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A SENTENÇA: UM SILOGISMO?

A SENTENÇA: UM SILOGISMO?
Revista de Processo | vol. 72/1993 | p. 163 - 175 | Out - Dez / 1993
DTR\1993\495

Eduardo Rocha Dias

Área do Direito: Processual


Sumário:

1. Introdução - 2. A Doutrina Brasileira - 3. Noção de silogismo - 4. A concepção mecânica da


atividade judicial - 6. Outras críticas à concepção mecânica da atividade judicial - 7. A lógica jurídica
é tópica e dialética - 8. Conclusão

1. Introdução

Diversos processualistas, ao se debruçarem sobre o estudo da sentença, não deixaram de se referir


a ela como a um silogismo. O ato culminante desta seqüência lógica de atos, que é o processo, não
pode deixar de ser analisado sob seus mais variados aspectos. Assim, a par de ser o ato pelo qual o
Estado-Juiz soluciona a lide, ofertando a prestação jurisdicional que a compõe, possui a sentença
uma estrutura e produz determinados efeitos. Estes efeitos derivam de sua posição como realidade
nova que passa a integrar o mundo jurídico (Sollen) tendendo a se adequar com o mundo dos fatos (
Sein) ou a nele produzir modificações, muito embora nem sempre haja uma perfeita correspondência
entre eles. A sua formação se insere, assim, na própria dinâmica do Processo e no caráter
teleológico deste. No passado, muitos autores enxergavam nesta formação um raciocínio silogístico,
dentro do qual a sentença não seria mais que o resultado de uma atividade lógica desenvolvida pelo
juiz.

A refutação dessa caracterização da decisão judicial como um silogismo já foi satisfatória e


exaustivamente efetuada, como mostra, por exemplo, Recaséns Siches em seu Nueva Filosofia de la
Interpretación del Derecho,de forma que há muito já resta evidenciado o erro, ou pelo menos o
caráter insatisfatório, desse posicionamento. Entretanto, julgamos oportuna a retomada do tema já
que gerações de estudantes, quer por desinteresse, quer por falta de uma correta orientação,
continuam a receber uma formação baseada em uma bibliografia já em descompasso com o que há
de mais moderno no estudo do Direito. Poucos desses estudantes ingressam em cursos de
aperfeiçoamento ou de Pós-Graduação, que permitiriam um maior aprofundamento dos temas
estudados, o que nos leva a supor que um grande número de operadores jurídicos, infelizmente,
continua sem contato com informações atualizadas. Ademais, o caráter conservador do ensino
jurídico, que em nosso meio só há pouco começou a ser questionado, e da própria prática forense,
decorrente da posição do Direito como meio de controle social, acabam contribuindo para uma
cristalização de conceitos e de técnicas operatórias.

Daí, nosso esforço no sentido de sintetizar não só o que é lido mais freqüentemente pelos
estudantes de nossa Faculdade sobre o tema em apreço, mas também as críticas feitas ao
entendimento da sentença como um silogismo e, principalmente, as considerações sobre os limites
da lógica formal no campo do jurídico.

Não pretendemos esgotar o tema, nem responder categoricamente à questão formulada em


epígrafe. Cremos, com Karl Popper,1 que o pensamento científico tem como meta não uma
explicação "última" acerca da realidade, no sentido de atingir as "essências" subjacentes aos
fenômenos, mas sim a formulação correta de problemas e a tentativa de lhes dar soluções através
de teorias e conjecturas audaciosas. Essas teorias, por sua vez, devem continuamente ser testadas
no contato com os fatos e não são imutáveis, pois toda proposição que se pretenda irrefutável é
dogmática e não científica. Queremos apenas fornecer alguns subsídios teóricos para o correto
equacionamento do problema. Fiéis à moderna concepção de interdisciplinariedade do pensamento
científico, nos serviremos inclusive da filosofia para pavimentar nosso caminho. Assim, após citarmos
alguns processualistas que trataram do assunto, daremos um breve golpe de vista sobre o silogismo.
Só assim, não sem antes passarmos pela concepção kelseniana da decisão judicial como ato de
aplicação e de criação de Direito, é que concluiremos pela insuficiência de sua caracterização como
um silogismo, pelo menos dentro das balizas estreitas da lógica formal.
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A SENTENÇA: UM SILOGISMO?

Àqueles que, excessivamente zelosos de uma pretensa "pureza" da Ciência do Direito, se arrepiam
ante a "intromissão" de disciplinas metajurídicas no seu estudo e não crêem na tese bachelardiana
de que a ciência moderna não pode se enquadrar em uma só doutrina, só podemos dizer isto: foi um
filósofo, Aristóteles,2 que "evidenciou", por assim dizer, a especificidade do fenômeno jurídico, sua
condição de realidade epistemológica autônoma e distinta da Moral e da Religião, com as quais se
confundia. À sua Tópica,modernamente continuada no campo do Direito por Theodor Viehweg,
faremos alusões. Julgamos, por isso, estarmos em boa companhia.

