicação, mas sua eficiência dependia
do círculo da elite no qual os manuscritos circulassem – o que explica, em boa me-
dida, a falha de Petty em conseguir executar o projeto da Aritmética Política alguma
vez na vida.16
Entretanto, ainda que tenha falhado, as modificações finais no projeto da
Aritmética Política a transformaram numa “arte de governar”, que fornecia um amplo
ferramental para o governo das gentes:

Essa arte implantou um repertório de estratégias - reforma institucional e


legislativa, transplantação e miscigenação proporcional, união conjugal e
nacional - derivadas da experiência imperial passada e da filosofia natural
contemporânea. Ao capturar processos sociais, biológicos e químicos
naturalizados, a aritmética política conferiu ao Estado o poder de gerenciar
tanto a qualidade quanto a quantidade da população, incutindo indústria e
lealdade, maximizando números efetivos ao gerenciar - e, com a ajuda da

14 Ibid. p. 146.
15 Ibid. p. 11, 209-210, 241, 250-255
16 Ibid. p. 6, 211-212, 270- 272.
74

natureza, remover - divisões problemáticas. Criada para um soberano cuja


identidade confessional flutuava e cujos súditos eram divididos por nação,
idioma e religião, era um instrumento para governar uma monarquia múltipla
e um império colonial. Petty quis isso, e vendeu-a como tal.17

Estas mesmas alterações definiriam como a aritmética política seria entendida


depois da morte de Petty, em seu auge produtivo. A obra Aritmética Política foi pu-
blicada três anos após sua morte, em 1690, e sofreu reinterpretações significativas,
uma vez que o contexto do surgimento deste novo conceito já não existia mais. Mui-
tas de suas releituras enfatizam a característica da coleta de dados acerca da popu-
lação de um reino, traço que tem seus fundamentos na defesa da filosofia experi-
mental por parte de Petty. Uma das releituras mais significativas está em Discurso
Sobre as Receitas Públicas e o Comércio da Inglaterra (1698), de Charles Davenant,
em que este afirma ser William Petty o precursor da aritmética política, “que não era
seguida por muitos”, como também via neste conceito “a arte do raciocínio, por meio
de exemplos, de assuntos relativos ao governo”, consistindo em ter “conhecimento e
número das gentes” – este pioneirismo de Petty em relação ao uso dos números foi
o que garantiu a sobrevivência do conceito nas disputas intelectuais. Quanto ao ní-
vel de circulação, Aritmética Política e seus adeptos tiveram traduções conhecidas
para o francês, idioma em que Marquês de Pombal dedicou-se a ler William Petty (a
partir de uma tradução feita pelo próprio Pombal) e também Charles Davenant.18
Assim McCormick resume o processo de criação da aritmética política:

No centro desse processo estavam as crescentes "ambições" de Petty:


ambições científicas com implicações políticas e ambições políticas que
mobilizavam recursos científicos. Se as ambições da aritmética política
ressoam mais de perto com a ciência moderna do que com a economia
moderna, no entanto, seu lugar estabelecido na historiografia da ciência
social levanta questões intrigantes sobre seu destino. A extensão de Petty
da teoria da matéria corpuscular, transmutação alquímica e uma visão de
mundo mecânica facilitou as "Operações da Autoridade", por reduzir a terra
e a população a partículas elementares, unidades homogêneas e
politicamente vazias à disposição da coroa. Reorientou a política - como
Francis Bacon e seus seguidores procuravam reorientar a filosofia - de
brincar com as palavras a manipular as coisas. Por fim, prometeu acabar

17Ibid. p. 258, 289 cf. HARRISON, P. Op. cit. p. 122, 179.


18MCCORMICK, T. Op. cit. p. 288-301, cf. SANTOS, A. C. D. A. O “mecanismo político” pombalino e
o povoamento da América Portuguesa na segunda metade do século XVIII. Revista de História
Regional, Ponta Grossa, v. 15, p. 101-104, 2010. Disponivel em:
<https://www.revistas.uepg.br/index.php/rhr/article/view/1218>. Acesso em: 28 Agosto 2019; DIAS, J.
S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 38, 1984.
75

com a história: talvez não, como Bacon previra, em um sentido apocalíptico,


mas no sentido de conferir à Coroa o poder de desfazer o dano das políticas
passadas e de refazer a terra e as pessoas - repetidas vezes, se necessário
- à sua própria imagem.19

3.1.1 A aritmética política

A aritmética política tencionava ser ao Estado. Por mais que Petty tenha-a
transformado ao longo do tempo em um princípio, tratava-se menos de “entender a
economia” e mais da capacidade e meios de “intervenção” do Estado, por meio da
base intelectual fornecida pela filosofia natural.20 Nas palavras do próprio William
Petty, assim ele define como entende a aritmética política, que são “os usos de se
conhecer o verdadeiro estado das gentes, da terra, do capital, do comércio etc. [...] e
também os ótimos efeitos da unidade, operosidade e obediência visando a seguran-
ça comum e a felicidade particular de cada um.”21 Quando ao método utilizado pela
aritmética política, Petty afirma que

O método que adotei para fazê-lo ainda não é muito costumeiro; ao invés de
usar apenas palavras comparativas e superlativas e argumentos
intelectuais, tratei de (como exemplo da aritmética política que há tempos é
meu fito) exprimir-me em termos de número, peso e medida; de usar
apenas argumentos baseados nos sentidos e de considerar somente as
causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração
de outros as que dependem das mentes, das opiniões, dos apetites e das
paixões mutáveis de determinados homens.22

Tal afirmação demonstra a confiança que William Petty tinha no método "nu-
mérico" como uma tentativa de procurar uma estratégia de unificação entre as dife-
rentes culturas e confissões religiosas por meio de um "chão comum". A padroniza-
ção da metodologia de quantificação era importante para que se evitassem os dis-
túrbios entre governo e súditos. Deste modo, a aritmética política se tornou “um bra-

19 Ibid. p. IX.
20 MCCORMICK, T. Op. cit. p. XVIII-XIX, SANTOS, A. C. D. A. Aritmética política e a administração do
estado português na segunda metade do século XVIII. Jornada Setecentista, 2007, p. 144.
Disponivel em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/Aritm%C3%A9tica-
pol%C3%ADtica-Antonio-Cesar-de-Almeida-Santos.pdf>. Acesso em: 19 Agosto 2019.
21 PETTY, W. Aritmética Política. In: CAMPOS, R. Os Economistas: Petty, Hume e Quesnay. São

Paulo: Abril, 1983. p. 158.


