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“LEMISMO O MELHOR ESPARTILHO”: UMA LEITURA DA ELITE DE BELÉM

A PARTIR DA MEMÓRIA DE DONA INÁCIA, DE “BELÉM DO GRÃO-PARÁ”.

Thainá Oliveira Chemelo¹

RESUMO

Os valores, os códigos e os rituais da cultura da belle époque, na condição de teatro da


civilização, espalharam-se pelas sociedades modernas até chegar à Amazônia,
notadamente em Belém e Manaus. Em tempos de “surgimento da civilização” em que
os valores essenciais da cultura e da sociabilidade urbana e burguesa da Paris fin du
siècle foram transpostos para as grandes cidades brasileiras, a Amazônia vivia a belle
époque. O objetivo principal desse artigo é interpretar, através da análise narratológica
(MOTTA, 2013) a cidade de Belém no governo de Antônio Lemos, a partir das
memórias individual e coletiva, segundo (HALBWACHS, 2013), para tanto, escolheu-
se a Dona Inácia, personagem da narrativa urbana engendrada por Dalcídio Jurandir
(1909/1979).
PALAVRAS CHAVES: Narrativa, Dalcídio Jurandir, Memória, Belém, Belle Époque.

ABSTRACT:

The values, codes and rituals of the belle époque culture, as a theater of civilization,
spread through modern societies until they reached the Amazon, notably in Belém and
Manaus. In times of “emergence of civilization” when the essential values of Paris fin
du siècle's culture and urban and bourgeois sociability were transposed to the great
Brazilian cities, the Amazon lived in belle époque. The main objective of this article is
to interpret, through narratological analysis (MOTTA, 2013) the city of Belém under
the Antônio Lemos government, based on individual and collective memories,
according to (HALBWACHS, 2013). Inácia, character of the urban narrative
engendered by Dalcídio Jurandir (1909/1979).

KEYWORDS: Narrative, Dalcidio Jurandir, Memory, Belém, Belle Époque.

INTRODUÇÃO:

Segundo Weber (1988), a mitologia da belle époque foi expressiva e enraizada o


bastante para construir suas representações e torná-las mundiais. Nesse sentido, Paris
emerge, no final do século XIX, na condição de uma grande e poderosa metáfora de
uma forma de vida requintada, elegante, culta e civilizada. Os mecanismos e os
comportamentos da sociabilidade burguesa produziram, assim, imagens de uma Idade
de Ouro da vida social, cujas vias e veias de circulação orgânica eram as galerias e os
boulevards de Paris.
¹Graduada em Letras – Língua Francesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Especialista em Língua Portuguesa e Literaturas pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia
(FIBRA). Mestranda em Comunicação, Linguagem e Cultura pela Universidade da Amazônia
(UNAMA).
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Os valores, os códigos e os rituais da cultura da belle époque, na condição de


teatro da civilização, espalharam-se, em maior ou menos escala, pelas sociedades
contemporâneas: saindo de São Petersburgo e Viena, até chegar aqui na Amazônia, em
Belém e Manaus. Cidades de topografias sociais e físicas distintas, mas que se
integravam ao circuito mundial da cultura burguesa, na medida em que abrigavam elos
da cadeia mundial do mercado. Dessa forma, a belle époque, entendida como
manifestação da Idade de Ouro da cultura da burguesia moderna, e cujos quadros
remetem a Paris do final do século XIX e começo do XX, sempre foi um domínio
visitado pela narrativa social brasileira.

Muitos habitantes de Belém, manipulados pelas elites, nessa época de


“surgimento da civilização” realmente acreditavam que os valores essenciais da cultura
e da sociabilidade urbana e burguesa da Paris fin du siècle haviam sido transpostos para
as cidades brasileiras citadas. Segundo o jornalista Figueiredo Pimentel, Rio de Janeiro,
Belém ou ainda Manaus “civilizam-se” com a chegada da belle époque e do “boom” da
borracha, na Amazônia. À medida que a borracha subia de importância e de cotação no
mercado internacional, mais a Amazônia se integravam aos centros hegemônicos do
capitalismo industrial e financeiro. E as vias de circulação do capital seriam as mesmas
de circulação do capital simbólico, ou seja, da cultura burguesa em acelerado e amplo
processo de mundialização. Segundo Avé-Lallement apud Daou (2000), em seu livro
”No Amazonas”, muitos homens e mulheres do Pará vestiam-se à francesa, e
cultivavam uma sociabilidade com fortes marcas europeias, como o piano nas casas e o
gosto pelo canto e dança. Essa forma e esse modelo de um novo viver transformam-se
no ideário da cultura do homem civil no final do século XIX.

