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NORMAS DE COMPETÊNCIA E O

REGRAMENTO BRASILEIRO APLICÁVEL AOS


PLANEJAMENTOS TRIBUTÁRIOS.
Luís Flávio Neto1

Introdução

Este breve estudo, elaborado para a celebração dos 50


anos do Código Tributário Nacional (“CTN”) e da 13a edição
do Congresso do IBET, se dedica às normas de competência
que regem, no Brasil, a matéria do planejamento tributário,
com o propósito de contribuir para o profícuo debate sobre o
tema.
Propõe-se, como hipótese para investigação, a existên-
cia de uma ordenação de “competências” cujo encadeamento
seja pertinente ao tema do “planejamento tributário”. A par-
tir daí, será analisada a cadeia de competências que se encon-
tra prescrita no sistema jurídico brasileiro há décadas, a qual
atribui validade jurídica aos atos praticados pelos variados
atores do processo de concretização do Direito Tributário.

1. Professor de Direito Tributário e Financeiro da USJT. Doutor e Mestre em Direi-


to Tributário pela USP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET
professorluisflavioneto@gmail.com

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No tópico “1”, o artigo apresenta a delimitação conceitual


adotada dos signos “planejamento tributário” e “normas de
competência”. Será possível identificar os pontos de intersec-
ção entre esses temas, a “todos” mandatórios. Os tópicos “2”,
“3”, “4” e “5” se dedicam à análise de cada um dos estágios
dessa cadeia de competências, conferidas respectivamente ao
Legislador Complementar, Legislador Ordinário, Administra-
ção Fiscal e Poder Judiciário.
Nesse seguir, o tópico “2” analisa a competência do le-
gislador complementar para enunciar norma geral de reação
ao planejamento tributário (General Anti Avoindance Rule –
GAAR), bem como realiza aferição do seu efetivo exercício no
âmbito do CTN. Por sua vez, o tópico “3” aborda três funções
pertinentes ao planejamento tributário, abstraídas da compe-
tência do legislador ordinário: i) regular procedimento espe-
cial para que se descortinem os casos de dissimulação (CTN,
art. 116, parágrafo único); ii) enunciar normas de reação a pla-
nejamentos tributários específicos (Specific Anti Avoindance
Rules – SAAR) e; iii) reconhecer a legitimidade de planeja-
mentos tributários também específicos (safe harbour rules),
como ocorre com diversas opções fiscais (economias de opção).
Com vistas a estágios avançados do ciclo de positivação
do Direito, o tópico “4” investiga aspectos da competência
atribuída pelo sistema jurídico à administração fiscal quan-
to ao tema, colocando-se em questão a adoção de doutrinas
como “propósito negocial”, “abuso de formas” e “abuso de
direito”.
Finalmente, o tópico “5” é dedicado ao monopólio da úl-
tima palavra quanto à “melhor” interpretação e aplicação da
norma aos fatos detida pelo Poder Judiciário, de fundamental
importância para o equilíbrio de toda a cadeia normativa ana-
lisada neste estudo.
Respeita-se verdadeiramente cada dos três Poderes da
República, de forma que este estudo representa lídimo dese-
jo de colaboração ao contínuo debate e vigilância à essencial

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à harmonia entre estes, no exercício de suas respectivas


competências.

1. “Planejamento tributário” e “normas de competên-


cia”: delimitação conceitual e pontos de intersecção.

A análise proposta neste artigo gira em torno de dois nú-


cleos semânticos que apresentam relevante ponto de intersec-
ção: “planejamento tributário” e “normas de competência”.
De forma positiva (“o que é”), os signos “planejamento
tributário” comportam a significação de um rol de atos prati-
cados por particulares em conformidade com o Direito e den-
tro da esfera de liberdade resguardada da interferência fiscal
do Estado. Como discrímen fundamental, os atos em questão
têm como consequência legítima a não ocorrência de fato ge-
rador ou o retardamento deste que, conforme norma válida e
vigente no sistema, de outro modo ensejariam situação fiscal
de algum modo mais gravosa ao indivíduo.
Já a partir de uma definição negativa (“o que não é”),
constata-se que atos qualificados como “planejamento tribu-
tário” não se confundem com evasão fiscal ou mesmo situa-
ções limítrofes de economias de opção.2
É fundamental compreender que cada sistema jurídico,
de acordo com as suas próprias peculiaridades, possui um
particular grau de tolerância a planejamentos tributários, bem
como métodos próprios de reação às hipóteses não toleradas.
O que é tolerado por um Estado pode ser considerado abusivo
por outro. Daí dizer-se que cada Estado, em um dado momen-
to histórico, possui o seu peculiar hidrômetro da intolerân-
cia ao planejamento tributário, na feliz expressão de Klaus
Vogel3.

2. Sobre o tema, vide: GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Pau-
lo: Dialética, 2011, p. 104 e seg.
3. VOGEL, Klaus. Klaus Vogel on double taxation conventions: a commentary to the
OCDE, UN and US model conventions for the avoidance of double taxation on income

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Ocorre que, ao investigar o hidrômetro da intolerância


brasileiro ao planejamento tributário, o intérprete inevitavel-
mente se depara com o tema das normas de competência,
impondo-lhe a análise de normas constitucionais e infracons-
titucionais. O conceito de “competência”, no âmbito tributá-
rio, foi bem delineado por Tácio Lacerda Gama4, para quem “a
norma de competência pode ser vista como elemento agluti-
nador que, formal e materialmente, oferece os fundamentos
positivos para afirmar ou negar a unidade, coerência e com-
pletude do sistema”.
Como há tempos observa Paulo de Barros Carvalho5, a
Constituição “abriga, em grande parte, regras de estrutura,
quer dizer, normas que prescrevem como outras normas de-
vem ser produzidas, modificadas ou extintas. São verdadeiras
sobre normas, porque falam não diretamente da conduta que
suscita vínculos tributários, mas do conteúdo ou da forma que
as regras hão de conter”. Em meio a essas normas de estrutura
prescritas pela Constituição, há aquelas que tutelam a compe-
tência tributária, a competência legislativa em matéria tributá-
ria, normas de competência financeira, normas de competência
para a intervenção em setores específicos etc.
A competência tributária, sob uma perspectiva positiva
(o que é), consiste na aptidão para criar tributos in abstrato
por meio de lei. A forma federativa de Estado, cláusula pétrea
consagrada pela Constituição, influenciou decisivamente na
detalhada discriminação de competências adotada no Brasil,
com a delimitação das hipóteses em que cada um dos entes fe-
derados pode estabelecer normas para a cobrança de tributos
(em especial, arts. 145, 147, 148, 149, 149-A, 153, 154, 155, 156 e

and capital with particular reference to German treaty practice. Londres : Kluwer
Law International Ltd, 1997, p. 118.
4. GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária – fundamentos para uma teoria
da nulidade. São Paulo: Noeses, 2009, p. 156, 183 e seg.
5. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 57.