22 PETTY, W. Op. cit. p. 111.
76

ço da filosofia natural.”23 Esta confluência da filosofia natural e da economia por


meio da matemática levou Petty a “ver as paixões das mentes humanas, como os
movimentos dos corpos humanos, como governados por regras e, portanto, sujeito a
investigação científica.”24 Destarte, por exemplo, o objetivo dos registros dos proprie-
tários de terra na Irlanda, para Petty, tratava-se de perceber que as pessoas eram a
"riqueza do Reino", logo era preciso quantificá-las a fim de saber sobre seu cresci-
mento ou decréscimo – que, afinal, era o fortalecimento ou enfraquecimento do rei-
no,25 implicando em dar aos números uma “natureza política”, uma vez que estes
não serviriam apenas para descrever a nação, mas, partindo da identificação de pa-
drões naturais, apontar caminhos e meios para manipular as gentes visando aumen-
tar a grandeza do reino.26 Tratando desse ponto, Petty afirma que é necessário dis-
tinguir entre a riqueza de um reino e as riquezas do rei.27 Assim Petty explica a dife-
rença entre a riqueza do rei e do reino:

A riqueza de um rei tem três partes; uma é a riqueza de seus súditos, a


segunda é a quota pars da riqueza de seus súditos entregue a ele para a
defesa pública e a honra e o ornamento do povo, bem como para promover
as tarefas necessárias ao bem comum, que estão fora do alcance dos
indivíduos em caráter privado ou mesmo em grupo. A terceira parte é a
parcela da quota pars acima mencionada de que o rei pode dispor segundo
suas inclinações pessoais, sem necessitar de prestar contas.28

Uma vez que a riqueza do rei depende de parte dos tributos (cota pars) entre-
gues a ele, a fim se aumentar a riqueza do reino – e consequentemente, a sua – o
soberano deve ser capaz de saber “governar as gentes”, o que na perspectiva de
Petty, significa “aumentar a parcela industriosa da população”, tornando-a mais útil
para a geração de riqueza. A política, para Petty, é sobre o uso das pessoas por par-
te do governo, ou seja, independente de divisões grupais, trata-se do que o gover-
nante deve fazer para que a população seja produtiva e leal.29 Para isso, é necessá-
rio conhecer a quantidade da “população útil”, que são os “homens laboriosos e en-
genhosos”, em oposição à “população inútil”, que era dividida entre aqueles que não

23 MCCORMICK, T. Op. cit. p. 10-11, 137-146, 218.


24 Ibid. p. 117.
25 Ibid. p. 127.
26 Ibid. p. 10, 179, 220.
27 PETTY, W. Op. cit. p. 129
28 Ibid. p. 145.
29 MCCORMICK, T. Op. cit. p. 137, 192, 215, 233, cf. PETTY, W. Op. cit. p. 153-154.
77

poderiam trabalhar em razão de sua idade ou incapacidade, aqueles que tinham


posses em tal grandeza que não precisariam trabalhar, e aqueles que “não fazem
nada a não ser comer, beber, cantar, divertir-se e dançar, ou aqueles que estudam
metafísica ou alguma especulação ociosa, ou que se dedicam a qualquer outra coisa
que não produza coisas materiais ou coisas de real valor e uso para a nação”.30
Como exemplo, Petty apresenta o número da população, de marinheiros e de cléri-
gos na França e na Inglaterra, afirmando que apesar da França ter população maior
(13 milhões de súditos) ela era mais pobre porque tinha menos marinheiros (10 mil)
e mais clérigos (270 mil), em comparação à Inglaterra com seus 20 mil clérigos e 40
mil marinheiro em uma população de 10 milhões de súditos.31
Em Aritmética Política, Petty defende que a riqueza de uma país aumenta de-
pendendo “da situação geográfica, da atividade econômica e das políticas adota-
das.”32 Em ‘situação’, Petty analisa as questões geográficas e “demográficas”, em
‘atividade econômica’ (comércio) trata dos gêneros comerciados e do quanto se ga-
nha nestas transações, e em ‘política’ aborda questões ligadas à ordem civil. Aqui,
Petty encontrou espaço para aplicar o método da filosofia natural, tendo em vista
que para cada um destes aspectos cria-se existir uma lei natural que os direcionas-
se.33 Petty une esses três níveis de explicação quando descreve o que é um país
pobre: “Se um príncipe não tem muitos súditos, se seu país não é muito bom, se de-
vido à preguiça ou a despesas extravagantes, ou à opressão ou a injustiça, o que for
ganho for gasto assim que tiver sido obtido, o Estado onde isso acontece deve ser
considerado pobre.”34 Neste sentido, um dos piores impedimentos para que um país
seja rico é a distância, por dificultar o comércio e a imposição da ordem civil.35
Assim, Petty procura encontrar nas leis naturais e em sua “canalização” solu-
ções para problemas que eram vistos por ele como circunstanciais:

Nenhum desses impedimentos é natural; todos surgiram da forma como


aparece a irregularidade dos edifícios que vão sendo construídos parte
numa ocasião e parte em outra; pela mudança do estado das coisas com
relação ao que era o tempo em que as práticas de que nos queixamos

30 PETTY, W. Op. cit. p. 128.


31 Ibid. p. 140-141.
32 Ibid. p. 115-118.
33 MCCORMICK, T. Op. cit. p. 170-175.
34 PETTY, W. Op. cit. p. 118. Cf. MAIFREDA, G. Op. cit. p. 167.
35 Cf. Ibid. p. 118-119-145.
78

foram admitidas pela primeira vez. Podem também ser distorções que
surgiram com o tempo, um afastamento da retidão da instituição original.

Como esses impedimentos são contingentes, são também removíveis [...].36

A maneira mais eficaz de superar esses impedimentos é aproveitando as


“vantagens artificiais” do comércio. Petty afirma que, em última instância, o papel do
comércio é acumular aqui que é “riqueza a qualquer tempo, em todos os lugares”,
implicando no acúmulo de ouro e prata como objetivo último do comércio. Petty criti-
ca os monopólios, defendendo um “comércio marítimo” em que o comércio estaria
“aberto ao mundo”, “sempre andando”, e para que tal atividade surtisse efeito era
necessário elaborar uma estrutura de previsibilidade jurídica, em que fraudes fossem
evitadas e combatidas com eficiência e não existisse privilégio e diferença entre ju-
risdições, especialmente entre a jurisdição civil e eclesiástica.37
Ainda, Petty demonstra uma aplicação mais “demográfica” da aritmética polí-
tica, quando defende que ela seria útil para uma “miscigenação proporcional”. Aqui,
ele defende que a Irlanda, por ser um país conquistado pela Inglaterra, seria melhor
integrado às políticas inglesas quando para lá de “transplantassem” famílias ingle-
sas, e principalmente mulheres solteiras, para que surgissem então famílias “misci-
genadas” e progressivamente os irlandeses fossem “transmutados” em ingleses.
Essa transplantação também era aplicada na mudança de ocupação dos súditos,
quando estes trabalhavam em ofícios que deixaram de ser úteis ao reino. Para
Petty, uma vez que os problemas da Irlanda eram de natureza demográfica por con-
ta da existência de diversos grupos rivais, sua proposta é a eliminação gradual de
"barreiras contingentes" (diferenças religiosas e culturais) por meio da transmuta-
ção.38