É nessa memória nostálgica, de lamentação de um passado dito “civilizado”, de


intensa exclusão social, tentando se acostumar com a nova rotina de suas vidas, que
conhecemos a narrativa da família Alcântara e, mais especificamente, de Dona Inácia.
Essa família aparece no quarto romance do Ciclo do Extremo Norte. de Dalcídio
Jurandir, Belém do Grão-Pará, publicado em 1960. Nele, Dalcídio Jurandir rememora
o período áureo da borracha e do governo de Antônio Lemos (o “Lemismo”) na cidade
de Belém, em comparação com a decadência social e a pobreza no momento do
“laurismo” (de Lauro Sodré). Jurandir, ao longo da trama, opta por problematizar a
decadência e o declínio (nunca sem deixar de ironizar estes valores para a burguesia
amazônica) da cidade de Belém, depois do fim da era da borracha e consequentemente,
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problematiza também as personagens viventes naquele período. O autor desenvolve sua


narrativa a partir da perspectiva dos sujeitos subalternizados, das periferias, dos
trapiches e baixadas ou dos interiores da nossa capital (como é o caso de Alfredo,
personagem principal da obra, vindo de Cachoeira do Arari), levando os leitores a se
questionarem: afinal, os bons tempos da Belle époque beneficiaram a todos? Ou seria
um sentimento compartilhado apenas por uma parte dessa sociedade, aquela mais
abastada ou que teve acesso a cargos públicos e de prestígio?

A suposta “chegada da civilização” na Amazônia com a belle époque atravessou


décadas do pensamento social brasileiro, da mesma forma como alimentou, no país
inteiro, um forte imaginário acerca de um progresso (pra quem?) e de uma civilização
que aqui se estabeleceram na condição de universais. Desde os anos finais do Império
que a “europeização” e o branqueamento do Brasil assumiram, por força de uma
formação de uma identidade, a face divulgada e visível a olho nu da nação brasileira.
Nesse contexto, é compreensível que para as mentalidades das elites urbanas do Brasil,
a belle époque coroasse o empenho histórico para a construção do Brasil real ou da
Amazônia real, cujas estruturas fundadoras encontravam-se no país ou na Amazônia
imaginária, recriada por esse sentimento de progresso.

O objetivo principal desse presente artigo é buscar interpretar a cidade de Belém


do final do governo de Antônio Lemos, a partir da memória individual (que é
transpassada pela memória coletiva) da personagem Dona Inácia. Busca-se comprovar a
possibilidade de entender a memória coletiva do belenense burguês, de classe média ou
abastada, do século XX, a partir da memória individual de Dona Inácia, que compartilha
suas experiências saudosistas e melancólicas de uma “Belém do já teve” ao longo da
narrativa desenvolvida por Dalcídio Jurandir.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA:

Na narrativa de Belém do Grão-Pará, sob a perspectiva do capitalismo burguês,


a cidade de Belém vive um período de declínio econômico, o qual pode ser constatado
na situação social da família Alcântara, que tinha, no governo de Antônio Lemos, uma
posição de destaque e por isto gozava de respeito na sociedade, frequentando a “corte”
do intendente, privilégios que, nos anos de 1920, com a chegada de Lauro Sodré ao
poder, fica desprovida de qualquer resquício do status político e social. Para fortalecer a
nossa hipótese, de que é possível entender a cidade de Belém e o belenense de classe
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média da década de 20, a partir da análise de Dona Inácia, matriarca da família


Alcântara, Benedito Nunes afirma o seguinte:

Quem lê “Belém do Grão Pará”, como um romance dos Alcântara (o casal


Seu Virgílio/Dona Inácia e a filha Emilinha), lê a inteira cidade dos anos
1920, tal como a tinham deixado, após o início da decadência econômica,
consequente à crise da borracha, que culminara em 1912, as reformas do
intendente (prefeito) Antônio Lemos (NUNES, Benedito. 2009, p.322).

