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KOUROS

Obra condensada para leitura dramática

Nikos Kazantzákis

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ÍNDICE

Introdução: Tempo, Caráter e Destino .................................. 5


Kouros: Obra condensada para leitura dramática ................ 11
Chronos - O Tempo do Homem ........................................... 53
O que é mito ........................................................................ 57
Ulisses (Fernando Pessoa) ................................................... 61
Referências .......................................................................... 63

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INTRODUÇÃO
Tempo, Caráter e Destino

“Vigie seus pensamentos, porque eles se tornarão palavras;


vigie suas palavras, pois elas se transformarão em atos;
vigie seus atos, porque eles se tornarão seus hábitos;
vigie seus hábitos, pois eles formarão seu caráter;
vigie seu caráter, porque ele será o seu destino”.
Píndaro, Fragmentos, séc. VI a.C.

Kazantzákis, leitor de Nietzsche e Bergson, ao reescrever


o mito de Teseu, cria outro final, e nessa reescrita, desafia o
próprio destino, palavra que o autor nomeia de 32 maneiras
diferentes. Em sua peça teatral Kouros mostra que os fatos
se repetem sempre iguais até o momento em que aparece um
herói determinado a enfrentar o problema, removendo o obs-
táculo que impedia “a roda da fortuna” de girar.
Kazantzákis em sua obra reflete sobre o tempo, caráter e
destino. Esses temas dialogam com a poesia de Píndaro “Vigie
seus pensamentos”.
Se o destino fosse determinado não haveria espaço para o
inesperado.
O inesperado é o que não faz parte dos planos e tanto pode
ser benéfico quanto negativo, sendo necessário conhecimento
e caráter para saber discernir um do outro.
O destino depende da nossa capacidade de acolher novas
ideias e aprender com elas.
Teseu nunca poderia imaginar que uniria forças com seu

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antigo inimigo e que seria chamado por ele de ‘meu filho’,
‘meu herdeiro’.
Teseu, príncipe de Atenas, durante muitos anos, viveu in-
conformado com a situação de seu povo que era forçado a
entregar os jovens para alimentar o Minotauro de Creta.
A partir de um diálogo consigo mesmo, Teseu decide to-
mar para si a tarefa de mudar aquela situação, sente-se for-
te e confiante, mesmo sabendo de todos os perigos que teria
que enfrentar. Para ele, só havia duas possibilidades: matar ou
morrer.
Ao dirigir-se a Creta, não tinha certeza se era ou não o mo-
mento oportuno. Sabia apenas que havia um problema que se
arrastava por muito tempo, e queria resolvê-lo. Ao conversar
com Ariadne e tomar conhecimento de que o rei estava com
suas forças enfraquecidas, percebeu que chegara a Creta em
um momento favorável ao novo, o momento “kairótico”, seu
propósito estava em consonância com o destino.
Teseu percebe uma sincronicidade entre os acontecimentos
que lhe é favorável, não estava sozinho, a Providência o aju-
dava. Pede que Ariadne lhe dê mais detalhes:
“Continue, minha dama, não pare. Este deve ser um da-
queles momentos enviados pelos deuses. Deve ter sido escrito
pelo Destino.”
Ariadne revela:
“Meu pai se voltou para mim. Olhou para minhas mãos,
depois para a lua e suspirou. Ariadne, o Destino caminha por
sobre os deuses. Olhe para suas mãos. Os deuses morrem tam-
bém. Nós os matamos.”
A revelação feita por Ariadne é muito importante, mostra o

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enfraquecimento do rei Minos, algo que facilitaria o cumpri-
mento de sua missão. Muda então de atitude e torna-se recep-
tivo para acolher os conselhos do rei. Até aquele momento,
Teseu contava com seu “amigo interno”, agora sente que a
Providência enviava também aliados para ajudá-lo. Mais tar-
de, o próprio rei Minos lhe revela que estava à sua espera há
muito tempo.
“Eu acredito que você seja aquele por quem eu esperava
todos estes anos!”
O rei Minos aguardava a chegada de alguém que pudes-
se completar a sua tarefa e reconhece em Teseu essa pessoa.
Após descer e retornar do labirinto, Teseu recordaria que tam-
bém o Minotauro o reconhecera como aquele que viera para
libertá-lo.
“E enquanto lutávamos, e nossas respirações se misturaram,
como é que você me reconheceu e me chamou pelo nome?
Você sabia que eu era aquele por quem você tinha esperado?”
No tempo kairótico, que inclui o inesperado, nem sempre
é possível prever antecipadamente como agir, o importante é
estar preparado. O rei Minos, com a sabedoria de quem viveu
muitos anos, pede ao jovem guerreiro que não tenha pressa.
Teseu chega a Creta como opositor do rei e se torna seu
herdeiro, aquele que até então era seu inimigo transforma-se
em aliado.
“Você pensa que é meu inimigo, mas você não é. Você é o
meu único herdeiro e meu companheiro nesta luta,” diz o rei.
O príncipe de Atenas estava determinado a matar ou morrer,
confiante empreendeu a viagem, levando consigo os talismãs
de sua família que lhe davam coragem. Mas lhe é apresenta-
do um terceiro caminho: não matar, nem morrer, e sim trans-

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formar. Para isso não necessitaria de suas armas, mas sim do
conhecimento que Minos oferecia-lhe e da música, que seria
tocada por Ariadne no momento preciso.
“Primeiro me dê sua adaga que esconde em seu cinto. Você
precisa descer desarmado.”
Teseu, convencido pelos argumentos de Minos, aceita agir
de acordo com suas orientações. No momento em que troca
as armas de seus antepassados pelo conhecimento que o rei
lhe oferecia, Teseu torna-se seu herdeiro. Essa posição será
questionada mais tarde por Ariadne que, tomada de ódio por
não ver seu amor correspondido, deseja a morte de Teseu e
reivindica, como filha, ser a herdeira, não reconhecendo que
não bastavam os laços de sangue.
“Pai, eu farei tudo o que eu puder. Abra a porta escurecida
pelo tempo”.
Minos é apresentado como um velho rei sábio que aceita
com serenidade os ciclos da vida. Reconhece que há um tem-
po certo para ocupar uma função, e que o seu tempo como rei
havia chegado ao fim.
“Ó herdeiro, está amanhecendo – vá embora! Vá e regresse
rapidamente para que você possa empurrar a Roda da Fortuna
e fazê-la girar! Eu a empurrei tanto quanto pude. É a sua vez
agora!”
A serenidade e sabedoria mostradas pelo rei em seu encon-
tro com Teseu foram conquistadas com o tempo. No passa-
do, quando jovem, tomado de certa arrogância, quis opor-se à
Roda da Fortuna, pensando que poderia fazê-la girar confor-
me os seus desejos.
“O Destino tinha medo de me dar um filho homem, então
eu me tornei obstinado. Eu disse: “Eu vou me opor ao Destino,

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este é o dever de um verdadeiro homem”. Então eu lhe criei,
minha filha mais velha para amadurecer (...) para subir ao tro-
no protegida pelos deuses, como se fosse meu filho.”
O destino nos favorece quando agimos sintonizados com a
realização da nossa essência. Minos reconhece que o destino
vencera e que não adiantou desafiá-lo:
“Mas todos meus esforços foram em vão. O Destino ven-
ceu.”
Ariadne, vencida pelo ódio, não aceita a decisão de Teseu,
quer impor de qualquer forma a sua vontade.
“Deixe-me então ser quem luta, sou sua herdeira, não ele!
(...) Onde está aquele conselho que você me deu quando me
ensinava como governar o mundo? (...) você me dizia, (...)
‘Diga: isto é o que quero! Sem questionar se o Destino assim
também o quer!’ Isto é o que desejo agora, Pai, mesmo se o
Destino não quiser. Mate-o.”
A princesa não consegue compreender a importância do
feito já realizado por ela e Teseu. Diferente do jovem príncipe,
que ao voltar do labirinto vê o mundo ampliado, ela continua
opondo-se ao destino, negando-se a aceitar a realidade.
Teseu realizou um grande feito, libertou o minotauro de
Creta, salvando também os jovens de sua Pátria, que não mais
seriam entregues em sacrifício. Mas o jovem guerreiro somen-
te conseguiu descobrir como realizar a tarefa que lhe estava
destinada e o momento certo de empreendê-la porque estava
conectado com sua força interior. Ao recolher-se em silêncio,
pôde ouvir aquela voz interna que nos coloca em ação no mo-
mento oportuno.
Na peça de Kazantzákis obervamos que a música ocupa
um lugar muito especial. Sem a música tocada na flauta por

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Ariadne, Teseu não teria conseguido separar-se do Minotauro
e sair do labirinto. A música representa o terceiro elemento
que harmoniza razão e instinto, elevando o homem ao um pla-
no superior.
A história mostra que há um tempo certo de agir. Quando
estamos com pressa não temos a calma necessária para manter
o silêncio. O agir vinculado ao silêncio é o estado em que se
dá o amadurecimento das ações. O silêncio nos conecta com o
som do universo, levando-nos a agir em função do que senti-
mos quando sintonizados com esse outro tempo.
Na peça Kouros a palavra Silêncio é utilizada 38 vezes e
outros termos como Calma e Não tenha pressa, 20 vezes.
O rei Minos confessa que não conseguiu completar a tarefa
porque apressado não conseguiu chegar ao estágio do silêncio.
Teseu antes de chegar a Creta não sabia da importância da
calma, uma das importantes lições que aprendeu com o rei.
Descobriu que o destino está ligado ao tempo, um tempo que
rege a harmonia do universo e independe de nós.
A atenção aos sinais só é possível se temos a serenidade
interna e o espírito flexível, apto a acolher o que está sendo
oferecido naquele exato momento.