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195 da Constituição).6 Nesse mesmo substrato constitucional,


emerge o outro lado da mesma moeda: os limites além dos
quais os entes federados estariam em campo de incompetên-
cia tributária. Ocorre que, como ensina Roque Antonio Car-
razza7, “toda atribuição de competência envolve, ao mesmo
tempo, uma autorização e uma limitação”.
A organização federativa do Estado brasileiro também re-
quereu da Constituinte a distribuição de competências legis-
lativas em matéria tributária: compete à União, aos Estados
e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito
tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico,
com competência da União para estabelecer normas gerais
aplicáveis a todos os entes federados (Constituição, art. 24).
Não se trata propriamente de mais uma competência tributá-
ria atribuída à União federal, pois tal norma não lhe confere
aptidão para estabelecer qualquer tributo. Trata-se de norma
de competência legislativa em matéria tributária, de caráter
nacional, cuja observância é mandatória a todos os entes fe-
derados, inclusive à União.
O art. 146 da Constituição Federal, além atribuir ao legis-
lador complementar a aludida competência legislativa em ma-
téria tributária, também especificou matérias que lhe seriam
privativas, fundamentais ao funcionamento harmônico do
modelo federativo brasileiro. Cabe à lei complementar dispor
sobre conflitos de competência em matéria tributária, regular
as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabele-
cer normas gerais em matéria de legislação tributária, espe-
cialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem
como, em relação aos impostos discriminados nesta Consti-
tuição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e
contribuintes, entre outras coisas.

6. Nesse sentido, vide: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.


São Paulo: Saraiva, 2000, p. 57; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito cons-
titucional tributário. São Paulo: Ed. Malheiros, 2003, p. 100 e seg; 330 e seg.
7. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 20. ed.
São Paulo: Malheiros, 2004.

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Surge, então, o primeiro ponto de intersecção, com digni-


dade constitucional, entre “planejamento tributário” e “nor-
mas de competência”. Esse encontro, sob a influência que
o civil law notadamente exerceu sobre a Assembleia Cons-
tituinte, poderia realizar-se ao menos de duas formas, mas
necessariamente por decisão do legislador competente: em
âmbito constitucional ou infraconstitucional. Diante do modo
analítico e detalhado com que tutelou o Direito tributário, não
seria de se estranhar que a Constituinte houvesse se preocu-
pado em regular diretamente o planejamento tributário. No
entanto, não foi esse o caminho trilhado.
A Constituição protege um núcleo de liberdades econô-
micas do particular, mantendo-o livre de intervenções do Es-
tado e dentro do qual está inserido o planejamento tributá-
rio8. Conforme leciona Tércio Sampaio Ferraz Júnior9, essas
liberdades atribuem ao ser humano um espaço que não pode
ser absorvido pela sociabilidade, tendo-se como reconheci-
da a capacidade de “reger o próprio destino, expressar a sua
singularidade como indivíduo, igual entre iguais: o homem
como distinto e singular entre iguais”. Merecem destaque a
livre iniciativa, a autonomia privada e liberdades como de
empresa, de investimento, de organização e de contratação10.
Na mesma linha, Luís Eduardo Schoueri11 conclui que Estado
Democrático e Social de Direito, estabeleceria um espaço de
liberdade, no qual a sociedade poderia se organizar para o

8. Nesse sentido, vide: ÁVILA, Humberto. Eficácia do Novo Código Civil na Legisla-
ção Tributária. In Grumpenmacher, Betina Treiger (coord.) - Direito Tributário e o
novo Código Civil - São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 75-77.
9. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar,
privacidade, estado, direitos fundamentais e outros temas. – Barueri, SP : Manole,
2007, p. 196.
10. Cf. BARRETO, Paulo Ayres. Elisão tributária - limites normativos. Tese apre-
sentada ao concurso à livre docência do Departamento de Direito Econômico e Fi-
nanceiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP,
2008, p. 128-129.
11. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 35.

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atingimento de seus próprios objetivos, que não se confundi-


riam com os objetivos da coletividade.
Contudo, ao mesmo tempo em que a Constituição ga-
rante aos particulares esse âmbito de liberdade, outorga ao
legislador infraconstitucional a competência para regular e
interferir em seu exercício, seja para estabelecer a cobran-
ça de tributos, seja para limitar planejamentos tributários. É
relevante notar que presença de decisão clara do legislador
(agente competente) para a referida intervenção no patrimô-
nio particular é cláusula irrenunciável de estirpe constitucio-
nal, sem o que adentra-se no tenebroso campo do arbítrio e
das ilegitimidades.
A exigência de lei para a desconsideração de planejamen-
tos tributários não encontra fundamento “apenas” no prin-
cípio da legalidade em matéria tributária (art. 5o e art. 150,
I, da Constituição), mas também nas normas de Direito Eco-
nômico presentes no texto constitucional (arts. 170 e seg. da
Constituição).
O Estado, por meio da tributação, deve participar dos
bem-sucedidos resultados econômicos dos particulares a ele
conectados, a fim de obter receitas derivadas suficientes a
fazer frente às necessidades públicas. Conforme o princípio
da legalidade, o legislador deve eleger, dentro de seu respec-
tivo âmbito de competência tributária, fatos geradores que
captem capacidades contributivas conforme uma dosagem
adequada à divisão do custo estatal. Essa competência tribu-
tária também confere ao legislador ordinário a aptidão para a
enunciação de normas de reação a planejamentos tributários
específicos (SAAR), como se expõe no tópico “3”.
Por sua vez, ao prescrever que compete à lei complemen-
tar estabelecer normas gerais sobre a ocorrência do fato gera-
dor, apuração da obrigação tributária, entre outros elementos,
conferiu-se ao legislador a aptidão privativa para enunciar
norma geral de reação ao planejamento tributário (GAAR),
analisada no tópico “2” adiante.

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Note-se que compete ao legislador complementar regu-


lar o planejamento tributário por meio de norma geral, mas
não lhe é permitido tornar absolutamente ilícita a sua prática.
Se há limites ao exercício da liberdade, o Estado de Direito
também pressupõe limites ao legislador para a sua restrição,
pois, conforme salutar preocupação de Tércio Sampaio Ferraz
Júnior, “a liberdade pode ser disciplinada, mas não pode ser
eliminada” 12. Não poderia o Estado utilizar mecanismos de
coerção para compelir o contribuinte à prática de determi-
nados atos e, assim, à ocorrência de hipóteses de incidência
de tributos (ou seja, de intervenção no patrimônio particular).
Assim ocorrendo, como adverte Luís Eduardo Schoueri13, es-
tar-se-ia atentando de modo inadmissível contra a proibição
ao confisco e o Direito à propriedade.

2. A competência do legislador complementar para a


tutela do planejamento tributário: qual GAAR foi
prescrita pelo agente competente?