Na casa dessa família, em uma rua ainda sem prestígio (Gentil Bittencourt, 160)
e afastada do centro da elite abastados da cidade, os Alcântara, por inúmeras vezes,
rememoram o passado e lamentam o “ostracismo” social que se encontram, tentando –
sem sucesso – se acostumar com a nova rotina de suas vidas.

Segundo Motta (2013), a realidade da vida cotidiana (senso comum partilhado) é


admitida pela sociedade como sendo a verdadeira realidade: ela está aí como facticidade
evidente por si mesma, compulsória, real. Essa convicção sobre o que é real e o que é
realidade é tão determinada, diz o autor, que qualquer suspensão temporária dessa
certeza (uma dúvida religiosa, estética ou uma mudança brusca de padrão de vida),
qualquer saída dessa convicção torna-se um campo finito e delimitado de significação
diante das certezas confirmadas do cotidiano. Afinal, essa ordem social existe
unicamente como produto da atividade humana e as instituições por ela produzidas,
enraizadas na cultura transmitida e retransmitida. Poderíamos dizer que a linguagem é
um produto da atividade humana. Como diz L. Duch apud Motta (2013), não existe vida
humana à margem da palavra. Ainda segundo Motta (2013), cresceu nas últimas
décadas a consciência de que a linguagem é mediadora entre o homem e o mundo,
mediadora das nossas experiências, do nosso conhecimento sobre a realidade, das
representações que construímos etc. A linguagem é o veículo de constituição do mundo
humano e não há forma mais expressiva de representar a linguagem do que a narrativa.

Dalcídio utiliza-se da linguagem e da sua forma expressiva como instrumento


privilegiado que o leva a rejeitar a sociedade capitalista tal qual ela é, lançando-se na
incrível aventura contra a barbárie (ou a favor dela!), narrando a vida e história dos
oprimidos, o que ele chama a “criaturada dos pés no chão”, o autor expõe as mazelas
sociais, realçando estereótipos pequeno-burgueses, levando seus leitores a conhecer
uma Belém que só se conhece através de uma representação que, longe de idealizar a
cidade, monta um painel humano e geográfico em que estão incluídos também as
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baixadas e suas gentes da periferia, como, aliás, ele aprendeu em seu exercício na
Academia do Peixe Frito e, mais tarde, na militância do Partido Comunista.

O ato de narrar funde suas raízes na nossa ancestral herança cultural de relatar
estórias. Os seres humanos tem uma predisposição cultural, primitiva e inata, para
organizar e compreender a realidade de modo narrativo, como diz Bruner apud Motta
(2013). A construção de personagens e ações na narrativa é uma representação de
condutas humanas que fornecem ao narrador a matéria prima e os modelos. Ao narrar a
vida de Dona Inácia, Jurandir está explorando possíveis desenvolvimentos das condutas
e comportamentos humanos do belenense de classe média da década de 1920, na dita
“decadência do lemismo”, que os teóricos chamam de atividade mimética (ou imitação).
Essa descrição de comportamentos humanos enraizados na cultura da época nos leva a
antecipar que algumas das famílias belenenses que, no governo de Antônio Lemos, se
viam privilegiadas e usufruíam das benesses da belle époque, se sentiam agora
usurpadas, saudosas e nostálgicas, quando essa pretensa Idade de Ouro chegou ao fim e
Lauro Sodré assumiu o poder.

Alguns psicólogos afirmam que nossa tendência para organizar a experiência de


forma narrativa é um impulso humano anterior à aquisição da linguagem mesma.
Segundo Bruner apud Motta (2013), temos uma predisposição primitiva e inata para a
organização narrativa da realidade. Portanto, seguindo os pensamentos de Gergen apud
Motta (2013), sonhamos narrando, imaginamos narrando, relembramos nossas
experiências narrando, acreditamos, duvidamos, construímos, conversamos,
aprendemos, amamos e odiamos narrando porque queremos alcançar algum objetivo
com as nossas narrativas, alguma meta. Nossas vidas são acontecimentos narrativos, as
exposições narrativas estão incrustadas na ação social.