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PRIMEIRO ATO

Teseu: Eles me deram poções entorpecentes para eu beber


– mas elas não tiveram efeito sobre mim.
No início da peça vemos que eram contadas muitas his-
tórias sobre o minotauro. Ninguém o havia visto, mas sa-
biam que se alimentava da juventude. As várias histórias
inventadas afastavam as pessoas da verdade, deixando-as
confusas, imobilizadas. Essas crenças funcionavam como
entorpecentes e serviam para disfarçar a ignorância. As
crenças não necessitam de fundamento ou explicação, bas-
tam-se por si mesmas. Servem de base para o fatalismo: as
coisas são assim e continuarão a ser.
Teseu: A hora decisiva paira sobre minha cabeça como
uma espada. A mão do Destino segura a balança e balbucia
palavras perversas sob a luz da lua.
Teseu tem a intuição de que é chegado o momento de
realizar a tarefa para o qual estava predestinado. E ao ou-
vir o relato de Ariadne terá a confirmação de que o destino
está a seu favor. Descobrirá que o destino ajuda quando
estamos empenhados em cumprir nossa missão.
Teseu: Eu levanto minha voz e grito: “Venha, ó valoroso
amigo de minha juventude! O momento chegou – nós estare-
mos perdidos ou salvos juntos – me ajude! Muito nos aguarda
– grandes feitos, e homens que se recusam a fazê-los; feras
que ainda vagueiam em nossa terra; deuses feios, baixos e
maus. Nós dois juntos nos prepararemos para destruí-los!
(Aponta para a porta em direção ao Minotauro). Comecemos
com ele!
Teseu dialoga com o seu “amigo interno” e nele encon-

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tra a força de que precisa.
Depois, dirigindo-se ao capitão:
Teseu: Capitão, esta é uma hora perigosa, um lugar peri-
goso. Volte para o barco! Prepare as velas negras, calmamen-
te, sem nenhuma certeza; prepare as velas brancas também
– todas as portas para o incerto, para o desconhecido estão
abertas.
Capitão: Nobre príncipe, eu sou um velho corsário e pa-
guei com meu sangue para aprender uma lição: nunca confie
naquela impetuosa prostituta, o Destino.
Você é o único filho de nosso rei – a esperança de nossas
crianças. A sobrevivência de nosso país depende de você. Não
preciso pedir permissão para lhe salvar da morte. É o meu
dever!
Teseu: Eu sou o filho único de meu deus! Eu sou o filho úni-
co de mim mesmo, de mais ninguém! E luto incessantemente,
com uma teimosia inabalável, para me tornar o homem que
desejo ser... Não continue a me testar! Eu lhe digo, esta é uma
hora perigosa! Vá embora!
Teseu estava decidido a resolver o problema que se pro-
longava por várias gerações. Mas o herói quando está a ca-
minho de sua missão é sempre desafiado, encontra vários
obstáculos que precisa vencer para alcançar seu objetivo.
O capitão incrédulo tenta dissuadi-lo, com o argumento de
que Atenas não poderia perder seu único herdeiro e futuro
rei.
Mas Teseu estava convencido de que cumpriria seu pro-
pósito, não seria um rei que continuaria a entregar a ju-
ventude de seu país, enfrentaria a fera. Não se intimidou
com as palavras do capitão. Teseu, pela sua natureza não

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poderia agir diferente.
Capitão: Quantos desceram às entranhas da terra no pas-
sado, meu príncipe? E quantos conseguiram retornar para
ver a luz do dia novamente? Um? Nenhum! Então em que tem
baseado suas esperanças, meu orgulhoso príncipe? O que es-
pera encontrar?
Teseu: O inesperado – porque meu capitão, o homem or-
gulhoso nada mais espera do mundo. Sua mente está endu-
recida, seu cérebro é como uma balança alterada que trapa-
ceia – com correntes pesadas e ganchos acostumados a pesar
mercadorias humildes como carne e madeira, não delicadas
pérolas!
O capitão possui um olhar fatalista: foi assim e sempre
será. A conversa entre os dois representa o diálogo entre
a resignação que se entrega ao fatalismo e a coragem de
alguém que se dispõe a enfrentar o inesperado e cumprir
sua missão.
Capitão: Minha mente é dura, mas está seguramente
ajustada, e meu corpo caminha firmemente sobre a terra, não
nas nuvens. Agora ouça o que tenho para lhe dizer: Um dia
quando estava andando, eu vi uma mulher me seguindo...
O segundo obstáculo que Teseu precisou enfrentar foi
Ariadne, uma linda e sedutora mulher que lhe acenou com
a oferta de poder, filhos e sua própria beleza e amor. Ape-
sar de toda essa sedução, Teseu não sucumbiu, não se dei-
xou desviar de seu propósito, e seu instinto e perspicácia o
fizeram desconfiar das intenções de Ariadne.
Teseu: Basta! Qual é a mensagem que você traz?
Capitão: A filha mais velha do rei Minos – a indomada
Ariadne – estava lutando com um touro na arena o dia inteiro

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hoje. Mas não era uma luta, era um jogo – perigoso e sedutor
Não há como não admirar essa luta. Pode-se então compre-
ender que outrora homem e animal eram um só, e uma espada
impiedosa os separou. Agora, subitamente se encontram de
novo nestas arenas de mármore, com amor e ódio.
Teseu: Por que você me conta essas indecências? O que
sua toureira deseja a esta hora da noite, para que você venha
me trazer suas histórias e colocá-las entre eu e meu destino?
Capitão: A ama disse: “Eu sou uma sacerdotisa da corte
da princesa Ariadne, majestosa é sua graça! Ela mantém sua
força intacta, jamais utilizada, reservada para o trono. Mas
hoje de madrugada, ela viu seu príncipe de louros cabelos
cacheados e pela primeira vez abriu seus braços vazios e sus-
pirou. Capitão, encontre seu nobre príncipe Teseu, diga a ele
para esperar minha senhora à meia-noite fora da porta que
dá para o Labirinto”. Esse foi o recado trazido pela mensa-
geira de Ariadne.
Teseu: Sedutoras, perigosas vozes que nos confundem e se
batem com o vento – morte, vergonha, honra, alegria... imor-
talidade – todos estes demônios tem lábios e asas e ganchos.
Eles levantam e caem ao sabor do vento. Eles se engancham
em nossos ombros e sopram palavras enganosas. É meu dever
separá-las e escolher entre elas, objetivamente.
Muito atento aos perigos, Teseu logo percebe que aque-
le era um momento perigoso, um descuido e poderia ser
arrastado para o abismo por aquelas sedutoras palavras.
Mais uma vez dialoga com seu coração e sente a necessidade
de ter muito cuidado.
Teseu: O Destino pode assumir belas formas para nos se-
duzir rumo ao abismo. Tenha cuidado, meu inocente coração.
Escute meu comando: “O Príncipe de Atenas se recusa a
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ver sua senhora. Os pensamentos dele são todos para a luta
com o animal do mundo subterrâneo. Ele não aceitará qual-
quer outra batalha.” Diga isto à sua princesa, e nada mais!
O capitão, preso à sua convicção fatalista de que Teseu
iria morrer, tenta convencê-lo a não perder a oportunida-
de que o destino estava oferecendo.
Capitão: Há apenas uma virtude que é certa neste mundo
o momento fugaz, de graça. O momento de epifania. Esta é a
maior riqueza de todas. Dura tanto quanto um raio de luz, e
depois desaparece para sempre. Às vezes é chamada de mu-
lher, às vezes glória. Às vezes é chamada de deus. Pode assu-
mir muitas formas, mas é sempre a mesma.
Teseu: Eu não quero que Ariadne venha! O Destino cego
pode assim desejar, mas eu não quero.
Capitão: O Destino não é cego, somente a alma do homem
é cega. Ouça os braceletes e brincos a tilintar no vento. Você
consegue ouvir os braceletes dela? O Destino se aproxima!
Teseu: Que Destino?
Capitão: A filha de Minos!
Impetuosa, Ariadne não espera a resposta de Teseu e
apresenta-se.
Ariadne aparece. Ela olha debochadamente por cima
da cabeça de Teseu, evitando seus olhos. O jovem Prínci-
pe, cabeça ereta, fixa seus olhos nos dela, mas permanece
imóvel. Faz-se um longo silencio.
Ariadne: Você não vai se ajoelhar e me adorar? Eu sou a
filha mais velha de Minos, a filha de Pasiphae, que foi beijada
pelos deuses, eu sou a irmã do deus devorador de homens, o
Minotauro, sou a princesa Ariadne! Como você ousa ficar aí
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de pé e me olhar nos olhos? Curve sua cabeça, abaixe seus
olhos. Quem é você?
Teseu: Eu sou um pobre, mas orgulhoso bárbaro. Eu sei
que você tem sangue divino, que descende de Minos e Pasi-
phae e do Minotauro, mas eu não estou deslumbrado, porque
eu somente adoro a virtude e o sacrifício! Filha da noite, o
que você quer de mim? Por que uma nobre dama desceria, em
uma hora como esta, para se encontrar com um bárbaro? Eu
não tenho nada para lhe dar.
Ariadne: Não morda seus lábios. Não segure a faca que
espertamente escondeu no seu cinto. Eu não tenho medo dela.
Nossos espiões nos contaram que antes de descer do barco
você levantou a pedra do túmulo do seu avô e conseguiu ar-
rancar a espada que estava nela encravada. E agora você
caminha majestoso porque pensa que ela tem consigo poderes
mágicos, e que com ela poderá cortar o mundo em pedacinhos
e devorá-lo, homem tolo...
Teseu: Não ridicularize meus ancestrais! Respeite os ne-
gros poderes da terra!
Ariadne: Você empurrou o destino para o lado, saltou sem
ter sido escolhido para dentro do barco com velas negras e
aportou aqui. Sua nobreza não respeitou os escuros poderes
da terra, respeitou? Pelo contrário, você ousou pedir o favor
de ser autorizado a descer totalmente sozinho até as funda-
ções de Creta, para lutar e matar nosso deus!
Teseu: Sim, porque ele quis me matar. Do contrario eu não
teria virado meu rosto para vê-lo. Eu não gosto de deuses que
têm cabeças de cachorros, ou chacais, ou touros, e são eles
próprios incapazes de conquistar a fera dentro deles! Sim, eu
descerei para lutar com o bruto, e se puder, o matarei.
Ariadne percebe que Teseu está determinado a
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interromper a história de sacrifícios imposta a Atenas. A
filha de Minos tenta seduzí-lo para impedir que cumpra
seu objetivo.
Ariadne: E depois?
Teseu: Então eu retornarei para a luz, embarcarei cantan-
do, e retornarei à minha terra com meus companheiros.
Ariadne: Nada mais? Você não sente um repentino êxtase
aflorando em você, nenhum feito desafiador à sua frente?
Teseu: Não. Estou calmo dentro de mim. Meus pensamen-
tos são sérios. Matar a fera é suficiente para mim!
Ariadne: Não, não é suficiente. Eu conheço um recém-nas-
cido segredo, um que você mesmo, filho orgulhoso de Atenas,
ainda não descobriu, porque nasceu somente agora, no mais
profundo de você.
Teseu: Um segredo? Dentro de mim? Qual é?
Ariadne: É um desejo ousado, não sagrado – um que ne-
nhum rei na terra teve ainda a audácia de conceber. Mas você
ousou!
Teseu: Continue! O que é?
Ariadne: Levar-me com você. Partir daqui comigo em seu
navio.
Teseu: Eu? Eu? Nunca. O que eu faria com você? Cada
parte de minha alma resiste e se contorce ao pensar nisto.
Ela não quer você. Cada parte do meu corpo se recusa a lhe
tocar! Meus ancestrais, camponeses, pegariam pedras que
cobrem seus túmulos para atirá-las em você e afugentá-la, ó
filha de Pasiphae, a que foi beijada pelo touro.
Ariadne: Por que você grita? Por que está com tanto
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medo? Minha flecha acabou de encontrar o alvo em seu cora-
ção e você treme de dor!
Teseu: Eu guardo minha força para os grandes feitos – eu
não planejo desperdiçá-las com mulheres. Seu sangue Ariad-
ne é misturado com o de deuses e animais. É um sangue con-
taminado, fraco, e não pode alimentar filhos e filhas. Eu não
quero!
Ariadne: Quando eu apareci na sua frente, você ousou me
olhar nos olhos. Você ainda não tinha tecido os pensamentos
sobre como iria me levar consigo. Mas agora você olha para
o mar, seu cúmplice, e faz planos com ele para me levar daqui!
Teseu: Eu vim para lutar com um deus, não para levar mu-
lheres. Eu não quero escapar. Estes braços, minha donzela,
nunca tiveram medo.
Ariadne: Você não está com medo? Então venha, vamos
lutar. Eu lutei o dia inteiro com um touro. Eu o atirei ao chão
e farei o mesmo com você.
Teseu: Lutar é abraçar. Eu não desejo isto.
Eu sou o filho do sol. Eu detesto a escuridão e curvas sinu-
osas. Filha da noite, fale, confesse, o que você quer de mim?
Sim, eu sou um camponês. Eu fiquei impaciente e raivoso nes-
te palácio de círculos sem fim. Eu não confio em ninguém.
Quem lhe enviou?
Ariadne: A noite me envia. Esta noite de lua cheia. Não me
pergunte mais nada.
Teseu: O que você quer?
Ariadne: Leve-me com você!
Teseu: Quem lhe enviou?
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Ariadne tenta uma nova estratégia para dissuadir Teseu,
acenando-lhe com a promessa de filhos e o trono de Creta.
Ariadne: Não pergunte quem me enviou. Venha, vamos
embora! A meia-noite já paira pesada sobre nós, todos estão
adormecidos, ninguém nos verá. Meu pai me ama e não nos
perseguirá quando souber que eu estou ao seu lado. Mais tar-
de, no tempo certo, quando ele segurar em seus braços seu
primeiro neto, ele nos acolherá e entregará Creta inteira para
nós pacificamente, sem uma batalha sequer – Creta com seu
mar carregado de navios.
Teseu: Que nova armadilha você está armando? Como é
que sua voz subitamente mudou – como é que agora você fala
como uma mulher? Você me oferece seu abraço somente para
me impedir de descer às profundezas da terra e lutar com a
fera. Eu não estou sendo enganado por suas palavras, feitas
somente para iludir e seduzir, para salvar seu deus de cabeça
de touro.
Ariadne: Não tenha medo, meu príncipe bárbaro. É o seu
dever como filho único. Nós somos jovens, os velhos estão de
saída e nós estamos perdendo tempo. Não pare a fim de se
apiedar deles! Olhe para mim, eu estou abandonando meu
pai. Desamarre as velas negras! Vamos embora! Atrás de nós,
amarrada ao mastro de seu barco, Creta nos acompanhará –
meu dote real.
Teseu: Filha da lua, qual demônio, qual deus pôs estas
palavras sedutoras e poderosas em seus lábios? Você armou
uma armadilha ornada de flores com a mais doce isca para
um homem: um filho!
Teseu sente mais uma vez o perigo e a necessidade de re-
correr a seu ‘amigo interno’, sua consciência, para não se
deixar enredar pela sedução de Ariadne que tenta de todas