36 Ibid. p. 147.
37 Ibid. p. 120-125, 146-147. Cf. MCCORMICK, T. Op. cit. p. 46.
38 MCORMICK, T. Op. cit. p. 107-110, 186-229. Cf. PETTY, W. Op. cit. p. 139, 146.
79

3.2 DISCURSO ECONÔMICO NA POLÍTICA POMBALINA

No que tange à política pombalina e os debates acerca da geração de rique-


za, o desenvolvimento econômico era tido como o fator chave do engrandecimento
de Portugal. Uma das propostas que emerge é a criação de Companhias de Comér-
cio, especialmente em razão da crença de que os abusos do Tratado de Methuen
(ou os abusos em sua execução, como defendia Sebastião José) tinham prejudicado
o crescimento português, sendo necessária a especialização do comércio a fim de
que, por meio da redução “[d]o governo e arte do comercio a poucos e claros princí-
pios prácticos e mecânicos” o número de mercadores – e por conseguinte, o lucro –
se multiplicasse.39
Para tanto, pensou-se na criação de uma Companhia de Comércio visando o
desenvolvimento colonial também – desejo de Sebastião José, manifesto quando
este era ainda embaixador português em Londres. Ao longo das diversas páginas
das relações enviadas a Lisboa, Carvalho e Melo demonstra ter seu interesse direci-
onado à restauração do comércio ultramarino português, a partir de uma reforma
que, de acordo com José Sebastião da Silva Dias, enfatizasse três níveis distintos:
comércio, navegação e indústria, objetivando superar o que era percebido como o
atraso do país, garantindo “os fundamentos sólidos das felicidades espirituais e tem-
porais”– como disse Sebastião José em uma carta de 1755 a seu irmão Mendonça
Furtado.40
Para tanto, Dias entende que Carvalho e Melo teria lançado mão de uma
abordagem que considerava aspectos políticos, econômicos e demográficos, pois
percebia a riqueza do Estado consistindo no “somatório das riquezas pessoais”, e,
portanto, valorizando "o trabalho, o dinheiro, o interesse e a riqueza pessoal" (uma
perspectiva econômica mais “individualista” e menos “teológica”), como um meio de
lutar contra ideias que prejudicassem estabelecimentos úteis para atingir este alvo.41
Esta leitura de Dias aponta para uma transição em que as reflexões sobre a geração

39 DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.


218, 226; _____. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. III, p. 123-
124.
40 Carta de Sebastião José... 1755 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. 2ª. ed.

Brasília: Edições do Senado Federal, v. II, 2005. p. 358.


41 DIAS, J. S. D. S. Op. cit. p. 29-43, 150-152.
80

de riqueza deixam de ter fundamentação teórica prioritária no repertório filosófico da


escolástica para se constituir sobre uma outra base, de natureza mais “empírica”. A
fim analisar mais criteriosamente este discurso econômico, usar-se-á como fonte a
correspondência pessoal e oficial de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nome-
ado governador do estado do Grão-Pará e do Maranhão no ano de 1751, e cartas de
Sebastião José de Carvalho e Melo transcritas em outros trabalhos, a fim de identifi-
car as tópicas do discurso econômico e os usos da aritmética política para justificar
tomadas de decisão.42

3.2.1 Além da aritmética política

A partir da análise das correspondências oficiais e pessoais de Carvalho e


Melo e Mendonça Furtado, percebe-se a existência de um repertório intelectual que
não se restringiu à aritmética política. Aqui, se fará uso das correspondências trans-
critas por Dias, presentes na Coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Portugal,
como também daquelas reunidas por Marcos Carneiro de Mendonça em três volu-
mes da Amazônia na Era Pombalina, consistindo nas cartas e ofícios produzidos por
Francisco Xavier de Mendonça Furtado entre os anos de 1751-1759. É válido reto-
mar a percepção presente em Santos e em Dias de que esta documentação, produ-
zida por indivíduos em locais de tomada de decisão, expressa princípios de um pro-
jeto político, mesmo tendo em perspectiva as contradições e o processo de germi-
nação deste projeto.43
Por exemplo, quando tratava a respeito das reclamações feitas aos ingleses
em virtude dos abusos ao Tratado de Methuen de 1703, Sebastião José afirma que
as reivindicações lusas não eram apenas plausíveis, mas que também eram “con-
vincentes e incontestáveis, não por distinções de direito civil, mas por princípios de-
monstráveis no direito natural e das gentes”.44
Ainda em Londres, Carvalho e Melo envia para Lisboa a Rellação dos Gra-
vames (1742), onde pronuncia-se a respeito dos danos percebidos nas relações

42 Cf. SANTOS, A. C. D. A. O “mecanismo político” pombalino e o povoamento da América


Portuguesa na segunda metade do século XVIII. p. 79.
43 Cf. p. 19
44 Biblioteca Nacional, Coleção Pombalina, Cod. 656: Carta para Marco António de Azevedo

Coutinho, de 2 de Janeiro de 1741, fls. 14v-18v. apud DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Políti-
co. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p. 217, 1983.
81