A memória também se traduz em forma de linguagem. Aquilo que vivenciamos


e rememoramos no presente só ganha forma quando narrado. Segundo Sarlo (2007), a
linguagem liberta a experiência de sua mudez, transformando-a no que é comunicável,
no que é comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de
seu acontecer, mas da sua lembrança. As experiências de Dona Inácia, durante o
governo de Antônio Lemos, quando narradas, se transformam em lembranças; se
transformam em memória que é ao mesmo tempo só da matriarca dos Alcântara e
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também é coletiva, representando toda uma classe social que conheceu o prestígio
naquela época dourada.

Segundo Halbwachs (2013), cada memória individual é um ponto de vista da


memória coletiva, e este ponto de vista muda de acordo com o lugar que eu ocupo. Até
mesmo as lembranças que acreditamos ser mais pessoais resultam da fusão de
elementos diversos e separados da sociedade em que estamos inseridos. Ao refletir,
percebemos que essa suposta unicidade se transforma em multiplicidade. Halbwachs
(2013) ainda cita:

Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos


outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estamos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca
estamos sós. Porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de
pessoas que não se confundem. Outros homens têm essas lembranças em
comum comigo. Muito mais, eles me ajudam a lembra-las: para me recordar,
eu me volto para eles e encontro em mim muito das ideias e modos de pensar
que não teria chegado sozinho (HALBWACHS, 2013).

Trazemos conosco sentimentos e ideias que têm origem em outros grupos, reais
ou imaginários. A memória individual, quando se opõe à memória coletiva, não se
mostra uma condição necessária e suficiente do ato de lembrar e do reconhecimento das
lembranças. Para que nossa memória se auxilie com a dos outros não basta que essas
testemunhas tragam os seus depoimentos. É necessário que essa reconstrução passe por
dados ou noções comuns que se encontrem nos nossos espíritos e dos outros; além de
ser necessário que essas pessoas tenham bastante contato entre elas, o que, só é possível
se elas, algum dia, fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade.
Portanto, analisar as experiências narradas em lembranças de Dona Inácia é entender
um pouco mais sobre aquela sociedade belenense do final do século XX, a partir dessa
relação direta que há entre a memória individual do sujeito e a memória coletiva e
compartilhada por esse sujeito, inserido em uma sociedade específica.

DONA INÁCIA E SUAS LEMBRANÇAS

Segundo Halbwachs (2013), nossos sentimentos e nossos pensamentos mais


pessoais buscam suas fontes nos meios e nas circunstâncias sociais definidas. Dona
Inácia é um exemplo disso: tão envolvida com a sociedade da época do “lemismo” que,
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após a queda do intendente, abalada, apresenta uma mudança significativa de


personalidade e certa revolta toma lugar na sua forma de ser e de rememorar os eventos
passados num presumível fausto:

As sestas no recolhimento da Gentil transformavam a senhora. Suas


imprecações e sarcasmos viraram, num hábito muito seu, quase cordial, o
modo divertido de se vingar do infortúnio político e xingar os novos
poderosos (JURANDIR, 2005, p.67)

Após os momentos áureos que a família vive durante o “lemismo”, os Alcântara


passam a amargar uma vida de ostracismo social. Dona Inácia, inconformada com essa
situação, tenta ainda viver como na época de abundância. Mostra-se sempre muito
senhora de si, de seus desejos; egoísta, de “natureza má” (o que para ela, é motivo de
orgulho!). Dona Inácia, não raro, quer ter o controle de todas as situações e pessoas de
sua família. É ela, por exemplo, que classifica sua filha daquela que tem útero de areia,
o que denota uma ríspida avaliação da moça e uma avaliação de grande sarcasmo da
personagem. Disposta a sempre tirar vantagem das situações em que se vê envolvida.
Segundo Nunes (2007), a expressão “útero de areia” pode ser usada, metonimicamente,
a cidade de Belém no período pós-Lemos.

As lembranças, em geral melancólicas, da personagem perpassam a obra inteira,


porém é logo no primeiro capítulo que elas aparecem de forma mais acentuada:

A sessenta mil-réis de aluguel e mais seis de taxa d’água, sem platibanda,


meia vidraça, persianas, passeio ralo na frente e algum carapanã, podiam se
dar felizes naquele “ostracismo”, como dizia d. Inácia, a senhora de seu
Virgílio Alcântara. Longe estavam da sorte dos Resendes, lemistas de cabo a
rabo, hoje coitados se acabando numa palhoça dos Covões (JURANDIR,
2005, p.45).