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as formas desviá-lo de seu objetivo.
Teseu: Amigo, precioso amigo, me ajude!
Pela terceira vez, Teseu pergunta:
Teseu: Ariadne, quem lhe enviou para me encontrar hoje
à noite?
E Ariadne finalmente confessa:
Ariadne: Meu pai.
Teseu: Seu pai?
Ariadne: Sim. Ele está fora, e retornará hoje à noite. A
cada nove anos ele escala o mais alto pico de Creta e conver-
sa com seu deus. Mas hoje à noite, meu pai retornou triste,
mergulhado em seus pensamentos, com mãos vazias. “Pai”,
eu perguntei assustada, “você retornou, mas suas mãos es-
tão vazias? Você não conversou com ele, vocês dois – o Visí-
vel com o Invisível?” Ele acariciou meu cabelo gentilmente,
como se estivesse se despedindo. “Ariadne”, respondeu, “Eu
me despedi do meu deus para sempre!” E ele não falou mais
nenhuma outra palavra.
Quando Ariadne finalmente decide contar a verdade,
Teseu torna-se receptivo, desejando saber tudo que se pas-
sava em Creta.
Teseu: Continue, minha dama, não pare. Este deve ser um
momento enviado pelos deuses. Deve ter sido escrito pelo
Destino. Eu pisei no litoral de Creta no momento certo. Diga-
me, eu quero ouvir de novo. Você diz que ele se despediu do
deus Cretense, para sempre? E o deus cretense, se despediu
dele também?
Ariadne: Sim, foi isso que ele me disse e naquele momento

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parecia estar completamente sozinho no mundo.
E Ariadne revela o plano arquitetado por seu pai para
proteger os seus deuses a qualquer preço.
Ariadne: Meu pai se voltou para mim. Olhou para minhas
mãos, depois para a lua e suspirou. Ariadne, o Destino ca-
minha por sobre os deuses. Olhe para suas mãos. Os deuses
morrem, também. Nós os matamos. Mas nós precisamos fazer
tudo que pudermos para proteger os deuses até o último mo-
mento. Agora vá, encontre o príncipe bárbaro que veio até
nós através do mar. O beijo de mulher é todo-poderoso. Tenha
piedade de seu irmão, Ariadne, vá e esvazie o príncipe de suas
forças, e então deixe o Destino decidir!
Há um poder mais forte que o Destino? Gritei. Existe, ele
respondeu, se vista, enfeite-se e vá!
Que poder é este, pai? Perguntei.
A noite, ele disse, e me empurrou suavemente, desespera-
damente, para vir e me encontrar com você. E eu vim.
O rei Minos, ao ver-se sem o poder de comunicar-se com
os deuses, tenta driblar o destino com as armas da sedu-
ção, enviando sua filha e tendo como aliado o ambiente
enganador da noite. Mas a sedução não vence o destino.
Teseu ao ouvir o relato de Ariadne de que o rei Minos
estava de mãos vazias, percebe que havia pisado em solo
cretense no momento oportuno. Todos os sinais prenuncia-
vam que o destino estava ao seu lado, o que o faz sentir-se
ainda mais fortalecido.
Aquele era o momento kairótico, o tempo da ação hu-
mana possível, o tempo oportuno, favorável.
O gemido do Minotauro é ouvido – suave, em tom de
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lamento, como se estivesse para ser abatido.
Ariadne: Meu irmão... Meu amado irmão... Eu o levarei
embora daqui. Eu prometo que o levarei embora daqui...
Teseu: Não, nós não iremos embora! Diga a ele que eu
descerei agora, e que aconteça o que estiver escrito!
Ariadne ignora o conteúdo de suas próprias palavras e
como elas haviam fortalecido ainda mais Teseu na deter-
minação de cumprir seu propósito. Insiste em seus argu-
mentos:
Ariadne: Não, não! Nós precisamos pegar o Destino pela
mão e guiá-lo para a trilha do amor! O Destino quer a morte,
mas nós queremos um filho. Se nós resistirmos a ele, podere-
mos juntos vencer.
Teseu: Eu preciso primeiro lutar. O caminho do Destino é
este agora. Eu e ele precisaremos viajar juntos.
Nesse momento, o príncipe de Atenas sente-se fortale-
cido com o sentimento de que a providência estava ao seu
favor e que conseguiria se tornar “aquele homem que de-
sejava ser”.
Se até aquele momento, Teseu recorria a seu amigo in-
terno quando se sentia em perigo, agora, vê Ariadne como
uma aliada enviada pelo próprio destino. E com muita
serenidade pede à princesa que o ajude.
Teseu: Ariadne, minha companheira Ariadne, um boato
atravessou os mares e aportou em Atenas, dizendo que você
possui um novelo mágico... Por que você sorri?
Ariadne: Não acredite em contos de fada, Teseu. Aquele
novelo de fios é simplesmente minha mente. Eu posso desfiá-la
e encontrar o caminho certo.
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Teseu: Ariadne, pegue minha mão e me mostre o caminho!
Ariadne: Por que deveria eu lhe ajudar a matar o nosso
deus?
Teseu: Não é este o significado do amor? Ajude-me a cum-
prir meu primeiro dever como homem – matar e depois...
Ariadne: E depois? Não desvie o olhar, olhe para mim... e
então, o que acontecerá?
Teseu: Então eu farei o que meu deus comandar. Ajude-me
Ariadne. Eu não tenho medo da luta. São os desvios e curvas
do labirinto que me deixam tonto – são eles que odeio. Pegue-
me pela mão, amada, vá na frente, mostre-me o caminho!
Ao lembrar da história que contavam sobre o novelo
mágico de Ariadne, Teseu descobriu que o verdadeiro po-
der da princesa estava em sua mente, que poderia ajudá-lo
a percorrer as curvas do labirinto que o deixavam confuso.
Teseu: E peço apenas uma coisa de você: Vá na minha
frente e mostre-me o caminho! Você, sua mente, liderará. Eu,
a carne, lutarei. Será o bastante!
Ariadne: Não, meu querido, a mente não é o bastante,
tampouco a carne.
Teseu: A mente não é o suficiente? A força também não? O
que mais então é necessário Ariadne?
Ariadne: Alguns dizem que minha mãe adormeceu e so-
nhou que um touro dormia com ela. Outros dizem que era um
deus encantado pela flauta, que tomou a forma de um touro
para se encontrar com ela. Mas eu conheço bem minha mãe...
Era um touro de verdade. Selvagem e terrível, um touro divino
dos chifres às patas. E esta pequena, poderosa flauta que se-
guro em minhas mãos o amansou, o domesticou. Seu lamento
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doce suaviza a força, enche o coração com compaixão, une
homens e animais, transcende a mente e a matéria, e conquis-
ta o deus!
Ao contar para Teseu a história de sua mãe, Ariadne se
dá conta de que estava em seu destino ser aquela pessoa
que, com o poder da música, desceria ao labirinto com o
homem predestinado a domar a fera.
Ariadne: Ó Destino, quão cruéis, escuras e sangrentas são
suas estradas! Você decretou que com esta mesma flauta eu
trairia meu irmão e meu deus!
Percebendo a aproximação do pai, Ariadne orienta Te-
seu:
Ariadne: Meu pai se aproxima! Ele carrega as sagradas
chaves de ferro que abrirão o Hades para você. Dirija-se a
ele com respeito, meu amado. Não tente esconder nada dele
porque ele consegue ver além dos olhos e dos lábios, dentro
da mente. Ele vê o novelo embaraçado de fios que é a mente
humana e ele brinca com ela, embaraçando-a e desembara-
çando-a. Então ele a embaraça de novo e a retorna para você,
sorrindo. Dirija-se a ele com respeito.
Agora, vendo em Ariadne uma aliada, Teseu pede-lhe:
Teseu: Não saia do meu lado Ariadne!
Ariadne por sua vez, pede para Teseu prestar muita
atenção às palavras de seu pai, um homem que com sua
sabedoria e experiência poderia ser um precioso aliado.
Ariadne: Eu não irei embora. Eu me esconderei atrás da
pilastra. Eu ouço os seus calmos passos cansados! Curve sua
cabeça para que ele revele palavras sábias para você. Ouça-o
com atenção. Tente entender, se puder, seu significado oculto.