comerciais com a Inglaterra e também sobre o peso relativo que o Tratado de Me-
thuen teria na origem desses danos. Nesse relatório, Sebastião José defende os
seguintes pontos: em primeiro lugar, a visão do comércio como ponto crucial para o
enriquecimento de uma nação e põe a “riqueza respectiva" como o critério mais pre-
ciso para determinar uma riqueza de um país. A “riqueza respectiva” consiste num
esforço comparativo entre o “cabedal” de duas nações que “traficam”, isto é, que tem
relações comerciais entre si, a mais rica seria aquela que tem “mais dinheiro”. Esse
princípio, por sua natureza relativa, levanta um questionamento à afirmação de que
Pombal seria “mercantilista” por crer num sistema de jogo de soma-zero absoluto.
Em seguida, Sebastião José defende que o equilíbrio desta balança comercial “faz a
do poder”, citando o exemplo da França, que após passar por crises em virtude de
guerras, teria percebido que o estímulo “ao negocio de seos vassalos” era mais pro-
veitoso que “dilatar seus domínios”. Ainda na Rellação dos Gravames, é possível ver
uma defesa do comércio de matérias-primas, chamadas de “mercadorias grossei-
ras”, porque esta atividade alimentaria uma cadeia de produção tanto em Portugal
quando nas colônias por conta dos “produtos mais finos” feitos a partir daquelas,
organizando assim o trabalho nos domínios portugueses. Também, segundo Carva-
lho e Melo, além das matérias-primas serem de grande valor para exportação as
matérias primas permitem que um Estado se alivie “de tantos membros inúteis”, por
meio do trabalho e do comércio dos inúmeros produtos criados a partir da matéria
prima. Este trabalho corta na raiz “os insultos da ociozidade e da indigência” e, por
meio do trabalho, era possível conseguir meios para “servir a sociedade” e também
para de casarem-se, e por consequência aumentando o número da população – a
“principal riqueza de todos os estados”. O comércio de matérias-primas, pelo seu
valor de exportação, também acabaria atraindo estrangeiros aos domínios portugue-
ses, resultando em maior “número dos povos”.45 Na Rellação, pode-se resumir o
argumento de Pombal da seguinte forma: a melhor maneira da Coroa utilizar seus
súditos é estimulando-os ao comércio de matérias-primas, pois isso resulta num sis-
tema em que a riqueza pessoal aumenta, atraindo mais pessoas para o mesmo sis-
tema, e assim, fazendo crescer o Estado.

45 Biblioteca Nacional, Coleção Pombalina, Cód. 635: Rellação dos Gravames, fls. 236, e

Cód. 657, carta para o cardeal da Mota, de 19 de Fevereiro de 1742, fls. 81v-84, apud DIAS, J. S. D.
S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 28-35..
82

Posicionamentos semelhantes são vistos, por exemplo, na correspondência


de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, apontado por Carvalho e Melo como go-
vernador do Estado do Grão-Pará no ano de 1751, e que mantinha correspondência
regular com seu irmão e outros componentes da administração portuguesa. Já no
ano de 1751, Mendonça Furtado envia instruções ao capitão-mor da vila de Macapá
para proibir qualquer comércio com os franceses em Caiena,46 ou em 1752, quando
Mendonça Furtado fala a Diogo de Mendonça Corte-Real (c. 1700-1771), então Se-
cretário de Estado dos Negócios Ultramarinos acerca da importância de restringir o
comércio aos domínios e vassalos do rei.47
Carvalho e Melo também teria uma afinidade com “as categorias experimen-
tais”. Na Rellação, Pombal abre seu argumento mencionado uma fundamentação
nos “estadistas ingleses”, e também defende o comércio de matérias-primas como
uma “máxima ensina[da] pela experiência”. Esta “influência inglesa”, conforme afirma
Dias,48 também pode ser vista em Mendonça Furtado, quando em 1753 envia uma
carta ao padre João Batista, da Congregação do Oratório em Lisboa, elogiando-o
por seu curso em filosofia experimental e pela utilidade desta disciplina, desejoso
que outros também conseguissem perceber o valor desta filosofia, como também
afirma que frequentaria o curso, caso estivesse livre em Lisboa,49 e em 1757, em
correspondência aos diretores da Companhia de Comércio do Grão-Pará, afirma a
necessidade de imitar “inteiramente o que os ingleses fazem.”50
Cumpre ressaltar também, quando das disputas com os jesuítas nas décadas
de 1750, as menções ao Direito Canônico como recurso para denunciar as proprie-
dades e o comércio dos jesuítas.51

46 Instrução... 1751 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. 2ª. ed. Brasília:


Edições do Senado Federal, v. I, 2005. p. 172-173.
47Carta a Diogo de Mendonça... 1752 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. 2ª.

ed. Brasília: Edições do Senado Federal, v. I, 2005. p. 253.


48 DIAS, J. S. D. S. Op. cit. p. 119.
49 Carta ao Rev. João Batista... 1753 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. 2ª.

ed. Brasília: Edições do Senado Federal, v. I, 2005. p. 535-536


50 Carta... 1757 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. 2ª. ed. Brasília: Edições

do Senado Federal, v. III, 2005. p. 248.


51 Papel no qual F.X.M.F. mostra em 100 itens que o negócio que os padres fazem não é licito nem

necessário in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. 2ª. ed. Brasília: Edições do


Senado Federal, v. III, 2005. p. 139.
83

3.2.1 Uso da aritmética política

Sebastião José teve contato com os textos de William Petty quando esteve
em Londres a serviço da Coroa Portuguesa. Em carta ao seu primo Marco Antônio
de Azevedo Coutinho, datada de 1742, ele revela as vantagens da aritmética política
em relação às “especulações dos livros antigos”, e os benefícios que ela teria trazido
à Inglaterra no período de Oliver Cromwell:

Antes [do segundo quartel do século XVIII] todos os projectos do comercio e


todos os discursos que nelle formavam os politicos, vertiam sobre
especulações dos livros antigos ou sobre metafísicas cujos assertos, depois
de bem provados com argumentos da razão, vinham finalmente a mostrar-
se falsos, pelos factos ou pella experiencia que delles se seguia. Forão
primeiro Cromwel e depois Guilherme Patti, que viveo no tempo de el-rey
Carlos 2.°, aquelles que deram em Inglaterra o methodo seguro, com que
hoje se consideram neste reino, pellos ministros polyticos, os interesses da
navegação e comercio, pello que lhes pertence. Aquelles dous grandes
homens de estado e os que depois imitaram os seus exemplos, não
aboliram as especulações do exercício dos ministros polyticos, pois que,
pertencendo a estes examinar o merecimento dos projectos e estabelecer
os planos do negocio, pello que diz respeito à utilidade publica (isto hé, por
mayor e em grosso), hé precizo que se ajudem da especulação, para
distinguirem e conhecerem os interesses ou os prejuízos communs, que ao
estado pode trazer hum bom ou mau comercio. Se porém não aboliram as
especulações necessárias, tiveram a arte de cortar a inútil, reduzindo a
breves maximas physicas e evidentes toda a farragem dos vastíssimos
discursos e tratados polyticos, em que os antigos provaram por argumentos
morais as suas concluzões em ordem ao comércio. De tudo quanto
naquelles voluminosos escriptos havia de util ou de practico (que vem a ser
o mesmo) e do que os exemplos das nações modernas foram depois
estabelecendo com boas experiencias, se acha hoje no pecúlio dos
polyticos (principalmente da Hollanda, Inglaterra e França), extrahida a
quinta essencia em hum cathalogo de poucos axiomas, verificados por
demonstrações de conta, pezo e medida.52

