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Revista do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil

edição 3 - ano 3
dezembro 2022
imagem da capa:
Emanoel Araujo
Foto: Manuel Correia
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO,
POR MEIO DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA,
E MUSEU AFRO BRASIL

APRESENTAM

Revista do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil


4 | EDITORIAL

“Curadoria é um ato de licença poética!”


Emanoel Araujo (2022)

A terceira edição da revista nosso trabalho. Mas, cuidado! Não se


#EducaMAB chega com tom de trata de uma noção limitada, afinal, em
despedida. Despedida, mas também Emanoel Araujo não há escassez. Por
de homenagem. E, para nós do Núcleo isso, aqui ampliamos a noção de curar
de Educação, não há homenagem mais em diálogo com o trabalho de educar.
digna do que aquela carregada de Curadoria e Educação, portanto,
legados, demonstrando que a ausência são os temas que inspiram a terceira
física não elimina os desdobramentos edição da #EducaMAB, já que são
de uma vida com compromisso. É assuntos que norteiam o fazer do
por isso que parte desta edição diz Núcleo de Educação do Museu Afro
respeito à vida e obra de Emanoel Brasil. Aqui a noção de curadoria, para
Araujo, artista, curador e fundador do além do cuidado e da conservação,
Museu Afro Brasil, que nos deixou diz respeito também às escolhas,
no último dia 7 de setembro. estas preferencialmente livres, com
Emanoel Araujo (1940-2022), licenças poéticas, como nos ensinou
artista pulsante que esteve à frente Emanoel. Afinal, o trabalho do Núcleo
do Museu Afro Brasil desde a sua de Educação do Museu Afro Brasil
formação, finda sua trajetória entre é concebido por escolhas, não aque-
nós, deixando-nos um legado ímpar las que se dizem neutras enquanto
que não pode ser medido de forma dissimulam o status quo, a violência
nenhuma. Boa parte deste legado dos apagamentos, das ausências, mas
encontra-se alocado nos 11 mil metros escolhas conscientes das intencionali-
quadrados do prédio onde se localiza dades, que se constituem em diálogo
o MAB, ampliando-se com a experi- com uma perspectiva de educação
ências de pessoas que, assim como enquanto processo de compreensão
nós, foram tocadas pela proposta de crítica sobre o mundo.
arte cunhada e executada por Ema- A partir disso, esta EducaMAB
noel até seus últimos dias. Uma noção aborda a articulação entre essas duas
de arte e cultura soberanas que se ações, trazendo um diálogo produ-
amplia a todas as pessoas, que marca tivo entre o trabalho de curadoria e a
o protagonismo de pessoas africanas e reflexão de profissionais da educação
negras na cultura nacional e mundial. vinculados a uma proposta educa-
Por meio do seu trabalho de artista, cional efetivamente emancipatória
mas principalmente de curador, um e, portanto, antirracista.
curador que, como ele mesmo nos São esses temas que encontrare-
disse, “tem licença poética”, chegamos mos nas entrevistas com a artista
aqui. E não haveria tema melhor para Lídia Lisboa, na seção Encontro com
se discutir nesta edição senão cura- Artista, e com a professora e curadora
doria, prática intimamente atrelada ao Luciara dos Santos Ribeiro, na seção

#educamab dezembro 2022


5 | EDITORIAL

Sankofa. Além de suas trajetórias, elas seção “Conhecendo o MAB” por meio
gentilmente nos apresentam proje- de um roteiro de visita em uma das
tos de futuro, suas reflexões sobre o últimas exposições realizadas por
campo da arte e de como a presença Emanoel Araujo, A volta dos Bailes
de artistas e curadoras negras trans- da Spam.
forma. Transformação esta resultado Por fim, na seção MAB Indica, apre-
de pesquisa e trabalho intelectual por sentamos um pouco das curadorias
novas compreensões sobre o mundo, realizadas por Emanoel Araujo, tendo
estética e memória. como ponto de partida a exposição A
Na seção Nós de Sabedoria, o fazer Mão Afro-Brasileira (1988), exposição
do Núcleo de Educação entrelaça o crucial no histórico de curadorias de
trabalho de curadoria e formação Emanoel e também para a concepção
por meio de uma discussão sobre do Museu Afro Brasil. Em seguida,
as formações que constituem parte apresentamos a A Nova Mão Afro-
das nossas parcerias, em especial, a -Brasileira que amplia sua primeira
realizada com Núcleo de Educação versão de 1988, fechando nossa seção
Étnico-Racial da Secretaria de Edu- com Isso é Coisa de Preto, inaugurada
cação do Município de São Paulo em ocasião dos 130 anos da Abolição
(NEER-SME). Por meio dos cursos da Escravidão no Brasil, cujo título
organizados e realizados, discutimos carregado de ironia apresenta uma
a importância de uma educação situ- releitura da costumeira frase racista
ada, que não se busca universal, nem “isso é coisa de preto” (geralmente
pronta, mas sempre em processo e em associando negros a algo negativo).
diálogo com a vida. É sobre um outro Assim fechamos nossa terceira
processo de compreender o mundo. edição da #EducaMAB, com uma
É esse processo, imerso a um pro- singela homenagem a Emanoel, esta
jeto de educação antirracista, que pessoa que por meio de seu trabalho
abre nossa quarta seção. Trata-se árduo nos inspirou a construir pers-
de uma nova seção que busca dialo- pectivas de uma educação calcada em
gar com educadores, pesquisadores experiências humanas plurais, livres
no campo da educação e das artes. de concepções limitantes, hierarqui-
Nesta edição convidamos a professora zantes e desumanizadoras. Neste
doutora Nelma Cristina Silva Barbosa trabalho de curar e educar, segui-
de Mattos para uma conversa sobre mos construindo novas perspectivas
mediação de uma educação antirra- sobre o Museu Afro Brasil enquanto
cista. Embasadas(os) por essa noção nos transformamos e, sempre que
e em diálogo com as escolhas que se possível, transformando o mundo.
abrem a nós por meio da curadoria Obviamente, transbordando em liber-
de Emanoel Araújo, apresentamos a dades, preferencialmente, poéticas. �

#educamab dezembro 2022


6 | SUMÁRIO

SEÇÃO ENCONTRO COM ARTISTA

Encontro com Lidia Lisboa 8


SEÇÃO SANKOFA

Entrevista com Luciara Ribeiro 14


SEÇÃO NÓS DE SABEDORIA

16
Mediação e Curadoria
na parceria com a Secretaria de Educação
do Município de São Paulo

#educamab dezembro 2022


7 | SUMÁRIO

28
SEÇÃO DIÁLOGOS

Escola, Museu e Arte:


mediação de uma Educação Antirracista

SEÇÃO CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

Quem vive de passado é museu?


“Segue o baile”: visitas educativas
em museus e sua polifonia 32
SEÇÃO

MAB Indica 42
#educamab dezembro 2022
8 | SUMÁRIO

SEÇÃO

A R T E : U M O L H A R PA R A O O R D I N Á R I O E C OT I D I A N O

#educamab dezembro 2022


Foto: Henrique Saad
9 | ENCON T RO COM AR T IS TA

Lidia
EN T RE VIS TA COM Para a seção “Encontro com Artista”, convidamos
Lidia Lisbôa, que esteve presente em uma das
últimas exposições do nosso curador Emanoel
Araujo, em parceria com a 37ª Mostra Panorama
da Arte Brasileira, organizada pelo Museu de Arte
Moderna de São Paulo em 2022.

Lisbôa
Natural de Guaíra, Paraná, Lidia atua e vive na
cidade de São Paulo (SP). Com formação em gra-
vura em metal, pelo Museu Lasar Segall, escultura
contemporânea e cerâmica, pelo Museu Brasileiro
de Escultura (MuBE) e Liceu de Artes e Ofícios,
a artista participa de exposições desde o final da
década de 1990, com obras em espaços como a
Pinacoteca do Estado de São Paulo, Bienal do
Mercosul, Instituto Goethe São Paulo, Baró Galeria
e Museu Afro Brasil.

Sua experiência de multiartista e de sua rica pro-


Por May Agontinmé e Raphaellie Läz
dução serviram de inspiração para convidá-la a este
“Encontro com Artista”, mas não só. Afinal, nosso
interesse em sua produção artística, transcende
a ideia apenas de acompanhar as tendências do
mercado das artes, mas tem relação direta com

#educamab dezembro 2022


10 | ENCON T RO COM AR T IS TA

Foto: Acervo Educaivo MAB


um processo de resgate da identidade também a missão do Museu Afro 1
Para este encontro, realizaram a
e visibilização de mulheridades ne- Brasil e a lei que embasa o trabalho entrevista May Agontinmé, artista
gras que são referências nos circuitos do Núcleo de Educação2, que se co- com foco em têxtil contemporâneo,
artísticos e culturais. Sua presença é locam como formas contranarrativas ancestralidade e religiosidade, além
essencial em alguns debates acerca a projetos artístico, históricos e cul- de educadora de instituições culturais
do que tem sido feito na arte contem- turais hegemônicos, cuja narrativa desde 2018 que recentemente passou
porânea brasileira e mundial, dada a eurocentrada costuma não só apagar a integrar o Núcleo de Educação do
relevância de seu trabalho e também o protagonismos africanos e negros às Museu Afro Brasil; e Raphaellie Läz
impacto nas produções individuais das artes e à história, hierarquizando con- é artista visual com foco nas artes
artistas educadoras que conduziram ceitos e projetos de mundo a partir plásticas e na perfomance, com
esse encontro.1 de um olhar europeu, sempre de cima pesquisa nos estudos de gênero,
para baixo. Daí que pedagogias anti- ensino e relações étnico-raciais,
Além disso, o encontro que se propõe coloniais se fazem necessárias para investigando técnicas de criação
aqui com a artista e sua obra tem rele- olhar, perceber e construir diálogo a partir do desenho e a mediação
vância com o trabalho desempenhado com o acervo do Museu Afro Brasil, de obras e objetos como possíveis
pelo Núcleo de Educação do Museu trabalho este desempenhado pelo tecnologias pedagógicas anticoloniais
Afro Brasil na mediação do acervo, já Núcleo de Educação desde 2004, na na elaboração de narrativas contra-
que neste fazer, por meio da pesquisa, fundação do MAB, e que se desdobra hegemônicas.
do diálogo com o acervo MAB, há o até os dias de hoje.
exercício de um recorte discursivo a 2
Lei 10639 de 2003, que altera a Lei
ser construído por meio do roteiro de Munidas dessas ideias e inspirações, no nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
visita, que é possível perceber também dia 29 de outubro de 2022, seguimos que estabelece as diretrizes e bases
enquanto um trabalho curatorial. Ou ao encontro de Lidia Lisbôa para uma da educação nacional, para incluir no
seja, nesse trabalho desenvolvido pelo conversa sobre sua trajetória, suas currículo oficial da Rede de Ensino a
Núcleo de Educação, em especial na or- inspirações e projetos de vida. Assim obrigatoriedade da temática "História
ganização de uma visita mediada, mas seguimos para o seu ateliê, no bairro e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras
não só, já que esse processo permeia da Bela Vista (São Paulo – SP), em um providências (Brasil, 2003).
todo o fazer do Núcleo, é necessário dia ensolarado, coincidentemente, em
pesquisas sobre as obras, sobre a um dia dedicado às Yabás3, fato que 3
Termo utilizado para referir-se às
vida de artistas, suas trajetórias, mas prenunciava aquele momento como Orixás femininas, sendo elas Nanã,
também sobre os desdobramentos das um mergulho profundo na ancestra- Iemanjá, Oxum e Iansã (ROCHA,
escolhas de Emanoel Araujo, fundador lidade. Assim, nos encontramos, três Geraldo; DA ROCHA, Alessandro
e curador do Museu Afro Brasil. Além mulheres negras e artistas, tramando Rodrigues; OLIVEIRA, Rosane Cristina,
disso, no diálogo com as obras, com a planos futuros e também revisitando 2016, p. 44); sendo sábado o dia
proposta curatorial, há de se pontuar passados e trajetórias. consagrado a elas. (Ibid., p. 47).