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Dizem que o mais maravilhoso e último Segredo repousa em
suas profundezas.
Teseu: Qual segredo?
Ariadne: Eu também não sei. Somente o rei sabe!
Minos: Bem-vindo à nossa terra, príncipe de Atenas.
Teseu: Eu lhe cumprimento, grande imperador de Creta.
Minos: Seu velho pai ainda está vivo?Ele ainda está forte?
Teseu : Desejo-lhe saúde por sua preocupação grande rei.
Sim, ele está bem – ainda forte e saudável – e envia seus cum-
primentos!
Minos: E sua terra passa bem também? Seus carneiros e
cavalos dão luz a fêmeas? E suas vinhas estão carregadas de
uvas?
Teseu: Estamos à mercê dos ventos e chuvas. Às vezes te-
mos o bastante para comer, outras vezes passamos fome. Mas
nós resistimos mesmo assim.
Minos: Sim, eu sei que vocês resistem. Suas palavras são
modestas e escassas, príncipe de Atenas, mas elas não me en-
ganam. Em seus olhos azuis eu detecto grandes incêndios, pa-
lácios queimando, pessoas sendo mortas, barcos afundando.
O que tudo isso significa?
Teseu: Por que você me pergunta, imperador que tanto
viajou pelo mar, você que se coloca no mais alto pico da hu-
manidade e conversa com o deus que tudo vê, que sabe de
tudo. Por que me pergunta se palácios serão queimados, se
homens serão mortos e barcos afundados? Você é quem pode
me dizer, e eu farei o meu dever.
Minos: Sim, você está certo. Esta é a lei cruel. Aqui de pé
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olhando para você, eu examino seus olhos e peso suas pala-
vras. Eu luto para encontrar o segredo que repousa na porta
de seu cérebro, que engole reinos.
Teseu: Somente deus está na porta de meu cérebro, e ele
espera lá com fúria.
Minos: Espera pelo quê?
Teseu: Eu não sei. Mas eu espero com ele. Quando a hora
chegar ele me dirá.
Minos: Quando a hora chegar, eu também lhe direi. Eu
não tenho outra escolha. Querendo ou não, eu lhe pegarei
pela mão e abrirei as portas do meu palácio para você. Eu
o levarei para a área onde ficam as mulheres, para meus te-
souros e embarcações, minhas adegas e pomares, e tirarei as
chaves de minha cintura – as chaves para a terra e os mares –
e as entregarei para você... Quer dizer, se a hora predestinada
chegar, e se você provar ser aquele por quem eu tenho espera-
do. Caso contrário, príncipe bárbaro, você deixará seus ossos
aqui, no solo cretense.
Teseu era aquele homem que se colocou a caminho de
realizar a tarefa de enfrentar o Minotauro. E estava con-
victo de que o destino lhe era favorável. Minos, do alto de
sua sabedoria, há muito tempo já aguardava por aquele
que ocuparia o seu lugar, precisava apenas da confirmação
de que Teseu era essa pessoa.
Teseu: Eu devo meus ossos à minha terra de origem. Eles
são dela, e eu os entregarei somente a ela. Eu não vim aqui
para ser morto, mas para matar.
Minos: Fale com respeito. Este momento é sagrado. Há um
abismo aos seus pés, príncipe da juventude. Há um abismo
aos meus pés, e o Destino paira sobre nós dois. Prepare-se,

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como eu já me preparei. Minha mente transbordou de terra,
céu e mar, e aprendi como fazer a Providência me servir. Na
terra, isto e somente isto é Liberdade.
Teseu e Minos confrontam-se, medindo forças, de um
lado a juventude incendiária de Teseu, do outro, a expe-
riência de Minos, ambas as forças equivalentes e comple-
mentares. Eles ainda não sabiam que aquele confronto
estava predestinado, e dali surgiria uma nova aliança. As
duas potências representadas por Teseu e Minos se uni-
riam em um mesmo propósito.
Teseu: Liberdade é quando a Providência faz o que eu
desejo. Perdoe-me por discordar de você, meu grande rei. A
Providência existe somente para almas humildes.
Minos: Silêncio. Você é muito jovem. Somente um novo
deus pode matar um velho deus. Quem é o novo deus que você
nos traz, louro bárbaro?
Teseu: Por que você pergunta? Você o conhece.
Minos: Sim, eu o conheço – ele é um bárbaro louro.
Teseu: Cruel, orgulhoso e pobre. Ele somente agora se li-
berta das pedras. Suas mãos e pés ainda não estão totalmente
livres. Mas não sorria, meu grande rei! Eu o libertarei com-
pletamente. Eu o farei caminhar sobre as pedras da terra, e
estendendo seus braços por todo o reino, para possuí-lo!
Minos: Eu admiro você – continue. Parece que estou ou-
vindo minha própria juventude, já morta, falando e se gaban-
do. Naquele tempo eu queria conquistar o mundo, e me unir
com deus! Este é o significado da juventude; acreditar que
você é um com deus.
Teseu: Meu deus e eu somos um só. Quando ele se debruça

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sobre a água, ele vê meu rosto. Quando eu me debruço sobre
a água, é o rosto dele que vejo. Somos um só. Se tiver qual-
quer valor, qualquer que eu possa ter, também a ele pertence.
Se eu for destruído, ele também é destruído. E agora preciso
descer com ele para o labirinto e lutar com o deus de cabeça
de touro.
Senhor mestre das chaves, tire as chaves sagradas de seu
cinto e abra a porta para entrarmos.
Minos: Você está com pressa?
Teseu: Sim, estou. Os velhos têm tempo; os jovens, não.
Minos: Você é quem está impaciente. Mas ser forte é con-
trolar sua força. Controle-se por um momento, jovem, e escu-
te:
Quando eu estava na flor da juventude, como você, dezoito
anos de idade, bronzeado, cabelos negros, ainda virgem, eu
toquei com minhas mãos nosso mais velho deus bárbaro, o
Touro. Eu o confortei e lhe disse: “Eu o salvarei da fera. Eu o
farei minha imagem: jovem, bronzeado, cabelos cacheados. E
se você não tiver um cérebro, eu lhe darei um!”
Teseu: E você o criou, grande guerreiro. Você lutou, car-
ne contra carne, com a fera que havia se unido a seu deus?
Você arrancou o animal de dentro dele? Você libertou o corpo
divino da fera, mas somente dos pés ao pescoço – você não
conseguiu ir além disso.
Você não pode ir mais longe – deixou sua cabeça divina es-
cravizada, porque eu não acredito na história sobre Pasiphae.
Você, grande Rei Minos, você se uniu com deus, através de
suas lutas, limitando suas próprias paixões, conquistando o
homem, transformando o caos em harmonia, você fez do touro
um Minotauro, mas não conseguiu fazer mais que isso.

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Minos: Sim, sim, eu transformei o touro em Minotauro.
Mas não consegui fazer mais que isso. Estou cansado, velho...
Você será capaz de completar a tarefa?
Teseu: Vitorioso derrotado, como pode esperar que eu sai-
ba os limites da minha força? Cada vez que me preparei para
uma batalha, minha força se manteve calma dentro de mim.
Mas descobri que na medida em que alcanço a encruzilhada
que levará à vida ou a morte, uma leoa faminta que se deitava
dormente dentro de mim subitamente emergiu! Rei, eu falo
com você, e olhe só! Minha força até então dormente se levan-
ta dentro de mim! Ela se enfurece com o cheiro do Minotauro.
Abra a porta para mim!
Essa força que fica adormecida, nos momentos de ne-
cessidade, desperta, se potencializa e nos faz agir. O rei
Minos, com a experiência de quem já havia confrontado a
fera, desejava mostrar a Teseu que aquela força, o instinto,
não poderia ser extinta, necessitava ser integrada.
Minos: Eu não abrirei a porta para você antes que eu lhe
arme com meu conselho final. Veja, você não luta sozinho. Eu
luto ao seu lado!
Teseu: Qual é o seu conselho final?
Minos: Uma vez eu desci para onde você está prestes a
descer. Eu senti o medo que você está prestes a sentir. Se eu
ainda fosse jovem, eu desceria de novo, porque não há alegria
maior que este terror. Mas eu estou velho.
Você pensa que é meu inimigo, mas você não é. Você é o
meu único herdeiro e meu companheiro nesta luta. Eu acre-
dito que você seja aquele por quem eu esperava todos estes
anos!
Nesse momento, Minos já reconhece em Teseu a pessoa

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por quem ele esteve esperando.
Teseu: Eu não sei. Como espera que eu saiba isso? Abra a
porta e então veremos!
Minos: Seja paciente, controle sua forca, se for forte. A
juventude é tola, apressada, condescendente. E as palavras
que estou prestes a lhe confiar podem acabar sendo desper-
diçadas.
Teseu: Não se preocupe então, fale livremente. Eu me cur-
vo perante a velhice que deu frutos. Quais são suas instruções
finais, velho guerreiro?
Minos: Primeiro, quando você descer às entranhas da ter-
ra e alcançar a escura e divina caverna, curve-se e cumpri-
mente nosso deus com respeito; ele é um grande guerreiro,
dentro dele se encontram os três poderes básicos da terra e do
céu: Animal, Homem e Deus. Ele luta para trazer ordem e eu
luto ao lado dele. Você compreende?
Teseu: Compreendo cada palavra sua. Minha vez de lu-
tar chegou, para que o mundo possa seguir adiante. Eu estou
pronto. Abra espaço para eu passar.
Minos: Não seja apressado – eu não terminei. Há três ca-
minhos abertos diante de você, bravo príncipe.
Teseu: Três caminhos? Quais são eles? Estou escutando!
Minos: O primeiro: matar o Minotauro.
Teseu: Este será o que escolherei!
Minos: Se você o matar, estará perdido. Jamais retornará
para a luz – e se conseguir sair, rastejará na terra, um aleija-
do sem raízes, um parricida maldito.
Teseu: Seu velho rei ardiloso, você está tentando me assus-
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tar. Eu não tenho medo. Eu o matarei!
Minos: Juventude tola! Você não sabe que quando um as-
sassino mata, ele também é morto? Você é jovem, acaba de se
levantar da terra e seus pés e sua mente ainda estão cobertas
de lama. O que você sabe dos segredos do mundo? Você ainda
não teve tempo para transformar a carne em alma, e alma em
ar! Curve sua cabeça com respeito e escute; caso contrário,
eu cerrarei meus lábios e deixarei toda minha sabedoria e
amor serem desperdiçados.
Teseu: Qual é o segundo caminho, grande rei?
Minos: O segundo? O Minotauro lhe matar. Mas também
há um terceiro caminho. É muito estreito, muito difícil...
Teseu: Não matar e nem ser morto?
Minos: Sim. Não matar e nem ser morto; e entretanto, ven-
cer.
Teseu: Eu não consigo imaginar isto. Eu preciso de seu
conselho agora, experiente guerreiro. Como é este terceiro
caminho secreto?
Minos: Vá e o descubra!
Teseu: Você descobriu?
Minos: Sim.
Teseu: Fale então, velho soldado camarada, para que pou-
pemos tempo. Você não disse que luta ao meu lado? Diga-me
então, qual caminho você tomou para que eu não perca meu
tempo procurando. Mostre-me até onde você conseguiu che-
gar, para que eu comece a partir dali.
Minos: Meu inexperiente guerreiro, a luta sempre começa
do início. É apagada, termina com cada luta, e começa nova
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em folha na próxima.
Teseu: Então irei sozinho e o encontrarei! Abra a porta.
Dê-me sua benção, Pai.
Minos: Se está escrito, vá e complete a tarefa que eu co-
mecei e não consegui terminar. Se você puder, encontre o ca-
minho que eu abri e siga-o até o fim. Liberte o deus, todo ele.
Você é meu filho e minha bênção está com você!
Teseu: Eu farei tudo que puder, Pai. Abra a porta escure-
cida pelo tempo.
Minos: Primeiro me dê sua adaga que esconde em seu cin-
to. Você precisa descer desarmado.
Teseu: Tome-a!
O príncipe de Atenas chega em Creta com as armas de
seus ancestrais. Mas ao ouvir as palavras experientes de
Minos, substituiu a herança que traz, tornando-se herdei-
ro do conhecimento do velho rei.
Teseu agora não mais lutará com as armas do avô, mas
sim com os ensinamentos de Minos, acompanhado da pre-
sença de Ariadne e sua música. O jovem mostra a disposi-
ção de substituir os talismãs da família, pelo conhecimento
oferecido por Minos, seu antigo inimigo. Descobre com o
velho rei que é possível tomar um terceiro caminho: trans-
formar, vencer, sem matar.
Minos, após transmitir a Teseu o seu conhecimento,
chama a filha para que o acompanhe. Sabia, por experi-
ência própria, que não era possível realizar aquela tarefa
sozinho.
Minos: Ariadne!