Guilherme Patti (como Carvalho e Melo chama Petty) propôs um método se-
guro que serviu de inspiração para que o secretário de Estado português escrevesse
dois manuscritos acerca do “mecanismo político”,53 em que os interesses do Estado,
nomeadamente a agricultura e o comércio, deveriam ser expandidos a partir de um
método que avaliasse “o número de habitantes do país que se quer tratar”, como

52 Biblioteca Nacional, Coleção Pombalina, Cód. 657: Carta de Carvalho e Melo para Marco António
de Azevedo Coutinho, de 19 de Fevereiro de 1742, fl. 84-85 apud DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e
Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 120.
53 Cf. Introdução.
84

também as terra cultiváveis, sua capacidade de produção e o quanto se poderia ta-


xa-las.54 Mas o trecho transcrito por Dias chama a atenção pelas razões apresenta-
das por Sebastião José para sua preferência pela aritmética política. Primeiro, Petty
teria oferecido um método que assegurava os objetivos (nas palavras de Pombal,
“interesses”) dos ingleses no comércio e na navegação. Em segundo, Petty foi ca-
paz de oferecer um método que permitia “cortar [a especulação] inútil”. Essa especu-
lação consistia em “argumentos morais” que foram refinados, aproveitando o que era
“útil” e excluindo o resto “inútil”, quando contrapostos à “boas experiências”, dando
origem a um novo método de “poucos axiomas”, ou seja, sintético e (na visão de
Pombal) mais simples, que fora adotado por outras nações. Este novo método, pau-
tado pelo cálculo (presenta na menção de Pombal à “conta, pezo e medida”) tam-
bém corresponde ao desejo do secretário de Estado de estabelecer uma especiali-
zação das atividades comerciais portuguesas.
Santos argumenta que a presença da aritmética política na correspondência
oficial se encontra de modo explícito em orientações dadas a Mendonça Furtado
acerca a organização do trabalho estado do Grão-Pará.55 Se procede que a “Ama-
zônia Pombalina” foi o espaço de operação da aritmética política em algum nível,
ponderar-se-á agora a respeito de tópicas presentes na correspondência entre Men-
donça Furtado e Sebastião José, visando identificar em quais a aritmética política
potencialmente colaborou e em quais ela foi fundamental como justificativa para to-
mada de decisões.

3.2.1.1 A Amazônia como “laboratório”

A missão concedida a Mendonça Furtado quando de sua nomeação para go-


vernador do Estado do Grão-Pará e Maranhão indica ter sido a Amazônia um espa-
ço no qual se buscou fazer crescer este estado – e por conseguinte, o reino – a par-
tir de tópicas presentes no discurso econômico pombalino, da qual a aritmética polí-
tica faz parte. Pode-se mencionar, por exemplo, quando Mendonça Furtado escreve
a seu irmão Sebastião José em 1752 acerca da intenção de tornar úteis as riquezas
do estado, para que não se percam em razão da “ruína” já existente:

54 SANTOS, A. C. D. A. O “mecanismo político” pombalino e o povoamento da América Portuguesa


na segunda metade do século XVIII. Revista de História Regional. p. 104-105.
55 Cf. Ibid. p. 101-102.
85

V. Exª também conhece o quanto os nossos augustos monarcas se têm


empenhado para fazerem úteis aos seus vassalos os grandes tesouros que
ainda nos estão incógnitos nestes sertões, mas fazendo ainda maior
excesso por achar meio com que possam salvar as infinitas almas que
todos os dias se estão perdendo nesta larga extensão do país.

Toda esta piedade cristã, que os nossos soberanos têm tido até agora para
a extensão da fé e para salvar estas miseráveis gentes, e todo o zelo de
utilizar ao Reino com as preciosas drogas destes sertões e de enriquecer
aos vassalos, não só se têm baldado, mas continuando o presente sistema
se perderão, como se têm perdido, e se não poderão restabelecer da
máxima e total ruína a que têm chegado.56

O Estado do Grão-Pará e Maranhão era identificado como aquele em que “a


ocorrência dos negócios e o tráfico de comércio” ocupavam a maior parte das ativi-
dades, sendo sua importância tal que julgou-se necessário dividi-lo em dois, sendo o
Maranhão governado por Luís de Vasconcelos Lobo, sendo este, por sua vez, su-
bordinado a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que governaria de Belém, no
Pará.57 Tendo em vista a potencialização desta característica comercial do Pará,
ambos os governadores deveriam trabalhar pela “utilidade” do Estado, de seus gê-
neros e suas gentes, isto é, intensificar a usabilidade da população de colonos e in-
dígenas, como também dos recursos naturais existentes no Pará.
Há um momento em que se apresenta um indicativo desse sentido de usabili-
dade conferido ao conceito de “utilidade”, presente numa carta de Sebastião José a
Mendonça Furtado, datada de 5 de agosto de 1753:

A Corte de Madri mandou propor a Sua Majestade debaixo do mais


inviolável segredo, que ao mesmo tempo em que se fizessem as
demarcações pela parte do Norte desse Estado, podiam os respectivos
Estados – digo – Comissários Principais entender-se de modo que
tomassem as medidas convenientes para estendermos as nossas fronteiras
contra os holandeses, até que estes ficassem reduzidos aos
estabelecimentos que têm sobre a Costa de Surinã. E isto com dois
interesses tais como seriam: 1º preservarmos assim os Domínios das duas
Coroas de que os holandeses se internem por eles, ampliando a nossa
custa os seus próprios Domínios: – 2º faltarem aos mesmos holandeses os
meios de subsistirem, até na mesma Costa, para abandoná-la, desde que
não tiverem país, cujas produções lhes possam ministrar o necessário para
se manterem com utilidade e força naquele continente.58 [Grifo do autor]

56 Carta de F. X. M. F. a seu irmão Sebastião José... 1751 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na


Era Pombalina. v. I, p. 110.
57 Instruções Régias... 1751 in M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 67-68.
58 Carta de Sebastião José a F. X. M. F... 1753 in M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p.

508-509.
86

Na carta, Sebastião José defende que as demarcações exigidas pelo Tratado


de Madri, se realizadas conforme as “este secretíssimo ofício” entregue a Mendonça
Furtado, poderiam garantir o domínio português sobre algumas áreas ao norte da
Amazônia, de maneira que não causasse preocupação aos holandeses no Suriname
nem a franceses na Guiana.59 Contudo, só seria possível concluir esta empreitada
se dois objetivos (ou, como se encontra na carta, “interesses”) fossem atingidos:
além da expansão territorial que impediria o avanço holandês, as demarcações por-
tuguesas impediriam que as terras fossem usadas pelos holandeses, o que minaria
suas forças.
A tópica da “miséria” é recorrente ao longo das cartas que foram reunidas por
Marcos Carneiro de Mendonça.60 Entretanto, tal leitura da situação do estado do
Grão-Pará não impedia Mendonça Furtado de afirmar em 1756 a D. Luís da Cunha
Manuel (1703-1776), então nomeado Secretário de Negócios Estrangeiros e da
Guerra, que este estado era “é o melhor da América Portuguesa, e o que mais útil
pode vir a ser ao Reino”.61 Aqui, cabe esclarecer o que Mendonça Furtado entendia
por ‘utilidade’, que significava para o governador aquilo traria opulência ao estado,
como se vê nesta carta de 1755 acerca da criação da Companhia de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão:

Pelo, Juiz de Fora do Mato Grosso recebi a carta de V. mercê [Baltasar do


Rego Barbosa] de 13 de agosto, e com ela o gosto de V. mercê me segurar
que lograra a boa saúde que eu sempre lhe desejo.