Muitos ordenamentos jurídicos estrangeiros possuem


normas gerais que se prestam a alcançar algumas ou todas as
espécies tributárias, com a prescrição de critérios, objetivos
ou não, para a identificação do “abuso” e a reação aos plane-
jamentos tributários não tolerados. No Brasil, como se viu, a
Constituição não prescreveu ela própria uma GAAR, mas con-
feriu ao legislador complementar a competência para fazê-lo.
Bem compreendida a função da lei complementar no or-
denamento jurídico brasileiro, visualiza-se com clareza o acer-
to da Constituinte ao conferir-lhe tal atribuição. Não parece
haver dúvidas que a lei complementar é um “instrumento de

12. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar,


privacidade, estado, direitos fundamentais e outros temas. – Barueri, SP : Manole,
2007, p. 195.
13. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econô-
mica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 46.

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articulação das normas do sistema” 14. Até pouco tempo, ha-


via intenso debate doutrinário15 quanto à razão dessa “arti-
culação”, se por força do critério da hierarquia ou da função
(competência).
José Souto Maior Borges16 foi um dos primeiros a suscitar
o critério da função (ou competência) como aquele que melhor
solucionaria a questão. Sob essa perspectiva, enquanto o le-
gislador complementar seria competente para tratar de deter-
minadas matérias, o legislador ordinário seria incompetente
para tutelá-las: ao legislar sobre temas cuja competência seria
do legislador complementar, a lei ordinária não padeceria por
contrariar a lei complementar (hierarquia), mas sim por ter
sido enunciada por agente incompetente (função ou compe-
tência). Nas palavras daquele professor, “a lei complementar
é resultante de um procedimento legislativo vinculado a cri-
tério constitucionais de direito formal (e.g. o quórum de vota-
ção) e de ordem material ou de direito substantivo (a matéria
correspondente a uma fatia do campo global distribuído rigi-
damente segundo esquemas constitucionais de competência
legislativa). ” Modernamente, Humberto Ávila17 observar que,
como Constituição atribuiria às leis complementares diferen-
tes funções, não poderia ser unitariamente descrita e nem te-
ria hierarquia unitária: seria necessário investigar a função
de cada instrumento legal.
Ao analisar-se o arcabouço constitucional pertinente ao
tema do planejamento tributário, o critério da função (ou com-
petência) explica bem o papel exercido pela lei complementar.

14. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 58-9.
15. Vide: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Sa-
raiva, 2000, p. 58 e seg.; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.
27. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 221-22, 402 e seg.
16. BORGES, José Souto Maior. Lei Complementar Tributária. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1975, p. 73 e seg.
17. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 188.

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Em conformidade com o art. 146 da Constituição, com-


pete ao legislador complementar decidir se haverá uma nor-
ma geral de reação a planejamentos tributários e, nesse caso,
quais os critérios para a identificação das hipóteses as quais
o fisco deverá reagir (hidrômetro da intolerância). Compete ao
legislador complementar legitimamente eleito manifestar a
decisão sobre quais circunstâncias e em qual intensidade de-
verá o Estado intervir no exercício de liberdades econômicas.
Essa é a função do legislador complementar e não do legisla-
dor ordinário, que é incompetente para tanto.
Não obstante, o critério da hierarquia também poderia
explicar a questão, alcançando conclusão similar, caso se re-
conheça a eloquência do silêncio do legislador complemen-
tar que conscientemente deixar de enunciar qualquer GAAR.
Por essa perspectiva, haveria antinomia entre lei ordinária
que extrapolasse GAAR veiculada (ou a ausência desta) por
lei complementar, com a invalidade da primeira. Do mesmo
modo, ao adotar-se o critério da função, não haveria neces-
sariamente antinomia, mas incompetência do legislador ordi-
nário para cogitar de GAAR diversa daquela enunciada pelo
agente competente eleito pela Constituinte, qual seja, a lei
complementar.
Portanto, aplicando-se essas variáveis teóricas à matéria
sob exame, verifica-se que o legislador complementar, voca-
cionado a enunciar uma GAAR, assume o papel nuclear de
legitimar a reação dos entes federados às modalidades de
atos praticados pelo contribuinte que ocasionem a redução
do ônus tributário: todas as unidades legiferantes (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios) apenas podem editar
normas para a reação a planejamentos tributários que sejam
comportadas pela lei complementar, qual seja, o CTN.
Embora tenha sido concebida formalmente como lei or-
dinária há 50 anos, o CTN foi recepcionado pela nova ordem
constitucional de 1988, em razão de seu conteúdo, como se
lei complementar fosse. Ocorre que o CTN contém normas

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para a tutela de boa parte das questões referidas no art. 146 da


Constituição, inclusive quanto ao hidrômetro de intolerância à
redução ou diferimento do ônus tributário.
Dentro desse âmbito de competência, de forma concreta,
o legislador complementar enunciou apenas normas de rea-
ção à “fraude”, à “simulação”, ao “dolo” na evasão de tributos
(CTN, art. 149, VII), com a tutela específica de casos de “dis-
simulação” (CTN, art. 116, parágrafo único). Tais elementos,
de forma rigorosa, sequer seriam qualificados como hipóteses
de uma GAAR, pois se voltam contra a evasão fiscal e não à
concepção de “abuso” geralmente presente em normas gerais
de intolerância ao planejamento tributário.
Embora muito se discuta o assunto, o legislador com-
petente (CTN) sempre limitou os poderes da administração
fiscal para desconsiderar atos praticados pelo contribuinte,
restringindo-os para tornar inoponíveis apenas atos “simula-
dos”, “fraudulentos”, cometidos com o “dolo” da evasão de
tributos. Não há a outorga, pelo legislador competente (CTN)
para que a administração fiscal considere inoponível atos que
não estejam sob o escopo dos referidos institutos.
Conforme se colhe do art. 72, da Lei 4.502/64, fraude é
“toda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar,
total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obri-
gação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas
características essenciais, de modo a reduzir o montante do
imposto devido a evitar ou diferir o seu pagamento”.
A exigência do dolo, nesse enunciado prescritivo, tem o
condão de agregar ao conceito de fraude a intenção de ofen-
der o Direito, de cometer ato sabidamente ilícito, e não qual-
quer hipótese na qual o contribuinte realiza atos para reduzir
a ocorrência do fato gerador. O dolo, no Direito Civil, remete
ao “emprego de um artifício ou expediente astucioso para in-
duzir alguém à prática de um ato que o prejudica e aproveita

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ao autor do dolo ou a terceiro”18. Dolo seria a própria intenção


de causar dano a outrem, de contrariar o direito.19
Cabe apenas frisar que, no Direito Tributário, o dolo
apresenta peculiaridades relevante em relação ao seu corres-
pondente no Direito Privado, em que o vício é causado por
uma das partes do negócio jurídico em relação à outra. No
âmbito tributário, não seria elemento típico do dolo a intenção
de uma das partes prejudicar outras do negócio jurídico, mas
sim de evadir tributos devidos ao fisco, que sequer é parte
daquela relação.
Quanto à simulação, o legislador tributário não edificou
um instituto distinto para a “simulação fiscal”, mas laborou
com remissão normativa, acolhendo o conceito normativo de
“simulação” prescrito pelo Direito privado.20
Note-se que o art. 109 do CTN prescreve que “os princí-
pios gerais de direito privado utilizam-se para a pesquisa da
definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos
e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tribu-
tários”. Daí decorre que, se determinado instituto do Direito
privado compõe algum enunciado prescritivo de matéria tri-
butária, ao menos duas hipóteses seriam possíveis: (i) pode
o legislador tributário atribuir definição, conteúdo e alcance
diversos do que se verifica no Direito privado (apenas o nome

18. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 232.
19. Paulo Ayres Barreto diferencia o dolo da simulação, na medida em que, naquele
“apenas um dos interessados tem ciência do ato doloso, enquanto na simulação, am-
bas as partes têm participação na ação concertada”. A diferença de dolo e fraude re-
sidiria no fato de que esta “se consuma sem a intervenção pessoal do prejudicado.
Além disso, enquanto o dolo geralmente antecede ou é concomitante à prática do
negócio jurídico, a fraude é perpetrada posteriormente à sua celebração” (BARRE-
TO, Paulo Ayres. Elisão tributária - limites normativos. Tese apresentada ao concur-
so à livre docência do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculda-
de de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo : USP, 2008, p. 157-186)
20. Sobre a relação entre os conceitos de direito civil e tributário, vide: ÁVILA,
Humberto. Eficácia do Novo Código Civil na Legislação Tributária. In Grumpenma-
cher, Betina Treiger (coord.) - Direito Tributário e o novo Código Civil - São Paulo:
Quartier Latin, 2004, p. 65-72.

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de batismo seria igual nas diferentes searas jurídicas), ou; (ii)


caso o legislador tributário silencie quanto à questão, deve o
instituto deve ser compreendido conforme o seu perfil no Di-
reito privado.21
Conjugando-se os artigos 109 e 110 do CTN, surge a ques-
tão: a lei tributária poderia utilizar o termo “simulação” para
se referir a questão diversa da tutelada pelo Direito Civil, al-
terando a definição, o conteúdo e o alcance daquele instituto
tradicional na seara privada? Em tese, sim, pois a expressão
não foi utilizada, expressa ou implicitamente, pela Constitui-
ção Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis
Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir
ou limitar competências tributárias. No entanto, o legislador
tributário não alterou o sentido desse instituto, utilizando-o
tal qual no Direito privado.
No âmbito privado, o perfil jurídico da simulação foi re-
visto em decorrência da enunciação do novo Código Civil, de
2002. No Código Civil de 1916, a simulação correspondia a um
defeito do negócio jurídico, decorrente de vício na vontade do
agente, que poderia agir tanto de forma maliciosa, quando
o negócio seria anulável (art. 102), como inocente (art. 103),
em que o negócio subsistiria. A simulação trazida pelo novo
Código Civil difere ao menos em dois pontos de sua confor-
mação anterior. O negócio jurídico simulado será nulo (e não
mais anulável), não surtindo efeitos desde a sua realização,
bem como não se perpetuará no tempo, conforme o art. 169 do
novo Código. Também não há mais menção à possibilidade de
simulação inocente, pois a simulação deixa de se referir a um
elemento subjetivo, configurando critério objetivo de validade
do próprio negócio.
Nesse cenário, a simulação a que se refere o art. 149, VII,
do CTN, corresponde à “mentira” quanto à prática de um ato
relevante para fins tributários. Sonega-se da Administração

21. Nesse sentido, vide: SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 762-763.

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Fiscal a verdade dos fatos ocorridos. O ato simulado é um ato


aparente, que não existe no mundo dos fatos, mas apenas de
forma precária no mundo jurídico.
Na simulação absoluta, o contribuinte buscaria construir
determinado invólucro que, caso real, lhe atribuiria benefícios
fiscais, embora nada exista. Na simulação relativa, a ocorrên-
cia do fato gerador de uma obrigação tributária seria ocultada
pela oposição do ato simulado.
Com a simulação absoluta, na linha com o que expõe Tu-
lio Rosembuj22, as partes criariam com a sua declaração uma
aparência de negócio que não querem realizar e do qual não
esperam nenhum efeito. Seria uma aparência sem qualquer
conteúdo verdadeiro e, assim, juridicamente inexistente,
como é o caso da fraude contra credores em que se cria um
passivo inexistente ou se diminui o ativo, sem que nada re-
almente tenha sido realizado. Com a simulação relativa, as
partes criariam a aparência para um negócio jurídico diverso
daquele que efetivamente querem. Seria um disfarce, em que
apenas aparentemente se realizaria um negócio jurídico, para,
na verdade, realizar-se outro negócio. É ilustrativo o Recurso
Especial n. 243.767-MS, do Superior Tribunal de Justiça, para
a distinção de simulação (absoluta) e dissimulação (relativa):

“Duas situações, entretanto, podem verificar-se. Uma, em que


a simulação seja absoluta. As partes não pretenderam concluir
negócio algum, como no exemplo acima mencionado. Isso re-
conhecido, não produzirá efeito. Pode, entretanto, ser relativa
a simulação. As partes efetivamente desejavam a pratica de de-
terminado contrato, mas esse ficou dissimulado por um outro.
Assim, por exemplo, fez-se uma doação, dissimulada em compra
e venda. Em tal caso, prevalecerá o negócio real. ”

No Direito tributário brasileiro, então, a simulação se


presta à sonegação, ou seja, ao ilícito. O que se combate não
é a utilização de formas anormais, atípicas para se alcançar

22. ROSEMBUJ, Tulio. El fraude de lei, la simulación y el abuso de las formas em el


derecho tributario. Barcelona: Marcial Pons. 1999, p. 49.

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50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

determinado resultado. Combate-se o ato doloso da evasão de


tributos em que as partes realizam um determinado negócio
jurídico, mas declaram ao fisco que outro teria sido realizado.
Note-se que, para aferir-se a ocorrência de simulação,
não é relevante questionar a existência de razões extratribu-
tárias. Interessa demonstrar que, por meio dos negócios ju-
rídicos apresentados pelo contribuinte, foram ocultadas do
fisco a verdadeira configuração dos atos praticados (dissimu-
lação) ou, ainda, que nada realmente foi realizado (simulação
absoluta).

3. A competência do legislador ordinário para a tutela


do planejamento tributário.