As falas de Dona Inácia, quando comenta sobre a nova vida, “rebaixada”, na


Gentil Bittencourt, 160 são sempre carregadas de sarcasmo e de desdém. A vida de
agora nunca conseguirá superar a de antes:

Que serra de Guaramiranga, que montanha de Minas, Suíça coisa nenhuma!


Basta o ar desta baixa, o origã do lixo e a lama aí dos fundos. Este mormaço
que vem das baixas? Nem as águas termais, que é que vocês estão pensando?
Que mais desejam, seus Alcântaras, depois desta Avenida Gentil Bittencourt,
160? Avenida! Avenida! (...) Ai matai-me, marido, matai-me, que eu a morte
mereci! (JURANDIR, 2005, p.45-46).
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(...) Mas é isto, cada qual tem o ostracismo que merece. (...) Ah, meu
maridíssimo Virgílio Alcântara, que ostracismo vieste escolher, que cabeça a
tua de vir bater com o toutiço nesse 160. Pelo jeito, será também o número da
minha cova (JURANDIR, 2005, p.46).

Outra constante que percebemos na narrativa de Dona Inácia é a frequente


lembrança dos tempos das “vacas gordas”, de todas as comidas, roupas, eventos, flores
etc. que costumava ter naquela época:

Justamente na hora das vacas magras, veio a gordura da família. No tempo da


champanhe escorrendo pelos babados, ensopando mangas dos fraques, das
pipas rolando pelo corredor, das gardênias que os Alcântaras mandavam para
o peito da sobrecasaca do senador Lemos, no tempo em que tínhamos a bem
dizer o Mercado [de São Brás] dentro da despensa na Vinte e Dois, gordos
não havia na família (JURANDIR, 2005, p.47).

Hein, Alcântara, os figos e o bacalhau que eles nos mandavam? E


champanhe? E champanhe? Hein? Tempos! Eram fornecedores do Governo
(JURANDIR, 2005, p.64).

Em outras falas, conseguimos observar que Dona Inácia relembra certos


costumes extravagantes da elite belenense, na época da belle époque, citando famílias
daquele período, como os Pennafort, por exemplo. Dona Inácia, entre equivocada e
ressentida, chegava até mesmo a culpá-los em parte pela queda do Senador:

(...) Ah, os Pennafort, os Pennafort, foi com a vossa lata de lixo que o caldo
derramou. Queriam o monopólio da lata de lixo para recolher as imundícies
da cidade. Eles que se davam ao luxo de mandar lavar a roupa na Inglaterra.
Ganhar à custa da podridão, do que fede... E dentro da lata de lixo lá se foi o
Senador (JURANDIR, 2005, p.54-55)

Em outro momento, Dona Inácia relembra com muita melancolia a vez que
colocou a sua dentadura postiça, nos melhores dias do “lemismo”:

Foi para eu rir, explicava, que coloquei esta. Justamente no apogeu, para
ver depois o fim. Sem ela não podia rir dos políticos, dos tamanduás, dos
vira-casacas. É um riso como convém, postiço (JURANDIR, 2005, p.55).

A matriarca dos Alcântara, em um momento de revolta e devaneio, dialoga com


os passarinhos que lhe vêm roubar goiabas do seu quintal, como se esses fossem aqueles
tais homens que destituíram Antônio Lemos do poder, rememorando esses momentos
de sofrimento, com alta carga melancólica:
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Ah, passarinhos do meu peito. Tivesse leite nessas mamas, eu amamentava


vocês todos e não homens. Não foi vocês que traíram o velho, lhe pregando
flor na lapela, no peito da sobrecasaca. E com o homem caído, não foi vocês
que cuspiram no rosto do homem nem deram pontapé onde antes lambiam.
Não foi vocês que assaltam a casa do homem e tudo comem e tudo roubam.
Os canalhas, os ladrões, os perjuros estão ali no galho da goiabeira? Estão?
(...) Mas e os canalhas? São vocês não (JURANDIR, 2005, p.55-56).

