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edição 3 - ano 3
dezembro 2022
imagem da capa:
Emanoel Araujo
Foto: Manuel Correia
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO,
POR MEIO DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA,
E MUSEU AFRO BRASIL
APRESENTAM
Sankofa. Além de suas trajetórias, elas seção “Conhecendo o MAB” por meio
gentilmente nos apresentam proje- de um roteiro de visita em uma das
tos de futuro, suas reflexões sobre o últimas exposições realizadas por
campo da arte e de como a presença Emanoel Araujo, A volta dos Bailes
de artistas e curadoras negras trans- da Spam.
forma. Transformação esta resultado Por fim, na seção MAB Indica, apre-
de pesquisa e trabalho intelectual por sentamos um pouco das curadorias
novas compreensões sobre o mundo, realizadas por Emanoel Araujo, tendo
estética e memória. como ponto de partida a exposição A
Na seção Nós de Sabedoria, o fazer Mão Afro-Brasileira (1988), exposição
do Núcleo de Educação entrelaça o crucial no histórico de curadorias de
trabalho de curadoria e formação Emanoel e também para a concepção
por meio de uma discussão sobre do Museu Afro Brasil. Em seguida,
as formações que constituem parte apresentamos a A Nova Mão Afro-
das nossas parcerias, em especial, a -Brasileira que amplia sua primeira
realizada com Núcleo de Educação versão de 1988, fechando nossa seção
Étnico-Racial da Secretaria de Edu- com Isso é Coisa de Preto, inaugurada
cação do Município de São Paulo em ocasião dos 130 anos da Abolição
(NEER-SME). Por meio dos cursos da Escravidão no Brasil, cujo título
organizados e realizados, discutimos carregado de ironia apresenta uma
a importância de uma educação situ- releitura da costumeira frase racista
ada, que não se busca universal, nem “isso é coisa de preto” (geralmente
pronta, mas sempre em processo e em associando negros a algo negativo).
diálogo com a vida. É sobre um outro Assim fechamos nossa terceira
processo de compreender o mundo. edição da #EducaMAB, com uma
É esse processo, imerso a um pro- singela homenagem a Emanoel, esta
jeto de educação antirracista, que pessoa que por meio de seu trabalho
abre nossa quarta seção. Trata-se árduo nos inspirou a construir pers-
de uma nova seção que busca dialo- pectivas de uma educação calcada em
gar com educadores, pesquisadores experiências humanas plurais, livres
no campo da educação e das artes. de concepções limitantes, hierarqui-
Nesta edição convidamos a professora zantes e desumanizadoras. Neste
doutora Nelma Cristina Silva Barbosa trabalho de curar e educar, segui-
de Mattos para uma conversa sobre mos construindo novas perspectivas
mediação de uma educação antirra- sobre o Museu Afro Brasil enquanto
cista. Embasadas(os) por essa noção nos transformamos e, sempre que
e em diálogo com as escolhas que se possível, transformando o mundo.
abrem a nós por meio da curadoria Obviamente, transbordando em liber-
de Emanoel Araújo, apresentamos a dades, preferencialmente, poéticas. �
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Mediação e Curadoria
na parceria com a Secretaria de Educação
do Município de São Paulo
28
SEÇÃO DIÁLOGOS
MAB Indica 42
#educamab dezembro 2022
8 | SUMÁRIO
SEÇÃO
A R T E : U M O L H A R PA R A O O R D I N Á R I O E C OT I D I A N O
Lidia
EN T RE VIS TA COM Para a seção “Encontro com Artista”, convidamos
Lidia Lisbôa, que esteve presente em uma das
últimas exposições do nosso curador Emanoel
Araujo, em parceria com a 37ª Mostra Panorama
da Arte Brasileira, organizada pelo Museu de Arte
Moderna de São Paulo em 2022.
Lisbôa
Natural de Guaíra, Paraná, Lidia atua e vive na
cidade de São Paulo (SP). Com formação em gra-
vura em metal, pelo Museu Lasar Segall, escultura
contemporânea e cerâmica, pelo Museu Brasileiro
de Escultura (MuBE) e Liceu de Artes e Ofícios,
a artista participa de exposições desde o final da
década de 1990, com obras em espaços como a
Pinacoteca do Estado de São Paulo, Bienal do
Mercosul, Instituto Goethe São Paulo, Baró Galeria
e Museu Afro Brasil.
Assim, a entrevista que constitui esse ser a mulher-maravilha! Fazia mi- na minha vida! Ouvia Billie Holiday,
“Encontro com Artista” é parte de uma nhas instalações, performances, vestia tinha a música, as revistas… Até que
reunião alegre, de conversas enrique- as roupas de meu pai, as roupas da um dia, uma cliente, disse pra mim:
cedoras, reencontros e descobertas, e minha mãe, fazia coroas de erva doce “Você é uma artista. Você precisa achar
também sobre a vivência com uma na cabeça, velório para os meus gatos o seu caminho e o seu caminho não
grande artista, uma encruzilhada que cheio de flores, com todo mundo re- é aqui”. Aquilo me deixou perturba-
possibilitou momentos de troca de zando junto. Ou melhor, orando, pois, díssima! Aquela frase! Mas, na mesma
saberes em um processo de tessitura na época, era oração. Fui crescendo semana, aconteceu outra coisa: a Lilian
que pode ser considerado como parte assim, com tudo isso sempre em mim. Kraus e, depois, a Alice Fisher queriam
fundamental do momento histórico analisar os meus desenhos. A partir
e urgente pelo qual vem passando o Aos 16 anos de idade, vim para São daí, meus desenhos foram parar nas
mundo das artes e da cultura no Brasil. Paulo, indo trabalhar como doméstica, mãos de um crítico de arte, que, ao
pois não havia outro trabalho para analisá-los, disse que meus desenhos
Com vocês, Lidia Lisbôa! mim. Foi então que comecei a fazer tinham traços de Matisse, traços de
teatro, mas ali também não tinha es- Picasso. Foi uma loucura! Pedi de-
#Educamab. Lidia, você poderia se paço para pessoas negras, nada tinha missão do ateliê e caí no mundo das
apresentar? espaço, nem no teatro, nem em lugar artes! Conheci vários artistas, comecei
nenhum. Só anos depois, consegui a fazer aquarela no CCSP, a fazer te-
Lidia Lisbôa. Eu me chamo Lidia fazer teatro. Mas a arte sempre es- atro com o Pascoal da Conceição! Fiz
Lisbôa, sou artista plástica, sou de teve comigo e, quando fui trabalhar muitos testes, pois precisava trabalhar,
Guaíra (PR). Eu tenho uma série de em um ateliê de alta costura, descobri mas nunca passava, justamente por ser
trabalhos! Comecei meus estudos no o mundo, porque, apesar de trabalhar negra. Daí que passava fome também!