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11 | ENCON T RO COM AR T IS TA

Assim, a entrevista que constitui esse ser a mulher-maravilha! Fazia mi- na minha vida! Ouvia Billie Holiday,
“Encontro com Artista” é parte de uma nhas instalações, performances, vestia tinha a música, as revistas… Até que
reunião alegre, de conversas enrique- as roupas de meu pai, as roupas da um dia, uma cliente, disse pra mim:
cedoras, reencontros e descobertas, e minha mãe, fazia coroas de erva doce “Você é uma artista. Você precisa achar
também sobre a vivência com uma na cabeça, velório para os meus gatos o seu caminho e o seu caminho não
grande artista, uma encruzilhada que cheio de flores, com todo mundo re- é aqui”. Aquilo me deixou perturba-
possibilitou momentos de troca de zando junto. Ou melhor, orando, pois, díssima! Aquela frase! Mas, na mesma
saberes em um processo de tessitura na época, era oração. Fui crescendo semana, aconteceu outra coisa: a Lilian
que pode ser considerado como parte assim, com tudo isso sempre em mim. Kraus e, depois, a Alice Fisher queriam
fundamental do momento histórico analisar os meus desenhos. A partir
e urgente pelo qual vem passando o Aos 16 anos de idade, vim para São daí, meus desenhos foram parar nas
mundo das artes e da cultura no Brasil. Paulo, indo trabalhar como doméstica, mãos de um crítico de arte, que, ao
pois não havia outro trabalho para analisá-los, disse que meus desenhos
Com vocês, Lidia Lisbôa! mim. Foi então que comecei a fazer tinham traços de Matisse, traços de
teatro, mas ali também não tinha es- Picasso. Foi uma loucura! Pedi de-
#Educamab. Lidia, você poderia se paço para pessoas negras, nada tinha missão do ateliê e caí no mundo das
apresentar? espaço, nem no teatro, nem em lugar artes! Conheci vários artistas, comecei
nenhum. Só anos depois, consegui a fazer aquarela no CCSP, a fazer te-
Lidia Lisbôa. Eu me chamo Lidia fazer teatro. Mas a arte sempre es- atro com o Pascoal da Conceição! Fiz
Lisbôa, sou artista plástica, sou de teve comigo e, quando fui trabalhar muitos testes, pois precisava trabalhar,
Guaíra (PR). Eu tenho uma série de em um ateliê de alta costura, descobri mas nunca passava, justamente por ser
trabalhos! Comecei meus estudos no o mundo, porque, apesar de trabalhar negra. Daí que passava fome também!

Foto: Acervo Educaivo MAB


Liceu de Artes e Ofícios; estudei escul- lá como doméstica, eu podia ver. Via Apesar de ser ousada – desde os 17 ou
tura contemporânea no MuBE (Museu o Luís Felipe dando vapor nas flores, 18 anos, eu já usava turbante – não tinha
Brasileiro da Escultura e da Ecologia); o Demi desenhando... E de repente eu maquiagem, nem espaço pra mim. Eu
aquarela, no Centro Cultural de São também estava lá dando vapor nas era uma exceção. Contudo, eu não seria
Paulo; gravura em metal, no Museu flores, enfeitando aqueles chapéus, e quem eu sou hoje sem as pessoas. São
Lasar Segall; e história da arte, no de repente estava cuidando das costu- Paulo me acolheu muito bem.
MASP (Museu de Arte de São Paulo). reiras. Foi um boom! Abriu uma porta

#Educamab. Você poderia nos contar


sobre sua trajetória enquanto artista,
incluindo sua formação no mundo das
artes e nos espaços culturais?

Lidia Lisbôa. Então, eu sempre falo


que acho que já nasci artista, porque o
meu primeiro trabalho eu tinha 6 anos
de idade. Foi uma cama de campanha
do meu tio-paizinho, que fiz com fo-
lhas de feijão guandu, e coloquei uma
florzinha no meio.

Ai, o tio-paizinho, vendo aquele tra-


balho, chamou a atenção da minha
mãe, falando assim pra ela assim:
“Olha, Maria, cuida da Lidia, que a
Lidia não faz parte desse mundo. Essa
menina é diferente.” Eu já desenhava
algumas coisas, desenhava muito no
chão, gostava muito de desenhar no
chão. Também gostava de fazer minhas
panelinhas de barro; aprendi a fazer
crochê com 6 anos de idade. Queria

#educamab dezembro 2022


12 | ENCON T RO COM AR T IS TA

#Educamab. Você define diretrizes Lidia Lisbôa. Sim, se você olhar os Lidia Lisbôa. Long Time... Por volta
em seu processo criativo? Quais são trabalhos em crochê, verá que eles têm dos 19 anos, morando em um pen-
os conceitos predominantes em suas a mesma trama do “Cupinzeiro”. É uma sionato, sem fazer nada, uma amiga
composições visuais? Suas obras obsessão de fazer, de repetir, de criar disse para mim: “Lidia, sabe tem meses
podem ser vistas como contação de padrões. Geralmente os materiais que que você não tá fazendo nada, o que tá
histórias? utilizo são os que tenho disponíveis, acontecendo com você? Sabe, você pre-
ou seja, se estivesse em uma floresta, cisa fazer alguma coisa, né?”. Foi então
Lidia Lisbôa. Sim, eu acho que minha usaria madeira, folhas, galhos... Aqui, que decidi fazer um curso de bijuteria
obra pode ser vista como uma con- nesse lugar onde estou, tenho tecido, e, a partir disso, comecei a fazer colares.
tação de história. Acredito que faça barro, meias, objetos. É o que tem pra No início, perdi todos, porque comprei
parte de uma cura, de um processo. hoje. É como fazer uma comida: o que tudo de plástico e descascou. Nossa, foi
E como se você estivesse tramando, tem hoje? um horror! Só que, a partir daí, fui me
escrevendo o seu destino de alguma especializando, se tornando algo fácil
maneira. Quanto à questão das dire- O meu trabalho é uma alquimia de de vender. Eu vendia mais rápido do
trizes, sou muito focada, porque todo fazeres, uma alquimia de elementos. que um trabalho, por exemplo, porque
o meu todo trabalho tem um começo, Um feitiço. Para fazer um feitiço, você não dava para vender o meu trabalho
um meio e um fim. precisa de flores, de uma água boa, uma cru do jeito que estava, uma pessoa que
roupa bonita, um incenso bom. O meu estava começando, né? Como vender
Normalmente eu não desenho, mas trabalho é isso, uma composição. um trabalho inicial? Então fiz colares
faço um trabalho e vou dando forma de maneira comercial, ou seja, para co-
a ele como se fosse uma extensão do #Educamab. Vir de uma família de mercializar rápido e ganhar dinheiro
meu corpo, de forma orgânica. É um predominância feminina influenciou, rápido. Vendia para as pessoas, para
processo que vou fazendo e apenas de alguma maneira, a escolha das suas as amigas, botava em lojas em consig-
quando termino dou um nome ao tra- técnicas artísticas, como o têxtil, por nação e, depois, passava para receber.
balho. Foi assim que surgiu o nome exemplo?
“Tetas de se dar de mamar ao mundo”; #Educamab. Como é, para você,
a série “Aborto”; a série “Casulo”; agora Lidia Lisbôa. Essa pergunta me lem- ser uma artista sulina, participar da
eu estou fazendo uma série que se brou a morte de uma menina de 15 anos, Bienal do Mercosul, em Porto Alegre?
chama “Úteros”, mas aí eu também que foi enterrada de vestido branco. Espaços historicamente ocupados por
tenho “Ovários”. Vou fazendo! Além Então ali já tinha um tecido, já tinha artistas brancos. Você percebe alguma
disso, tem a minha série “Cupinzeiros”, uma cor. Isso lembra muito a minha mudança a partir da edição de 2022?
que são falos, né? infância. Me lembro muito de chitinha,
de chitão, das pessoas fazendo aqueles Lidia Lisbôa. É a segunda vez que
Olha, outra coisa: fiquei sabendo há panos de prato, os biquinhos, as coisas estou participando da Bienal Mercosul.
pouco tempo que o meu trabalho de lã, porque eu tenho uma tia que fazia A primeira vez foi virtual e, desta vez,
também aguça o feminino dos ho- muito tricô, cachecol. fisicamente. Olha, eu penso que ter par-
mens. Eles se impressionam com o ticipado da Bienal Mercosul foi uma
meu trabalho. Eu nasci e tinha muita mulher na minha questão de que o meu trabalho é bom!
família, e também uns homens. Mas eu Sempre falo que agora as pessoas não
Enfim, durmo pensando arte, acordo costumo dizer que a minha família era têm como deixar o meu trabalho de fora,
pensando arte, vivo de arte, como e bebo muito cruel, por parte da minha mãe. Eu porque ele está muito forte. Ou seja, se
arte, a minha obra não está separada da nasci em uma família muito cruel e tive não participo da Bienal Mercosul, se
minha vida. No meu cotidiano, entre o de aprender a sobreviver muito rápido. não participo da Bienal de São Paulo,
meu fazer, o meu comer, o meu limpar Hoje, eu agradeço, porque, graças a se eu não participo da Bienal de Veneza,
a casa, o meu lavar roupa, eu não con- eles, me tornei essa pessoa teimosa essa vergonha não é minha, pois o meu
sigo me desligar da minha arte, do meu e inteligente, forte, de couro duro, trabalho está aí, o meu trabalho é forte,
trabalho, não dá pra saber onde começa pois se não fosse a crueldade deles, o meu trabalho tem fala e está aberto.
um e onde termina o outro. eu não estaria aqui tão presente, tão
potente e firme. Isso aqui foi minha Eu acho interessante, porque as pessoas
#Educamab. Para você, existe um diá- sobrevivência, eu me salvei. têm de reconhecer, agora não tem mais
logo entre suas produções têxteis e em o que fazer, não tem mais para onde
cerâmica? Quais foram os percursos #Educamab. Você também tem uma correr. É isso, meu trabalho é forte, eu
que te levaram a essa encruzilhada? relação com a arte de joalheria, como tenho nome forte, a pessoa que fala
isso começou? Lidia Lisbôa, jamais vai se esquecer.

#educamab dezembro 2022


13 | ENCON T RO COM AR T IS TA

Os artistas negros estão fortes, eles têm para ela: “Eu produzo até no banheiro.” eu. Somos as três rainhas e, depois, tem
trabalhos com potência! É vergonhoso as princesas.
não estarmos presentes. Ter uma galeria como a Millan me re-
presentando faz com que eu me sinta Quanto ao meu trabalho, tenho aspi-
#Educamab. Este ano, na Galeria valorizada, me sinto respeitada, sabe? É ração, muitas aspirações. Por exemplo,
Millan, você levou uma exposição in- para isso que eu trabalhei, entende? Me para o próximo ano, vou fazer uma
dividual, que trazia um recorte de todo sinto amparada por eles, É maravilhoso exposição no Sesc Pompeia. Também
seu processo de pesquisa e produção. e tudo isso depois dos 50 anos, pois dia quero participar de bienais, quero
Como você define este momento de 2 de dezembro, faço 52 anos. estar nos eventos de arte. Para poder
sua carreira? o trabalho ganhar a vida, para poder o
#Educamab. Lidia, a partir do resul- trabalho buscar os espaços, porque eu
Lidia Lisbôa. Eu defino esse momento tado de suas exposições recentes, você trabalho e o trabalho busca o espaço.
como maravilhoso! Amo muito esse provavelmente tem projetos futuros e
momento, porque, para mim, foi má- propostas em andamentos. Você sente No meu trabalho, eu vou te falar de ma-
gico ter entrado na Galeria Millan, foi que o mercado da arte tem valorizado nualidade. É um conceito. Eu trabalho
uma coisa espetacular, pois fui indicada sua produção artística? Gostaria de com uma manualidade, porque isso
pela Almeida & Dale. Foi Carlos Dale compartilhar conosco algumas de suas lembra as minhas mãos, pois quando
quem me indicou para André Millan aspirações sobre o circuito das artes? estou fazendo um trabalho, as minhas
que imediatamente foi saber de quem se mãos se mexem muito. Então, existe
tratava aquela artista. Ele veio até o meu Lidia Lisbôa. O meu sossego acabou. uma manualidade, existe um fazer
atelier, olhou. Depois, veio a diretora Tenho recebido muitos curadores. assim de organização no trabalho, e
Rena Lee e disse, para mim, algo que Tenho recebido curadores de Nova faz parte do trabalho, tem uma quali-
nunca vou me esquecer. Ela disse assim: York, de Washington; fui muito falada dade essa grafia.
“Lidia, você é você, é 100% artista. Você na Bienal de Veneza, eu sei que fui fa-
é uma artista de verdade. Você produz lada, eu senti daqui a vibração. Somos O meu trabalho é quente, ele vibra, ele
em cima de uma mesa”. E eu respondi três: Sônia Gomes, Rosana Paulino e aguça as sensações. �

Foto: Thiele Elissa

#educamab dezembro 2022


SEÇÃO

SaNKOfa
R E L AT O S D E A N T I G O S E D U C A D O R E S

#educamab dezembro 2022


15 | SANKOFA

Nunca é tarde
para voltar e
apanhar o que
ficou atrás.
“Símbolo da sabedoria de
aprender com o passado para
construir o futuro”.
NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Luiz Carlos.
Adinkra: sabedoria em símbolos africanos. Rio
de Janeiro: Pallas, 2009.