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Ariadne: Estou aqui, Pai.
Minos: Pegue-o pela mão – desembarace sua mente e o
guie!
O rei havia encontrado finalmente em Teseu um corajo-
so herdeiro, aquele que terminaria a tarefa que ele iniciara
- libertar a fera.
Minos: Ó lua, minha amada companheira, nós iluminamos
a noite da melhor forma que pudemos, você e eu. Mas em
breve amanhecerá, o sol surgirá. Não se lamente, vá em paz,
descansada, para seu lugar. Eu também irei para o meu em
paz. Nós cumprimos com nosso dever. Nosso dia de trabalho
chegou ao fim.

TERCEIRO ATO

Teseu: Amanhece.
Ariadne: (pega a mão de Teseu e a beija): Está terminado.
Teseu: Sim, terminou – e, entretanto, é somente o início.
Teseu sentia em seu íntimo que uma nova etapa estava
iniciando.
Ariadne: Como você o derrotou?
Teseu: Eu não o derrotei. Você estava lá, você nos viu. Nós
não lutamos, nós nos abraçamos. Você viu como nos beija-
mos, como rimos e nos abraçamos?
Ariadne: E então, meu amado príncipe?
Teseu: Silêncio! Deixe-me primeiro respirar! Eu ainda es-
tou envolvido pelos três grandes hálitos que quase me sufo-
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caram. Que alegria é viver, ver o amanhecer, sentir a fresca
brisa. Deixe minha mente descansar, Ariadne.
Ariadne: Você está cansado?
Teseu: Eu estou cansado – quanto terror, quanta dor! Aque-
le momento, tateando na escuridão, quando então eu discerni
os olhos dele, brilhando – tristes e cheios de significado, como
de um humano! Parecia que estava chorando!
Ah, amada e familiar brisa da terra; hálito perfumado do
mundo sobre a terra, sopre em mim, limpe-me! Minha boca e
minhas narinas ainda sentem o hálito forte da fera que esma-
gou e desgraçou sua face real, meu Grande Irmão!
Que fedor insuportável, que terror, quando eu lutei para
penetrar na fera de dura couraça, para alcançar a voz dentro
de você, uma voz humana se esvanecendo, mas que me cha-
mava suavemente, em súplica, por meu nome! E quando eu a
alcancei e me uni ao seu choro, tamanha foi a nova luta para
subir à sua altura, limpar sua cabeça sagrada dos chifres e
sujeira, e acariciar com alegria sua divina face que não esta-
va mais maculada, mas sim liberta e em paz.
Por quantos anos você não lutou para se libertar? Por
quantos milhares de anos você não grunhiu de vergonha e dor
– uma alma indestrutível, esmagada pela carne pesada e sem
nome – suspirando e pedindo ajuda? E enquanto lutávamos, e
nossas respirações se misturaram, como é que você me reco-
nheceu e me chamou pelo nome? Você sabia que eu era aquele
por quem você tinha esperado? Como devo lhe chamar? Pai?
Companheiro? Meu filho único? Nós nos separamos e eu não
fui capaz de discernir claramente seu rosto liberto na escuri-
dão!
Teseu relembra que houve um reconhecimento entre ele
e o Minotauro, a fera também o aguardava, o encontro
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entre eles estava marcado.
Teseu: Eu bebo à sua saúde, Mãe Terra, e lhe saúdo neste
meu retorno. À sua saúde, Ariadne! Com esta taça de água
gelada nos separamos. Eu não desejo mais nenhuma alegria
de você. Nem você pode me dar mais nenhuma.
Ariadne: Estas são palavras amargas, tome-as de volta!
Agora que alcançamos o final de nossa luta, a felicidade co-
meça. A batalha está atrás de nós, o amor se encontra adian-
te. Dê-me sua mão. Eu o guiarei em direção à luz, como lhe
guiei na escuridão.
Teseu: Ariadne, você já me deu a maior das alegrias. Nós
conquistamos a Morte juntos. Você alcançou o mais alto pico
de seu Destino. O abismo é tudo o que se encontra adiante.
Não siga em frente!
Ariadne: Suas palavras são distorcidas e ambíguas, con-
quistador orgulhoso. Sua mente é um labirinto, mas no seu
limite, lá na escuridão, eu consigo discernir seus pensamen-
tos – brilhantes como uma alta e afiada lâmina de dois lados.
Teseu: Como o mundo se tornou vasto agora, Ariadne! O
mundo – ou é minha mente que cresceu? Por que agora abra-
ça tanto amigos quanto inimigos! Como pode cumprimentar
e acolher o solo e a água, a terra e o céu, tudo, e vê-los como
se fosse pela primeira vez?
Após seu retorno do labirinto, Teseu vê o mundo de for-
ma diferente, agora tudo estava integrado, não havia mais
lugar para a dicotomia bem x mal.
Teseu: Eu era um bárbaro quando entrei no abrigo retor-
cido do Grande Guerreiro e retornei. Eu não sei como dizer
isto... Preciso criar novas palavras, Ariadne, para descre-
ver a nova esperança e a nova virtude, a nova virgindade, a

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nova força e o novo deus.
Ao descer e se confrontar com o ser ancestral, Teseu
nasceu para uma nova vida, estava integrado e tornara-se
aquele homem que desejava ser.
Ariadne: Amado, você ainda se preocupa com deuses?
Que maldição é esta que guia os homens? Eles lutam inces-
santemente, irremediavelmente, com sombras, nunca compre-
endendo que deus existe, age e se satisfaz somente na carne!
Ariadne nos é apresentada como uma mulher inteligen-
te e determinada, que se apaixona por Teseu e o ajuda com
a intenção de conquistar seu amor. Apesar de a princesa
ter descido ao labirinto, não fez dessa experiência o mes-
mo proveito que Teseu. Se o mundo do jovem ateniense
ampliou-se, o dela manteve-se limitado.
Teseu: Ariadne, não prossiga!
Ariadne: Eu irei até os confins do meu desejo, mesmo se eu
for destruída. Minha alma é como a sua – de uma lutadora.
Por que você continua a olhar em direção ao palácio? Por
quem espera? Nenhum amigo virá de lá. Os guardas devem
ter visto você da fortaleza, e em breve, trombetas gritarão
para que o rei apareça. A terrível mensagem saltará de porta
em porta, de boca em boca: “Deus foi morto!”. E você não
deixará este palácio vivo, meu amado! Mas ainda há tempo,
venha, me dê sua mão e vamos embora!
Teseu: Espere... Ainda não... Eu não estou mais com pres-
sa. Primeiro preciso dizer adeus ao meu pai.
Ariadne: Seu pai? Apresse-se, precisamos partir. O palá-
cio está em caos. As trombetas enlouqueceram, o velho rei
está vindo e está zangado.

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Teseu: Como alguém que sabe tudo pode ficar zangado?
Você verá daqui a pouco – ele colocará suas mãos sobre mi-
nha cabeça, e me dará sua benção. Sim, sua benção, porque
eu sou seu verdadeiro filho!
Ariadne: Teseu, você me assusta quando fala assim. Você
está pálido, suas mãos estão febris. Suas palavras são insa-
nas. Sua mente se descontrolou depois de tanta luta e abraço.
Vamos embora.
Teseu: Eu sou o seu verdadeiro filho. Não é minha mente
que se descontrolou, foi o mundo! É por isto que você está
assustada.
O velho rei estava cansado de lutar, ele parou no meio da
estrada da esperança, e o mundo parou com ele. Mas eu con-
tinuei sua luta e a levei até o final. Eu movi o mundo de onde
ele havia o deixado – eu o movi para adiante. É isto que sig-
nifica ser um filho.
Ariadne, filha de Minos, não conseguira tornar-se her-
deira de seu conhecimento.
Ariadne: Agora não podemos ir embora – ele acaba de
chegar!
Teseu não estava com pressa, queria esperar pelo rei.
Não poderia ir embora sem relatar a Minos o que havia
acontecido na sua descida ao labirinto. Ariadne, por não
compreender o que havia se passado, insistia na ideia de
que precisavam fugir para que Teseu não fosse morto.
Minos aparece, caminhando lentamente. Ele não está
vestindo seus adornos reais – a coroa, as jóias – nem segu-
rava o cajado real.
Teseu: Pai, que alegria! Eu completei sua tarefa!

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Minos: Você vive?
Teseu: Eu não sei, Pai. Penso que transcendi vida e morte.
Penso que uma alma imortal dentro de mim transborda e me
cobre da cabeça aos pés. Em suas mãos envelhecidas, que
já conquistaram tanto, agora deposito notícias maravilhosas.
Eu completei sua tarefa, Pai. Você pode morrer em paz agora.
Minos: Fale mais baixo. A alegria profusa é coisa de bár-
baros, não pertence a uma grande alma!
Teseu: Tampouco profusa lamentação, grande rei!
Minos: Nem profusa lamentação, mas tampouco palavras
insolentes. Será que você consegue, mesmo no momento de
força e vitória, manter sua mente limpa e desligada, fixada
não em você, mas em seu deus? Somente então você poderá
me chamar de pai.
Teseu: Suas palavras pesam com significado. Eu peço so-
mente por mais tempo para conter os arroubos característi-
cos da juventude – sua imensurável alegria e tristeza são um
obstáculo.
Minos: Você conseguiu subir do Hades. Deixe a alegria
e a tristeza de lado, esqueça. Elas são amantes do escravo.
Responda-me: o que são estas manchas de sangue em sua tú-
nica? De quem é o sangue? Seu ou dele?
Teseu: Como você espera que eu saiba? Ambos nos cobri-
mos de sangue, ambos lutamos como touros. Foi assim que
começamos, com medo e com sangue...
Minos: Pare! Você não completou o grande feito ainda. Te-
nha cuidado – na arrogância da sua juventude, uma palavra
supérflua pode escapar.
Até aquele momento, o rei Minos não estava convencido
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de que Teseu havia conseguido concluir a tarefa.
Minos: Eu lhe pergunto, minha filha: o que aconteceu lá
embaixo? Como foi que o bárbaro conseguiu encontrar o ca-
minho secreto? Eu não confiei nem mesmo a você este conhe-
cimento. Você deveria ficar sabendo somente no momento da
minha morte. Este é o maior dos segredos, a verdadeira coroa
que um rei passa para seu herdeiro. E, no entanto, este bárba-
ro o encontrou. Como?
Ariadne: Eu não sei, Pai, eu não poderia dizer. Quando os
dois se encontraram cara a cara, eles se agarraram, ofegan-
tes, se mordendo, grunhindo. Então, na luz de seus olhos, eu
vi por um momento que longos chifres retorcidos começavam
a brotar na cabeça loura de Teseu também!
Quando eles lutavam e grunhiam, eu subitamente ouvi um
profundo suspiro, muito suave e cheio de compaixão. Toman-
do coragem, eu apanhei a flauta e comecei a tocar a música
mágica que amansa e domestica touros. E lentamente, a luta
foi se tornando cada vez menos feroz, até se tornar gentil.
Eles começaram a suspirar docemente, e por um momento
parecia que começavam a chorar. Ambos então se deitaram,
um ao lado do outro, se acariciando e abraçando, sussurran-
do suavemente. Eles riam e choravam. E na escuridão eu não
vi mais chifres e lábios de touros, mas dois rostos humanos e
iluminados, irradiando felicidade naquela caverna selvagem.
Eles murmuravam e grunhiam de contentamento, delirantes.
Minos: O que aconteceu depois das lágrimas e do abraço?
Depois do doce delírio? Eu não consegui ir além deste ponto.
Teseu: Nós caímos em profundo silêncio.
Minos: Ah!
Teseu: Nós mergulhamos no silêncio, velho guerreiro. Este