2. A Doutrina Brasileira

Moacyr Amaral Santos, em obra bastante lida nos cursos de Direito,3 afirma que o julgador, na
elaboração da sentença, deverá convencer-se dos fatos alegados pelas partes, através de sua
prova, bem como considerar o fundamento jurídico do pedido: "Na formação da sentença, terá assim
o Juiz de estabelecer duas premissas: uma referente aos fatos, outra referente ao direito. São as
premissas do silogismo".

Mais adiante continua: "a sentença, na sua formação, se apresenta como um silogismo, do qual a
premissa maior é a regra de direito e a menor a situação de fato, permitindo extrair, como conclusão,
a aplicação da regra legal à situação de fato". No final, o professor paulista reconhece que na
formação da sentença há um processo mais complexo, mas não avança muito na sua determinação:
"É verdade, entretanto, que rarissimamente a sentença se contém num único silogismo... e não só de
silogismo se valerá o Juiz para chegar à decisão, mas dos mais variados processos lógicos terá de
utilizar-se".

Frederico Marques vai um pouco mais além.4 Depois de reconhecer a "complexidade" da formação
da sentença, e de afirmar que sua esquematização lógica constitui um silogismo do qual seria a
conclusão, arremata: "Todavia, a redução da sentença ao esquema do silogismo somente pode ser
obtida depois que o juiz, estabelecendo e resolvendo qual a norma jurídica a ser aplicada e qual a
estruturação do fato litigioso, subsumir este naquela e formular a conclusão na parte dispositiva do
ato decisório". (Grifo nosso).

E mais adiante: "A redução do fato a categorias jurídicas não emerge de esquemas silogísticos, mas
de operação dialética muitas vezes personalíssima,em que o Juiz, interpretando a lei escrita e
analisando os fatos quase simultaneamente, equaciona as controvérsias existentes, afasta as
questões impertinentes, e dá a solução que lhe parece acertada a fim de impor o que se lhe afigura
como a lei do caso concreto. E nesse trabalho de construção lógica, ele transfunde os fatos na
norma a ser aplicada a fim de fazer justiça,dando a cada um o que é seu". (Grifos nossos).

Muito embora ainda ligado à concepção tradicional da sentença como silogismo, resultado da
subsunção do fato concreto na prescrição normativa, Frederico Marques avança ao afirmar que esta
atividade envolve uma "redução" daqueles fatos à hipótese presente na norma, e que o julgador
deverá lançar mão de uma atividade hermenêutica e valorativa na construção da sentença,
conclusões às quais voltaremos mais adiante.

Arruda Alvim5 também reconhece na formação do ato decisório uma interação envolvendo fato,
norma e os valores nesta presentes: "A sentença assenta-se em fato ou em fatos dando aos
mesmos uma significação no universo com base nos valores contidos na lei. Assim, temos,
fundamentalmente, de uma perspectiva lógico-formal, na sentença, a seqüência silogística da norma,
do fato e da conclusão decorrente da aplicação da norma ao fato".

Foi, entretanto, em outro lugar,6 que o Professor paulista exprimiu melhor o seu pensamento acerca
do tema, que vale ser transcrito mais amplamente:

"Na reconstrução do fato, em função do qual será estruturado o silogismo - em que, do ponto de vista
lógico-formal, se constitui a sentença - a posição do Juiz é dominantemente epistemológica. Ou seja,
para que o Juiz apure quais os fatos que aconteceram, em função dos quais, há de aplicar o direito,
terá que conhecê-los à luz dos critérios específicos do ordenamento jurídico. Por outras palavras,
trata-se de conhecimento dos fatos tendo em vista o campo de pesquisa de cada ramo das ciências.
(...)

Assim, identificados os fatos jurídicos, em função dos quais se vai decidir a lide, passa-se a
considerar o texto legal e, finalmente, inferem-se todas as conseqüências jurídicas (conclusão).
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Na estruturação da sentença há que, sempre, ter-se presente o aspecto silogístico, como


identificadora dos fatos ocorridos e da norma que incidiu, e que deverá ser aplicada. Pois, devemos
ter presente que o silogismo é 'uma argumentação em que a conclusão resulta das premissas, por
necessidade ou exigência formal da posição das mesmas, e independentemente do caráter
verdadeiro ou errôneo da respectiva matéria ou assunto'. Se assim é, a lógica,considerando o
pensamento 'em si ou em sua estrutura', como já se observou, seria insuficiente para conferir
juridicidade plena à sentença. Há que se recorrer à própria verdade das proposições que se
constituem no silogismo. E esta verdade será conseguida pelos caminhos da lógica material,que
assegurará a 'verdade das proposições que compõem a argumentação ou lógica formal e lhe são,
neste sentido, uma espécie de material'.