#educamab dezembro 2022


16 | SANKOFA

Foto: Acervo Educativo MAB


Luciara Ribeiro
ENTRE VIS TA COM

Por Gabrielle Nascimento

Nesta edição, a revista #EducaMAB experiência como educadora no Museu espaço das instituições ainda é con-
entrevista a educadora, docente, pes- Afro Brasil, entre 2015 e 2017; e sobre flituoso, e talvez se mantenha assim
quisadora e curadora Luciara dos sua atuação como curadora engajada por um bom tempo.
Santos Ribeiro. Mestra em História com propostas contra-hegemônicas.
da Arte, pela Universidade de Sala- Ainda, reflete sobre as pesquisas que Venho de uma cidade localizada no
manca (USAL, Espanha, 2018) e pelo vêm executando sobre o cenário ar- interior da Bahia, na região de caatinga,
programa de Pós-Graduação em His- tístico brasileiro, e as relações entre Xique-Xique. Vivi por lá até os meus
tória da Arte da Universidade Federal curadoria, arte, educação e ativismo. 6 anos de idade, e foi nessa vida, entre
de São Paulo (UNIFESP, 2019), Luciara as margens do Rio São Francisco e os
possui graduação em História da Arte #Educamab. Bem-vinda à nossa saberes de minha avó, que me fiz gente.
também pela Universidade Federal de Revista EducaMAB, Luciara. Para Depois, mudei com a minha família
São Paulo (UNIFESP, 2014) com inter- começar nossa conversa, você poderia para a cidade de Mauá, região do ABC
câmbio na Universidade de Salamanca nos contar sobre a sua trajetória e Paulista, onde conheci os movimentos
(USAL, Espanha, 2012). Escreveu sobre formação acadêmica, relatando como de luta social e de emancipação pela
a Coleção Africana da Fundação Cul- se deu o seu interesse pelas Artes? educação. Foram esses dois territórios
tural Ema Gordon Klabin e sobre os e as relações que construí neles que
Modernismos Africanos nas Bienais Luciara Ribeiro. Costumo me apre- me formaram. Uma educação a partir
de Arte de São Paulo (1951-1961). Atu- sentar por um viés que antecedente às da oralidade do sertão, das lutas pe-
almente é professora no curso de Artes instituições artísticas e educacionais riféricas, dos movimentos negros, da
Visuais da Faculdade Santa Marcelina, pelas quais passei. Pra mim, as bases efervescência cultural das ditas mar-
em São Paulo. da minha trajetória, conhecimento gens. Fui estudante de escola pública,
e entendimento de mundo está na e lá tive duas professoras fundamen-
Na entrevista, Luciara reflete sobre sua vivência com espaços e pessoas. O tais, a professora Regina, que lecionava

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17 | SANKOFA

Artes, e a professora Sueli, de História. projeto de vida e de carreira. Com esse


Ambas acreditaram em mim e se em- desejo, a minha entrada para o MAB
penharam em mostrar um mundo de ampliou os horizontes. Antes de tra-
possibilidades, mesmo em situações balhar lá, eu já tinha algumas referên-
econômicas adversas. Estudei em cias dos estudos das Artes Africanas
cursinho comunitário e popular, onde e Afro-Brasileiras, mas muito pouco
aprendi o poder da coletividade e da sobre temas que abrangessem outros
solidariedade. Foi com essa formação campos das ciências humanas. Recordo
que entrei para a universidade pública, que o meu primeiro impacto foi per-
na primeira turma de graduação em ceber o potencial de pesquisa que tí-
História da Arte da UNIFESP. Já nos nhamos no museu, com a Biblioteca
primeiros anos do curso, as institui- Carolina Maria de Jesus e o incentivo
ções artísticas começam a ser mais pre- a novas leituras, a projetos autorais, a
sentes em minha vida. No segundo ano, debates coletivos etc. A projeção de
em 2010, participei como estagiária do que os educadores se tornassem pes-
educativo da Bienal de São Paulo, e nos quisadores era evidente no MAB, o que
anos seguintes de trabalhos em arte- não aparecia em outras experiências
-educação no Sesc, Museu da Cidade, de educativos de instituições de arte,
MIS, entre outros. Cursei o Técnico e isso era fantástico pra mim. No en-
em Museologia na ETEC-SP e depois tanto, me vi, por muitas vezes, presa na
veio o mestrado na Universidade de pesquisa, tendo dificuldades de atuar
Salamanca, na Espanha, onde pesquisei com a ludicidade e as habilidades prá-
as presenças e origens de acervos afri- ticas das artes. Era um desafio enorme,
canos por lá. E depois, o mestrado na naquele momento, dar conta de tantos
UNIFESP, no qual me detive ao es- assuntos, e se manter bem tendo que
tudo documental da primeira década falar sobre temas custosos, como os
de Bienal de São Paulo, com foco nas debates sociológicos-históricos das ra- Foto: Leda Abuhab
[Cortesia Almeida &
participações africanas. Meu processo cialidades e lidar, cotidianamente, com Dale Galeria de Arte]
de pesquisa e de atuação profissional posturas e comentários racistas. Isso
sempre estiveram juntos, tanto na área era difícil, exigia muito equilíbrio. Era
de arte-educação, como em curadoria um desafio enorme provocar as pes-
e museologia. soas através de experiências artísticas
que não abordassem apenas temas, ou
#Educamab. Refletindo sobre o pe- que apresentassem outras visões. Esses
ríodo que trabalhou no MAB, como eram os assuntos que a maioria dos
foi sua experiência como educa- visitantes procurava, poucos se per-
dora? Partindo do princípio de que mitiam a ter uma experiência que os
a mediação é também um trabalho tirassem de certa limitação histórica
de curadoria, que seleciona obras e sobre as produções afro-brasileiras e
temas a serem apresentados ao pú- da população negra. A minha estra-
blico, você poderia nos dizer sobre as tégia era instigar o olhar dos visitantes
estratégias que utilizava para abordar através de abordagens que deixassem
o acervo e como essa vivência contri- perguntas e inquietações, que os pro-
buiu para sua atuação profissional? vocassem a olhar com calma cada de-
talhe das obras e objetos.
Luciara Ribeiro. Entrei para o educa-
tivo do MAB em 2015, logo após con- #Educamab. Você realizou diversas
cluir a graduação, e fiquei até a segunda curadorias de exposições, como:
metade de 2017, quando fui cursar o “Tomie Ohtake – A cor do invisível”,
mestrado em Salamanca. Costumo “AFROTOMETRIA – Una mirada
dizer que o educativo do MAB foi uma fotográfica afrobrasileña”, “Xamanil”,
segunda graduação pra mim. Eu sabia “Diálogos e Transgressões”, “Lilás”,
que integrar tal equipe era mais do que “Mostra de Arte da Juventude” e,
um desejo de trabalho, era parte de um mais recentemente, “Sidney Amaral:

#educamab dezembro 2022


18 | SANKOFA

Um Espelho na História”. Para você, acompanhando um período histórico,


o que é ser uma curadora negra no de escritas e mudanças, mesmo que
Brasil? E quais são os maiores desafios ainda muito sutil. Pra mim, a curadoria
diante dessa constatação? é isso, uma possibilidade de gerar mu-
danças. Não sei se as alcançarei, mas
Luciara Ribeiro. Penso que, enquanto tentarei mesmo assim. Esse é o meu
pessoas negras, ainda estamos lidando pensamento diário! Fazer isso sendo
com uma realidade muito hostil no uma mulher negra é saber que inco-
campo da vida, tendo que lidar com modará muita gente. Então penso que
muitas questões internas e externas o meu maior desafio é o de manter-se
a nós. Independentemente da posição próxima a mim, a minha base, aquilo
social em que uma mulher negra es- que acredito. Outro ponto é resistir
tiver, ela terá que enfrentar os desejos aos perigos do sistema e dos enqua-
sociais de vê-la fracassar ou morrer. dramentos projetados e esperados,
Então penso isso, estamos todos os entender que não precisa caber em
dias desafiando o mundo e a morte. determinados lugares, propostas, idea-
Sou grata a todas as mulheres negras lizações etc. É acordar cotidianamente
que tenho como referência, pois elas e repensar as rotas, do cuidado de si
criaram e fizeram movimentos impor- e dos demais, é respeitar os limites,
tantes. É muito difícil fazer tudo o que escutar e aprender. No meu processo
se exige de nós, e levamos um tempo de curadoria, gosto de emaranhar, de
até entender que não precisamos unir, contrapor, juntar etc. Pensar a
cumprir com tais expectativas. No curadoria é um processo de repensar
campo da curadoria não é diferente. prática e teoria, e a educação é uma
Leva um tempo até se entender o que forte aliada.
quer, como quer, quais as dificuldades,
questões, delicadezas, sutilezas, modos #Educamab. Atualmente, você é uma
de agir, pensar, as estratégias utilizadas, das referências de curadoria que vem
as reflexões etc. Sinto que estamos pensando decolonialidade nos espaços

Exposição Diálogos e
Transgressões,
curadoria de Luciara
Ribeiro, no Sesc
Santo Amaro. De 18 de
novembro de 2017 a 18
de fevereiro de 2018.
Crédito: Raquel
Santos [acervo
pessoal]

#educamab dezembro 2022


19 | SANKOFA

Foto:
Sergio Guerini
[Cortesia
Almeida & Dale
Galeria de
Arte]

museológicos. Como você entende a pouco sobre o mapeamento de cura-


maneira que a historiografia da arte doras e curadores negras, negros e
vem construindo narrativas sobre a indígenas no Brasil, que você tem
produção afro-brasileira? realizado junto à Rede de Pesquisa e
Formação em Curadoria de Exposição
Luciara Ribeiro. Primeiramente, en- e ao Projeto Afro? E como você avalia a
tendo que pensar narrativas decolo- presença desses curadores nos espaços
niais é partir da ação. Buscar mudanças artísticos brasileiros?
efetivas tem a ver com a vida, com os
hábitos, com Luciara Ribeiro. os tratos. Luciara Ribeiro. É muito curioso per-
Percebo que muitas instituições e pro- ceber o impacto desse projeto. Vire
fissionais das Artes que estão acostu- e mexe, alguém me pergunta a res-
mados a um modelo de atuação, e que peito, e isso só reforça a importância
querem correr os riscos que a mudança do assunto. O mapeamento surgiu
possa trazer. E esse é um ponto que me como resposta ao sistema branco-
interessa observar. Sem dúvida temos cêntrico de Arte, principalmente, ao
presenciado movimentos que alteram da curadoria, que se acostumou a ex-
os estudos, os discursos, as programa- cluir e/ou desprezar os profissionais
ções, mas, quando olhamos de forma negros, negras e indígenas. Essa foi
ampliada, identificamos os mesmos uma resposta. Queria demonstrar
modelos de tratamento, de ensino, de que existiam grupos de curadores se
comparações, de julgamentos, de va- movimentando para além do agrupa-
lidação etc. Ainda tratamos as Artes mento branco, questionando e gerando
Afro-Brasileiras como um tema, e não novos pensamentos para as Artes. É
como prática, como uma constante no curioso observar as reações que recebi,
tempo. Isso aparece na academia, nas algumas que reforçavam a necessidade
instituições artísticas, no trato entre os e importância do mapeamento e outras
profissionais do campo etc. Tenho visto que o questionavam, que o colocavam
o movimento atual como uma entrada em dúvida. Obviamente, há uma re-
para algo maior que ainda está por vir. sistência em compartilhar tais espaços
pelo poder que neles habita. Temos
#Educamab. Poderia comentar um visto entradas e participações maiores

#educamab dezembro 2022


20 | SANKOFA

de autorias negras, porém, há um custo para que isso


ocorra, e muitas vezes não ficamos sabendo, pois se
mantém nas invisibilidades dos tratos do sistema.

Considero que o projeto teve o seu momento e agora


precisamos avançar. Em um curto prazo de tempo,
já não se trata mais de demonstrar a presença de
curadores negros e indígenas, mas de olhar para o
conhecimento produzido por tais profissionais, de
valorizá-los e utilizar suas atuações como fontes
de pesquisa.