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foi o clímax de nossa luta.
Nesse momento, são apresentados os estágios vivencia-
dos por Teseu durante sua descida ao labirinto: Primeiro
o confronto, com os grunhidos, o som, depois a música e,
finalmente, o silêncio, que o conecta e integra com a har-
monia do universo.
Minos: Eu não consegui chegar ao ponto do silêncio. Eu
não podia, eu era muito apressado. Eu estava impaciente para
retornar à luz e conquistar o mundo. E na medida em que fui
conquistando-o, me esqueci do deus escravizado que ainda
grunhia sob meus pés...
O rei Minos acreditava que a pressa o havia impedido
de concluir a missão que havia se proposto, mas sabemos
que tarefa como aquela só poderia ser realizada com a pre-
sença de uma outra pessoa que soubesse o momento exato
de tocar a música.
Minos: Mas que alegria para um homem como você! Con-
seguiu ir além e cumprir com a dívida de um filho. E então, o
que aconteceu quando vocês entraram nesse silêncio sagra-
do?
Teseu: Nós conversamos, e decidimos sobre muitas coisas
durante nosso silêncio. E agora eu subi de volta à terra para
realizar essas decisões.
Minos: Então vocês dois se uniram, vocês se tornaram um,
e esqueceram-se de que eu também existo? Será que nem deus
perdoa a velhice? Vocês dois disseram tudo através do silen-
cio?
Teseu: Eu não sei por que, mas não havia necessidade para
palavras. Se houvesse, nós teríamos falado.

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Minos: Você atravessou as três portas do ritual – sangue,
lágrimas e silêncio. Eu sinto o cheiro das três respirações so-
bre você: a do touro, do Minotauro, e do deus. Eu levanto
minha mão calmamente, sem alegria ou tristeza, acima do de-
sespero ou da esperança. Bem-vindo Rei de Creta!
Ariadne (gritando): Rei de Creta! Pai...
Minos: Creta está me abandonando. Deus está me aban-
donando. Agora é a sua vez, filha...você vai me abandonar
também?
Ariadne: Perdoe-me, Pai... Eu não sou um homem. Sou
uma mulher e minha hora chegou.
Minos: Sim, sua hora chegou, minha filha, então adeus!
Ariadne: Pai, você está partindo?
Minos: Como posso partir? Ainda não esvaziei minha taça
– preciso bebê-la toda, para desfrutar das últimas gotas.
Ariadne: Dê-me sua benção, Pai!
Minos: O Destino tinha medo de me dar um filho homem,
então eu me tornei obstinado. Eu disse: “Eu vou me opor ao
Destino, este é o dever de um verdadeiro homem”. Então eu
lhe criei, minha filha mais velha para amadurecer e conquis-
tar a maldição divina de ter nascido mulher, para subir ao
trono protegida pelos deuses, como se fosse meu filho.
Mas todos meus esforços foram em vão. O Destino venceu.
Sim, eu sabia, o Destino é uma mulher que sempre vence, mas
eu tinha colocado minhas esperanças e fé na sua irmã mais
nova e tola – a Providência. Eu me esqueci que ela também
ama homens jovens, que ela ridiculariza, odeia e trai os mais
velhos. Ela arrastou este príncipe louro e bárbaro para nos-
sas praias, a fim de que você pudesse nos trair, entregando ao
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belo forasteiro todos os segredos que eu lhe confiei.
Ariadne: Pai!
Minos: Fique em silencio! Eu tenho algo mais sério para
lhe perguntar? Como os dois se separaram? O abraço dos
dois durou muito tempo?
Ariadne: Não, foi tão rápido quanto um relâmpago. Eu
fiquei preocupada e me aproximei deles, estendendo minha
mão para sentir qual dos dois era Teseu, para que eu pudesse
pegá-lo e ir embora. Eu sabia que se o deixasse lá, ele nunca
mais retornaria para a humanidade.
Mas subitamente uma calma e azulada praia apareceu na
minha frente, e na areia, dois rapazes desnudos estavam lado
a lado, braços ao redor dos ombros um do outro, olhando
para o mar. Eles pareciam ter acabado de sair da água – como
se estivessem nadando – e enquanto ficavam parados ali, um
profundo e imortal silêncio os envolveu.
Eu não poderia dizer qual dos dois era o nobre príncipe de
Atenas. Ambos eram jovens, louros e queimados de sol. Será
que ambos eram deuses? Ou eram homens? Eu não saberia
dizer. “Teseu!”, gritei “Teseu!”, para ver qual dos dois vira-
ria a cabeça, respondendo ao chamado.
Mas quando quebrei aquele silêncio sagrado, o mar se mo-
vimentou, e como uma neblina, o vento o varreu, e tudo foi
engolido pelo sol. Eu senti então minha mão tremendo, pega-
da às mãos de Teseu. “Vamos!” ele disse suavemente no meu
ouvido, “Vamos, está terminado”. Tudo está terminado, Pai.
Minos: Por que você suspira? Coragem, minha filha, você
é feita de solo cretense, não envergonhe Creta! É durante o
momento da separação que as almas revelam sua nobreza.

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Ariadne (gentilmente): Pai ordene que ele me leve com ele!
Minos (sorrindo): Ordená-lo? Então você não sabe ainda
minha infeliz filha quem ele é?
Ariadne: Não, quem é ele?
Minos: Aquele por quem eu estava esperando...
Ariadne: Eu o amo, Pai, por favor, não o mate!
Minos reconhece que seu reinado estava chegando ao
fim e reflete com sabedoria sobre os ciclos da vida, com-
preendendo o quão absurdo fora tentar opor-se ao destino.
Minos: Mas eu o amo também! É por isso, filha, que não
há esperança! Príncipe de Creta, eu não lhe desejo nenhum
mal. Eu o observo de cima e sorrio com a compaixão e sabe-
doria da minha idade. Porque vejo, por detrás de seus om-
bros, outro Teseu que certamente virá um dia lhe arrancar de
seu trono, ó jovem Minotauro. E atrás desse outro Teseu, eu
posso ver claramente outro, e outro, e outro, e outro, até que
o último Teseu venha!
Teseu: Quem?
Minos: Fogo!
Teseu: Agora eu compreendo porque reinos são perdidos,
velho rei! Seu olhar foi para muito longe, sua mente se tornou
muito vasta, e seus braços – paralisados! Eu olho apenas para
o Teseu de agora. Este aqui! Deixe que os netos e bisnetos se
preocupem com o que acontecerá com os futuros descenden-
tes de Teseu, estes que você evoca! Este aqui é mais que o
bastante para mim. A alma demanda tanto, velho rei, e a vida
é tão curta... Não há tempo suficiente, preciso me apressar!
Minos: Adeus, jovem, quando você vai embora?

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Teseu: Espero pelo sinal.
Minos: Que tipo de sinal? De quem?
Teseu: Eu não sei. Posso apenas esperar. O sinal virá e
então partirei.
Minos: Quando voltará para nós?
Teseu: Quando cortar os ciprestes e pinheiros em nossas
colinas e construir meus barcos e armá-los. Quando reunir
meus exércitos de homens louros e descalços. Quando deus
me tocar no ombro e me disser que a hora chegou.
Minos: Não se preocupe com frotas e exércitos, meu her-
deiro! Se vier em um barco apenas será o bastante. Se aportar
em nossas costas numa casca de castanha – será o bastante.
Por muitos anos, os olhos cretenses têm contemplado o ho-
rizonte em direção ao norte, esperando você aparecer. Por
anos nós temos deixado tudo pronto – tínhamos barcos e os
abandonamos em nossos portos. Tínhamos um terrível deus
comedor de homens, e agora você deu a ele uma face e o levou
para longe de nós. E o pior de tudo – agora que as pessoas
não mais ouvirão o rugir do deus vindo de debaixo da terra,
elas se tornarão indecentes, se rebelarão, porque precisam
do medo. Sem o medo, eles enlouquecerão. Romperão suas
rédeas, jogarão o cavaleiro no abismo, e cairão eles próprios
também no caos!
Minos se dá conta de que o reino de Creta precisaria se
organizar de outra forma, e que não saberia governar sem
a figura assustadora do minotauro.
Teseu: Adeus, Pai – até a hora em que nos encontraremos
de novo. Você preparou tudo muito bem, sabiamente e com
paciência. Você preencheu suas mentes com inteligência e

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zombaria, seus corações com areia e serpentes. Os nobres es-
tão empanturrados, o povo passa fome. As mulheres estão es-
téreis, o fogo das lareiras se extinguiu – eu vou trazer o fogo.
Minos: Vá com minha bênção! Eu lhe peço apenas um fa-
vor, meu herdeiro!
Teseu: Peça, grande rei e pai, e se eu puder...
Minos: Você pode tudo agora.
Teseu: Eu não quero poder fazer tudo. Preciso escolher,
sem piedade. Diga-me qual favor quer de mim.
Minos: Esta é Ariadne, minha maravilhosa e amada filha.
Eu a enviei para lhe seduzir, mas você acabou seduzindo-a.
Ela lhe pegou pela mão e não deixou que você se perdesse
do seu caminho nos escuros, estreitos e sinuosos corredores
de nosso deus. Ela colocou a flauta mágica em seus lábios e
fez todo o possível para lhe ajudar a transformar o terror em
amor. Ó conquistador, dê sua mão para ela, ela é sua.
Deixe meu reino afundar com dignidade e repousar no fun-
do do mar.
Você está ouvindo? Eu, o grande imperador da terra e mar,
dou minha filha a um pastor. Por que você não me responde?
Ainda sou o rei e acabo de falar – mereço respeito!
Teseu: Adeus Ariadne, orgulhosa filha de reis! Nós nos co-
nhecemos como um relâmpago, sob a fria luz de nossa mara-
vilhosa lua – era meio-crescente. Nossas mãos se uniram tão
rapidamente quanto um relâmpago, nossos corações bateram
alto. Juntos completamos um feito imortal. Você se tornou
imortal. Deixou sua vida normal, as ruínas e destruição, e en-
trou no mundo da canção. Um passo a mais e será destruída.
Olhe. A lua está se pondo atrás da mais alta colina de Creta.