Quando a sobredita carta me chegou à mão, teria o Exmo Sr. Bispo


participado a V. mercê o plano da Companhia Geral de Comércio do Grão-
Pará e Maranhão à qual a grandeza de Sua Majestade foi servido elevá-la
até onde certamente não podia chegar a minha imaginação; porém como a
sua Real Piedade se tem empenhado a querer remir este miserável Estado
e fazê-lo opulento, não poupa meio algum de lhe fazer úteis as suas reais
intenções.

As utilidades que se seguem com este novo estabelecimento, são tais,


como V. mercê muito bem compreenderia do dito plano, que espero em
Deus, que em poucos anos se vejam nestas terras trocadas as misérias em

59Ibid.
60Carta ao Rei... 1752 in M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 221.
61 Carta ao novo Secretário de Estado... 1756 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era

Pombalina. v. III, p. 128.


87

que nelas se vive, em felicidade, e riquezas, e assim o confio da sua infinita


misericórdia.62

Entretanto, isto tais afirmações devem ser levadas em conta ao lado das ava-
liações que Mendonça Furtado fazia de seu trabalho na Amazônia, como quando,
por exemplo, escreve em 1752 a Sebastião José lamentando “não ter férias nem
descanso”, por ter em suas mãos “além de um povo rude, ignorante e totalmente
corrompido, uma quantidade de frades obsoletos, soberbos, poderosos e cheios de
ambição”, o que evidencia um descontentamento com a resistência ao modo como a
Coroa desejava “tornar úteis” os indígenas e os gêneros produzidos nos aldeamen-
tos.63 Nesse sentido, tratando posteriormente acerca da “ambição” dos frades, Men-
donça Furtado relata em 1754 e 1755 temores de uma “conspiração jesuíta” em vir-
tude das ações para reforma do estado, especialmente em virtude da criação da
Companhia de Comércio.64 Tais preocupações mesclavam-se com o que se perce-
bia como sinais de esperança, sendo um dos mais significativos os elogios à utilida-
de dos povoadores da vila de Macapá para o crescimento da agricultura e comércio
do Estado,65 consistindo no cultivo dos gêneros “que dizem respeito aos negócios de
fora” (como “cravo, cacau, salsa, cupaúbas”) como também “fazer salgas de peixe,
manteigas e tartarugas, que pertence ao negócio da terra”.66
Os povoamentos, aliás, eram o empreendimento que sintetizava as tópicas
apresentadas no discurso econômico pombalino. Embora a preocupação com a
ocupação do território fosse anterior a este período,67 ela ganha novas ênfases com
a política pombalina, que são perceptíveis já na época em que Carvalho e Melo e
diplomata em Londres, quando afirmava suspeitar que ingleses tencionavam criar
colônias “nos sertões setentrionais do Rio da Prata” e atrair o dinheiro de cristãos

62 Carta a Baltasar do Rego Barbosa... 1755 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era


Pombalina. v. II, p. 495.
63 Carta a Sebastião José...1752 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p.

406.
64 Cf. Carta a Sebastião José... 1754, Carta de 12 de julho de 1755 in M. C. D. A Amazônia na Era

Pombalina. v. II, p. 245-246, 423.


65 Carta ao Marquês de Penalva... 1751, Carta ao Conde de Atouguia... 1752 in MENDONÇA, M. C.

D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 179, 313.


66 Papel no qual F.X.M.F. mostra em 100 itens que o negócio que os padres fazem não é licito nem

necessário in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. III, p. 138.


67 SANTOS, A. C. D. A. Op.cit. p. 80.
88

novos para expansão do domínio britânico.68 Em 1753, tratando das demarcações


exigidas pelo Tratado de Madri e dos povoamentos subsequentes, Sebastião José
demonstra a Mendonça Furtado que tais ações ao Norte do Brasil impediram não
apenas a entrada dos holandeses em domínios lusos “pela costa do Surinã [Surina-
me]”, como também faz “faltarem aos mesmos holandeses os meios de subsistirem,
até na mesma Costa, para abandoná-la, desde que não tiverem país, cujas produ-
ções lhes possam ministrar o necessário para se manterem com utilidade e força
naquele continente.”69 Todavia, tal empreendimento enfrentava dificuldades, sendo a
mais significativa delas, particularmente ao olhos Mendonça Furtado, a sabotagem
dos jesuítas às demarcações, por irem de encontro ao interesse dos frades no con-
trole sobre os índios.70
Os povoamentos eram cruciais pelo seu papel civilizador, informativo e eco-
nômico. Nas Instruções Régias de 1751, Mendonça Furtado é orientado a instar aos
missionários jesuítas vigilância na natureza de sua tarefa, que consistia “em polirem,
ensinarem e doutrinarem os índios”,71 tendo esse esforço o objetivo de fazer com
que indígenas “fossem instruídos no catecismo” do cristianismo católico, e somando-
se isso ao aprendizados “ofícios a que tiverem mais propensão” a introduzi-los no
comércio dos gêneros produzidos no Estado do Grão-Pará,72 encontra-se os ele-
mentos que constituem o que se entende pela “civilidade” projetada para os índios.
Ao lado do esforço de cumprir do Tratado de Madri, os povoamentos forneci-
am informação acerca do território e de suas riquezas, aproximavam as gentes (nati-
vos e povoadores) para instigá-las à civilidade e ao comércio. A partir da década de
1760, os censos contribuíram em grande medida para a expansão deste projeto.73 O
caso dos povoamentos é proveitoso porque embora tenha-se iniciado este projeto
no período anterior ao que Carvalho e Melo foi nomeado como Secretário de Estado,
é possível ver como ele foi se adaptando, em alguma medida, às categorias que Wil-
liam Petty mobilizou a partir da aritmética política: ‘situação’, que se relaciona com a

68 Cf. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, Lisboa, v. II, p.
285-294.
69 Carta de Sebastião José a F. X. M. F.... 1753 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era

Pombalina. v. I, p. 508-509.
70 Carta a Sebastião José... 1754 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. II, p.