#Educamab. Para finalizar, você poderia comentar


sobre os seus projetos futuros?

Luciara Ribeiro. Atualmente estou lecionando na


graduação de Artes Visuais da Faculdade Santa Mar-
celina, o que tem sido uma fonte de vida pra mim.
Tenho aprendido muito com os meus alunos, com
os meus colegas de departamento, com o dia a dia
do ensino. Quero continuar atuando na sala de aula,
sinto que o poder transformador da educação se faz
ali. Seguirei com a curadoria e a pesquisa, mas a edu-
cação é sem dúvida o meu lugar de afeto máximo. �

#educamab dezembro 2022


21 | SANKOFA

Pesquisa realizada em
colaboração através das redes
sociais por Luciara Ribeiro.
Colaboração e designer:
Projeto Afro, Guillermina
Bustos, Jorge Sepúlveda T.,
Gabriela Diaz Velasco e equipe
de Trabalhadores de Arte

#educamab dezembro 2022


SEÇÃO

P R O J E T O S E P R O G R A M A S - R E L AT O S D E PA R C E I R O S
23 | NÓS DE SABEDORIA

N YA NS A P OW

Nó da
sabedoria.
“Símbolo da
sabedoria,
engenhosidade,
inteligência
e paciência”.
NASCIMENTO, Elisa Larkin;
GÁ, Luiz Carlos. Adinkra:
sabedoria em símbolos
africanos. Rio de Janeiro:
Pallas, 2009.

#educamab dezembro 2022


Foto: Acervo Educativo MAB
24 | N Ó S DE S A B E D O R I A

Mediação e curadoria
na parceria com a Secretaria de Educação
do Município de São Paulo
Por Mariana Per

ações produzidos por uma educação não este, como pode ser comprovado
“Se a educação sozinha não antirracista. As leis 10.639 e 11.645 pela visão marcada por ideias racistas
transforma a sociedade, sem ela são fundamentais na difusão desses que permeiam os retratos do artista
saberes. Pela existência dessas leis Benedito José Tobias.
tampouco a sociedade muda.” muitas pesquisas, projetos, publicações Nesse encontro entre acervo do
Paulo Freire foram viabilizadas e, dentre elas, o MAB, educação antirracista e as
próprio Museu Afro Brasil, inaugurado pesquisas dos educadores-curadores,
Transformar a sociedade! Que um ano após a sanção da lei, auxiliando algumas ações são realizadas: visitas
re s pons abi l id ade ! Por onde se o Brasil a olhar para si. Um acervo mediadas, oficinas, vivências, contação
começa? Como termina? Termina? A que nasce da pesquisa e empenho de histórias e as parcerias com
aparente utopia desta frase freiriana do artista e curador Emanoel Araujo coletivos e instituições ampliando
diz muito sobre os movimentos que (15/11/1940 - 07/09/2022), que seu campo de ação e possibilidades
o Museu Afro Brasil, sobretudo o apresenta múltiplas camadas de leitura de diálogo efetivo. Destacamos aqui o
Núcleo de Educação, tem construído e entendimento sobre o continente Núcleo de Educação Étnico-Racial da
com arte, falar de um Brasil que africano e a diáspora brasileira em Secretaria Municipal de Educação de
ainda sistematicamente tem apagado, obras de arte. Porém esses objetos São Paulo (NEER-SME). Esta parceria,
violentado e subjugado, sob as lentes sob olhares distorcidos pelo racismo firmada em 2020, oferece formação
da "história oficial”, todo um povo. podem gerar leituras equivocadas, para professores da rede municipal de
Pensar a educação dentro dos museus, como diariamente acontece – a São Paulo visando ao debate racial e à
em especial no Museu Afro Brasil, é exemplo, o público que associa efetivação da Lei 10.639/03.
criar possibilidades de leitura para as objetos de trabalho, provas concretas Os cursos foram pensados
obras expostas, caminhar com o olhar do conhecimento e da tecnologia inicialmente em três principais
de quem chega ao acervo. Cuidar desse desenvolvida por povos africanos, temas: Construindo contrapontos -
olhar. Curar esse olhar. a objetos de tortura. Ainda há um Museu Afro Brasil; Cultura e Artes; e
D e n t r o d i s s o, o N ú c l e o d e fetiche sobre o período da escravidão Educação Antirracista. Como os cursos
Educação tem cuidado e construído e uma dificuldade de associar as se iniciaram ainda em pandemia,
uma curadoria dos conteúdos e populações negras a outro tema se os encontros foram virtuais, dois

#educamab dezembro 2022


Foto: Acervo Educativo MAB
25 | NÓS DE SABEDORIA

encontros abordando o tema mais uma museu e os educadores. Nessa relação, Per - cantora, contadora e pesquisadora
rica lista de materiais e referências. o núcleo reconhece alguns temas com o foco na literatura feminina - e
Considero importante destacar que as também importantes para dialogar Rosa Couto, historiadora, compositora
inscrições para os cursos esgotaram em com os professores, então surgem os e performer com uma pesquisa focada
poucas horas, explicitando o interesse cursos Religiosidades e Mulheres em na musicalidade. A outra dupla é
de professores nas temáticas. Mesmo Artes. composta por Uila (Uilton Júnior) -
com a lei vigente em todo o território Um acervo com mais de 3 mil obras e bixa, pesquisadora de história da arte
nacional, não há uma sistematização um Núcleo de Educação constituído por - e Raphaelie Laz - travesti, arquiteta,
da preparação de professores, desde pesquisadores, artistas e historiadores especialista da educação e performer.
as disciplinas ministradas ainda de diferentes abordagens de pesquisa As duas duplas ministraram o curso
nas universidades. Com isso o e didáticas vão construir com suas com o mesmo nome, mas a liberdade
Núcleo de Educação e o NEER vêm atividades uma co-curadoria do acervo de pesquisa construída entre núcleo
atuando conjuntamente enquanto MAB. Os educadores passam por uma e coordenação proporcionaram outras
multiplicadores das abordagens sobre o intensa formação quando ingressam possibilidades como partilham os(as)
acervo, permitindo um diálogo profícuo para a equipe, por meio de pesquisas, educadores(as).
sobre questões concernentes ao Museu leituras e discussão e diálogos sobre Eu e Uila partilhamos abaixo nossas
e à sociedade brasileira a partir de um mediação a partir das trajetórias de experiências na curadoria desses
letramento racial. vida e acadêmica de cada um. Cada temas, quais assuntos abordados
A parceria se estende por mais educador(a) com sua trajetória vai e quais caminhos escolhidos para
um ano e neste período entende-se regando as atividades com o que lhe debater Cultura e Arte partindo do
a necessidade de, não só apresentar é latente. acervo do Museu Afro Brasil e o que,
o assunto dos cursos, mas também “Assim c omo o curador cria a partir da nossa curadoria, é latente
o acervo do Museu Afro Brasil conexões do público com a obra, as e importante para professores da rede
desconhecido da maioria de professore, escolhas das mediações também criam municipal.
iniciando o curso com uma visita narrativa.” Observemos como as escolhas
presencial ao acervo, gerando assim Aqui trago o curso Cultura e Artes pessoais são fundamentais para
um vínculo de professores com o ministrado por duas duplas: Mariana construir essa curadoria.

#educamab dezembro 2022


26 | NÓS DE SABEDORIA

MARIANA PER
“Nossa proposta com esse curso foi di-
Encerramos a aula apresentando apro-
ximações com Brasil na figura do Cazumbá
da festa de Bumba Meu Boi aproximando
o que maximiza quando as pensamos em
relação à população e estética africana e
afro-brasileira: O que define o que é arte?
mensionar introdutoriamente, junto a as duas festividades em elementos e es- Cultura se localiza apenas em museus e
professoras e professores, a diversidade trutura. Em ambas as festas não se conhe- centros culturais? Se não, quais outros
cultural do continente africano, apresen- ce o mascarado, toda a vestimenta é uma aspectos de nosso cotidiano evocam
tando mapas geográficos e culturais, máscara, em ambos existe uma reverência experiências estéticas? Há alguma
tentando desconstruir assim essa leitura religiosa. Essas parecenças são evidências especificidade numa arte e cultura africana
ainda difundida de África ser “uma coisa claras das permanências africanas aqui na e afro-brasileira? Estes nomes/conceitos
só”, os estereótipos como a imagem da diáspora e auxiliam os professores a criar f u n c i o n a m b e m p a ra e s t e d e b a t e ?
savana e ausência de desenvolvimento outros olhares e principalmente outras Questões como essas foram importantes
social, político e cultural. Para isso inicia- propostas para os alunos.” para o rumo que optamos. Percebemos que
mos a aula com a existência dos museus e nosso maior objetivo com a proposta seria
como as obras que estão dentro desses questionar e reavaliar nossas categorias de
espaços passam por escolhas de viajantes,
pesquisadores e principalmente nas mãos
de quem tem o poder para levá-las para
UILA
“Construí a proposta do curso
classificação artística e fomentar conversas
e observações de imagens que auxiliassem
o processo. Gostaríamos de reconhecer
dentro de um gabinete de curiosidades e/ ‘Introdução a arte e cultura africana e afro- coletivamente nosso modo eurocêntrico
ou espaço expositivo. Entendidas essas brasileira/’ com Raphaellie Lázaro, de ver, experimentar e criticar, para então,
camadas, apresentamos a professores um educadora do museu também. A princípio a partir das imagens não brancas direcionar
pouco da cosmovisão iorubá partindo das pensávamos em como se valer das bases nossa atenção para as categorias
máscaras Geledés, vestimenta que faz de pesquisa que a própria temática sugere movimentadas por elas próprias. Para tal,
parte de um rito em celebração à ances- e, a partir disso, identificar quais temáticas nos pareceu interessante percorrer por: 1)
tralidade feminina, e o conceito de másca- eram importantes serem destacadas por História dos museus, e pelo hábito
ra - mascarado que atravessa outros povos nós. Dá para iniciar e desenvolver muitas desenvolvido nele de acumular, colecionar,
do continente. coisas desde a discussão de arte e cultura, saquear e expor; 2) Movimento e

Foto: XXXXX

#educamab dezembro 2022


27 | NÓS DE SABEDORIA

transformação de produções estéticas enquanto celebra os objetivos de uma


africanas durante a diáspora (1500-1900); educação antirracista, destituindo um
3) Produção artística contemporânea, corpo único de conhecimento, o
entendendo sua inserção como modo de universalismo abstrato que camufla o
discutir a formulação de respostas de hoje eurocentrismo e, consequentemente, o
para agora, focando sobretudo na produção racismo.
e pedagogia travesti. Ao final foi proposta A partir desses olhares, constituídos de
uma atividade reflexiva com linguagem e pertencimento e de conhecimento, é
p l a t a f o r m a d e l i v r e e s c o l h a d a /o possível perceber como o trabalho de curar,
participante. Recebemos desde poemas, a de cuidar, desenvolvido pelo Núcleo de
propostas de aula, vídeos e áudios. Educação do Museu Afro Brasil, partindo
Notamos uma constante negociação com de sujeitos e sujeitas para sujeitos e sujeitas,
a linguagem, desde a formulação da não mais centrada em uma educação
proposta à reunião dos trabalhos finais, o catequizadora, colonizadora e,
que foi bastante proveitoso no principalmente, hierarquizadora da vida,
desenvolvimento das questões que mas cria possibilidades de um conhecimento
organizaram a execução do curso.” situado, mergulhado em vida, afetando e
sendo afetado pela história, e em diálogo

ASSIM...
Atravessadas por seus olhares,
com uma educação que se propõe
transformadora.
Isso nos mostra como o trabalho de
percepções e pesquisas, cada dupla fez educador(a)-curador(a) do Núcleo de Edu-
escolha distinta de como abordar o acervo cação do MAB vai além de uma mera esco-
do MAB, para o tema Cultura e Artes. lha de obras e objetos a serem discutidos
Mariana e Rosa escolheram as Geledés, em uma visita mediada, mas elas mostram
como objeto, em um diálogo direto com que esse trabalho é também uma proposta 1
Em outubro de 2022, o Núcleo
suas perspectivas, mergulhadas pela ideia transformadora e emancipadora para to- de Educação do Museu Afro
de femininos. Já Rapha e Uila apresentaram das as pessoas envolvidas, inclusive para Brasil foi contemplado com
artistas trans, num debate contemporâneo, nós, educadoras e educadores do Museu o Selo de Direitos Humanos
trazendo a produção artística Afro Brasil! É um processo vivo, conectado, e Diversidade (5ª Edição
contemporânea e travesti, marcado por plural e, portanto, inclusivo, também, an- 2022-2023) da Secretaria
seus lócus de enunciação. Isso nos mostra ticolonial, descolonizador do ser, do saber Municipal de Direitos
o quanto as propostas e escolhas dessa e do poder. Humanos e Cidadania,
curadoria da mediação acolhe as Esse feliz encontro é celebrado com o Selo com o "Projeto Formação
individualidades de cada pesquisador(a), de Direitos Humanos 5° edição 2022-2023.1 � de Educadores da SME".