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Vá embora com ela! Você me deu tudo que era bom em você,
e levou tudo que era bom em mim! Adeus!
Teseu lembra à Ariadne a razão de sua viagem a Cre-
ta. E também que juntos haviam conseguido descer e re-
tornar do labirinto, realizando um feito que os tornaria
imortais; e com essa realização grandiosa estariam uni-
dos para sempre.
Ariadne, fazendo-se surda aos argumentos de Teseu,
responde com insultos.
Ariadne: Bárbaro mercenário, você age como se viesse
aqui para negociar mercadorias. “Eu lhe dei, você me deu,
eu lhe deixo...”. Eu lhe dei tudo, e não recebi nada. Você não
irá embora!
Pai, você ainda vive, ainda seguramos o cajado real que
governa homens e espíritos. Nossos lábios ainda não apodre-
ceram, Pai, grite, comande! Nossas almas ainda não apodre-
ceram. Resista!
Minos: Ariadne, minha filha, não se humilhe. O orgulho é
o único enfeite que nos resta – sustente-o bem alto.
Teseu, se você se recusa, não me ajudará a suavizar a ação
do Destino. Não me deixará colocar entre nós a bela princesa
ferida pelo amor. Minha última esperança se foi.
Venha então, Destino, venha como quiser, acompanhado
por fogo, terremoto e pela espada da matança. A mente deste
jovem é sagrada e inflexível, porque você o escolheu. Nin-
guém pode feri-lo, nem mesmo eu.
Ó herdeiro, está amanhecendo – vá embora! Vá e regres-
se rapidamente para que você possa empurrar a roda da
Fortuna e fazê-la girar! Eu empurrei tanto quanto pude. É

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a sua vez agora!
Ariadne: Meu imperador, não abra a porta para ele, não
entregue suas armas. Não ofereça seu pescoço para o golpe
da espada, porque se assim o fizer, a espada não terá culpa.
Você está cansado, Pai? Ficou muito velho? Você não vai lu-
tar mais? Deixe-me então ser quem luta, sou sua herdeira,
não ele! Volte para sua montanha e converse com deus, e me
deixe aqui no vale para trazer ordem a nosso povo.
Teseu, sua vida está pelo fio de uma palavra – uma palavra
sua. Diga-a e se salve. Salve todos nós!
Amado e impiedoso príncipe, estou envergonhada, mas
não posso controlar minha dor. Eu lhe imploro. Leve-me com
você! Para que me importam feitos imortais? Desejo passar
minha vida ao seu lado, meu marido! Leve-me com você!
Teseu: Eu falei de você para meu deus, filha da lua, mas ele
se recusa! Desejo você, mas ele não, e eu o obedeço.
Ariadne: Por que ele não me quer?
Teseu: Não sei, Ariadne. Ele não explica seus desejos. Ele
comanda.
Ariadne: Para onde está indo? Meu maldito, meu amado,
eu irei com você! Traí minha pátria, traí meu pai, meu deus
por você. Meu mundo está em ruínas. Não tenho ninguém
além de você agora – como pode me deixar?
Teseu: Adeus, Ariadne! Adeus, até que nos encontremos
mais uma vez, rei de Creta!
Ariadne: Pai, Pai, não o deixe ir! Convença-o a assumir
seu trono. Faça-o seu filho, apresse-o para conseguir de boa
vontade aquilo que o Destino escreveu. Por que nossos palá-
cios devem ser queimados, Pai? Dê a ele as chaves e deixe-o
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abrir nossas portas pacificamente. Ele é um camponês, mas
nós o ensinaremos a comer, se vestir e falar. Dê a ele o que
quiser. Compre-o, pague a ele para que me leve!
Minos: Ariadne, não se esqueça que é minha filha. Vamos
para a torre olhar o navio dele partir. Contemplaremos tudo
calmamente, enquanto o Destino salta com flamas e espadas
para lhe assustar. Olharemos e sorriremos sem tremer... Este
é o píncaro da força humana, minha filha. Venha, escalaremos
este píncaro juntos, e dali contemplaremos o navio partindo.
Ariadne: Onde está aquele conselho que você me deu
quando me ensinava como governar o mundo?
“Filha”, você me dizia, “enfrente a morte, resista como se
fosse imortal! Diga ‘isto é o que quero!’ sem questionar se o
Destino assim também o quer!”
Isto é o que desejo agora, Pai, mesmo se o Destino não
quiser. Mate-o. Ainda somos os que reinam aqui, mate-o! Ele
queimará nossos barcos. Destruirá nossos palácios. Nosso
povo cairá sob o jugo de sua espada, não pressente? Você ou-
viu o que ele disse – ele voltará para trazer seus homens, fogo
e espada! Seus olhos não consegue enxergar? Ele cheira a en-
xofre! Ainda há tempo, ele ainda está em suas mãos, mate-o!
Nossos soldados esperam por um sinal seu. Levante o clarim
sagrado e toque-o para chamá-los! Não tenhamos vergonha
nesta hora final, Pai. Vamos resistir ao Destino!
Todo o amor de Ariadne, ao não ser correspondido da
forma que ela gostaria, transforma-se em ódio. Teseu que
até aquele momento era seu amado, seu escolhido, trans-
forma-se na figura do demônio, exalando cheiro de enxo-
fre.
Minos: Você não tem medo? Amo muito minha filha. Nunca
recusei nenhum pedido dela. Vá! O povo em breve acordará e
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você estará perdido – eu não tenho outro herdeiro senão você!
Ainda há tempo. Corra para o porto.
Teseu: Não correrei como um ladrão. Tenho fé em meu
deus. Esperarei até ele me chamar. Somente então irei, e len-
tamente, com passos de rei, em busca de meu barco.
Teseu está tranquilo, acredita nos sinais da Providência.
Ariadne: Mate-o, Pai. Não peço nenhum outro favor de
você! Não importa que tenhamos que lutar com essa mulher
chamada Destino. Deixe-a conquistar nós dois, não ele! Não
Teseu! Toque o clarim sagrado.
Minos: Não há mais esperança, filha, mas tenho pena de
você e me compadeço. Está bem, vamos lutar então. Vamos
tentar segurar nosso brinquedo um pouquinho mais – nosso
brinquedo, o reino de Creta.
Ariadne: Pai! Um relâmpago abriu a porta do Labirinto!
Minos: Não interrompa este momento sagrado com gritos,
filha. Olhe para o ser imortal!
Ariadne: A luz me cega, Pai. Quem é este jovem que está
de pé na entrada escura do Labirinto? Imóvel, nu, brilhante,
a imagem exata de Teseu, mais alto, calmo e belo. Pai, quem
é ele? Você o conhece?
Minos: Eu o conheço. O Libertador, o que foi libertado.
Fique quieta.
Ariadne: E o que ele está segurando em sua mão? Não
consigo ver.
Minos: Ele segura a máscara de um touro. Ele foi liberta-
do. Ele está finalmente livre! Completamente livre, dos pés a
cabeça!

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Teseu: Companheiro, bem-vindo!
Ariadne: Pai, estamos perdidos. Ele estendeu seu braço
como se fosse possuir o mundo inteiro!
Minos: Ele está conquistando o mundo inteiro, filha.
Ariadne: Ele atirou ao chão a máscara com tanto despre-
zo!
Minos: Ele é livre agora. Pode caminhar ao sol.
Ariadne: Ele nos vê e sorri. Agora caminha em direção a
nós.
Minos: Ajoelhe-se e o adore, filha.
Ariadne: E você, Pai?
Minos: Ariadne, minha filha amada, minha missão chegou
ao fim, agora descerei ao Hades. Adeus!
Teseu: Companheiro, venha, vamos embora!

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TEXTOS COMPLEMENTARES

CHRONOS - O TEMPO DO HOMEM


KAIRÓS - O TEMPO DE DEUS

O Essencial
Num comentário sobre Píndaro, Gilbert Lewis destaca o
caráter divino do kairós: “O kairós, diz ele, é um dom, e o dom
é um kairós. A intervenção do deus no destino dos mortais
modifica a temporalidade, e se compreende desde então que um
dos sentidos do kairós seja designado como o momento fugaz
onde tudo se decide, onde a duração toma um curso favorável
a nossos desejos. A irrupção súbita do kairós, isto é, um tempo
visitado pelos deuses, geralmente Píndaro é marcado pela
aparição da Luz... Quando a tormenta deixa a terra em trevas,
de repente o vento se acalma, a chuva para, o vazio, o nada,
se insinua, – e então aparece um embelezamento, um súbito
clarão de luz, em um lugar de desolação. O homem sentiu a
passagem do deus, e este é o kairós... O kairós é um segundo
da eternidade.”

Afinidades eletivas, o momento certo e o terceiro


parceiro1
Talvez o primeiro item dessa metodologia seja o das
afinidades eletivas – goethianas –, pois vamos, no transcorrer
da pesquisa, percebendo um sem-número de afinidades
eletivas absolutamente não previstas, vale dizer, as analogias
inesperadas começam a ser tecidas: um livro aparece, um
professor dá uma aula, assiste-se a uma palestra. O mundo
parece cantar uma única canção: a nossa canção, a canção

1
Amnéris Ângela Maroni (pág 43-45)
53

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referente à nossa pergunta. É assim que funciona quando
constelamos uma pergunta originária; o lugar vazio da alma
mobiliza e aguça uma escuta peculiar, e o que é mais incrível:
o mundo todo responde!
O segundo elemento do método é a aprendizagem do
momento certo, do momento oportuno – do kairós. De novo,
essa aprendizagem nos ajuda muito a compreender o valor
da “busca parada”, de uma “ação que não procura, só acha”.
Quando experenciamos, transcorrer da pesquisa, o momento
certo, reconhecemos nele uma tal generosidade, uma tal
abundância, tamanha doação de sentido que, a partir de então,
nos educamos nessa direção, na direção da aprendizagem do
tempo, do tempo certo, do kairós: um tempo humano, inscrito
na esfera humana.
Ora é exatamente porque nesse tempo (o tempo kairótico)
nos pertence – pertence à esfera humana – que sua percepção,
sua aprendizagem nos remete a um outro tempo, um tempo
originário: o Aión. Diferentemente de Khrónos, o tempo
quantitativo, de controle, devorador, sempre igual, a serviço
da morte, Aión é o tempo qualitativo, tempo revelação, tempo
próprio, tempo de entrada do novo no mundo, um tempo a
serviço da vida. O Aión, o tempo-certo, qualitativo, está
estranhamente, ligado à pergunta-sem-resposta, à pergunta
originária. No tempo-certo a pergunta emergiu como pergunta,
e as respostas possíveis e múltiplas também acontecerão no
momento certo. A Sagacidade humana é dar conta disto: kairós
na busca parada.