Em vista das normas constitucionais de competência tri-


butária e da decisão do legislador complementar, lei ordinária
de cada ente federado detém ao menos três funções prescri-
tivas quanto às seguintes matérias atinentes ao planejamento
tributário: i) regular procedimento especial para que se des-
cortinem os casos de dissimulação (CTN, art. 116, parágrafo
único); ii) enunciar normas de reação a planejamentos tribu-
tários específicos (SAAR) e; iii) reconhecer a legitimidade de
planejamentos tributários também específicos (safe harbour
rules).
Em relação à primeira das funções citadas, é curioso ob-
servar que o legislador ordinário tem se mantido inerte há 15
anos na sua tarefa de regular o procedimento especial para a
aplicação da norma do parágrafo único do art. 116 do CTN, in-
cluído pela Lei Complementar n. 104/2001. A eficácia do refe-
rido dispositivo permanece em estado de hibernação, por res-
tar contida à edição de lei ordinária até hoje não enunciada.
Nos estritos limites da competência que lhe foi atribuí-
da pela Lei Complementar n. 104/2001, caberia à lei ordiná-
ria apenas e tão somente definir um procedimento especial
para a desconsideração de atos “dissimulados”. O legislador

831
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

ordinário seria incompetente para definir outras hipóteses de


desconsideração que não estejam compreendidas no art. 116
do CTN (“dissimulação”) ou, ainda, estabelecer critérios não
adotados pelo legislador complementar, a exemplo de “propó-
sitos negociais”.
Por sua vez, a mesma inércia não se verifica em relação à
segunda competência acima referida. A edição de SAAR é in-
tensa no sistema tributário brasileiro e representa, inclusive,
um elemento da complexidade do ordenamento.
A SAAR inclui no âmbito de incidência da norma tribu-
tária, casuisticamente, situações que o contribuinte poderia
potencialmente utilizar como substitutas não tributadas ou
fiscalmente menos onerosas e que, por decisão do legislador,
devem ser submetidas igualmente àquela tributação mais
onerosa.
Cada ente federado encontra nas normas de competên-
cia tributária fundamento de validade para enunciar SAAR
que compreender adequada em meio às normas de incidência
tributária em sentido estrito23. Ocorre que, como ensina Ro-
que Antonio Carrazza24, “dependendo da decisão política que
vierem a tomar, podem, ou não, criar os tributos que lhes são
afetos. Se entenderem de criá-los, poderão fazê-lo de modo
mais ou menos intenso, bastando apenas que respeitem os di-
reitos constitucionais dos contribuintes e a regra que veda o
confisco (art. 150, IV, da CF). ”
O primado da legalidade exige decisão clara do legisla-
dor para imposição de SAAR, como se observa de exemplos
concretos do sistema tributário brasileiro. A título ilustrativo,
note-se que o art. 3o, IV, das Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003,
que trata da contribuição ao PIS e da COFINS, autoriza que
o contribuinte, na apuração dessas contribuições pelo regime

23. Vide: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27. ed. São
Paulo: Saraiva, 2016, p. 221-222.
24. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São
Paulo: Ed. Malheiros, 2003, p. 101 e seg.

832
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

não cumulativo, apure créditos de “aluguéis de prédios, má-


quinas e equipamentos, pagos a pessoa jurídica, utilizados
nas atividades da empresa”. Empresas que possuíam imóveis
próprios, utilizados em sua atividade operacional, logo cogi-
taram da segregação de tais bens de seu patrimônio para in-
tegralização em pessoas jurídicas imobiliárias tributadas pelo
lucro presumido, que passariam a locá-los à sua anterior pro-
prietária, submetida ao lucro real. Com isso, seria possível o
aproveitamento de créditos de PIS e COFINS sobre o valor
dos aluguéis pagos.
Esse caso ilustra bem o dinâmico fenômeno de enuncia-
ção de uma SAAR. Por meio da Lei n. 10.865/2004, o legislador
decidiu neutralizar os efeitos desse planejamento tributário
e prescrever uma SAAR, de forma a vedar o crédito relativo
a aluguel e contraprestação de arrendamento mercantil de
bens que já tenham integrado o patrimônio da pessoa jurídica
locatária.
Por fim, como terceira forma de atuação, a lei ordinária
pode expressamente reconhecer a legitimidade de determi-
nadas modalidades de planejamentos tributários, com a pre-
visão legal de opções fiscais (economias de opção). Por conferir
maior segurança jurídica aos particulares, tais normas podem
ser consideradas como um safe harbour em meio às incertezas
do sistema.
Um bom exemplo pode ser colhido da Lei n. 11.196/2005,
que em seu art. 129 reconheceu que, “para fins fiscais e pre-
videnciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os
de natureza científica, artística ou cultural, em caráter per-
sonalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer
obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora
de serviços, quando por esta realizada”, deve sujeitar-se “tão-
-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas”. Com
isso, o legislador reconheceu, com eficácia interpretativa25, a

25. Sobre a eficácia retroativa do dispositivo e a sua função interpretativa, vide:


ÁVILA, Humberto. A prestação de Serviços Personalíssimos por Pessoas Jurídicas

833
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

legitimidade da constituição de pessoas jurídicas por profis-


sionais especificados no aludido enunciado para a exploração
de suas atividades, sujeitando-se à tributação das pessoas ju-
rídicas, o que pode representar redução do ônus tributário.
É interessante notar que leis ordinárias dessa terceira
espécie são capazes de enquadrar planejamentos tributários
em economias de opção (ou opções fiscais), tendo em vista que
deixam de ser apenas tolerados ou ignorados e passam a ser
expressamente reconhecidos ou mesmo incentivados.
Aliando-se essa constatação com a dado atinente à exis-
tência de diversas outras economias de opção enunciadas pelo
legislador ordinário, é possível aferir que não há repúdio por
parte do Poder Legislativo à pratica de atos do contribuinte
vocacionados à redução de seu ônus fiscal, o que prestigia as
liberdades econômicas garantidas pela Constituição.
Tal atuação do legislador ordinário coincide com a adota-
da pela lei complementar, que há 50 anos apenas se volta con-
tra a evasão fiscal, evidenciando uma diretriz de tolerância do
Poder Legislativo em relação ao planejamento tributário.
As necessidades arrecadatórias ou extrafiscais vêm sen-
do equacionadas por SAAR, respeitando, em geral, as normas
de competência tributária. Contudo, as elevadas despesas pú-
blicas e a correspondente necessidade arrecadatória fazem
com que novas SAAR sempre surjam, o que contribui para a
escalada da complexidade do sistema.

4. A competência da administração fiscal em face de


planejamentos tributários.

A competência administrativa surge em estágio mais


avançado do ciclo de concretização do Direito tributário, com a

e sua Tributação: o Uso e Abuso do direito de criar Pessoas Jurídicas e o Poder de


desconsiderá-las, in ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes questões atuais
do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2013, v. 17, p. 149-150. Em sentido oposto,
vide: CARF, acórdão 106-17.147.