Dona Inácia tratava de relembrar o cargo de prestígio do marido, no Mercado de


São Brás, empossado pelo próprio Senador, que brindou à saúde do casal e acariciou o
queixo da menina Emília. Nesse dia, Dona Inácia – membro da Liga Feminina,
associação de apoio ao lemismo – não pôde deixar de exibir a sua admiração pelo
Senador e o seu prestígio perante ele, sem algumas lágrimas públicas: “Tu estás te
cobrindo de ridículo, Virgílio. Te desacreditando, homem de Deus. Pois o administrador
do Mercado de São Brás...” (JURANDIR, 2005, p.56).

Em outros momentos, ao longo do capítulo 1, muitas vezes percebemos que o


narrador toma a palavra da personagem, relembrando a narrativa de Dona Inácia, desde
o interior do Ceará, até sua chegada a Belém para o casamento com seu Virgílio:

Era por isso grata ao Senador. Vindo de uma família de retirantes do Ceará,
enraizada na Estrada de Ferro de Bragança, onde fora buscar Virgílio
Alcântara, Inácia não perdeu tempo quando se viu à porta que lhe abria o
lemismo. Eram as festas em Palácio, pagas regaladamente com a borracha e
os empréstimos do Estado no estrangeiro, as cerimônias cívicas e escolares
do Bosque e do Parque Batista Campos, em que se cobria de flores, discursos
e mulheres, o Senador (JURANDIR, 2005, p.58).

O narrador também expõe situações vivenciadas por seu Virgílio que são um
espelho claro da sociedade belenense do final do século XX. Portanto, através da
narrativa desenvolvida por Jurandir, podemos estar mais próximos de entender a Belém
daquela época, compartilhando da memória coletiva dos belenenses viventes desse
período da nossa história:

(...) seu Vírgilio foi se convencendo de que tudo aquilo não viera apenas da
queda da borracha. Mas de que mal? Ambição? Imprevidência? Castigo de
Deus? (...) A cidade exibia os sinais daquele desabamento de preços e
fortunas. Fossem ver a Quinze de Novembro com seus sobrados vazios, as
ruínas d’A Província, os jardins defuntos, a ausência da cal e do brilho nos
edifícios públicos e nos atos cívicos. O São Brás era mesmo agora um
Partenon. Ingleses haviam levado para o Ceilão as sementes da borracha (...)
Para as mulheres, a queda do Senador era a causa de tudo. A borracha subira
a tanto, graças ao Senador, em Palácio. Rolara a tão baixo preço graças ao
Senador no chão, traído e espezinhado. E por tudo isso arquejavam as
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Alcântaras na Gentil, consumiam-se as Veigas na Conselheiro numa casa


caindo-lhes por cima, gotejando por todas as telhas e paredes. Que que
tinham com a borracha? O importante era ter mantido o Senador, continuasse
a reluzir e a gozar, dando-se ao luxo, famoso em todo Norte, até mesmo em
Portugal, de instalar em Belém, à sombra da Catedral e da estátua de General
Gurjão, a pequena corte (...) (JURANDIR, 2005, p.63).

Na Belém da virada do século XIX para o XX, um caleidoscópio de signos e


ritos que alimentaram o mito da belle époque como representação da Idade de Ouro do
progresso de da civilização. Nos quadros dessa belle époque elevava-se um constante
culto às artes em geral, em particular à literatura, à música e à cena lírica, o cuidado
excessivo com a indumentária e o gestual alimentavam esse imaginário e dominavam os
cenários urbanos. Também sobressaía um ideal de cidade planejada, limpa e
higienizada, aos moldes europeus, que visava ao encobrimento da pobreza e da
mendicância que estavam presentes na realidade daquela cidade que a elite belemense
preferia esconder “debaixo do tapete”. Dona Inácia representa, em grande parte, esse
equívoco, uma visão estrábica diante das realidade social e política da Amazônia. Parta
ela, a perda de prestígio e poder com a queda de Antonio Lemos provocou profundas
mudanças de hábitos e de sua cotidianidade, o que está consubstanciado no desdém
perante a “nova casa”, situada na Gentil Bittencourt, 160, espaço recheado de carapanãs
e de infiltrações que a lembravam um passado que ela não queria, de forma alguma,
invocar de novo. Afinal, pobreza não era palavra permitida em seus “tempos de ouro”.
Dona Inácia, exemplificada na citação abaixo, preferia ser traída deliberadamente pelo
marido a imaginar que ele poderia estar prestes a perder seu cargo de prestígio no
Governo. Melhor a traição do que o retorno à pobreza, ao ostracismo dos tempos
anteriores ao “lemismo”:

Me abre teu coração, Virgílio Alcântara. Ou é saia ou rato sentindo que o


navio vai afundar? Mede o que te digo, meu marido: prefiro saia
(JURANDIR, 2005, p.57).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lançar o olhar sobre a Belém belle époque é retomar antigos percursos da
memória coletiva dos viventes dessa época e do próprio discurso da história da cidade e
ressignificá-la. Diferenças substanciais assinalam as formas e lugares dessas narrativas
(jornalísticas, históricas, literárias etc.) ainda que, um mesmo fio condutor pareça
conduzir o corpo de muitos discursos construídos sobre a Belém que viveu o boom da
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borracha e conheceu as representações da sociedade burguesa europeia (ou os seus


arremedos) e a mundialização desses padrões culturais na sua própria sociedade
belenense. Escolhemos retomar essa memória coletiva dessa elite burguesa belenense
através da narrativa literária Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir; de maneira
mais específica, através das memórias individuais de Dona Inácia, a matriarca dos
Alcântara, família que conheceu e usufruiu de todos os louros do ciclo da borracha e
que, no momento da narrativa, se encontra em uma situação de “ostracismo social”, de
decadência, de readaptação aos costumes dos novos tempos.

O impacto das mudanças processadas no cotidiano urbano da Belém que passava


no século XIX para XX foi poderoso o bastante para gerar a necessidade de narrá-lo, ser
plano de fundo da narrativa dos personagens desenvolvidos por Dalcídio Jurandir. O
“Ciclo do Extremo Norte” como foi auto identificado o projeto romanesco de Dalcídio
Jurandir objetivava, dentre outros, a ressignificar a Amazônia, distanciando-a das visões
idílicas e exotizantes como costumeiramente a região é representada. Esta forma de
representar a Amazônia no texto literário, repleta de intrigas, enfatiza dramas humanos
que poderiam estar presentes na obra de qualquer autor fundamental, destes que ajuda a
desvelar as nossas mazelas.

Não há dúvida da importância da narrativa de Dalcídio Jurandir para a releitura


da história da belle époque amazônica, em especial em Belém. O romance de Dalcídio
Jurandir é capaz de levar os seus leitores pelos labirintos da linguagem, que
factualizavam a sociabilidade urbana, tornando a narrativa o mais crível possível,
pintando aquela sociedade burguesa que se iludiu com o fausto econômico do látex, e,
com a derrocada da borracha no mercado capitalista, sentiu-se abandonada às traças.
Como disse Nunes (2009), quem tem a oportunidade e o prazer de ler “Belém do Grão
Pará”, lê a cidade inteira de Belém na década de 1920 e é capaz de compreender grande
parte dessa sociedade, com todos os problemas e particularidades que a definiam. Nós
acrescentaríamos mais à fala de Benedito Nunes: a partir dos estudos de memória
coletiva e memória individual discutidos nesse artigo, podemos defender que quem lê a
personagem Dona Inácia e todas as suas lembranças e façanhas é capaz de entender, se
não todo, uma grande parte do sentimento que perpassava classe média belenense na
época posterior ao auge da era da borracha; o que, salvo engano, permanece como
fantasmagoria no imaginário das populações urbanas de toda a Amazônia brasileira.
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REFERÊNCIAS

DAOU, Ana Maria. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2 edição.


São Paulo: Centauro, 2013.

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Rui Barbosa, 2005.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade


de Brasília, 2013.

NUNES, Benedito. Conterrâneos. In: ____. A clave do poético. São Paulo; Companhia
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NUNES, Paulo. “Útero de areia: uma leitura de Belem do Grão-Pará, de Dalcídio


Jurandir”. Tese de doutorado [orientada por Audemaro Taranto Goulart. BelO
Horizonte, PUC Minas, 2007.

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Belém, Paka-Tatu, 2010.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007.

WEBER, Eugen. França fin de siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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