Kairós
Kairós (em grego καιρός) é uma palavra da língua grega
antiga que significa “o momento oportuno”, “certo” ou

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“supremo”. Na mitologia, Kairós é filho de Cronos (Deus do
tempo e das estações).
Os gregos antigos possuíam duas palavras para a moderna
noção de “tempo”: Cronos e Kairós. Enquanto a primeira
era usada no contexto de tempo cronológico, sequencial e
linear, ao tempo existencial os gregos denominavam Kairós
e acreditavam nele para enfrentar o cruel e tirano Cronos.
Enquanto o primeiro é de natureza quantitativa, Kairós possui
natureza qualitativa. Em grego antigo e moderno, kairós (em
grego moderno pronuncia-se kerós) também significa “tempo
climático”, como a palavra weather em inglês.
Na estrutura linguística, simbólica e temporal da civilização
moderna, geralmente emprega-se uma só palavra para significar
a noção de “tempo”. Os gregos antigos tinham duas palavras
para o tempo: Cronos e Kairós. Enquanto o primeiro referia-se
ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede),
este último é um momento indeterminado no tempo em que
algo especial acontece: a experiência do momento oportuno.
O termo é usado também em teologia para descrever a forma
qualitativa do tempo, como o “tempo de Deus”, enquanto
Cronos é de natureza quantitativa, o “tempo dos homens”.

Na teologia Cristã
Na teologia cristã, em síntese superficial, pode-se dizer que
Cronos, é o “tempo humano”: medido em anos, dias, horas e
suas divisões. Enquanto o termo Kairós descreve “o tempo de
Deus”, que não pode ser medido, pois “para o Senhor um dia
é como mil anos e mil anos como um dia.”
No monoteísmo, Kairós e Aevum passam a ser atributos
do Deus único, recolhendo ideias precedentes da filosofia
clássica grega.
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Na filosofia e na Mitologia
Na filosofia grega e romana, Kairós é a experiência
do momento oportuno. Os pitagóricos viam-lhe como
“Oportunidade”.
Kairós é o tempo em potencial, tempo eterno e não-linear,
enquanto que Cronos é a medida linear de um movimento ou
período. Denotava o tempo quantitativo associado à medida
do movimento, contado em minutos, horas, dias, meses, anos.
Uma dimensão em que o presente é um instante sem duração
que avança continuamente, devorando o futuro e deglutindo o
passado. É o tempo que usamos na programação do dia-a-dia.
Tinha o significado mais sutil de “momento certo” ou
“oportuno” e refere um tempo qualitativo, um momento de
ação ou propício para agir, de maneira a alterar o destino.
Kairós não é contado em unidades de tempo, mas em feitos,
e avança por eventos significativos. É o tempo das histórias que
contamos. Kairós não é contínuo, mas se desdobra em janelas
de oportunidade em que o destino é alterado por ação, por
omissão ou por acidente. Kairós era uma noção central, pois
caracterizava “o momento fugaz em que uma oportunidade/
abertura se apresenta e deve ser encarada com força e destreza
para que o sucesso seja alcançado”.
Na Mitologia, Kairós era habitualmente considerado filho
menor de Cronos e Reia, mas posteriormente, na genealogia dos
deuses, parece estar associado a todos eles como manifestação
de um momento específico. Kairós, além de filho de Cronos,
pode ser (ou estar manifesto em) Zeus; Kairós pode ser Cronos
(Tempo), mas também Aevum (Eternidade); Kairós é Atena
(Inteligência) e também Eros (Amor); inclusive Dionísio pode
ser Kairós.

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O QUE É MITO

Os Mitos são narrativas muito antigas que foram criadas


pelos homens em conjunto para explicar fatos da realidade
e fenômenos da natureza. Os mitos se utilizam de muita
simbologia, personagens sobrenaturais, deuses e heróis. Todos
estes componentes se misturam a fatos reais, características
humanas e pessoas que podem ter existido.
Um dos objetivos do mito é transmitir conhecimento
através de rituais em cerimônias, danças, sacrifícios e orações
e explicar fatos que a ciência ainda não explicou. Um mito
também pode ter a função de manifestar alguma coisa de
forma contundente ou de explicar os temas desconhecidos e
tornar o mundo conhecido ao Homem.
Acontecimentos históricos podem se transformar em
mitos, se tiver uma simbologia muito importante para uma
determinada cultura. Os mitos têm caráter simbólico ou
explicativo, são relacionados com alguma data ou uma
religião, procuram explicar a origem do homem por meio de
personagens sobrenaturais, explicando a realidade através
de suas histórias. No mito, o herói ao travar um combate
representa a humanidade inteira, sua história é a história do
impulso humano, que representa a camada mais profunda e
perene do psiquismo.
Os mitos falam dos ciclos de desenvolvimento da
humanidade, pois é necessário que esses fatos históricos
sejam conhecidos. Quando relatados, ajudam o ser humano a
completar a noção de si próprio, ao oferecer um panorama da
história primeva.
A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva do verbo
mytheyo (contar, narrar, anunciar alguma coisa para outros).

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Alguns dos mitos mais conhecidos fazem parte da mitologia
grega, e exprimem a maneira de pensar, conhecer e falar dessa
cultura. Fazem parte da mitologia grega os deuses do Olimpo,
os Titãs, e outras figuras mitológicas como minotauros e
centauros.
Um mito pode ser um personagem criado, como Zeus,
Hércules, Hidra de Lerna, Fênix ou situações idealizadas,
como o mito da infância feliz, o mito da felicidade perfeita, o
mito da cara-metade.

O Mito de Narciso
Narciso era um belo rapaz indiferente ao amor, filho do deus
do rio Céfiso e da ninfa Liríope. Por ocasião de seu nascimento
os pais perguntaram ao adivinho Tirésias qual seria o destino
do menino, pois ficaram muito assustados com a sua beleza
rara e jamais vista. A resposta foi que ele teria vida longa
se não visse a própria face e não descobrisse a sua beleza.
Muitas moças e ninfas apaixonaram-se por Narciso quando
ele chegou à fase adulta, mas o belo jovem não se interessou
por nenhuma delas. A ninfa Eco, uma das apaixonadas, não
se conformando com a indiferença de Narciso, afastou-se
amargurada para um lugar deserto onde definhou até a morte.
As moças desprezadas pediram aos deuses vingança. Nêmesis
apiedou-se delas e induziu Narciso, depois de uma caçada num
dia muito quente, a se debruçar na fonte de Téspias para beber
água. Nessa posição ele viu seu rosto refletido na água e se
apaixonou pela imagem, permaneceu imóvel na contemplação
ininterrupta de sua face refletida e assim morreu. No local de
sua morte apareceu uma flor que recebeu seu nome, dotada
também de uma beleza singular, porém narcótica e estéril.
Na contemporaneidade o termo “narcisista” é utilizado como
representação de alguém que só vê a si mesmo, e para quem
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os outros são sempre extensões dele mesmo.

O Mito Original de Teseu


Herói grego ateniense, Teseu era filho de Egeu e Etra, seu
nome significa “o homem forte por excelência”. É o maior
herói de Atenas e um dos maiores heróis gregos.
Os fatos surpreendentes que marcam sua vida vêm desde
sua infância, pois Egeu recomendou a Etra que só revelasse ao
menino a identidade do pai quando ele fosse capaz de levantar
uma pesada rocha sob qual Egeu escondera sua espada. O
menino nasceu forte e sua força a todos surpreendia, por essa
razão quando o jovem completou 16 anos, Etra decidiu que o
filho já estava pronto, ele realiza a façanha e vai ao encontro
do pai.
Chegando a Atenas, Teseu apresenta-se ao seu pai, que logo
o reconheceu porque o jovem trazia consigo a espada que tinha
sido escondida.
O encontro tentou ser impedido por Medeia, feiticeira e
esposa de Egeu, que queria influenciar o marido a envenenar
Teseu, já que este se mostrara com grande força e, ao longo do
caminho a Atenas, matou vários salteadores e bandidos. Mas,
logo que Egeu reconheceu a espada que o filho trazia, Medeia
fugiu temendo um castigo.
Contudo, a maior façanha de Teseu, certamente, é o combate
com o Minotauro.
Nessa época, Atenas pagava um pesado tributo a Creta,
enviando anualmente jovens para serem jogados no labirinto
e devorados pelo Minotauro, que era um homem com cabeça
de touro.

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Teseu fez questão de ser um dos jovens enviados a Creta,
a fim de vencer o Minotauro e libertar Atenas. O rei Egeu
concordou, mas preocupado com o retorno do filho, pediu-lhe
um sinal, que se tudo corresse bem, o navio deveria voltar com
velas brancas, mas caso contrário, as velas voltariam negras.
Logo ao chegar em Creta, Teseu conhece Ariadne, filha de
Minos e Pasífae, que se apaixona pelo herói. Temendo a morte
do amado, Ariadne dá a ele um novelo de lã para marcar o
caminho de volta do labirinto. Assim, após o combate com o
Minotauro, poderia voltar pelo mesmo caminho sem se perder.
E assim aconteceu, Teseu mata a fera e volta do labirinto a
salvo.
Algumas versões contam que na volta Teseu abandonou
Ariadne, que foi acolhida pelo deus Dionísio, que a tomou como
esposa. Outras versões contam que a jovem desapareceu. Mas
todas relatam que o sinal pedido pelo rei Egeu foi esquecido, e
que o herói retorna a Atenas com as velas negras hasteadas. Ao
avistar de longe o navio de regresso, o rei fica tão desesperado
que se lança do alto da acrópole ao mar, que passa a receber o
seu nome – mar Egeu.
Depois que Teseu torna-se Rei de Atenas, as narrativas são
muito diferentes umas das outras sobre esse período de sua
vida. Muitas histórias ficaram sem detalhes, por exemplo,
sobre o envolvimento em uma guerra com o lendário reino
das Amazonas. Só sabemos que os atenienses venceram a
guerra e Teseu se casou com Antíope (ou Hipólita), a rainha
das amazonas, com quem teve um filho, Hipólito.

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ULISSES

O mito é um nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É o mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Fernando Pessoa

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Referências

KAZANTZÁKIS, Nikos. Three Plays: Melissa, Kouros, Christopher


Columbus. New York: Simon & Schuster, 1969. Traduzido pela equipe
do Programa Círculos de Leitura.

PESSOA, Fernando. Mensagem - Poemas esotéricos. Edição crítica:


coordenação de José Augusto Seabra. Madrid; Paris; México; Buenos
Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX (Edições Unesco),
1996.

Saconi, Cronos e Kairós. Disponível em: <http://saconi.com.br/relogios/


cronos-e-kairos/> Acessado em 21 de agosto de 2015.

KERÉNYI, C. Os Heróis Gregos. Trad. O.M. Cajado. São Paulo: Cultrix,


1993.

VERNANT, J.-P. O Universo, os Deuses, os Homens. Trad. R.F. d’Aguiar.


São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

InfoEscola, Teseu. Disponível em: <http://www.infoescola.com/


mitologia-grega/teseu/> Acessado em 21 de agosto de 2015.

Diagramado por Givanilson L. Góes


Agosto de 2015

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