Afeto e comprometimento consigo


e com os desejos transformar
grão por grão,
encontro por encontro
de escuta e fala.
#educamab dezembro 2022
28 | NÓS DE SABEDORIA

SEÇÃO

DIaLOGOS

#educamab dezembro 2022


29 | DIÁLOGOS

Escola, Uma Educação que se projete como antirracista


deve partir do trabalho pedagógico focado em afir-
mar a diversidade como fonte de conhecimentos

Museu
de toda natureza, o que inclui novos sujeitos e
novas abordagens interdisciplinares. Mas, com as
Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, recaiu sobre os
professores, especialmente os de Artes, Literatura
e História, a missão de protagonizar ações para

e Arte:
implementação da Educação das Relações Étnico-
-Raciais, sendo que esta é uma obrigação de edu-
cadores de todas as áreas, de todos os níveis e
modalidades. É um trabalho que aciona reconfi-
gurações estruturais do sistema oficial de Educação

mediação de e que depende também do apoio de diversos agen-


tes, como movimentos sociais e instituições de
natureza diversa - entre elas, os museus.
uma Educação Nossos museus podem ser considerados institui-
ções criadas para a materialização de discursos,
Antirracista evocando narrativas, memórias e protagonismos
nacionais. Seus acervos constituem relevantes es-
Por Nelma Cristina Silva
paços de pesquisa e estudos da cultura, mas ainda
Barbosa de Mattos são raros os espaços museais voltados às contri-
buições negras e indígenas ao Brasil.

O relacionamento do museu com a escola pode ir


além da articulação da visita no setor pedagógico:
eles podem elaborar um processo de ensino e
aprendizagem, através de atualizações e reinter-
pretações de temas, objetos e sujeitos presentes
– e ausentes, mediados pelos arte-educadores.

Aos professores, que conseguem acessar institui-


ções museológicas, é facultado fazer uma análise
cuidadosa do que está exposto. Não é um trabalho
rápido, pois os assuntos explorados pela escola
devem dialogar com o acervo. Antes de sair em
visita, é preciso pesquisar as coleções; se preparar
conceitualmente e inserir a turma aos poucos nas
questões centrais que a exposição pode suscitar;
levantar instituições de pesquisa, publicações, bens
culturais e acervos importantes para a comunida-
de negra em sua região. É o repertório do profes-
sor, seja de que área for, que definirá a curadoria,
a mediação e efeitos de uma visita ao museu.

No caso de Artes, área com reduzidíssimos subsí-


dios pedagógicos, o docente deve lançar mão dos
estudos interdisciplinares, para compreender

#educamab dezembro 2022


30 | DIÁLOGOS

subjetividades, estilos ou técnicas inicialmente essa forma de represen- arquiteturas, conformando o design
artísticas negras e ameríndias. Assim, tar o corpo e, no contexto de inter- de casas, embarcações, vilas, cidades,
ele poderá compor seu repertório a câmbios, disseminaram a técnica, que meios de transporte e territórios ne-
partir de investigações sobre: trajetó- caiu no gosto greco-romano. Então, gros como os quilombos e os terrei-
rias artísticas (formação profissional, seguindo suas próprias filosofias de ros desde a colonização. Foram so-
crítica...); rotas de sujeitos e coletivos vida, os africanos resolveram adotar ciedades negras que trouxeram sabe-
(sociabilidades, expressões artísticas outros cânones, abandonando com- res em metalurgia, tecelagem,
locais...); de cosmovisões e de seus pletamente as normas anteriores. Os agricultura, transportes, arquitetura
reflexos nos territórios (monumentos, greco-romanos seguiram desenvol- etc. Esses saberes foram a base da
modos de habitar...); de tecnologias vendo a técnica, que chegou até nós economia do Brasil, pois tornaram
(objetos, técnicas, ciclos e arranjos como uma invenção “exclusiva” do possíveis os ciclos do couro, da cana-
econômicos, artefatos...). Amalgama- europeu. Abordar protagonismos e -de-açúcar, do ouro e do café, junto
dos na cultura afro-brasileira, esses autonomia de povos antigos para a com a produção de utensílios de toda
eixos nos ajudam a situar histórica, criação artística justifica, por exemplo, natureza, ferramentas de trabalho,
filosófica e socialmente a arte e os a diversidade em África e na sua di- moradias, adereços, vestimentas, cal-
artistas de origem negra no Brasil. áspora. No contexto colonial, o dife- çados etc., que podem ser vistos até
rente do europeu era retratado como os dias de hoje nos rincões do Brasil.
Pelas conexões com a vivência do monstruoso, assustador, visando criar
negro no Brasil e na África, podemos uma única narrativa civilizatória. A experimentação artística coletiva
perceber continuidades e reelabora- Apesar da imposição colonial dos pode nos explicar formas culturais do
ções na vida comunitária e individu- métodos e critérios para a arte oficial, território englobado por nossas es-
al. Os princípios culturais afro-bra- cada povo afro-diaspórico encontrou colas e museus. Entre elas, a sociali-
sileiros estão materializados em um jeito de expressar seu sensível e zação negra das famílias de santo ou
objetos, jogos, brincadeiras, corporei- sua beleza. Portanto, não é porque os famílias de consideração, sem laços
dades, danças, manifestações cênicas, negros brasileiros eram proibidos de consanguíneos; formas de cuidado e
arquiteturas, músicas etc. Tudo isso frequentar escolas que eles deixaram educação das crianças (incluindo cui-
pode ser entendido como traduções de criar artisticamente. Ao contrário, dados com bebês e gestantes); edifi-
da forma de se perceber enquanto o domínio de técnicas e tecnologias cação e uso de espaços arquitetônicos
sujeito, natureza e coletividade. aplicadas ao trabalho e à religião pos- compartilhados (associações de bair-
sibilitaram uma produção plástica ro, terreiros, clubes sociais, galpões
Ao compreender essa cosmovisão, significativa no Brasil. de escolas de samba, grupos de capo-
entendemos a relevância das religiões eira etc.); cultivos e usos de plantas;
de matriz africana nos processos de Através do trabalho pedagógico (tan- musicalidades, danças, visualidades...
ressocialização negra, de Educação, de to na escola, quanto no museu), é Há inúmeras referências artísticas
criação artística, de sustentabilidade possível problematizar as represen- desses temas, que o arte-educador
ambiental, entre outros. Nota-se que tações racializadas feitas naqueles pode se basear para propor processos
há outros parâmetros de pensamento, períodos, compreendendo a impor- educativos a partir de instalações,
e que é possível estabelecer paralelos tância do conceito de raça para os happenings, pinturas, esculturas, gra-
com outras mentalidades, reforçando empreendimentos coloniais em todo vuras..., bem como pelo contato com
a noção de diversidade epistêmica. o mundo. Biografias e obras de artí- lideranças vivenciais, mestres de sa-
fices e artistas negro-mestiços dessas beres. Essa relação horizontal pode
A diversidade e as trocas eram fenô- épocas também podem favorecer es- trazer à luz contribuições negras lo-
menos comuns entre os povos, mes- sas reflexões. cais para o país.
mo antes dos processos coloniais. A
representação do corpo humano em Por outro lado, é necessário tomar A história brasileira está repleta de
suas medidas próximas às da nature- partido de conhecimentos científicos, experiências negras voltadas para a
za real é um bom emblema daquele técnicos e tecnológicos que foram emancipação, antes e depois da Abo-
contexto. Os egípcios desenvolveram a pl i c a d o s à s a r t e s v i s u a i s e lição da Escravatura. Além das lutas

#educamab dezembro 2022


31 | DIÁLOGOS

abolicionistas, é preciso conhecer para elaboração de narrativas visuais.


artistas e intelectuais negros de gran- Atualmente, o corpo se tornou ele-
de vulto, mas nem sempre lembrados, mento central na arte não só como
tais como os artistas plásticos Manuel suporte, mas também como instru-
Querino e Wilson Tibério. O primei- mento das subjetividades e das lutas
ro antecipou o debate sobre mestiça- políticas.
gem no entresséculos XIX-XX e o
segundo foi um ativista e pesquisador Uma presença negra emblemática
que conviveu com expoentes pana- desse contexto contemporâneo é a do
fricanistas do século XX. Wilson Ti- artista plástico Emanoel Araujo. Sua
bério e Alberto Guerreiro Ramos atuação englobou comprometimento
ajudaram a fundar o Teatro Experi- político com as questões negras e
mental do Negro. Ramos era sociólo- narrativas artísticas mundiais e locais.
go e defendia a ideia do negro en- Reconhecido profissional das artes
quanto sujeito epistêmico. visuais, estudioso profundo da temá-
tica do negro, ele foi fundador do
Escola e museu, juntos e mediados Museu Afro Brasil, uma das mais
pelo docente de Artes, podem reativar importantes instituições de artes de
a memória de ícones da luta emanci- origem negra do mundo. À figura de
patória negra como os citados, antes, Emanoel pode-se somar histórias de
durante e depois da visita à exposição. vida, de processos criativos e de pro-
Sob mediação do professor, escola e dutores culturais negros, incansáveis
museu podem catalogar, registrar na luta pela igualdade racial e pela
sujeitos e fatos notáveis da História, afirmação das artes visuais afro-bra-
Cultura e Arte Afro-Brasileiras, a sileiras. Essas e tantas trajetórias nos
partir de percepções, representações ensinam o quanto as artes visuais
e experimentações das crianças. podem ser instrumentos de educação
das relações étnico-raciais. Nelma Cristina Silva Barbosa de
A propósito, foi num contexto de lu- Mattos é doutora em Estudos
tas pela emancipação dos negros que Pela mediação dos arte-educadores Étnicos e Africanos, artista
se configurou o modernismo na arte. na escola ou no museu antes, duran- plástica, docente do IF Baiano;
Como compreender a produção mo- te e depois da visita, compreendemos E-mail: nelma13@gmail.com
dernista desconsiderando o Panafri- que é possível inserir crianças e jovens
canismo, a Nègritude e outros seme- no processo da história, teoria e crí-
lhantes? Pouco se fala, mas o pensa- tica de arte, compreendendo as dinâ-
mento desses coletivos influenciou o micas subjetivas e sociais a partir das
que se produziu artisticamente no identidades negras. Os resultados de
Brasil e em outros países! uma ação coletiva desse porte, na es-
cola, é a instalação de uma cultura
A (esquecida) relação com as artes escolar antirracista, produtora de
africanas também acontece na arte novos caminhos para o conhecimen-
contemporânea. Há fortes referências to e de estímulo à solidariedade entre
às expressões sensíveis de África, pessoas. Nos museus, a ação certa-
tanto anteriores à colonização, que mente reforçará a necessidade de
concebiam o corpo integralmente reconfigurar discursos e práticas ins-
portador de textos sensíveis; quanto titucionais à luz da afirmação das
posteriores à colonização, partindo de diferenças, pelo fim do racismo que
corporeidades negro-diaspóricas ainda alicerça nossa sociedade. �

#educamab dezembro 2022


SEÇÃO
33 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

Quem vive
de passado
é museu?
“Segue o baile”: visitas
educativas em museus
e sua polifonia
Por Uila

Há muitas maneiras de se pensar uma Pedagogicamente significa constan-


visita educativa a um museu. Com- tes retornos a uma mesma imagem,
posto por muitas camadas e leituras sequência ou abordagem. Como é
históricas, os museus se tornaram possível perceber a história brasi-
espaços por onde circula a disputa de leira num museu como o Afro Bra-
imagem e memória, por isso tendem sil? Se a presença africana é seques-
a ser bastante polifônicos. Constante trada no decorrer de três séculos
fluxo da presença, discursos e sobre- há distintos momentos e modos de
posição de diferentes períodos, o que desassociação, como também nas
inclui o qual se insere hoje. Há algo reações a eles. Na leitura destes
de contemporâneo, no que diz res- eventos, também transformamos
peito ao considerar o agora, em sua seu significado e função, realocan-
proposição de manter coisas expostas do-os. Um exercício constante de
durante momentos diferentes, cole- ter memória em movimento e se
tando leituras e interpretações. transformando.