Indague-se, agora, qual o tipo específico de juízo,que o juiz pratica ao sentenciar. Será o juízo
analítico ou o juízo sintético? Afigura-se-nos que é o juízo analítico. Por juízo analítico há de se
entender aquele que ao ser enunciado, o é de forma a que o predicado se constitua simplesmente
numa explicitação do que já se contém no sujeito. Assim, se se diz que o maior tem mais tamanho
do que o menor, em realidade, estar-se-á explicitando o que já está contido na idéia de maior.

Ora, o Juiz, identificando o fato ou fatos jurídicos ocorridos, nada mais fará senão explicitar o
conteúdo da lei, trazendo, com a sua sentença (conclusão), todas as conseqüências albergadas na
própria lei; nem menos, nem mais.

O juízo analítico, pois, a informar filosoficamente a atividade jurisdicional decisória, indica claramente
que o juiz não cria direito; apenas explicita, em sua sentença, o direito, que por ocasião da
ocorrência dos fatos, já foi, inclusive, objeto de incidência. Trata-se, na sentença, portanto, de
praticar a explicitação do juízo histórico,relevante, tal como ocorreu, o que compreende: 1.º)
identificação dos fatos ocorridos; 2.º) constatação de que, quando ocorreram, houve a incidência de
uma dada lei e assim, explicitação do que se contém em tal lei.

Deve-se ter presente, que a lei é a premissa maior, pela circunstância de que a sua extensão é maior
do que a da premissa menor, isto é, da fundamentação de fato ("fato jurídico").

(...)

Há de se reconhecer que a extensão da lei abrange todo e qualquer fato jurídico,do tipo nela
descrito, ao passo que na fundamentação de fato refere-se o juiz, exclusivamente, a um dado
concreto, embora subsumível à lei, isto é, ao modelo legal". (Grifos do Autor).

No campo do Processo Penal, citaríamos, à guisa de ilustração, Magalhães Noronha:7 "Sob o ponto
de vista esquemático é que se poderá dizer que ela" - a sentença - "representa um silogismo: na
premissa maior acha-se a exposição dos fatos apresentados pelas partes (sic);na menor, os motivos,
isto é, as provas e as regras do direito normativo; na conclusão, a decisão condenando ou
absolvendo o acusado".

3. Noção de silogismo

Foi Aristóteles quem primeiro distinguiu os termos que servem de base à construção dos silogismos
e a sua importância como instrumentos do conhecimento. Opondo-se à teoria platônica das Idéias, e
à da Reminiscência que a complementava, o estagirita explicava a Ciência pela correta dedução de
proposições a partir de outras proposições. Distinguiu a dedução imediata, que se opera a partir de
uma só proposição tida como verdadeira, da mediata, resultado da aproximação de várias
proposições consideradas verdadeiras. O paradigma desta última é, justamente, o silogismo, cujo
esquema é bem conhecido:

(I) Todo homem é mortal; (premissa maior)

(II) ora, José é homem; (premissa menor)

(III) logo, José é mortal (conclusão). Não basta, porém, que a conclusão (III) seja corretamente
deduzida das premissas (I) e (II) para que sua "verdade" seja garantida. É necessário que as
próprias premissas sejam corretas. E a correção destas - nos diz Aristóteles - nos é fornecida pela
experiência. Através da experiência das coisas externas, ou sensações, e pela experiência das
coisas internas, ou consciência, o sujeito apreende o real. Capta o singular. Em seguida, através de
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uma atividade indutiva, elimina o que nele há de particular e passa a considerar o universal, o geral,
formulando os axiomas que seriam a base de toda a ciência. O limite desta formulação, entretanto,
não se situa em um etéreo "reino das essências", afastado da realidade fenomênica, mas nas
experiências que o sujeito tem desta realidade.

Hemi Lefèbvre8 nos diz que o silogismo "é um raciocínio mediato, que implica um terceiro termo.
Três termos e, portanto, três proposições: a maior, a menor e a conclusão: 'Todo homem é mortal;
ora, Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal'. As duas primeiras são chamadas de premissas. A
segunda, a premissa menor, é a proposição mediadora (que não existe na inferência imediata); ela
contém a razão de ser da conclusão". Mais adiante, ele continua:

"Chama-se de 'termo médio' aquele que serve como intermediário entre o termo mais geral (termo
maior) e o menos geral (termo menor). A teoria do silogismo pode ser feita do ponto de vista da
extensão (o termo maior inclui o médio, que por sua vez inclui o menor); ou seja, no caso aludido: o
gênero mortal inclui a espécie homem (e portanto o indivíduo Sócrates). Ou pode ser feita segundo a
compreensão (uma propriedade geral é inerente ao atributo colocado como termo médio e esse
atributo pertence ao sujeito: a propriedade de ser mortal, a mortalidade, pertence ao ser humano; e
Sócrates possui esse atributo, ou seja, a humanidade)". (Grifos do Autor).