#Educamab. Você define diretrizes Lidia Lisbôa. Sim, se você olhar os Lidia Lisbôa. Long Time... Por volta
em seu processo criativo? Quais são trabalhos em crochê, verá que eles têm dos 19 anos, morando em um pen-
os conceitos predominantes em suas a mesma trama do “Cupinzeiro”. É uma sionato, sem fazer nada, uma amiga
composições visuais? Suas obras obsessão de fazer, de repetir, de criar disse para mim: “Lidia, sabe tem meses
podem ser vistas como contação de padrões. Geralmente os materiais que que você não tá fazendo nada, o que tá
histórias? utilizo são os que tenho disponíveis, acontecendo com você? Sabe, você pre-
ou seja, se estivesse em uma floresta, cisa fazer alguma coisa, né?”. Foi então
Lidia Lisbôa. Sim, eu acho que minha usaria madeira, folhas, galhos... Aqui, que decidi fazer um curso de bijuteria
obra pode ser vista como uma con- nesse lugar onde estou, tenho tecido, e, a partir disso, comecei a fazer colares.
tação de história. Acredito que faça barro, meias, objetos. É o que tem pra No início, perdi todos, porque comprei
parte de uma cura, de um processo. hoje. É como fazer uma comida: o que tudo de plástico e descascou. Nossa, foi
E como se você estivesse tramando, tem hoje? um horror! Só que, a partir daí, fui me
escrevendo o seu destino de alguma especializando, se tornando algo fácil
maneira. Quanto à questão das dire- O meu trabalho é uma alquimia de de vender. Eu vendia mais rápido do
trizes, sou muito focada, porque todo fazeres, uma alquimia de elementos. que um trabalho, por exemplo, porque
o meu todo trabalho tem um começo, Um feitiço. Para fazer um feitiço, você não dava para vender o meu trabalho
um meio e um fim. precisa de flores, de uma água boa, uma cru do jeito que estava, uma pessoa que
roupa bonita, um incenso bom. O meu estava começando, né? Como vender
Normalmente eu não desenho, mas trabalho é isso, uma composição. um trabalho inicial? Então fiz colares
faço um trabalho e vou dando forma de maneira comercial, ou seja, para co-
a ele como se fosse uma extensão do #Educamab. Vir de uma família de mercializar rápido e ganhar dinheiro
meu corpo, de forma orgânica. É um predominância feminina influenciou, rápido. Vendia para as pessoas, para
processo que vou fazendo e apenas de alguma maneira, a escolha das suas as amigas, botava em lojas em consig-
quando termino dou um nome ao tra- técnicas artísticas, como o têxtil, por nação e, depois, passava para receber.
balho. Foi assim que surgiu o nome exemplo?
“Tetas de se dar de mamar ao mundo”; #Educamab. Como é, para você,
a série “Aborto”; a série “Casulo”; agora Lidia Lisbôa. Essa pergunta me lem- ser uma artista sulina, participar da
eu estou fazendo uma série que se brou a morte de uma menina de 15 anos, Bienal do Mercosul, em Porto Alegre?
chama “Úteros”, mas aí eu também que foi enterrada de vestido branco. Espaços historicamente ocupados por
tenho “Ovários”. Vou fazendo! Além Então ali já tinha um tecido, já tinha artistas brancos. Você percebe alguma
disso, tem a minha série “Cupinzeiros”, uma cor. Isso lembra muito a minha mudança a partir da edição de 2022?
que são falos, né? infância. Me lembro muito de chitinha,
de chitão, das pessoas fazendo aqueles Lidia Lisbôa. É a segunda vez que
Olha, outra coisa: fiquei sabendo há panos de prato, os biquinhos, as coisas estou participando da Bienal Mercosul.
pouco tempo que o meu trabalho de lã, porque eu tenho uma tia que fazia A primeira vez foi virtual e, desta vez,
também aguça o feminino dos ho- muito tricô, cachecol. fisicamente. Olha, eu penso que ter par-
mens. Eles se impressionam com o ticipado da Bienal Mercosul foi uma
meu trabalho. Eu nasci e tinha muita mulher na minha questão de que o meu trabalho é bom!
família, e também uns homens. Mas eu Sempre falo que agora as pessoas não
Enfim, durmo pensando arte, acordo costumo dizer que a minha família era têm como deixar o meu trabalho de fora,
pensando arte, vivo de arte, como e bebo muito cruel, por parte da minha mãe. Eu porque ele está muito forte. Ou seja, se
arte, a minha obra não está separada da nasci em uma família muito cruel e tive não participo da Bienal Mercosul, se
minha vida. No meu cotidiano, entre o de aprender a sobreviver muito rápido. não participo da Bienal de São Paulo,
meu fazer, o meu comer, o meu limpar Hoje, eu agradeço, porque, graças a se eu não participo da Bienal de Veneza,
a casa, o meu lavar roupa, eu não con- eles, me tornei essa pessoa teimosa essa vergonha não é minha, pois o meu
sigo me desligar da minha arte, do meu e inteligente, forte, de couro duro, trabalho está aí, o meu trabalho é forte,
trabalho, não dá pra saber onde começa pois se não fosse a crueldade deles, o meu trabalho tem fala e está aberto.
um e onde termina o outro. eu não estaria aqui tão presente, tão
potente e firme. Isso aqui foi minha Eu acho interessante, porque as pessoas
#Educamab. Para você, existe um diá- sobrevivência, eu me salvei. têm de reconhecer, agora não tem mais
logo entre suas produções têxteis e em o que fazer, não tem mais para onde
cerâmica? Quais foram os percursos #Educamab. Você também tem uma correr. É isso, meu trabalho é forte, eu
que te levaram a essa encruzilhada? relação com a arte de joalheria, como tenho nome forte, a pessoa que fala
isso começou? Lidia Lisbôa, jamais vai se esquecer.
