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Eu realmente não sei por onde começar isso.

Tudo o que sei é que o pessoal da TS me pediu pra escrever uma carta de apresentação,
mesmo eu nunca tendo escrito algo desse tipo na vida.
Resolvi, então, fazer duas cartas, só pra poder treinar um pouco a minha escrita (admito
que não é lá das melhores, nem sei como entrei na Universidade e me formei). Essa
primeira carta vai servir como um lembrete pessoal, um breve diário, acho que até posso
chamar de “Belas Lembranças de Gian Galeazzo”, ou “Meditações Aleatórias; Por Gian
Galeazzo”, algo assim. Talvez ainda mude.
O ponto é que: Eu me chamo Gian Galeazzo, muito prazer, Gian Galeazzo do futuro!
Como você deve saber muito bem, eu vim da Itália com o Papa quando tinha 6 anos, logo
depois que toda aquela merda aconteceu. Aquilo foi pesado, hein, dava pra sentir o calor, o
medo e todos aqueles sentimentos malucos quando o papa e eu estávamos fugindo.
Meu Papa me criou bem, por mais que não tenhamos levado uma vida muito normal
quando chegamos aqui na Espanha, uns “tios e tias” que moravam aqui, ajudaram a gente
e, principalmente, nunca me deixaram faltar nada, mas, mesmo assim, a vida era difícil.
Meu velho Papa não queria que eu seguisse o mesmo caminho que ele, nem destruísse
minha vida igual, então sempre me ensinou a ser fiel e leal, e eu prezo por isso até hoje.
Também me mostrou como me defender em uma briga e como se atira, ele dizia que um
homem siciliano deveria saber isso desde o berço, eu até gostava e aprendi bem, mas
gostava mesmo era do tempo que passava com o meu velho.
Minha adolescência foi dividida entre os treinos com o Papa, a escola e alguns trabalhos
que eu conseguia na vizinhança. Eu tive uma adolescência feliz, nunca fui rico e nem tive
muitos amigos, mas fui feliz. Os garotos diziam que meu jeito era fechado demais e eu
parecia um mafioso quando ficava bravo, já as meninas me achavam meio assustador, algo
sobre minha expressão ser séria demais ou fria demais, mesmo eu sempre me
considerando um cara divertido, e minha “família” também me considerava assim: “vamos,
vamos, crianças! O Gian trouxe algumas coisas pra animar vocês! O Gian vai brincar de
cavalinho com os mais novinhos até a hora do almoço, aproveitem bem!”
Poxa vida, como eu sinto saudades disso.
Aí veio a idade adulta, ali pelos 18 e 19, quando eu já tinha terminado meus estudos e
estava tentando engrenar numa faculdade pública. Cara, isso foi difícil. Na fase adulta me
perguntavam os motivos de meu Papa ser tão estranho e sempre trabalhar até tão tarde, eu
tentava responder, mas sempre terminava levando aqueles olhares tortos.
Papa não era um criminoso, nunca foi, cometeu seus erros, mas nunca foi um criminoso!
Ele deu o seu melhor para cuidar de mim, recebeu ajuda, é verdade, mas nunca parou de
tentar.
Ele me ensinou que por mais que a vida te bata, te descarne e tire tudo o que você tem,
você precisa continuar lutando, de cabeça erguida, como um herói! “Nada pode bater mais
forte do que você, figlio, e nada resiste a mais pancada do que um Visconti!”. Ainda ouço
ele terminando essas palavras com aquela gargalhada estrondosa, marcada, ele é um
homem que causou sofrimento e sofreu, talvez precise pagar suas dívidas com Deus, nosso
Senhor.
Eu não sei se essa carta me apresenta direito, mas fala muito de quem eu sou. Talvez
devesse falar sobre o meu cabelo, ou sobre meus 1,90 de altura, ou sobre como sou bom
em identificar coisas. Devo dizer que sou canhoto? Que tenho uma tatuagem com as iniciais
de meu Papa na mão esquerda?
Devo dizer que carrego uma arma sempre comigo? Que é como um amuleto de sorte? Ou
talvez sobre a minha mania de enrolar o cabelo nos dedos quando estou pensando? Eu,
sinceramente, não sei.
Mas o que quero falar, agora que termino essa carta e logo antes de escrever a outra, é que
eu já não sei se posso ter a vida calma e feliz que a meu pai queria, nem sei se um dia
passarei o meu nome para frente, com uma esposa e filhos, mas, eu não me arrependo de
nada, de nenhuma decisão que tomei até agora pela TS.
Sou apenas um homem que vê constantemente possíveis lugares e situações em que pode
morrer, sou só um homem que desafia a morte em prol dos outros, mas que não sabe
quando a sorte vai acabar. Sou só um viajante no meio de outros viajantes, andando contra
um vento frio, fingindo que existe um lugar ensolarado. Acho que assim está bom, o nome
dessa carta de apresentação é “Viajante”. Vou guardá-la com cuidado e carinho, talvez
reescreva ou mude, mas gostaria que algum amigo pudesse ler no meu funeral, um dia.

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