834
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

legitimação dos atos das autoridades fazendárias e de julgado-


res de Tribunais administrativos para declarar inoponíveis os
atos praticados pelo particular que tenham como consequência
a redução do ônus fiscal.
Os referidos agentes, que agem em nome do Poder Exe-
cutivo, detêm a competência primária de aplicar o produto
legislado. Como bem suscita Bianor Arruda Bezerra Neto26,
enquanto o Poder Legislativo assume a função de “criador
das normas jurídicas, as quais seriam autoaplicáveis por to-
dos os integrantes da sociedade”, o Poder Executivo seria “o
promotor, provedor e fiscalizador da sua aplicação, no que diz
respeito aos temas de sua responsabilidade”.
Em matéria tributária, em que vige o princípio da estrita
legalidade, a atividade da administração fiscal naturalmente
dependente da decisão do Poder Legislativo e, portanto, de
todo o enredo de competências analisadas nos tópicos ante-
riores deste estudo. Tais fatores são fundamentais à estrutura
de separação dos poderes que rege o sistema jurídico brasilei-
ro, o que, tamanha a sua importância, foi erigida à modalida-
de de cláusula pétrea da Constituição.
Não se pode negar, contudo, tratar-se do plano em que
maiores ruídos podem ser gerados ao Estado de Direito quan-
do se cogita o tema “planejamento tributário”.
A maior probabilidade de ruídos nesse plano pode ser ex-
plicada por alguns fatores, com destaque a dois deles. Primei-
ro, justamente em decorrência da atividade de execução da
lei, as autoridades administrativas podem ser compelidas, por
dever de ofício, a aplicar leis que compreendam inconstitucio-
nais. Assim, na hipótese do legislador ordinário extravasar os
lindes de sua competência e editar GAAR sem paralelo em lei
complementar, incorrendo em patente ofensa ao art. 146 da

26. BEZERRA NETO, Bianor Arruda. Teoria da decisão judicial e segurança jurídi-
ca: hermenêutica e argumentação no novo CPC, in Direito Tributário e os novos
horizontes do processo. XII Congresso Nacional de Estados Tributários. São Paulo
: Noeses, 2015, p. 198 e seg.

835
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

Constituição, ainda assim julgadores do Conselho Adminis-


trativo de Recursos Fiscais (“CARF”) apenas poderiam deixá-
-la de observar em situações restritas, a exemplo de acórdão
do STF que, com repercussão geral, reconhecesse a referida
inconstitucionalidade.
Também deve ser considerada a possibilidade de extra-
vasamento da competência administrativa pela adoção de cri-
térios de intolerância ao planejamento tributário à revelia de
autorização legal, possivelmente sob a influência de doutrinas
estrangeiras. Essa situação merece especial atenção.
Quando se observa sistemas jurídicos estrangeiros27, per-
cebe-se um influxo dos Poderes Legislativo e Judiciário na
edificação de normas jurídicas de delimitação da intolerância
a planejamentos tributários qualificados como abusivos. Paí-
ses com tradição no civil law, como o nosso, têm as suas nor-
mas de reação ao abuso no planejamento tributário prescritas
pelo Legislador, muitas vezes encontram no Poder Judiciário
um agente competente para aperfeiçoar o conceito de “abu-
so” prescrito em lei. Assim, na Alemanha, embora o legislador
tenha tutelado ativamente a norma de reação ao abuso de for-
mas, o Poder Judiciário tem sido decisivo no estabelecimen-
to de testes para a delimitação do conceito de “abuso” (vide
evoluções normativas claras ocorridas em 1919, 1931, 1977 e
2007). Na França, berço da teoria da intolerância ao abuso do
direito, o Legislador tem sido igualmente ativo, embora o Po-
der Judiciário também tenha sido decisivo para a evolução da
GAAR vigente naquele país, como se observa do conhecido
caso Janfin28, cuja decisão foi recentemente acolhida pelo le-
gislador francês (vide evoluções normativas claras ocorridas
em 1940, 1963, 1987 e 2008).

27. Para uma análise detalhada da GAAR adotada nos países citados neste artigo,
vide: NETO, Luís Flávio. Teorias do abuso no planejamento tributário. Dissertação
de mestrado. São Paulo, Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP, 2011.
28. FRANÇA. Corte de Cassação. Caso Sté Janfin, n. 260050, 2006.

836
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

Por sua vez, sistemas jurídicos com tradição anglo-saxô-


nica (commom law), em tese, teriam como característica a
competência do Poder Judiciário para enunciar GAAR ou
SAAR pelo método dos precedentes judiciais. Contudo, mes-
mo em sistemas com essa tradição jurídica, a referida com-
petência também pode ser exercida pelo Poder Legislativo.
Como exemplo, nos EUA, em que a doutrina do propósito ne-
gocial foi edificada de forma fragmentada e casuística nos va-
riados tribunais espalhados pelo território norte-americano, o
Poder Legislativo, em 2008 (“Obama Care”), decidiu delimitar
e uniformizar o conceito de “abuso” que deveria ser obedeci-
do pela administração fiscal.
Note-se que, como a legalidade em matéria tributária
está entre os princípios geralmente aceitos pelas nações civi-
lizadas, os sistemas jurídicos estrangeiros citados têm em co-
mum a exigência de lei, em sentido estrito, para a prescrição
de normas de reação ao planejamento tributário abusivo, com
a possibilidade de atuação Poder Judiciário em diferentes
medidas. Contudo, em nenhum desses sistemas estrangeiros
foi outorgada ao Poder Executivo a competência para esta-
belecer, à revelia de decisão vinculante do Poder Legislativo
ou do Poder Judiciário, critérios próprios para a identifica-
ção do que seja “abuso”, nem tampouco atribuiu-se às autori-
dades fiscais a função de decidir consequências jurídicas daí
decorrentes.
Naturalmente, dogmas do Direito estrangeiro não podem
ser importados acriticamente na aplicação do Direito pátrio,
de forma que a administração fiscal, ao se deparar com plane-
jamentos tributários, não pode recorrer a “abuso do direito”,
“abuso de formas”, “substância sobre a forma”, “propósito ne-
gocial” ou outros institutos concebidos no Direito estrangeiro.
Ocorre que o sistema jurídico brasileiro desconhece os
aludidos institutos, que jamais foram prestigiados pelo legis-
lador competente, o que impede a sua adoção pelos agentes
fiscais, cuja incumbência restrita é de aplicação da lei. A seme-
lhança mais evidente daqueles sistemas com o nosso consiste

837
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

justamente na incompetência das autoridades fiscais para a


decisão quanto à mais adequada calibração geral do hidrô-
metro de intolerância aos planejamentos tributários: tanto lá
quanto aqui, essa não é uma competência do Poder Executivo.
A adoção de critério como “propósito negocial”, à som-
bra da lacuna legislativa, entre muitos outros óbices, pode en-
contrar vedação no art. 108 do CTN, pela potencial ofensa à
equidade e aos princípios gerais de direito público. A título
ilustrativo, suponha-se que um casal (“A”) vislumbre na re-
organização patrimonial, com integralização de todos os seus
imóveis em uma pessoa jurídica imobiliária, a forma de evitar
longas disputas entre os herdeiros após a sua morte. Supo-
nha-se, ainda, que o casal vizinho (“B”), que não possui filhos,
decida conduzir reorganização semelhante, mas com o único
motivo de usufruir do regime de tributação do lucro presumi-
do. Suponha-se, então, que ambos os casais conduzam reor-
ganização semelhante, passando a explorar, de fato, a ativida-
de imobiliária por meio de suas respectivas pessoas jurídicas,
tributadas pela sistemática do lucro presumido.
Nesse exemplo, haveria tratamento não isonômico entre
os casais “A” e “B” caso, para fins de reconhecimento da opção
à sistemática do lucro presumido, fosse utilizado como crité-
rio de discriminação a existência de motivos extratributários
(“propósito negocial”). Enquanto o primeiro casal (“A”) pode-
ria gozar da opção de submeter os rendimentos com aluguel e
venda de bens imóveis à tributação conforme a sistemática do
lucro presumido, o casal vizinho (“B”) restaria privado dessa
opção, de forma submeter rendimentos de natureza seme-
lhante obrigatoriamente à tributação pelo lucro real.
No entanto, não há lei que autorize a referida discrimi-
nação com base na aferição subjetiva de motivos extratribu-
tários (“propósitos negociais”). Apenas seria lícito atribuir
tratamento distinto entre contribuintes que se encontram em
condições semelhantes (“A” e “B”) caso o legislador prescre-
vesse tal discrímen, com o delineamento do que viria a ser

838
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

esse conceito de “propósito negocial” até hoje não delineado e


desconhecido no Direito positivo brasileiro.