#educamab dezembro 2022


34 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

Dito isto, repito: há muitas maneiras (1893-1945) e seu envolvimento com PARA ESTA
de se pensar uma visita educativa em debates relacionados ao moderno e VISITA,
PROPOMOS:
um museu e por isso a seção Conhe- à identidade nacional. Esta informa-
cendo o MAB desta edição é dedica- ção já é um dado.
da a pensar nos percursos de pesqui- 1
sa e visitação neste espaço. A curadoria é proposta a partir de Entender o espaço
uma pesquisa e construída, do museu como
No exemplo eleito, a Visita Temática literalmente, por muitas pessoas e também influente
na percepção e no
“Segue o Baile: o uso do carnaval nos essa é a fonte primária de uma visita,
debate crítico;
bailes da Sociedade Pró-Arte Moder- entendo. O fato histórico, lado a lado
na”, ocorrida em junho de 2022 no a nossa compreensão sobre ele, 2
Museu Afro Brasil, este processo apresentado numa mostra. Muito Observar a visita
esteve associado a uma exposição vinculado à legitimação de que a educativa em
temporária: “A Volta dos Bailes da história dos museus consolidou, museus como
linguagem de
SPAM de Lasar Segall”, que compu- ocasionalmente ele pode significar elaboração de
nha, por sua vez, uma série de mos- verdade absoluta e irrevogável. leitura da história,
tras dedicadas à reflexão da Arte Questões como estas podem também objetos e espaço;
Moderna e Modernidade, com foco ser importantes para uma visita
em São Paulo dado o fato da realiza- educativa e têm estado cada vez mais 3
ção da Semana de Arte Moderna no presentes em conversas com outras Refletir sobre a
potencialidade de
Theatro Municipal, em 1922. Todo o educadoras e educadores. Porque pesquisa e
diálogo com outras exposições tem- também, por exemplo, muito se metodologia
porárias paralelas foi feito por meio elabora enquanto se compartilha pedagógica na
da figura de Mário de Andrade com os pares. leitura de imagens.

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Lasar Segall, 1929.
Dança de negros ao
luar, Xilogravura,
22 X 28 cm. Museu

35 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL Lasar Segall

PARA INÍCIO DE CONVERSA


Meu primeiro contato com Lasar Segall no outro (2), um ambiente menos estig-
(1889-1957) foi no segundo ano da matizante, embora o título ainda tenha
graduação por meio de outro museu, o algo relacionado a isto.
Museu Lasar Segall, em 2016. Segall foi
um artista lituano que se mudou para Quando reencontro Segall na exposi-
São Paulo em 1923, onde moraria até ção do Museu Afro Brasil, no primeiro
1957, quando faleceu. Neste intervalo, semestre de 2022, é fundamental en-
modifica bastante as temáticas e tender a relação entre essas escolhas e a
linguagens de suas pinturas, passando postura modernista do grupo artístico
a incluir a população negra e a usar atuante na São Paulo de 100 anos atrás.
cores muito mais vibrantes do que as Podemos nos perguntar: Há um jeito
anteriores. Me recordo de dedicar tempo moderno de pensar a representação
lendo sobre esse interesse de Segall. negra nas artes plásticas brasileiras?
Se sim, como ela se constrói? Se não,
Nas gravuras “Dança de negros ao luar” de que se trata esse fenômeno? Se
(1929) e “Baile de negros” (1930) é pos- pensarmos que artistas como Lasar
sível notar como opta por fazer isto. Na Segall, Tarsila do Amaral (1886-1973),
primeira (1), uma explícita referência à Oswald de Andrade (1890-1954), Má-
vanguarda artística europeia em defesa rio de Andrade, Di Cavalcanti (1897-
de um primitivo inventado com base em 1976), Vicente do Rego Monteiro (1899-
si mesmo e projetado na composição, e 1970), entre outros, participam desse

#educamab dezembro 2022


36 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

tipo de escola de representação desde


experiências, expectativas, objetivos
e conhecimentos distintos, podería-
mos falar de mais de um jeito para
fazer isto? As perguntas costumam
ser boas companheiras na preparação
de uma visita.

O público pode e deve responder a


estas perguntas também, assim como
fazer as suas próprias. O que difere
a visita de uma conversa com fala e
escuta atenta é a ciência do local onde
se quer chegar. Uma espécie de postura
pedagógica que marca um objetivo e
pensa num roteiro para alcançá-lo.

Roteiro é como chamamos a sequência


de etapas pensadas para a realização
de uma ação educativa, seja ela uma
visita, oficina, roda de conversa, jogo
ou leitura de imagem. Essa etapa
nos auxilia a recortar o que abordar
e como faremos isso. Talvez ele seja
o primeiro filtro do que permanece
e como permanece. Vejamos. Se em
meus encontros e reencontros com
as imagens de Segall fui acumulando
hipóteses para perceber a escolha de
sua temática e materialidade, é no
momento do roteiro que costuma
aparecer maneiras de instrumentalizar
essas informações para uma conversa
que dura, em média, 1h30. Costuma
porque nem sempre é espontâneo
traduzir. E definitivamente não é
espontâneo traduzir frequentemente
e para pessoas distintas. O Museu
Afro Brasil recebe mensalmente
um número relevante de grupos
agendados para visitas com a equipe de
educadoras/es. Os roteiros pensados
para a Exposição de Longa Duração,
ambiente mais frequentemente
s ol i c i t a do no s a g e nd a me nto s, Lasar Segall,
ganham certo aspecto volúvel, 1930. Baile de
negros,
já que necessitam ser ouvidos e Xilogravura.
experimentados por pessoas distintas. Museu Lasar
Segall.
Esteja dito: nunca é igual! Entender as
perguntas como ferramentas também
contribuem para as alterações que ele,
o roteiro, ocasionalmente precise, já
que alterando o grupo é bem provável
que se alterem também as respostas.

#educamab dezembro 2022


37 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

SEGUE O BAILE:
O USO DO CARNAVAL NOS BAILES DA
SOCIEDADE PRÓ-ARTE MODERNA

Consideremos o caso da visita temá- hierarquia social e política no primei-


tica citada, os objetivos relacionados ro, com personagens como policiais e
a ela e o desdobramento das escolhas políticos com alto teor cômico, e uma
de tradução. distopia no segundo, em 1934, onde o
foco representativo se desloca da ci-
Com o título inicial de “De qual car- dade para o interior, na metáfora co-
navalesco se valeu a SPAM?: Uso do lonial e moderna da expedição ao
carnaval nos bailes da Sociedade Pró- desconhecido. A presença africana e
-Arte Moderna”, esta visita surge com indígena em sua composição ocupa
o interesse de pensar o carnaval como lugar bastante marcado pela manipu-
o modo pelo qual Segall e os sócios lação das imagens ditas primitivas em
da SPAM se valeram para representar função duma investigação e experi-
um moderno autêntico, não-metropo- mentação por uma estética modernis-
litano, e por isso mesmo primitivo. Há ta.
uma estratégica valorização do exóti-
co como possibilidade de existência Há um projeto da cenografia do se-
em consonância ao desprezo que mui- gundo baile, conservado pelo Museu
tos movimentos de vanguarda nutriam Lasar Segall, que nos ajuda a entender
à vida industrial e urbana moderna. como essas adequações foram feitas e
Tarsila do Amaral fez isso em “A negra” qual solução compositiva Segall pro-
(1923) e “Abaporu” (1928), por exemplo. pôs. Trata-se de “Projeto de cor para
Se tratava de um primitivo nativo e decoração do Baile de Carnaval da
autêntico. SPAM” (c. 1933) (3). Copio abaixo um
trecho construído para o programa
Os Bailes da SPAM parecem ir por #EducaMAB e divulgado pelo Insta-
outra vertente, adequando a represen- gram do Museu Afro Brasil que elu-
tação indígena e negra numa drama- cida essas relações:
turgia com figurinos, músicas e con-
vidados. Ocorreram dois bailes oficiais, Durante o carnaval de 1934 ocorreu
um em 1933, chamado “Carnaval na na Rua Martinico Prado (SP) o 2º bai-
cidade da SPAM”, e outro em 1934 le da Sociedade Pró-Arte Moderna
chamado “Grande expedição às matas (SPAM). Este grupo foi formado por
virgens da Spamolândia”. Nitidamen- figuras da cena cultural paulista, mui-
te Segall propunha uma quebra de tos dos quais estrangeiros, como Lasar

#educamab dezembro 2022


38 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

Segall, responsável pelo projeto e ce- é complexa e cheia de símbolos que


nografia dos bailes spamistas. A com- cruzam a experiência carnavalesca
posição acima (imagem 1) se trata de alemã de Segall e muitos dos desejos
uma criação cênica para o baile “Gran- estéticos relacionados ao movimento
de Expedição às Matas Virgens de modernista paulistano.
Spamolândia” que teve como perfor-
mance central o encontro entre o Prín- Nisto se ancorava o interesse de pen-
cipe Carnaval e o chefe nativo Spaman- sar o uso do carnaval no enredo pro-
-Ullah. Essa estratégia metafórica foi posto pelo artista, um modo também
frequente, onde uma narrativa fanta- de entender as significações que a
siosa, embora não distante da realida- representação não branca recebe em
de, pôde ganhar forma e cor através sua abordagem. Mas como propor is-
da pesquisa expressionista. Um tipo so para um grupo de pessoas formado
de “arte total”, com plasticidade e men- de maneira espontânea e improvável?
ção social. Como significar estas indagações de
modo que elas possam ser compreen-
O desenho de Segall é aquarelado, didas, modificadas e/ou rejeitadas
prevalecendo o ocre. Um trio de figu- pelo grupo?
ras tem vestidos pretos, um escudo e
uma haste com bandeira. Na cabeça Uma estratégia eficiente relacionada
possuem ornamentos que nos lem- aos documentos consultados, por
bram um cocar. No centro há outra exemplo, foi optar por levá-los impres-
figura, sozinha, semelhante às outras sos ao encontro ao invés de apenas
apenas pelo tom de sua pele, com uma citá-los na fala. Uma correspondência
saia, pulseiras e um colar. Possui chi- (4) enviada por Guilherme de Almeida
fres e seu rosto não tem traço algum. (1890-1969), escritor e crítico de arte
Seria este Spaman-Ullah? Há também atuante no esforço paulista pela mo-
um vislumbre da fauna e flora de Spa- dernização da arte e cultura, a Lasar
molândia. À esquerda, três quadrúpe- Segall em 1931, apresenta ela própria
des possuem chifres peculiares. Um um índice dos anseios que envolviam
outro quadrúpede, atrás destes, tem a SPAM e seus bailes. Segundo Al- Lasar Segall, c. 1930.
Projeto de cor para
fisionomia quase humana e orelhas meida, Segall ficaria feliz ao saber que decoração do Baile de
que lembram a de coelhos. À direita a “velha ideia” do carnaval spamesco Carnaval da SPAM.
Desenho e aquarela
há um elefante, um instrumento mu- estava prestes a se realizar: “Juntamen- sobre papel.
sical e uma espécie de totem. A cena te com d. Olívia Guedes Penteado e Museu Lasar Segall.

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39 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

Guilherme de
Almeida. Sem
título. Receptor:
Lasar Segall. São
Paulo, 9 fev.
1931. Carta
datiloscrita em
tinta preta.

com algumas outras senhoras da nos- de festejo público já existisse. Ela sur-
sa melhor sociedade”. Este argumento giu numa das conversas de planeja-
do escritor foi usado como elemento mento com o Núcleo de Educação,
central para identificarmos a intenção sobretudo a partir de colocações da
de distinção que também orientava o educadora Rosa Couto, que sugeriu ser
desejo moderno do grupo. Me recordo interessante confrontar as imagens
de Murilo, participante de aproxima- festivas de Segall com as do Bumba
damente 12 anos de idade, perceber Meu Boi, Folia de Reis e Maracatu.
esse tônus na estilização dos figurinos,
que muda bastante do primeiro baile, Percebemos que, além de considerar
com uniformes e conjuntos típicos, outra iconografia para o debate, a
para o segundo, com simulacros de inclusão das festas também apresentou
animais, indígenas e africanos. ao grupo, e à proposta, o dado da
elaboração de imagens não brancas sob
A observação da carta e de outras fon- outra perspectiva. Não a da citação,
tes, como pinturas, poemas e os con- representação, mas a do protagonismo
vites para os bailes, compuseram o e experimentação. Quatro anos após
primeiro momento da visita, que ter- o último baile da SPAM, em 1938,
minou com a função de contextualizar Mário de Andrade, pelo Departamento
sobre o que iríamos conversar. Este de Cultura, liderou o projeto conhecido
momento também foi responsável por como “Missão de Pesquisa Folclórica”
criar um contraponto ao que faríamos que teve o intuito de mapear, coletar
em seguida, ir ao Núcleo “Festas: o e catalogar produções e manifestações
Sagrado e Profano” da Exposição de artístico-culturais que dessem um
Longa Duração do Museu Afro Brasil. contorno à cultura nacional. Todas as
Essa conexão não fazia parte da pro- festas presentes no Núcleo de Festas
posta inicial, embora o interesse em foram também incluídas nesta
pensar o carnavalesco como expressão investida.