Os artistas negros estão fortes, eles têm para ela: “Eu produzo até no banheiro.” eu. Somos as três rainhas e, depois, tem
trabalhos com potência! É vergonhoso as princesas.
não estarmos presentes. Ter uma galeria como a Millan me re-
presentando faz com que eu me sinta Quanto ao meu trabalho, tenho aspi-
#Educamab. Este ano, na Galeria valorizada, me sinto respeitada, sabe? É ração, muitas aspirações. Por exemplo,
Millan, você levou uma exposição in- para isso que eu trabalhei, entende? Me para o próximo ano, vou fazer uma
dividual, que trazia um recorte de todo sinto amparada por eles, É maravilhoso exposição no Sesc Pompeia. Também
seu processo de pesquisa e produção. e tudo isso depois dos 50 anos, pois dia quero participar de bienais, quero
Como você define este momento de 2 de dezembro, faço 52 anos. estar nos eventos de arte. Para poder
sua carreira? o trabalho ganhar a vida, para poder o
#Educamab. Lidia, a partir do resul- trabalho buscar os espaços, porque eu
Lidia Lisbôa. Eu defino esse momento tado de suas exposições recentes, você trabalho e o trabalho busca o espaço.
como maravilhoso! Amo muito esse provavelmente tem projetos futuros e
momento, porque, para mim, foi má- propostas em andamentos. Você sente No meu trabalho, eu vou te falar de ma-
gico ter entrado na Galeria Millan, foi que o mercado da arte tem valorizado nualidade. É um conceito. Eu trabalho
uma coisa espetacular, pois fui indicada sua produção artística? Gostaria de com uma manualidade, porque isso
pela Almeida & Dale. Foi Carlos Dale compartilhar conosco algumas de suas lembra as minhas mãos, pois quando
quem me indicou para André Millan aspirações sobre o circuito das artes? estou fazendo um trabalho, as minhas
que imediatamente foi saber de quem se mãos se mexem muito. Então, existe
tratava aquela artista. Ele veio até o meu Lidia Lisbôa. O meu sossego acabou. uma manualidade, existe um fazer
atelier, olhou. Depois, veio a diretora Tenho recebido muitos curadores. assim de organização no trabalho, e
Rena Lee e disse, para mim, algo que Tenho recebido curadores de Nova faz parte do trabalho, tem uma quali-
nunca vou me esquecer. Ela disse assim: York, de Washington; fui muito falada dade essa grafia.
“Lidia, você é você, é 100% artista. Você na Bienal de Veneza, eu sei que fui fa-
é uma artista de verdade. Você produz lada, eu senti daqui a vibração. Somos O meu trabalho é quente, ele vibra, ele
em cima de uma mesa”. E eu respondi três: Sônia Gomes, Rosana Paulino e aguça as sensações. �
SaNKOfa
R E L AT O S D E A N T I G O S E D U C A D O R E S
Nunca é tarde
para voltar e
apanhar o que
ficou atrás.
“Símbolo da sabedoria de
aprender com o passado para
construir o futuro”.
NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Luiz Carlos.
Adinkra: sabedoria em símbolos africanos. Rio
de Janeiro: Pallas, 2009.
Nesta edição, a revista #EducaMAB experiência como educadora no Museu espaço das instituições ainda é con-
entrevista a educadora, docente, pes- Afro Brasil, entre 2015 e 2017; e sobre flituoso, e talvez se mantenha assim
quisadora e curadora Luciara dos sua atuação como curadora engajada por um bom tempo.
Santos Ribeiro. Mestra em História com propostas contra-hegemônicas.
da Arte, pela Universidade de Sala- Ainda, reflete sobre as pesquisas que Venho de uma cidade localizada no
manca (USAL, Espanha, 2018) e pelo vêm executando sobre o cenário ar- interior da Bahia, na região de caatinga,
programa de Pós-Graduação em His- tístico brasileiro, e as relações entre Xique-Xique. Vivi por lá até os meus
tória da Arte da Universidade Federal curadoria, arte, educação e ativismo. 6 anos de idade, e foi nessa vida, entre
de São Paulo (UNIFESP, 2019), Luciara as margens do Rio São Francisco e os
possui graduação em História da Arte #Educamab. Bem-vinda à nossa saberes de minha avó, que me fiz gente.
também pela Universidade Federal de Revista EducaMAB, Luciara. Para Depois, mudei com a minha família
São Paulo (UNIFESP, 2014) com inter- começar nossa conversa, você poderia para a cidade de Mauá, região do ABC
câmbio na Universidade de Salamanca nos contar sobre a sua trajetória e Paulista, onde conheci os movimentos
(USAL, Espanha, 2012). Escreveu sobre formação acadêmica, relatando como de luta social e de emancipação pela
a Coleção Africana da Fundação Cul- se deu o seu interesse pelas Artes? educação. Foram esses dois territórios
tural Ema Gordon Klabin e sobre os e as relações que construí neles que
Modernismos Africanos nas Bienais Luciara Ribeiro. Costumo me apre- me formaram. Uma educação a partir
de Arte de São Paulo (1951-1961). Atu- sentar por um viés que antecedente às da oralidade do sertão, das lutas pe-
almente é professora no curso de Artes instituições artísticas e educacionais riféricas, dos movimentos negros, da
Visuais da Faculdade Santa Marcelina, pelas quais passei. Pra mim, as bases efervescência cultural das ditas mar-
em São Paulo. da minha trajetória, conhecimento gens. Fui estudante de escola pública,
e entendimento de mundo está na e lá tive duas professoras fundamen-
Na entrevista, Luciara reflete sobre sua vivência com espaços e pessoas. O tais, a professora Regina, que lecionava
Exposição Diálogos e
Transgressões,
curadoria de Luciara
Ribeiro, no Sesc
Santo Amaro. De 18 de
novembro de 2017 a 18
de fevereiro de 2018.
Crédito: Raquel
Santos [acervo
pessoal]
Foto:
Sergio Guerini
[Cortesia
Almeida & Dale
Galeria de
Arte]
Pesquisa realizada em
colaboração através das redes
sociais por Luciara Ribeiro.
Colaboração e designer:
Projeto Afro, Guillermina
Bustos, Jorge Sepúlveda T.,
Gabriela Diaz Velasco e equipe
de Trabalhadores de Arte
P R O J E T O S E P R O G R A M A S - R E L AT O S D E PA R C E I R O S
23 | NÓS DE SABEDORIA
N YA NS A P OW
Nó da
sabedoria.
“Símbolo da
sabedoria,
engenhosidade,
inteligência
e paciência”.
NASCIMENTO, Elisa Larkin;
GÁ, Luiz Carlos. Adinkra:
sabedoria em símbolos
africanos. Rio de Janeiro:
Pallas, 2009.