5. O Poder Judiciário e o planejamento tributário: a


quem compete calibrar o hidrômetro da intolerân-
cia aos planejamentos tributários?

Embora o Brasil tenha raízes no civil law, caminhamos


para um sistema, de certo modo, híbrido, com traços da cul-
tura dos precedentes típicos do commom law. Com as reformas
realizadas nos últimos anos, o Poder Judiciário passou a deter
a competência para enunciar mais normas com eficácia geral.
O homem comum, que até poucas décadas atrás encontrava
nos Códigos a fonte de seus direitos, hoje deve estar atento,
ao menos quanto aos assuntos de seu interesse, aos julgamen-
tos do STF de ações declaratórias de (in)constitucionalidade,
de edição de súmulas vinculantes, de recurso extraordinário
com repercussão geral, ou de recursos especiais julgados pela
sistemática dos recursos repetitivos pelo STJ.
As reformas empreendidas, contudo, não afetaram um
elemento fundamental ínsito à vocação constitucional do Po-
der Judiciário brasileiro, típica do civil law: o juiz é detentor
da competência para afastar atos praticados pela administra-
ção fiscal ou pelo contribuinte contrários à lei e à Constitui-
ção (legislador negativo). Sob essa perspectiva, não estaria sob
o âmbito de competência do Poder Judiciário enunciar uma
GAAR, mas apenas aplicar a lei complementar aprovada por
maioria qualificada do Congresso Nacional (legislador positi-
vo). O Poder Judiciário tem o monopólio da última palavra
quanto à “melhor” interpretação e aplicação da lei aos fatos,
mas tal qual o Executivo, está adstrito aos limites impostos
pelo Poder Legislativo (constitucional e infraconstitucional).
Nos lindes dessa competência de legislador negativo,
seria competência do Poder Judiciário remodelar GAAR a
fim de sanar determinados vícios incorridos pelo legislador

839
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

complementar, especialmente pertinentes à constituciona-


lidade. Poder-se-ia supor que, se o legislador complementar
tornasse absolutamente ilícito o planejamento tributário, essa
eliminação das liberdades econômicas reclamaria por tutela
judicial capaz de restabelecer os aludidos direitos, ainda que
se atribuísse à GAAR em questão interpretação conforme a
Constituição.
É justo e necessário consignar que o Poder Judiciário
brasileiro não tem extravasado a sua competência quanto ao
tema do planejamento tributário. Nestes 50 anos de CTN, não
há efetivos precedentes de interferência do STJ ou do STF
para o delineamento de uma norma geral de intolerância ao
planejamento tributário diversa daquela prescrita pelo legis-
lador. Sobre a matéria, é possível afirmar que remanesce a
feição mais tradicional do civil law.
Tal postura pode encontrar algumas justificativas.
Uma primeira hipótese seria o reconhecimento, por parte
do Poder Judiciário, da decisão legítima do legislador compe-
tente, considerando-se suficiente que a administração fiscal
reaja exclusivamente em face de atos simulados, fraudulen-
tos, com dolo da evasão de tributos.
Outra justificativa, contudo, pode ser a “desjudicializa-
ção do planejamento tributário” referida por Luís Eduardo
Schoueri29, em que programas de parcelamento e pagamen-
to incentivado se mostram protagonistas para a escassez de
casos relevantes submetidos ao Poder Judiciário quanto ao
tema.
Por uma conjuntura de fatores, há tendência de aumento
substancial da quantidade de discussões atinentes ao planeja-
mento tributário levadas até o Poder Judiciário nos próximos
tempos, que passará, então, a ser frequentemente provocado
a enunciar decisões sobre a matéria. Em um cenário como

29. SCHOUERI, Luís Eduardo. O Refis e a Desjudicialização do Planejamento Tri-


butário. Revista de Dialético de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, v. 232, 2015.

840
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

esse, de multiplicidade de casos para os quais o Poder Judi-


ciário seja chamado a decidir sobre planejamento tributário,
será necessária atenção quanto ao âmbito de competência
que lhe é atribuído pela Constituição para a tutela da matéria.
As normas que regem a República Federativa do Brasil e,
em especial, o art. 146 da Constituição, outorgam competên-
cia ao Poder Judiciário para que decida sobre o grau de tole-
rância ao planejamento tributário, calibrando o hidrômetro de
intolerância a ser observado de forma generalizada por toda a
sociedade? Ou essa competência é detida pelo Poder Legisla-
tivo, por meio de lei complementar?

6. Considerações finais.

“É sempre oportuno encarecer que a competência tributária é


conferida às pessoas políticas, em última análise, pelo povo, que
é detentor por excelência de todas as competências e de todas as
formas de poder. De fato, se as pessoas políticas receberam a com-
petência tributária da Constituição e se esta brotou da vontade
soberana do povo, é evidente que a tributação não pode operar-se
exclusivamente e precipuamente em benefício do Poder Público ou
de uma determinada categoria de pessoas. Seria um contra-senso
aceitar-se, de um lado, que o povo outorgou a competência tributá-
ria às pessoas políticas e, de outro lado, que elas podem exercitá-la
em qualquer sentido até mesmo em desfavor deste mesmo povo.”

Roque Antonio Carrazza30

Em vista das liberdades econômicas, o contribuinte bra-


sileiro goza do direito de reestruturar a exploração do seu
capital da forma mais eficiente, inclusive sob a perspectiva
fiscal, salvo intervenção clara do legislador competente. Há
na Constituição Federal a consagração de uma série de prin-
cípios, como livre iniciativa, livre concorrência, legalidade, se-
gurança jurídica, igualdade, solidariedade e à observância da
capacidade contributiva na eleição legal do fato gerador. No

30. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São


Paulo: Ed. Malheiros, 2003, p. 62-3.