209.
71 Instruções Régias... 1751 in M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 75.
72 Ibid. p. 72-73; Papel no qual... in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. III, p.

1147.
73 SANTOS, A. C. D. A. Op.cit. p. 83 et seq.
89

característica informativa dos povoamentos, ‘política’, que pode ser vista no aspecto
civilizador dos povoamentos, e ‘comércio’, percebida no estímulo dos povoadores e
nativos à atividade comercial e sua utilidade. Tais ênfases podem ser encontradas,
de modo resumido, em uma das instruções dadas a Mendonça Furtado a respeito de
seu trabalho como governador do Grão-Pará e Maranhão, no ano de 1751:

Recomendo-vos muito que procureis atentamente os meios de segurar o


Estado, como também os de fazer florescer o comércio, para se conseguir o
primeiro fim, além do que fica dito a respeito de se aldearem os índios,
especialmente nos limites das Capitanias e tereis o cuidado quanto for
possível, que se povoem todas as terras possíveis, introduzindo-se novos
povoadores.74

Ainda no ano de 1751, Mendonça Furtado propõe ao rei que se trouxessem


mais povoadores para a fundação de uma vila do Rio Mearim, para que por meio da
aproximação das gentes, os moradores pudessem imitar uns aos outros e assim
aumentar a civilidade e expandir a agricultura,75 o que ressoa com a afirmativa de
Petty do distanciamento dos súditos ser um impedimento ao crescimento do poder
do reino.
Na década de 1750, o projeto dos povoamentos passou a andar concomitan-
temente com a iniciativa pombalina de criar uma Companhia de Comércio, a fim de
que se reforçasse a utilidade do comércio e dos homens de negócio. 76 Tais medidas
eram necessárias para o enriquecimento do reino porque Mendonça Furtado perce-
bia-se como enviado a uma “terra aonde não só se não conhece o comércio, mas
nem nunca ouviram estas gentes falar na mais leve máxima dele”.77 A Companhia
de Comércio e os povoamentos eram importantes pelo controle da venda dos gêne-
ros saídos do estado, vindo “regular assim a utilidade dos comerciantes, como dos
lavradores”.78 Para tanto, Mendonça Furtado afirmou ser necessária uma "reflexão
econômica, política e administrativa", concedendo isenção fiscal à Companhia, a fim

74 Instruções régias... 1751 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 77. Cf.


SANTOS, A. C. D. A. Op.cit. p. 81.
75 Carta ao Rei... 1751 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 199.
76 Instruções Régias... 1751 in Ibid, p. 80; Carta a Sebastião José… 1754 in Id. A Amazônia na Era

Pombalina. v. II, p. 68.


77 Carta de F. X. M. F. ao pai... 1751 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I,

p. 86.
78 Carta a Sebastião José... 1752 in Ibid. p. 365. Cf. Carta ao capitão Beron de Schomberg... 1756 in

MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. III, p. 68.


90

de evitar a ruína do Estado, cuja raiz estava nas inúmeras fraudes cometidas pelo
povo.79 Por meio dessas medidas, era esperado que a expansão do comércio “pode-
rá com o tempo remediar tudo”.80
Visto que os dois projetos caminhavam lado a lado, o que garantiria o funcio-
namento desta combinação era o incentivo de povoadores e índios ao trabalho e ao
comércio, que deveria vir tanto das ordens de Mendonça Furtado como da pregação
da Companhia de Jesus.81 Um exemplo significativo da importância deste incentivo é
quando Mendonça Furtado, em 1756, escreve para Sebastião José um pequeno tra-
tado, listando em cem pontos as razões dos jesuítas abusarem da autoridade que
lhes foi concedida sobre o aldeamento e a escravidão dos índios. Nele, Mendonça
Furtado lamenta o abandono do projeto inicial dos aldeamentos pelos inacianos, que
consistia em “os instruírem nos mistérios da [...] fé católica, os civilizassem e os situ-
assem em partes acomodadas para a sua vida e costumes, e para se fazerem co-
municáveis no comércio com os moradores, com recíproca utilidade de uns e ou-
tros”, trabalhando em terras úteis ao Estado (isto é, que poderiam ser utilizadas de
acordo com os critério da Coroa),82 tornando-os assim “cristãos econômicos e civis,
para gozarem não só dos bens espirituais, que são só os sólidos, mas também dos
temporais, que legitimamente lhes pertencem”.83
É justamente nesta questão da identificação e organização de ofícios úteis à
Coroa Portuguesa que se encontra a menção explícita ao conceito de aritmética po-
lítica como um princípio organizador:

Entre todos os empregos a que os Vassalos de um Estado se podem


aplicar, o mais infeliz e miserável foi sempre e há de ser o dos Mineiros.
Principiam pela crassa ignorância de entenderem que há ouro de beta, ou
minas perenes de ouro, e isto é engano: porque o que constitui as minas
são os mesmos mineiros, ou o seu grande número. Sendo este de cem mil
homens, como é nas Minas Gerais, só dois ou três mil destes acham
alguma coisa, depois de fazerem oito, dez e mais anos excessivos e
custosíssimos trabalhos; e que os outros que nada acham, somente se

79 Carta a Sebastião José... 1754 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. II, p.


72; Carta a Sebastião José... 1754 in Ibid. p. 86.
80 Nova carta de Diogo de Mendonça a F. X. M. F.... in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era

Pombalina. v. I, p. 503.
81 Instruções Régias... 1751; Carta a Diogo de Mendonça... 1752 in MENDONÇA, M. C. D. A

Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 71, 228.


82 Carta a Sebastião José... 1755 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. II, p.

406.
83 Papel no qual F.X.M.F. mostra em 100 itens que o negócio que os padres fazem não é licito nem

necessário in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. III, p. 140, 146.


91

conservam, enquanto lhes não pedem as dívidas que têm contraído; e que
logo que se lhes pedem, é preciso fugirem, porque além dos negros e
ferramentas que se lhes dão fiadas – como tudo o que os mesmos negros
comem e vestem, não têm por onde paguem. Fundando-se nestes
certíssimos fatos, a máxima universalmente recebida na Aritmética Política,
que gradua os ditos mineiros pelo que a eles lhes pertence, abaixo dos
remendões dos sapateiros, e dos soldados rasos; e pelo que toca ao
Estado, pelos menos úteis de todos os Vassalos.