#educamab dezembro 2022


40 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

Este é um bom momento para falar de paulistana. Ocorre que, ocasionalmente, ROTEIRO DA VISITA
recorte. Em algum momento um de- responder às demandas suscitadas pelas
bate mais específico sobre a eleição da leituras e perguntas, enquanto elabora 1
chamada Cultura Popular como sím- uma tradução coletiva na visita educa- Acolhimento e apresentação
bolo autêntico do nacional pareceu ser tiva, significa também entendê-la como da exposição: Por que esta
interessante. Se tratava da legitimação uma linguagem. Mostra se apresenta no
Museu Afro?
de determinadas estéticas e sociabili-
(10min)
zações a partir de um olhar em deslo- A visita educativa em museus é uma
camento de São Paulo para Pernam- linguagem de investigação e tradução
buco, Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão com possibilidade de reação e propo- 2
e Pará, inaugurando uma série de sição diante do que se investiga, mar- Contextualizando SPAM e
seus bailes - Fontes a serem
estereótipos que insistem em sobre- cando várias alternativas de desdobra- trabalhadas neste momento:
viver na percepção brasileira acerca mentos, mas também direcionando Carta de Guilherme de
delas. Infelizmente, ou felizmente, uma intenção. Por fim, não optamos Almeida a Segall, Poema de
este foi um tópico que ficou fora do por propor uma reformulação dos bai- Mário presente no convite de
roteiro final porque embora pudesse les, mas um relato sobre como enten- 1934, “Moeda Paulista” de
Guilherme de Almeida.
auxiliar na resposta ou na formulação demos ele hoje, daqui. (20min)
de outras perguntas, a visita continu-
aria tendo cerca de 1h30. Saltar dos A última etapa da visita foi destinada,
bailes da SPAM para uma Congada já então, a provocar as/os participantes a
3
Passeio pela exposição e
colaborava com uma percepção cole- traduzir suas compreensões, dúvidas leitura das imagens expostas.
tiva de que estávamos falando de uma e discordâncias sobre tudo que vimos (15min)
disputa pela representação. e discutimos. A princípio pensávamos
em uma roda de conversa em que fos- 4
A esta altura estávamos diante de um se possível expor e dialogar com as Desenvolvimento: Visitação
dilema bastante central da proposta: falas, mas por fim optamos pela carta, às exposições “Artistas
Seria proveitoso direcionar o encontro também como modo de dinamizar o Modernistas”, “Alegoria
para uma eleição contemporânea, ali uso da fonte na primeira parte do en- afetiva de São Paulo” e
“Núcleo de Festividades da
em abril de 2022? Se a eleição do Na- contro. Escreveríamos para Segall co- Exposição de Longa Duração”
tivo e de uma África, presentes na mo modo de traduzir nossas compre- a fim de relacionar estética
cenografia de Segall, evidenciada na ensões e de transcrever nossas dúvidas. modernista, ocupação
observação das escolhas feitas pelos Deste modo exercitaríamos também a carnavalesca das ruas e
grupos e manifestações populares, argumentação desenvolvida durante a festas populares.
discutir o Brasil é sempre notar que visita, valorizando tanto as reflexões (15min)
ele ainda está em curso, e por isto ain- individuais como coletivas, com foco
da em elaboração. Isto constantemen- em discorrer sobre as escolhas feitas 5
te posiciona as pessoas e grupos em nos bailes ao invés de assumirmos o Atividade: Produção de
lugares distintos. O que não é neces- lugar de Segall. Esta ainda continua hipóteses que se relacionem
à existência dos bailes e de
sariamente ruim. sendo uma opção e ter consciência dis- suas estéticas.
so enquanto uma decisão nos relembra
(20min)
A percepção estética e cultural da Ci- o lugar polifônico no qual alocamos a
dade Tiradentes, bairro localizado no prática educativa museal no início des-
extremo Leste da cidade de São Paulo, te texto. Faz sentido uma proposta de 6
Apresentação das hipóteses e
por exemplo, propõe uma negritude bem recriação dos bailes? O que escrever finalização.
diferente do Bixiga, bairro central vin- para Segall sobre um evento de 1934,
(10min)
culado a uma outra história negra agora em 2022, pode significar?

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Foto: Acervo Educativo MAB
41 | CONHECENDO O MUSEU AFRO BRASIL

PARA FECHAR A CONVERSA


O tipo de registro que sobrou pós notada pelo grupo entre os bailes,
realização da visita, não só nos privados e alocados em locais fecha-
possibilita retomar a discussão dos, e as festas, sempre públicas e a
amadurecida no encontro, como céu aberto.
também notar as características
das/os integrantes em relação à As cartas escritas pelo grupo no dia
temática proposta. Paulo de Castro, da visita podem ser acessadas aqui:
participante da visita, optou por Link
marcar a diferença entre a criação
e experiência, quando escreve que Há muitas maneiras de se pensar
“a diversidade cultural de um país uma visita educativa em um museu.
deve ser retratada a partir do olhar Ele próprio flexiona o discurso e o
dos sujeitos que criam e vivem debate apresentado nas exposições,
a diversidade”. Murilo, já citado, por exemplo, já que se organiza e
preferiu marcar seu espanto diante elege a partir de uma pesquisa, inte-
da proposta visual dos figurinos resses e objetivos. Para os núcleos
do baile. Segundo ele, as “obras são de educação, os educativos, essa
meio esquisitas e ao mesmo tempo multiplicidade influencia também a
imaginativas, tipo o soldado e a diversidade de hipóteses para seus
moeda spam” (valor monetário criado desdobramentos, ao mesmo tempo
pelo artista como moeda de troca nos que marca sua interdisciplinaridade e
bailes). Outra integrante sugere que o poder de escolha como metodolo-
Segall abra “as portas e as janelas” gia pedagógica para a democratização
para as respostas que “estão lá fora”. da observação e a reflexão crítica a
O que me faz lembrar da distinção partir da arte, imagem e cultura. �

#educamab dezembro 2022


SEÇÃO

MabINdICa

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Foto: Adenor Gondim
43 | MAB INDICA

Emanoel
Araujo,
curador
Por Gabriel Rocha e Guilherme Domingos

Emanoel Araujo (1940-2022) foi um da Bahia (UFBA). Naquela década já se salvaguardar o patrimônio cultural,
artista de múltiplas frentes: escultor, tornaria um artista reconhecido, sendo artístico e histórico de matriz africana
desenhista, ilustrador, figurinista, homenageado pelo escritor Jorge e afro-brasileira em suas variadas
gravurista, cenógrafo, pintor. Realizou Amado no romance “Tenda dos expressões. Um espaço de lazer, mas
diversas exposições individuais e Milagres” (1969). Em 1972, foi premiado também de formação e produção de
coletivas no Brasil e mundo afora. Foi com a medalha de ouro na 3ª Bienal c onhec i mento, um a fonte p a ra
também diretor de importantes Gráfica de Florença (IT). No ano de pesquisadores, educadores e demais
museus brasileiros como o Museu de 1973 ganhou o prêmio de melhor interessados no que acervo nos conta.
Arte da Bahia (1981-1983), a Pinacoteca gravador e, em 1983, o de melhor Um manancial de artes, histórias e
do Estado de São Paulo (1992-2002), escultor, da Associação Paulista de memórias. Um percurso cheio de
além de ter sido fundador, diretor e Críticos de Arte (APCA). encruzilhadas.
curador do Museu Afro Brasil (2004-
2022), instituição da qual esteve à Em 1988, lecionou Artes Gráficas e Emanoel Araújo entrou para a História
frente até os últimos dias de vida. Escultura no Arts College, na The City como figura de grande relevo por sua
University de Nova York (EUA). No produção artística e pela criação desse
Nasceu no dia 15 de novembro de mesmo ano realizou no Brasil a espaço de valor inestimável para a
1940, em Santo Amaro da Purificação curadoria da exposição que se tornou compreensão do Brasil a partir de suas
(BA). Foi o mais velho dos 11 filhos decisiva em sua carreira a partir de matrizes africanas. O Museu Afro
de um casal. O pai era ourives. Na então: A Mão Afro-Brasileira (1988). Brasil é a grande obra que Emanoel
j u ve nt u de, E m a no el a p r e nde u Na mostra encontravam-se elementos Araújo deixou para o mundo.
marcenaria com Eufrásio Vargas e fundamentais do trabalho curatorial
trabalhou com linotipia e composição de Araujo, presentes em trabalhos Ne st a e d iç ão, o M A B I nd ic a
gráfica na Impresa Oficial de sua posteriores, inclusive na própria homenageia esse artista polivalente,
cidade natal. concepção curatorial do Museu Afro Emanoel Araujo, a partir de sua
Brasil (MAB): seu maior legado. produção enquanto curador. Indicamos
Em 1959, fez sua primeira exposição três dentre as várias exposições de sua
individual. Em 1960, mudou-se para Situado no Parque Ibirapuera, na curadoria, com catálogos publicados,
Salvador (BA) e ingressou na Escola de cidade de São Paulo, o Museu Afro em um recorte temporal de 30 anos
Belas Artes da Universidade Federal Brasil é uma instituição dedicada a (1988-2018).

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Foto: Romulo Fialdini
44 | MAB INDICA

Veríssimo de Freitas. Teto da nave central da igreja do convento da Lapa.

“A Mão Afro-Brasileira: significado da


contribuição artística e histórica” (1988)
Nosso ponto de partida é “A Mão Afro- Destacou-se a importância que o curador
Brasileira” (1988), exposição crucial no histórico conferia ao barroco como elemento
de curadorias de Emanoel Araujo, ocorrida “definidor da nacionalidade”, produto
no contexto de efeméride dos 100 anos da do trabalho de artistas negros desde o
Abolição da Escravidão no Brasil, 10 anos de período colonial. A exposição enfatizou a
Movimento Negro Unificado (MNU), além centralidade negra na História das Artes
de ser o ano de promulgação da Constituição Brasileiras. Do Barroco Brasileiro, dos
Federal, após duas décadas de ditadura militar séculos XVIII e XIX, desdobrou-se para a
(1964-1985). Foi um ano movimentado para Escola Nacional de Belas Artes, do início
intelectuais, artistas, militantes e ativistas que do século XX, passando por artistas
lutavam pela democratização do Brasil, dentre modernos de meados daquele século,
os quais se situavam aqueles que orbitavam na chegando aos contemporâneos de então.
luta antirracismo e pelos direitos da população Não apenas a concepção da mostra, como
negra. também em grande medida os artistas
representados, posteriormente passaram
“A Mão Afro-Brasileira” consistiu em um a compor o acervo do Museu Afro
trabalho de maturidade de um artista já Brasil. Destacavam-se: Teófilo de Jesus,
experimentado, àquela altura com 48 anos Mestre Valentim, Emmanuel Zamor, João
de idade, três décadas de carreira e com Timótheo da Costa, Maria Lídia Magliani,
reconhecimento internacional. Como já Octávio Araújo, Rubem Valentim, Mestre
mencionamos, naquela mostra verificavam-se Didi, entre outros.
diretrizes conceituais e estéticas da curadoria
de Emanoel Araujo no Museu Afro Brasil, na “A Mão Afro-Brasileira” ocorreu no Museu
exposição de Longa Duração e em muitas das de Arte Moderna (MAM), São Paulo (SP),
mostras temporárias. entre os dias 25/08 e 25/09 de 1988.