841
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

labor do legislador, todos esses princípios devem ser conside-


rados em conjunto, verificando-se preponderâncias em face
de cada caso, em que devem ser avaliados os impactos econô-
micos, indutores e arrecadatórios da norma tributária.
A Constituinte atribuiu ao legislador complementar o
monopólio da calibração do hidrômetro de intolerância ao pla-
nejamento tributário no Brasil (art. 146 da Constituição). Um
danoso desequilíbrio entre os Poderes da República pode sur-
gir da flexibilização dessas competências conferidas ao legis-
lador (complementar e ordinário).
A administração fiscal se desviaria da Constituição Fede-
ral se justificasse os seus atos a partir de controvertidas con-
cepções sobre princípio da solidariedade, que tornam pouco
relevante a decisão clara do legislador para a intervenção no
patrimônio particular (relativização do princípio da legalida-
de). Ao adotar-se como justificativa um suposto dever fun-
damental de pagar tributos, pela exploração do princípio da
capacidade contributiva em questionável vertente ativa (isto
é, tributa-se todo aquele que apresente capacidade contribu-
tiva, com a flexibilização da legalidade), fragilizar-se-ia grave-
mente, ainda, a eficácia dos princípios da segurança jurídica,
da certeza do direito, de iniciativa privada, de livre concorrên-
cia e da igualdade. Ocorre que, à revelia de lei, não haveria
como prever questões fundamentais à vida social e econômica
do País, como: O que, afinal, ostenta fato gerador dos tributos?
Quem deve pagar? A tributação entre concorrentes de mercado
fica condicionada ao arbítrio de um agente fiscal na mensura-
ção de critérios próprios para a estabilização da justiça social
via tributos?
A consideração cega do princípio da solidariedade faria
com que a administração fiscal prescindisse da legalidade, o
que ofenderia os mais comezinhos princípios geralmente acei-
tos pelas nações civilizadas. Como bem adverte Paulo Ayres
Barreto31, um “princípio da supremacia do interesse público

31. BARRETO, Paulo Ayres. Elisão tributária - limites normativos. Tese apresentada

842
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

sobre o privado, considerado de forma isolada, qualquer arbi-


trariedade fiscal se legitima. Se a ele conjugarmos o princípio
da solidariedade social, será possível até reduzir a odiosidade
do arbítrio cometido. Em contrapartida, a consideração, de
forma isolada, do direito de propriedade, da livre iniciativa,
do livre exercício da atividade econômica ou da liberdade de
contratar conduzirá a outros excessos, igualmente desarrazo-
ados e, fundamentalmente, descompassados com o contexto
constitucional. ”
Obviamente o princípio da solidariedade deve ser vivifi-
cado pelas normas tributárias. Mas cabe ao legislador distri-
buir o encargo das despesas públicas entre os integrantes da
sociedade, de forma a cumprir o aludido princípio. Em maté-
ria de impostos, compete ao legislador escolher algum dos ele-
mentos que denotem capacidade contributiva, no âmbito de
suas respectivas competências prescritas pela Constituição,
para gravá-lo com os tributos necessários ao financiamento
de suas necessidades. Como já observava Ezio Vanoni32, “o le-
gislador, com base nos princípios políticos, econômicos, éti-
cos, que prevalecem no tempo, disciplinará de maneira con-
creta a repartição do montante necessário entre os obrigados,
mas o dever do indivíduo de suportar o tributo”.
Ainda que inspirado pelo princípio da solidariedade, com-
pete ao legislador gravar com tributos exclusivamente signos
presuntivos de riqueza, sendo-lhe vedado obrigar o particular
a concorrer com os gastos sociais por motivos que não deno-
tem a sua capacidade para contribuir com estes. Conforme
leciona Luís Eduardo Schoueri33, “não basta a existência de

ao concurso à livre docência do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da


Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2008, p. 201-202.
32. VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributarias. Trad. Rubens Go-
mes de Souza. Rio de Janeiro: Ed Financeiras, 1932, p. 125.
33. SCHOUERI, Luís Eduardo. Planejamento Tributário: limites à Norma
Antiabuso, in Revista Direito Tributário Atual n. 24. São Paulo: IBDT/Dialética,
2010, p. 349.

843
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

capacidade contributiva para que surja a tributação; é papel


do legislador escolher, dentre as diversas hipóteses inseridas
em sua competência, aquelas que darão azo à tributação”.
Também é necessário concluir que, no Brasil, não se sus-
tentam teses sobre a do dever fundamental de pagar tributos
por todas as capacidades contributivas descobertas, já que, di-
ferente dessa suposta “sujeição” automática e constante ao ar-
bítrio da administração, vige, com dignidade Constitucional,
o dever do particular contribuir com parcela de seu patrimônio
sempre que incorrer no fato gerador previamente escolhido por
decisão do legislador competente. A norma constitucional se
limita a atribuir competência ao legislador para regular a li-
berdade do contribuinte à realização de seus planejamentos
tributários, mas não possui eficácia para legitimar, de forma
imediata, a reação das autoridades fiscais a situações que sub-
jetivamente considerem “abusivas”.
Em ambiente democrático como o que conquistamos ao
longo desses 50 anos do CTN, caso um segmento da socieda-
de esteja insatisfeito quanto aos instrumentais disponíveis no
sistema para reação a planejamentos tributários (CTN, arts.
116 e 149), requer a Constituição que haja amplo debate e sen-
sibilização do Poder Legislativo, capaz de conduzir à aprova-
ção de lei complementar apta a prescrever um novo padrão
de atos de gestão do ônus tributário não tolerado para fins
fiscais.
Constata-se que o legislador competente não considera
institutos como “simulação”, “fraude” ou “dolo” tão estrei-
tos a ponto de permitir atos que não deveriam ser tolerados,
nem tão amplos a ponto de permitir arbitrariedades por parte
do fisco. O legislador complementar, desde e edição do CTN
(1966) até hoje, considera suficiente que a administração fiscal
reaja exclusivamente em face de atos simulados, fraudulen-
tos, com o dolo da evasão de tributos, reconhecendo-se a legi-
timidade das demais práticas. O legislador ordinário, por sua
vez, apresenta iniciativas coerentes a diretriz de liberdades
econômicas garantidas pela Constituição, o que se observa

844
50 ANOS DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

com as opções fiscais previstas no sistema, bem como pela não


conversão em lei de medidas provisórias que extrapolariam o
conceito de “fraude”, à “simulação” e ao “dolo”, como a MP n.
66/2002 e a MP 685/2015.
Os 50 anos do CTN de intolerância apenas a essas hipó-
teses de evasão de tributos, com a tutela mais recente, há 15
anos, dos casos de “dissimulação”, evidenciam uma eloquente
decisão do legislador complementar que requer obediência,
posto que mandatória. Deve ser repudiado o arbítrio caracte-
rizado pela prática de ato restritivo de direitos por agente in-
competente, que adote critérios estranhos ao legislador com-
plementar, tais como “propósito negocial”, “abuso de formas”
ou “abuso do direito”.
O presente estudo, ao ensejo deste XIII Congresso do
IBET e das celebrações do CTN, tem o único propósito de
suscitar o debate sobre o tema do planejamento tributário em
face das competências prescritas no ordenamento jurídico
brasileiro. O bem que se idealiza dessa discussão é a harmo-
nia entre os Poderes e a certeza do direito, primordiais para o
Estado de Direito. Mas se desequilíbrio houver, competirá ao
Poder Judiciário o monopólio da última palavra quanto à “me-
lhor” interpretação e aplicação da lei complementar aos casos
concretos.

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