[...] nestas circunstâncias, faz S. Maj. um grande interesse em aproveitar


estes homens perdidos; tornando-os a ressuscitar e unir ao Estado, para lhe
serem úteis; não só úteis, mas proveitosos ao ponto mais importante para
as Monarquias, qual é a Agricultura, que faz o primeiro fundamento
essencial de toda a Sociedade Civil.84

Aqui, o Secretário de Estado dos Negócios da Marinha Tomé Joaquim da


Costa Corte-Real instrui Mendonça Furtado a redirecionar os mineiros para outros
ofícios mais úteis, como a agricultura, de onde pode inferir-se a aplicação da ideia
de Petty acerca da prioridade dos ofícios que trazem riquezas mais duradouras co-
mo mais úteis.
É valido mencionar, ainda, a rejeição dos padres jesuítas às políticas pomba-
linas em relação aos índios e à Companhia de Comércio. Os clérigos foram larga-
mente criticados ao longo de uma série de cartas, especialmente pela sua pregação
contra a Companhia e pelas disputas acerca da escravidão indígena, que, na pers-
pectiva de Mendonça Furtado, seriam instigadas apenas para que os padres manti-
vessem seus privilégios – por exemplo, em uma carta de 1751, o governador do
Grão-Pará objeta o lucro de 80% dos regulares em relação aos moradores em razão
do controle dos inacianos sobre os índios e as isenções fiscais.85 Como tais impedi-
mentos provocavam dificuldades na “civilização dos índios” e na expansão do co-
mércio,86 é possível crer que a defesa de Petty para igualdade jurídica entre esfera
civil e eclesiástica possa ter influenciado a campanha antijesuítica e na elaboração
do Diretório dos Índios de 1755, embora seja necessário uma investigação mais am-
pla para confirmar esta hipótese.
Um outro tópico em que a aritmética política foi utilizada é nas decisões que
levaram ao fim do estatuto de sangue e à permissão dos casamentos entre brancos

84 Nova carta de Tomé Joaquim para F. X. M. F. in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pom-


balina. v. III, p. 405-406.
85 Carta de F. X. M. F. para o irmão Sebastião José... 1751 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na

Era Pombalina. v. I, p. 121.


86 Cf. SANTOS, A. C. D. A. Op. cit. p. 92.
92

e índios, fundamentada na percepção das necessidades econômicas portuguesas


na política pombalina.87 Principalmente acerca da permissão dos casamentos entre
lusos e indígenas, a proposta veio de Mendonça Furtado para o rei D. José I no ano
de 1753:

Pelo que respeita aos outros casais que por ora aqui devem ficar, me tem
ocorrido mandar fundar outra Vila no rio Xingu, aonde as terras são
excelentes estabelecendo entre as povoações dos índios que há no mesmo
rio uma de brancos, que possam comunicar com eles, para se irem assim
civilizando; e me pareceu que seria também não só útil, mas sumamente
importante se V. Maj. fosse servido declarar que não só não induz infâmia o
casamento dos brancos com as índias, mas, contrariamente, conceder-lhes
alguns privilégios que entendo é o único meio de podermos povoar este
largo Estado, e de dar a conhecer aos naturais dele que os honramos e
estimamos, sendo este o meio mais eficaz de trocarmos o natural ódio que
nos têm pelo mau tratamento e desprezo com que os tratamos, em amor à
boa fé, fazendo os interesses comuns, sem cujos princípios não é possível
subsista e floresça esta larga extensão de país.88

Além de "gente da terra", um número selecionado de italianos, alemães e ho-


landeses precisam participar da formação de novos povoados, para que se tire pro-
veito dessas gentes porque seus filhos "ficam portugueses" ao nascer no Brasil.89
Assim, esta perspectiva de que os casamentos entre povos distintos seria “apazi-
guador” como também “civilizador” (no sentido que as características dos portugue-
ses passariam à descendência dos imigrantes) revela uma conexão com os princí-
pios de ‘transplantação’ e ‘transmutação’ de William Petty, quando de sua defesa
dos benefícios do casamento entre ingleses e irlandeses.

CONCLUSÃO

As interpretações do legado político pombalino usualmente classificam-na


como ‘despotismo esclarecido’, tentando conciliar categorias que aparentemente
seriam contraditórias, como ‘iluminismo’ e ‘mercantilismo’. Buscou-se, então, anali-
sar a viabilidade dessas categorias a partir de seus usos historiográficos e seu poder

87 Cf. DIAS, J. S. D. S. Pombalismo e Projecto Político. Cultura - História e Filosofia, v. III, p. 106,
1984; SANTOS, A. C. D. A. Op. cit. p. 85.
88 Carta ao Rei... 1753 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. I, p. 518-519.
89 Carta a Sebastião José... 1754 in MENDONÇA, M. C. D. A Amazônia na Era Pombalina. v. II, p.

186.
93

explicativo, e concluiu-se que, embora ‘iluminismo’ tenha um uso viável consideran-


do uma abordagem sensível ao contexto e às disputas intelectuais, abrangendo o
“conjunto de debates” do Oitocentos, ‘mercantilismo’, por sua vez, reduz um comple-
xo conjunto de debates a critérios estabelecidos pelo que seria uma posição dentro
deste conjunto. A opção pela maior precisão analítica, portanto, era a recuperação
das disputas intelectuais na modernidade.
Nisto, viu-se a importância da História dos Conceito como um recurso investi-
gativo, permitindo identificar momentos em que as disputas intelectuais alteram o
significado de conceitos centrais tendo em vista o foco desta pesquisa, que eram os
debates acerca da geração de riqueza. Percebeu-se que estes debates estavam
relacionados à noção de natureza, e atentou-se para a alteração de sentido presente
na transição do medievo para a modernidade, tendo seu ápice com as contribuições
da Reforma Protestante e o surgimento da filosofia experimental.
William Petty e a Aritmética Política são apenas fruto dessa longa cadeia de
discussões, porém marcaram sua posição nela, assim como o Marquês de Pombal o
uso que o Secretário de Estado Português fez da obra de Petty, ainda que não tenha
se servido apenas dela. Disto, constata-se que grandes categorias devem ser utili-
zadas com precaução, uma vez que seu uso acrítico impede de perceber as nuan-
ces e o fluxo das alterações advindas da interação entre os agentes e seu contexto.
Em outras palavras, as categorias são úteis na medida em que auxiliam a percepção
de um repertório de ideias mobilizadas em um dado período histórico, ao invés de
reduzir uma rede de múltiplos debates à critérios generalizantes.
Por fim, a partir da aritmética política como um conceito e do uso feito pelo
Marquês de Pombal, identifica-se no século XVIII um período de transição, no qual
um novo paradigma de organização política se estabelece, em que a o poder de um
soberano é qualificado a partir de sua capacidade de conhecer a geografia, a popu-
lação e as ações de indivíduos, como também a capacidade de intervir nestas esfe-
ras e manipulá-las, a partir do conhecimento científico.
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