Mediação e curadoria
na parceria com a Secretaria de Educação
do Município de São Paulo
Por Mariana Per
ações produzidos por uma educação não este, como pode ser comprovado
“Se a educação sozinha não antirracista. As leis 10.639 e 11.645 pela visão marcada por ideias racistas
transforma a sociedade, sem ela são fundamentais na difusão desses que permeiam os retratos do artista
saberes. Pela existência dessas leis Benedito José Tobias.
tampouco a sociedade muda.” muitas pesquisas, projetos, publicações Nesse encontro entre acervo do
Paulo Freire foram viabilizadas e, dentre elas, o MAB, educação antirracista e as
próprio Museu Afro Brasil, inaugurado pesquisas dos educadores-curadores,
Transformar a sociedade! Que um ano após a sanção da lei, auxiliando algumas ações são realizadas: visitas
re s pons abi l id ade ! Por onde se o Brasil a olhar para si. Um acervo mediadas, oficinas, vivências, contação
começa? Como termina? Termina? A que nasce da pesquisa e empenho de histórias e as parcerias com
aparente utopia desta frase freiriana do artista e curador Emanoel Araujo coletivos e instituições ampliando
diz muito sobre os movimentos que (15/11/1940 - 07/09/2022), que seu campo de ação e possibilidades
o Museu Afro Brasil, sobretudo o apresenta múltiplas camadas de leitura de diálogo efetivo. Destacamos aqui o
Núcleo de Educação, tem construído e entendimento sobre o continente Núcleo de Educação Étnico-Racial da
com arte, falar de um Brasil que africano e a diáspora brasileira em Secretaria Municipal de Educação de
ainda sistematicamente tem apagado, obras de arte. Porém esses objetos São Paulo (NEER-SME). Esta parceria,
violentado e subjugado, sob as lentes sob olhares distorcidos pelo racismo firmada em 2020, oferece formação
da "história oficial”, todo um povo. podem gerar leituras equivocadas, para professores da rede municipal de
Pensar a educação dentro dos museus, como diariamente acontece – a São Paulo visando ao debate racial e à
em especial no Museu Afro Brasil, é exemplo, o público que associa efetivação da Lei 10.639/03.
criar possibilidades de leitura para as objetos de trabalho, provas concretas Os cursos foram pensados
obras expostas, caminhar com o olhar do conhecimento e da tecnologia inicialmente em três principais
de quem chega ao acervo. Cuidar desse desenvolvida por povos africanos, temas: Construindo contrapontos -
olhar. Curar esse olhar. a objetos de tortura. Ainda há um Museu Afro Brasil; Cultura e Artes; e
D e n t r o d i s s o, o N ú c l e o d e fetiche sobre o período da escravidão Educação Antirracista. Como os cursos
Educação tem cuidado e construído e uma dificuldade de associar as se iniciaram ainda em pandemia,
uma curadoria dos conteúdos e populações negras a outro tema se os encontros foram virtuais, dois
encontros abordando o tema mais uma museu e os educadores. Nessa relação, Per - cantora, contadora e pesquisadora
rica lista de materiais e referências. o núcleo reconhece alguns temas com o foco na literatura feminina - e
Considero importante destacar que as também importantes para dialogar Rosa Couto, historiadora, compositora
inscrições para os cursos esgotaram em com os professores, então surgem os e performer com uma pesquisa focada
poucas horas, explicitando o interesse cursos Religiosidades e Mulheres em na musicalidade. A outra dupla é
de professores nas temáticas. Mesmo Artes. composta por Uila (Uilton Júnior) -
com a lei vigente em todo o território Um acervo com mais de 3 mil obras e bixa, pesquisadora de história da arte
nacional, não há uma sistematização um Núcleo de Educação constituído por - e Raphaelie Laz - travesti, arquiteta,
da preparação de professores, desde pesquisadores, artistas e historiadores especialista da educação e performer.
as disciplinas ministradas ainda de diferentes abordagens de pesquisa As duas duplas ministraram o curso
nas universidades. Com isso o e didáticas vão construir com suas com o mesmo nome, mas a liberdade
Núcleo de Educação e o NEER vêm atividades uma co-curadoria do acervo de pesquisa construída entre núcleo
atuando conjuntamente enquanto MAB. Os educadores passam por uma e coordenação proporcionaram outras
multiplicadores das abordagens sobre o intensa formação quando ingressam possibilidades como partilham os(as)
acervo, permitindo um diálogo profícuo para a equipe, por meio de pesquisas, educadores(as).
sobre questões concernentes ao Museu leituras e discussão e diálogos sobre Eu e Uila partilhamos abaixo nossas
e à sociedade brasileira a partir de um mediação a partir das trajetórias de experiências na curadoria desses
letramento racial. vida e acadêmica de cada um. Cada temas, quais assuntos abordados
A parceria se estende por mais educador(a) com sua trajetória vai e quais caminhos escolhidos para
um ano e neste período entende-se regando as atividades com o que lhe debater Cultura e Arte partindo do
a necessidade de, não só apresentar é latente. acervo do Museu Afro Brasil e o que,
o assunto dos cursos, mas também “Assim c omo o curador cria a partir da nossa curadoria, é latente
o acervo do Museu Afro Brasil conexões do público com a obra, as e importante para professores da rede
desconhecido da maioria de professore, escolhas das mediações também criam municipal.
iniciando o curso com uma visita narrativa.” Observemos como as escolhas
presencial ao acervo, gerando assim Aqui trago o curso Cultura e Artes pessoais são fundamentais para
um vínculo de professores com o ministrado por duas duplas: Mariana construir essa curadoria.