#educamab dezembro 2022


45 | MAB INDICA

“A Nova Mão Afro-Brasileira”


(2013)
Como diretor do MAB, Emanoel Araujo Assim, mais do que uma segunda edição, “A
revisitou aquela exposição que marcou sua Nova Mão Afro-Brasileira” foi também filha
carreira como curador. “A Nova Mão Afro- de seu tempo histórico, e se inscreveu nas
Brasileira” ocorreu em comemoração dos 25 conquistas da luta antirracismo naquele
anos daquela mostra que, em grande medida, interlúdio de duas décadas e meia: Lei
inspirou a criação do MAB que àquela altura 10.639/03, políticas de ações afirmativas,
completaria nove anos de existência. Estatuto da Igualdade Racial (2010), SEPPIR
(2003-2015), PEC das Domésticas (2013) etc.
O ano da mostra foi turbulento, marcado
por convulsões sociais, sobretudo, nos “A Nova Mão Afro-Brasileira” fazia referência
grandes centros urbanos, e pela abertura à exposição de 1988, preservando em grande
de uma crise política que se estenderia nos medida sua concepção, ou mesmo, artistas
anos posteriores e, teria um desfecho talvez e obras da primeira mostra, no entanto,
inimaginável, naquele momento, para os incorporando a produção de novos/as
setores que lutavam pela ampliação ou artistas, dentre os quais: Anderson Santos,
efetivação de direitos sociais prescritos Claudinei Roberto, Pedro Marighella, Renato
na Constituição de 1988. Concomitante à Matos, Sidney Amaral, Rosana Paulino, Sônia
luta, encabeçada por setores progressistas Gomes etc.
(dentre os quais, antirracistas, feministas,
LGBTQIA+, trabalhadores sem-terra e sem- “A Nova Mão Afro-Brasileira” ocorreu no
teto etc.), emergia uma onda reacionária Museu Afro Brasil (MAB), São Paulo, SP, entre
que assolaria o país nos anos seguintes. os dias 20/11/2013 e 06/04/2014.
Sidney Amaral. Estudo para “incômodo“. Foto: João Liberato

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46 | MAB INDICA

“Isso é Coisa de Preto: 130 anos da abolição


da escravidão” (2018)
Isso é Coisa de Preto” foi inaugurada A mostra, como tantas outras curadorias
em ocasião dos 130 anos da Abolição da de Emanoel Araujo, trouxe produções
Escravidão no Brasil, portanto, assim como de artistas negros/as de diferentes
“A Mão Afro-Brasileira”, fazia referência à épocas, conferindo-lhes centralidade
efeméride da Abolição. no cenário nacional e internacional.
Manteve, portanto, uma relação com “A
O título carregou alguma ironia na medida Mão Afro-Brasileira”, e com o núcleo de
em que a frase “isso é coisa de preto” artes da exposição de Longa Duração
costumeiramente era utilizada em situações do MAB que, não por acaso, carregou
de racismo (geralmente associando negros o título da referida exposição de 1988.
a algo negativo). Meses antes da mostra Além disso, a mostra se vinculava ao
a frase foi proferida por um jornalista que, núcleo temático do MAB História e
até então, trabalhava em uma emissora Memória, no qual destacam-se fatos
famosa. O jornalista não imaginava que a históricos protagonizados por negras e
situação estaria sendo transmitida. O caso negros, além de personalidades negras,
repercutiu, gerando indignação, sobretudo, suas contribuições e legados na história,
entre a população negra. cultura, artes, ciências, esportes,
política, etc.
Se por um lado, a luta antirracismo obtivera
conquistas, já mencionadas aqui, ao Dentre as referências históricas
longo dos 30 anos da Constituição Cidadã representadas em “Isso é Coisa de Preto”
(1988), por outro, setores indiretamente estão a Conjuração Baiana (1798), A
“beneficiados” pelas desigualdades sociais Revolta da Chibata (1910), a Abolição
(marcadamente racistas) mostravam- na figura de abolicionistas negros como
se cada vez mais insatisfeitos com tais Luiz Gama (1830-1882), José do Patrocínio
conquistas e, àquela altura, reagiam (1853-1905), André Rebouças (1838-
expondo cada vez mais abertamente o 1898), o Teatro Experimental do Negro
racismo e outras opressões. O MAB é (1944-1968) etc. Além de uma produção
produto da luta contra o racismo e, a artística já consagrada em outras
resposta veio através dessa exposição. curadorias de Emanoel Araujo. �
Coisa de Preto. Foto: Jailton Leal

#educamab dezembro 2022


Arthur Timótheo da Costa, Retrato. Foto: Alfred Weidinger
47 | MAB INDICA

FONTES

ARAUJO, Emanoel (org.). A Mão Afro-Brasileira:


significado da contribuição artística e histórica.
São Paulo, SP: Tenenge, 1988.
ARAUJO, Emanoel (org.). A Mão Afro-Brasileira:
significado da contribuição artística e histórica. 2.
ed. rev. e ampliada. São Paulo: Imprensa Oficial,
2010.
ARAUJO, Emanoel (org.). A Nova Mão Afro-
Brasileira. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2014.
Exposição realizada de 20 nov. 2013 a 06 abr.
2014.
ARAUJO, Emanoel. Isso é Coisa de Preto: 130 anos
da abolição da escravidão. São Paulo: Museu Afro
Brasil, 2018.
Emanoel Araujo:
Wikipedia, disponível em https://pt.wikipedia.
org/wiki/Emanoel_Ara%C3%BAjo
Escritório de Arte, disponível em https://www.
escritoriodearte.com/artista/emanoel-araujo
Metrô, disponível em
https://www.metro.sp.gov.br/cultura-lazer/arte-
metro/livro-digital/arquivos/assets/basic-html/
page67.html
Galeria Livia Doblas, disponível em
https://www.galerialiviadoblas.com.br/blog/
alem-da-bahia-e-da-africa-as-esculturas-da-
emanuel-araujo/
Museu da Pessoa, disponível em
https://acervo.museudapessoa.org/pt/
conteudo/pessoa/emanoel-araujo-176664
Itaú Cultural, disponível em
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/
evento87591/a-mao-afro-brasileira

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49 | HOMENAGEM

Emanoel Araujo
Uma homenagem
Por Sidney Rodrigues Ferrer

A história brasileira foi composta por muitas vozes e feita a hegemonia eurocentrada manteve à margem: Mestre
por muitas mãos. Porém, durante séculos a fio, os ouvidos Valentim, José Teófilo de Jesus, Estevão Roberto da Silva,
e os olhos estiveram abertos apenas para destacar aqueles os irmãos Timótheo da Costa (Arthur e João), Yedamaria,
que se denominavam herdeiros de uma civilização euro- Wilson Tibério, Agnaldo Manoel dos Santos e Mestre Didi.
peia. Entretanto, os fazeres e os saberes de outras popu-
lações desse território, que hoje chamamos Brasil, não Sua pesquisa contempla não apenas os mais velhos, mas
estiveram apagados àqueles que sabiam lhe dar atenção. também as novas produções: Tiago Gualberto, Sidney
São muitos os que preservaram as memórias afro-brasi- Amaral e Rosana Paulino. Emanoel busca em seu processo
leiras, negras, por meio dos saberes tecnológicos e os do de investigação, de acordo com suas palavras, “mostrar
cotidiano, as relações religiosas e as humanas, a língua e quem negro foi e quem negro é”, ou seja, mostrar a pre-
a arte. São memórias preservadas por meio da oralidade sença negra na produção deste lugar chamado Brasil, não
e também da escrita, através de pessoas como Olga do como objeto, mas como sujeito, donos do gesto e do co-
Alaketu, Manuel Querino, Tia Ciata, Henrique Cunha Jr, nhecimento. Aquilo que ele define em sua obra investiga-
entre outras. Há também aqueles que se ocuparam da tiva maior: a mão afro-brasileira.
produção, da investigação e do cuidado com essa memória.
Dentre estes nomes, um merece destaque e nossa home- Entre a produção artística e a pesquisa, Emanoel publiciza
nagem: Emanoel Alves Araújo. o resultado de seus esforços por meio de suas exposições
e das instituições que geriu. Nestas últimas, há o gesto de
O gesto de Emanoel tem história, tem longa história. restaurar e revitalizar, no intuito que não fiquem abando-
Descendente de uma tradicional família de ourives de nadas, tal como ocorreu no Museu de Artes da Bahia e na
Santo Amaro da Purificação, quando jovem, ingressou na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Federal da Bahia, não para esquecer os caminhos do pai
e dos avós, mas para trilhar o seu próprio. É na gravura A curadoria de Emanoel Araújo não pode ser definida pela
que Emanoel alcançou destaque, explorando a sobreposi- objetividade e, qual a vida, tampouco é linear. Sua cura-
ção das geometrias e das cores. Nos anos 1960, foi reco- doria é uma sobreposição de tempos, gestos e de vozes,
nhecido em exposições coletivas e individuais, na produ- que ocupam o que o espaço possibilita, tal qual a geometria
ção de cartazes para artistas da Tropicália e dos Centros em suas gravuras e esculturas. Essa sobreposição é mol-
Populares de Cultura da UNE. As experiências que dada em muitas de suas exposições sobre a diáspora negra:
Emanoel teve na gravura estabeleceram diálogo com sua A Mão Afro-Brasileira (1987-1988), Herdeiros da Noite
obra escultórica, principalmente com a sobreposição de (1994), a seção afro-brasileira da Brasil +500 Mostra do
formas geométricas. Não sendo uma sobreposição ensi- Redescobrimento e, como uma síntese de anos de pesquisa
mesmada, mas que se amplia, ganha e abraça o espaço. e experiências, as exposições do Museu Afro Brasil, fun-
Tanto a gravura quanto a escultura de Emanoel Araújo dado por ele em 2004.
têm suas fases, resultados de suas experiências pessoais
e suas pesquisas estéticas. No decorrer de sua trajetória, Há muitas formas de salvaguardar e manter vivas as
o artista exibirá mais a reverência aos orixás, às religiões histórias negras deste território chamado Brasil. Emanoel
de afro-brasileiras, às máscaras e às esculturas, à história Araujo o fez por meio da mescla de memórias pessoais,
e aos mitos africanos. produção artística e investigação sobre quem negro foi e
quem negro é. Ao publicizar o resultado dessas ações,
À essa produção, o artista soma extensa pesquisa. O produziu conhecimento, abriu caminho para outros inte-
trabalho de investigação de Emanoel Araújo coloca no lectuais negros e possibilitou a crítica, sem a qual arte e
centro do debate artístico, político e acadêmico nomes que mundo não se formam. �

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50 | FICHA TÉCNICA

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO ASSOCIAÇÃO MUSEU AFRO BRASIL

Governador do Estado Conselho Administrativo Núcleo de Educação


Rodrigo Garcia Alessandra Sousa
Presidente Cinthia Marques
Vice-Governador do Estado Maria do Alívio Gondim e Fabio Eduardo Mathias de
Sérgio Sá Leitão Silva Rapoport Siqueira
Gabriel Rocha
Secretário Executivo Antonio Rudnei Denardi Gabrielle Nascimento Batista
Frederico Mascarenhas Estela Maria Olimpio Guilherme Renan Domingos
Eunice Prudente Juba Duarte (Juliane Duarte
Chefe de Gabinete Jack Luna Prado)
Maithê Rocha da Costa Monteiro Luis Carlos Gouveia Pereira Kevin Romani Santo Amaral
Luiz Carlos dos Santos Mariana Per
Coordenadora da Unidade de Preservação Maria Tereza M. Rodrigues May Agontinmé
de Patrimônio Museológico Oswaldo Faustino Raphaellie Lázaro
Paula Paiva Ferreira Ruy Souza e Silva Rosa Couto
Wellinton Francisco de Souza Sidney Ferrer
Pereira Siméia de Mello Araújo
Uila (Uilton Júnior)
Conselho Fiscal
Projeto Gráfico e
Adroaldo Moura da Silva Edição de Arte
Carlos Alberto do Amaral Alice Jardim

Revisão Técnica
Idealizador e Fundador Cláudio Roberto Nakai
Emanoel Araujo (in Makaya Mayuma Bedel
memoriam) Sandra Mara Salles
Siméia de Mello Araújo
Diretora Executiva
Sandra Mara Salles Agradecimentos
Jussara Nascimento dos
Diretor Administrativo e Santos
Financeiro Lidia Lisbôa
Justino Enedino dos Santos Luciara Ribeiro
Filho NEER-SME
Nelma Cristina Silva Barbosa
de Matos

MUSEU AFRO BRASIL


Parque Ibirapuera, Portão 10
São Paulo / SP - 04094-050
Tel.: 11 3320-8900

www.museuafrobrasil.com.br
www.cultura.sp.gov.br

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51 | FICHA TÉCNICA

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