MARIANA PER
“Nossa proposta com esse curso foi di-
Encerramos a aula apresentando apro-
ximações com Brasil na figura do Cazumbá
da festa de Bumba Meu Boi aproximando
o que maximiza quando as pensamos em
relação à população e estética africana e
afro-brasileira: O que define o que é arte?
mensionar introdutoriamente, junto a as duas festividades em elementos e es- Cultura se localiza apenas em museus e
professoras e professores, a diversidade trutura. Em ambas as festas não se conhe- centros culturais? Se não, quais outros
cultural do continente africano, apresen- ce o mascarado, toda a vestimenta é uma aspectos de nosso cotidiano evocam
tando mapas geográficos e culturais, máscara, em ambos existe uma reverência experiências estéticas? Há alguma
tentando desconstruir assim essa leitura religiosa. Essas parecenças são evidências especificidade numa arte e cultura africana
ainda difundida de África ser “uma coisa claras das permanências africanas aqui na e afro-brasileira? Estes nomes/conceitos
só”, os estereótipos como a imagem da diáspora e auxiliam os professores a criar f u n c i o n a m b e m p a ra e s t e d e b a t e ?
savana e ausência de desenvolvimento outros olhares e principalmente outras Questões como essas foram importantes
social, político e cultural. Para isso inicia- propostas para os alunos.” para o rumo que optamos. Percebemos que
mos a aula com a existência dos museus e nosso maior objetivo com a proposta seria
como as obras que estão dentro desses questionar e reavaliar nossas categorias de
espaços passam por escolhas de viajantes,
pesquisadores e principalmente nas mãos
de quem tem o poder para levá-las para
UILA
“Construí a proposta do curso
classificação artística e fomentar conversas
e observações de imagens que auxiliassem
o processo. Gostaríamos de reconhecer
dentro de um gabinete de curiosidades e/ ‘Introdução a arte e cultura africana e afro- coletivamente nosso modo eurocêntrico
ou espaço expositivo. Entendidas essas brasileira/’ com Raphaellie Lázaro, de ver, experimentar e criticar, para então,
camadas, apresentamos a professores um educadora do museu também. A princípio a partir das imagens não brancas direcionar
pouco da cosmovisão iorubá partindo das pensávamos em como se valer das bases nossa atenção para as categorias
máscaras Geledés, vestimenta que faz de pesquisa que a própria temática sugere movimentadas por elas próprias. Para tal,
parte de um rito em celebração à ances- e, a partir disso, identificar quais temáticas nos pareceu interessante percorrer por: 1)
tralidade feminina, e o conceito de másca- eram importantes serem destacadas por História dos museus, e pelo hábito
ra - mascarado que atravessa outros povos nós. Dá para iniciar e desenvolver muitas desenvolvido nele de acumular, colecionar,
do continente. coisas desde a discussão de arte e cultura, saquear e expor; 2) Movimento e
Foto: XXXXX
ASSIM...
Atravessadas por seus olhares,
com uma educação que se propõe
transformadora.
Isso nos mostra como o trabalho de
percepções e pesquisas, cada dupla fez educador(a)-curador(a) do Núcleo de Edu-
escolha distinta de como abordar o acervo cação do MAB vai além de uma mera esco-
do MAB, para o tema Cultura e Artes. lha de obras e objetos a serem discutidos
Mariana e Rosa escolheram as Geledés, em uma visita mediada, mas elas mostram
como objeto, em um diálogo direto com que esse trabalho é também uma proposta 1
Em outubro de 2022, o Núcleo
suas perspectivas, mergulhadas pela ideia transformadora e emancipadora para to- de Educação do Museu Afro
de femininos. Já Rapha e Uila apresentaram das as pessoas envolvidas, inclusive para Brasil foi contemplado com
artistas trans, num debate contemporâneo, nós, educadoras e educadores do Museu o Selo de Direitos Humanos
trazendo a produção artística Afro Brasil! É um processo vivo, conectado, e Diversidade (5ª Edição
contemporânea e travesti, marcado por plural e, portanto, inclusivo, também, an- 2022-2023) da Secretaria
seus lócus de enunciação. Isso nos mostra ticolonial, descolonizador do ser, do saber Municipal de Direitos
o quanto as propostas e escolhas dessa e do poder. Humanos e Cidadania,
curadoria da mediação acolhe as Esse feliz encontro é celebrado com o Selo com o "Projeto Formação
individualidades de cada pesquisador(a), de Direitos Humanos 5° edição 2022-2023.1 � de Educadores da SME".
SEÇÃO
DIaLOGOS
Museu
de toda natureza, o que inclui novos sujeitos e
novas abordagens interdisciplinares. Mas, com as
Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, recaiu sobre os
professores, especialmente os de Artes, Literatura
e História, a missão de protagonizar ações para
e Arte:
implementação da Educação das Relações Étnico-
-Raciais, sendo que esta é uma obrigação de edu-
cadores de todas as áreas, de todos os níveis e
modalidades. É um trabalho que aciona reconfi-
gurações estruturais do sistema oficial de Educação
subjetividades, estilos ou técnicas inicialmente essa forma de represen- arquiteturas, conformando o design
artísticas negras e ameríndias. Assim, tar o corpo e, no contexto de inter- de casas, embarcações, vilas, cidades,
ele poderá compor seu repertório a câmbios, disseminaram a técnica, que meios de transporte e territórios ne-
partir de investigações sobre: trajetó- caiu no gosto greco-romano. Então, gros como os quilombos e os terrei-
rias artísticas (formação profissional, seguindo suas próprias filosofias de ros desde a colonização. Foram so-
crítica...); rotas de sujeitos e coletivos vida, os africanos resolveram adotar ciedades negras que trouxeram sabe-
(sociabilidades, expressões artísticas outros cânones, abandonando com- res em metalurgia, tecelagem,
locais...); de cosmovisões e de seus pletamente as normas anteriores. Os agricultura, transportes, arquitetura
reflexos nos territórios (monumentos, greco-romanos seguiram desenvol- etc. Esses saberes foram a base da
modos de habitar...); de tecnologias vendo a técnica, que chegou até nós economia do Brasil, pois tornaram
(objetos, técnicas, ciclos e arranjos como uma invenção “exclusiva” do possíveis os ciclos do couro, da cana-
econômicos, artefatos...). Amalgama- europeu. Abordar protagonismos e -de-açúcar, do ouro e do café, junto
dos na cultura afro-brasileira, esses autonomia de povos antigos para a com a produção de utensílios de toda
eixos nos ajudam a situar histórica, criação artística justifica, por exemplo, natureza, ferramentas de trabalho,
filosófica e socialmente a arte e os a diversidade em África e na sua di- moradias, adereços, vestimentas, cal-
artistas de origem negra no Brasil. áspora. No contexto colonial, o dife- çados etc., que podem ser vistos até
rente do europeu era retratado como os dias de hoje nos rincões do Brasil.
Pelas conexões com a vivência do monstruoso, assustador, visando criar
negro no Brasil e na África, podemos uma única narrativa civilizatória. A experimentação artística coletiva
perceber continuidades e reelabora- Apesar da imposição colonial dos pode nos explicar formas culturais do
ções na vida comunitária e individu- métodos e critérios para a arte oficial, território englobado por nossas es-
al. Os princípios culturais afro-bra- cada povo afro-diaspórico encontrou colas e museus. Entre elas, a sociali-
sileiros estão materializados em um jeito de expressar seu sensível e zação negra das famílias de santo ou
objetos, jogos, brincadeiras, corporei- sua beleza. Portanto, não é porque os famílias de consideração, sem laços
dades, danças, manifestações cênicas, negros brasileiros eram proibidos de consanguíneos; formas de cuidado e
arquiteturas, músicas etc. Tudo isso frequentar escolas que eles deixaram educação das crianças (incluindo cui-
pode ser entendido como traduções de criar artisticamente. Ao contrário, dados com bebês e gestantes); edifi-
da forma de se perceber enquanto o domínio de técnicas e tecnologias cação e uso de espaços arquitetônicos
sujeito, natureza e coletividade. aplicadas ao trabalho e à religião pos- compartilhados (associações de bair-
sibilitaram uma produção plástica ro, terreiros, clubes sociais, galpões
Ao compreender essa cosmovisão, significativa no Brasil. de escolas de samba, grupos de capo-
entendemos a relevância das religiões eira etc.); cultivos e usos de plantas;
de matriz africana nos processos de Através do trabalho pedagógico (tan- musicalidades, danças, visualidades...
ressocialização negra, de Educação, de to na escola, quanto no museu), é Há inúmeras referências artísticas
criação artística, de sustentabilidade possível problematizar as represen- desses temas, que o arte-educador
ambiental, entre outros. Nota-se que tações racializadas feitas naqueles pode se basear para propor processos
há outros parâmetros de pensamento, períodos, compreendendo a impor- educativos a partir de instalações,
e que é possível estabelecer paralelos tância do conceito de raça para os happenings, pinturas, esculturas, gra-
com outras mentalidades, reforçando empreendimentos coloniais em todo vuras..., bem como pelo contato com
a noção de diversidade epistêmica. o mundo. Biografias e obras de artí- lideranças vivenciais, mestres de sa-
fices e artistas negro-mestiços dessas beres. Essa relação horizontal pode
A diversidade e as trocas eram fenô- épocas também podem favorecer es- trazer à luz contribuições negras lo-
menos comuns entre os povos, mes- sas reflexões. cais para o país.
mo antes dos processos coloniais. A
representação do corpo humano em Por outro lado, é necessário tomar A história brasileira está repleta de
suas medidas próximas às da nature- partido de conhecimentos científicos, experiências negras voltadas para a
za real é um bom emblema daquele técnicos e tecnológicos que foram emancipação, antes e depois da Abo-
contexto. Os egípcios desenvolveram a pl i c a d o s à s a r t e s v i s u a i s e lição da Escravatura. Além das lutas
Quem vive
de passado
é museu?
“Segue o baile”: visitas
educativas em museus
e sua polifonia
Por Uila
Dito isto, repito: há muitas maneiras (1893-1945) e seu envolvimento com PARA ESTA
de se pensar uma visita educativa em debates relacionados ao moderno e VISITA,
PROPOMOS:
um museu e por isso a seção Conhe- à identidade nacional. Esta informa-
cendo o MAB desta edição é dedica- ção já é um dado.
da a pensar nos percursos de pesqui- 1
sa e visitação neste espaço. A curadoria é proposta a partir de Entender o espaço
uma pesquisa e construída, do museu como
No exemplo eleito, a Visita Temática literalmente, por muitas pessoas e também influente
na percepção e no
“Segue o Baile: o uso do carnaval nos essa é a fonte primária de uma visita,
debate crítico;
bailes da Sociedade Pró-Arte Moder- entendo. O fato histórico, lado a lado
na”, ocorrida em junho de 2022 no a nossa compreensão sobre ele, 2
Museu Afro Brasil, este processo apresentado numa mostra. Muito Observar a visita
esteve associado a uma exposição vinculado à legitimação de que a educativa em
temporária: “A Volta dos Bailes da história dos museus consolidou, museus como
linguagem de
SPAM de Lasar Segall”, que compu- ocasionalmente ele pode significar elaboração de
nha, por sua vez, uma série de mos- verdade absoluta e irrevogável. leitura da história,
tras dedicadas à reflexão da Arte Questões como estas podem também objetos e espaço;
Moderna e Modernidade, com foco ser importantes para uma visita
em São Paulo dado o fato da realiza- educativa e têm estado cada vez mais 3
ção da Semana de Arte Moderna no presentes em conversas com outras Refletir sobre a
potencialidade de
Theatro Municipal, em 1922. Todo o educadoras e educadores. Porque pesquisa e
diálogo com outras exposições tem- também, por exemplo, muito se metodologia
porárias paralelas foi feito por meio elabora enquanto se compartilha pedagógica na
da figura de Mário de Andrade com os pares. leitura de imagens.
SEGUE O BAILE:
O USO DO CARNAVAL NOS BAILES DA
SOCIEDADE PRÓ-ARTE MODERNA
Guilherme de
Almeida. Sem
título. Receptor:
Lasar Segall. São
Paulo, 9 fev.
1931. Carta
datiloscrita em
tinta preta.
com algumas outras senhoras da nos- de festejo público já existisse. Ela sur-
sa melhor sociedade”. Este argumento giu numa das conversas de planeja-
do escritor foi usado como elemento mento com o Núcleo de Educação,
central para identificarmos a intenção sobretudo a partir de colocações da
de distinção que também orientava o educadora Rosa Couto, que sugeriu ser
desejo moderno do grupo. Me recordo interessante confrontar as imagens
de Murilo, participante de aproxima- festivas de Segall com as do Bumba
damente 12 anos de idade, perceber Meu Boi, Folia de Reis e Maracatu.
esse tônus na estilização dos figurinos,
que muda bastante do primeiro baile, Percebemos que, além de considerar
com uniformes e conjuntos típicos, outra iconografia para o debate, a
para o segundo, com simulacros de inclusão das festas também apresentou
animais, indígenas e africanos. ao grupo, e à proposta, o dado da
elaboração de imagens não brancas sob
A observação da carta e de outras fon- outra perspectiva. Não a da citação,
tes, como pinturas, poemas e os con- representação, mas a do protagonismo
vites para os bailes, compuseram o e experimentação. Quatro anos após
primeiro momento da visita, que ter- o último baile da SPAM, em 1938,
minou com a função de contextualizar Mário de Andrade, pelo Departamento
sobre o que iríamos conversar. Este de Cultura, liderou o projeto conhecido
momento também foi responsável por como “Missão de Pesquisa Folclórica”
criar um contraponto ao que faríamos que teve o intuito de mapear, coletar
em seguida, ir ao Núcleo “Festas: o e catalogar produções e manifestações
Sagrado e Profano” da Exposição de artístico-culturais que dessem um
Longa Duração do Museu Afro Brasil. contorno à cultura nacional. Todas as
Essa conexão não fazia parte da pro- festas presentes no Núcleo de Festas
posta inicial, embora o interesse em foram também incluídas nesta
pensar o carnavalesco como expressão investida.
Este é um bom momento para falar de paulistana. Ocorre que, ocasionalmente, ROTEIRO DA VISITA
recorte. Em algum momento um de- responder às demandas suscitadas pelas
bate mais específico sobre a eleição da leituras e perguntas, enquanto elabora 1
chamada Cultura Popular como sím- uma tradução coletiva na visita educa- Acolhimento e apresentação
bolo autêntico do nacional pareceu ser tiva, significa também entendê-la como da exposição: Por que esta
interessante. Se tratava da legitimação uma linguagem. Mostra se apresenta no
Museu Afro?
de determinadas estéticas e sociabili-
(10min)
zações a partir de um olhar em deslo- A visita educativa em museus é uma
camento de São Paulo para Pernam- linguagem de investigação e tradução
buco, Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão com possibilidade de reação e propo- 2
e Pará, inaugurando uma série de sição diante do que se investiga, mar- Contextualizando SPAM e
seus bailes - Fontes a serem
estereótipos que insistem em sobre- cando várias alternativas de desdobra- trabalhadas neste momento:
viver na percepção brasileira acerca mentos, mas também direcionando Carta de Guilherme de
delas. Infelizmente, ou felizmente, uma intenção. Por fim, não optamos Almeida a Segall, Poema de
este foi um tópico que ficou fora do por propor uma reformulação dos bai- Mário presente no convite de
roteiro final porque embora pudesse les, mas um relato sobre como enten- 1934, “Moeda Paulista” de
Guilherme de Almeida.
auxiliar na resposta ou na formulação demos ele hoje, daqui. (20min)
de outras perguntas, a visita continu-
aria tendo cerca de 1h30. Saltar dos A última etapa da visita foi destinada,
bailes da SPAM para uma Congada já então, a provocar as/os participantes a
3
Passeio pela exposição e
colaborava com uma percepção cole- traduzir suas compreensões, dúvidas leitura das imagens expostas.
tiva de que estávamos falando de uma e discordâncias sobre tudo que vimos (15min)
disputa pela representação. e discutimos. A princípio pensávamos
em uma roda de conversa em que fos- 4
A esta altura estávamos diante de um se possível expor e dialogar com as Desenvolvimento: Visitação
dilema bastante central da proposta: falas, mas por fim optamos pela carta, às exposições “Artistas
Seria proveitoso direcionar o encontro também como modo de dinamizar o Modernistas”, “Alegoria
para uma eleição contemporânea, ali uso da fonte na primeira parte do en- afetiva de São Paulo” e
“Núcleo de Festividades da
em abril de 2022? Se a eleição do Na- contro. Escreveríamos para Segall co- Exposição de Longa Duração”
tivo e de uma África, presentes na mo modo de traduzir nossas compre- a fim de relacionar estética
cenografia de Segall, evidenciada na ensões e de transcrever nossas dúvidas. modernista, ocupação
observação das escolhas feitas pelos Deste modo exercitaríamos também a carnavalesca das ruas e
grupos e manifestações populares, argumentação desenvolvida durante a festas populares.
discutir o Brasil é sempre notar que visita, valorizando tanto as reflexões (15min)
ele ainda está em curso, e por isto ain- individuais como coletivas, com foco
da em elaboração. Isto constantemen- em discorrer sobre as escolhas feitas 5
te posiciona as pessoas e grupos em nos bailes ao invés de assumirmos o Atividade: Produção de
lugares distintos. O que não é neces- lugar de Segall. Esta ainda continua hipóteses que se relacionem
à existência dos bailes e de
sariamente ruim. sendo uma opção e ter consciência dis- suas estéticas.
so enquanto uma decisão nos relembra
(20min)
A percepção estética e cultural da Ci- o lugar polifônico no qual alocamos a
dade Tiradentes, bairro localizado no prática educativa museal no início des-
extremo Leste da cidade de São Paulo, te texto. Faz sentido uma proposta de 6
Apresentação das hipóteses e
por exemplo, propõe uma negritude bem recriação dos bailes? O que escrever finalização.
diferente do Bixiga, bairro central vin- para Segall sobre um evento de 1934,
(10min)
culado a uma outra história negra agora em 2022, pode significar?
MabINdICa
Emanoel
Araujo,
curador
Por Gabriel Rocha e Guilherme Domingos
Emanoel Araujo (1940-2022) foi um da Bahia (UFBA). Naquela década já se salvaguardar o patrimônio cultural,
artista de múltiplas frentes: escultor, tornaria um artista reconhecido, sendo artístico e histórico de matriz africana
desenhista, ilustrador, figurinista, homenageado pelo escritor Jorge e afro-brasileira em suas variadas
gravurista, cenógrafo, pintor. Realizou Amado no romance “Tenda dos expressões. Um espaço de lazer, mas
diversas exposições individuais e Milagres” (1969). Em 1972, foi premiado também de formação e produção de
coletivas no Brasil e mundo afora. Foi com a medalha de ouro na 3ª Bienal c onhec i mento, um a fonte p a ra
também diretor de importantes Gráfica de Florença (IT). No ano de pesquisadores, educadores e demais
museus brasileiros como o Museu de 1973 ganhou o prêmio de melhor interessados no que acervo nos conta.
Arte da Bahia (1981-1983), a Pinacoteca gravador e, em 1983, o de melhor Um manancial de artes, histórias e
do Estado de São Paulo (1992-2002), escultor, da Associação Paulista de memórias. Um percurso cheio de
além de ter sido fundador, diretor e Críticos de Arte (APCA). encruzilhadas.
curador do Museu Afro Brasil (2004-
2022), instituição da qual esteve à Em 1988, lecionou Artes Gráficas e Emanoel Araújo entrou para a História
frente até os últimos dias de vida. Escultura no Arts College, na The City como figura de grande relevo por sua
University de Nova York (EUA). No produção artística e pela criação desse
Nasceu no dia 15 de novembro de mesmo ano realizou no Brasil a espaço de valor inestimável para a
1940, em Santo Amaro da Purificação curadoria da exposição que se tornou compreensão do Brasil a partir de suas
(BA). Foi o mais velho dos 11 filhos decisiva em sua carreira a partir de matrizes africanas. O Museu Afro
de um casal. O pai era ourives. Na então: A Mão Afro-Brasileira (1988). Brasil é a grande obra que Emanoel
j u ve nt u de, E m a no el a p r e nde u Na mostra encontravam-se elementos Araújo deixou para o mundo.
marcenaria com Eufrásio Vargas e fundamentais do trabalho curatorial
trabalhou com linotipia e composição de Araujo, presentes em trabalhos Ne st a e d iç ão, o M A B I nd ic a
gráfica na Impresa Oficial de sua posteriores, inclusive na própria homenageia esse artista polivalente,
cidade natal. concepção curatorial do Museu Afro Emanoel Araujo, a partir de sua
Brasil (MAB): seu maior legado. produção enquanto curador. Indicamos
Em 1959, fez sua primeira exposição três dentre as várias exposições de sua
individual. Em 1960, mudou-se para Situado no Parque Ibirapuera, na curadoria, com catálogos publicados,
Salvador (BA) e ingressou na Escola de cidade de São Paulo, o Museu Afro em um recorte temporal de 30 anos
Belas Artes da Universidade Federal Brasil é uma instituição dedicada a (1988-2018).
FONTES
Emanoel Araujo
Uma homenagem
Por Sidney Rodrigues Ferrer
A história brasileira foi composta por muitas vozes e feita a hegemonia eurocentrada manteve à margem: Mestre
por muitas mãos. Porém, durante séculos a fio, os ouvidos Valentim, José Teófilo de Jesus, Estevão Roberto da Silva,
e os olhos estiveram abertos apenas para destacar aqueles os irmãos Timótheo da Costa (Arthur e João), Yedamaria,
que se denominavam herdeiros de uma civilização euro- Wilson Tibério, Agnaldo Manoel dos Santos e Mestre Didi.
peia. Entretanto, os fazeres e os saberes de outras popu-
lações desse território, que hoje chamamos Brasil, não Sua pesquisa contempla não apenas os mais velhos, mas
estiveram apagados àqueles que sabiam lhe dar atenção. também as novas produções: Tiago Gualberto, Sidney
São muitos os que preservaram as memórias afro-brasi- Amaral e Rosana Paulino. Emanoel busca em seu processo
leiras, negras, por meio dos saberes tecnológicos e os do de investigação, de acordo com suas palavras, “mostrar
cotidiano, as relações religiosas e as humanas, a língua e quem negro foi e quem negro é”, ou seja, mostrar a pre-
a arte. São memórias preservadas por meio da oralidade sença negra na produção deste lugar chamado Brasil, não
e também da escrita, através de pessoas como Olga do como objeto, mas como sujeito, donos do gesto e do co-
Alaketu, Manuel Querino, Tia Ciata, Henrique Cunha Jr, nhecimento. Aquilo que ele define em sua obra investiga-
entre outras. Há também aqueles que se ocuparam da tiva maior: a mão afro-brasileira.
produção, da investigação e do cuidado com essa memória.
Dentre estes nomes, um merece destaque e nossa home- Entre a produção artística e a pesquisa, Emanoel publiciza
nagem: Emanoel Alves Araújo. o resultado de seus esforços por meio de suas exposições
e das instituições que geriu. Nestas últimas, há o gesto de
O gesto de Emanoel tem história, tem longa história. restaurar e revitalizar, no intuito que não fiquem abando-
Descendente de uma tradicional família de ourives de nadas, tal como ocorreu no Museu de Artes da Bahia e na
Santo Amaro da Purificação, quando jovem, ingressou na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Federal da Bahia, não para esquecer os caminhos do pai
e dos avós, mas para trilhar o seu próprio. É na gravura A curadoria de Emanoel Araújo não pode ser definida pela
que Emanoel alcançou destaque, explorando a sobreposi- objetividade e, qual a vida, tampouco é linear. Sua cura-
ção das geometrias e das cores. Nos anos 1960, foi reco- doria é uma sobreposição de tempos, gestos e de vozes,
nhecido em exposições coletivas e individuais, na produ- que ocupam o que o espaço possibilita, tal qual a geometria
ção de cartazes para artistas da Tropicália e dos Centros em suas gravuras e esculturas. Essa sobreposição é mol-
Populares de Cultura da UNE. As experiências que dada em muitas de suas exposições sobre a diáspora negra:
Emanoel teve na gravura estabeleceram diálogo com sua A Mão Afro-Brasileira (1987-1988), Herdeiros da Noite
obra escultórica, principalmente com a sobreposição de (1994), a seção afro-brasileira da Brasil +500 Mostra do
formas geométricas. Não sendo uma sobreposição ensi- Redescobrimento e, como uma síntese de anos de pesquisa
mesmada, mas que se amplia, ganha e abraça o espaço. e experiências, as exposições do Museu Afro Brasil, fun-
Tanto a gravura quanto a escultura de Emanoel Araújo dado por ele em 2004.
têm suas fases, resultados de suas experiências pessoais
e suas pesquisas estéticas. No decorrer de sua trajetória, Há muitas formas de salvaguardar e manter vivas as
o artista exibirá mais a reverência aos orixás, às religiões histórias negras deste território chamado Brasil. Emanoel
de afro-brasileiras, às máscaras e às esculturas, à história Araujo o fez por meio da mescla de memórias pessoais,
e aos mitos africanos. produção artística e investigação sobre quem negro foi e
quem negro é. Ao publicizar o resultado dessas ações,
À essa produção, o artista soma extensa pesquisa. O produziu conhecimento, abriu caminho para outros inte-
trabalho de investigação de Emanoel Araújo coloca no lectuais negros e possibilitou a crítica, sem a qual arte e
centro do debate artístico, político e acadêmico nomes que mundo não se formam. �
Revisão Técnica
Idealizador e Fundador Cláudio Roberto Nakai
Emanoel Araujo (in Makaya Mayuma Bedel
memoriam) Sandra Mara Salles
Siméia de Mello Araújo
Diretora Executiva
Sandra Mara Salles Agradecimentos
Jussara Nascimento dos
Diretor Administrativo e Santos
Financeiro Lidia Lisbôa
Justino Enedino dos Santos Luciara Ribeiro
Filho NEER-SME
Nelma Cristina Silva Barbosa
de Matos
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