O filósofo francês continua afirmando que a perspectiva da lógica formal é a da extensão, muito
embora Aristóteles, em suas Analíticas,tenha abarcado ambos os pontos de vista. Ora, semelhante
perspectiva acaba se reduzindo a uma mera tautologia. Visto sob o prisma formalista da extensão, o
silogismo não afirma nada acerca do Real, torna-se um círculo vicioso e infecundo. Sob o ponto de
vista numérico, da extensão, a conclusão do exemplo dado acima é absolutamente rigorosa:
Sócrates é um homem; todos os homens são mortais; logo... Mas tamanho rigor se transforma em
absurdo! É preciso ir mais além, considerar o conteúdo destas afirmações, os conceitos que elas
encerram, o movimento que elas envolvem.

No trecho do artigo de Arruda Alvim que transcrevemos logo acima, percebemos claramente que a
perspectiva enfocada pelo Professor paulista é a da extensão, logo, a da lógica formal: "...a lei é a
premissa maior, pela circunstância de que a sua extensão é maior do que a da premissa menor..."
(grifo do Autor). Apesar de, citando Leonardo Van Acker,9 afirmar a necessidade da lógica material
para assegurar a "verdade" das proposições que se constituem no silogismo, considera ele que o
juízo que o órgão julgador pratica ao sentenciar é o juízo analítico, isto é, cujo predicado se constitui
simplesmente "numa explicitação do que já se contém no sujeito". Ora, isto é uma tautologia!

O silogismo deve ser compreendido como uma mediação, um instrumento de obtenção de um


conteúdo e não uma repetição de formas vazias. Sob este ponto de vista dialético é que ele deve ser
retomado. Ora, ao próprio Aristóteles parece que isso não passou despercebido. De outra forma,
como explicar o papel que ele concedeu à experiência? A ela caberia "atualizar" as conclusões
obtidas, testando-as frente à realidade e motivando sua reformulação caso provada seja sua
insuficiência.

A lógica dialética, ao buscar os aspectos qualitativos das coisas, evidenciando sua interação,
propicia um "resgate" do silogismo, diríamos mais, sua superação, entendida aqui no sentido
hegeliano do termo.

Visto, de forma resumidíssima, fragmentária e imperfeita, o que vem a ser o silogismo em geral e
quais são suas limitações principais, dirijamo-nos, agora, para o campo do Direito, e vejamos em que
medida o raciocínio silogístico se inseriu modernamente nessa disciplina.

4. A concepção mecânica da atividade judicial

Foi graças à chamada "Escola de Exegese", em França, aos "pandectistas alemães" e à "Escola
Analítica Inglesa", se bem que por razões e em circunstâncias diferentes, ainda que influenciados
pelo cientificismo e pelo logicismo matemático que dominaram o Século XIX e parte do Século XX,
que a concepção mecânica da atividade judicial ganhou foros de verdade incontestável.

Na França, a fé depositada nas codificações conduziu à ilusão de nelas identificar todo o Direito.
Imbuídos dos postulados racionalistas de Montesquieu, que pretendia afastar o arbítrio em que
redundaria o predomínio de um Poder sobre outro, e de Rousseau, que via nas leis a expressão da
Vontade Geral e, portanto, do bem comum, os autores e comentadores da Codificação Napoleônica
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A SENTENÇA: UM SILOGISMO?

proibiram ao juiz "inovar". Todo o Direito estaria contido na Lei, e a atividade daquele consistiria,
como diz Recaséns Siches,10 em fazer atuar a "mecánica de un silogismo".

Na Alemanha, chegou-se à mesma conclusão devido à atitude dos pandectistas em relação ao


"Corpus Juris Civilis", de Justiniano. Neste também acreditava-se encontrar todo o Direito, o que
limitava o juiz a uma atividade dedutiva, extraindo do sistema rígido dos textos o direito a ser
aplicado aos casos concretos.

Foi também na busca de segurança e certeza, que seriam ameaçadas por uma atividade mais
criativa por parte dos juízes, que o Common Law foi originariamente concebido como um sistema
pleno e definitivo, cuja regras rígidas não poderiam variar de caso para caso.

Hans Kelsen vai ser o responsável, ainda que sob um prisma formalista, por importantes ataques a
esta concepção. Convém, entretanto, que tenhamos uma visão mais geral de seu pensamento para
melhor entendermos o alcance de suas críticas.

Um Autor11 já afirmou que as principais contribuições de Kelsen para a compreensão do Direito


seriam as seguintes: primeiro, ter afirmado que o objeto de um conhecimento científico sobre o
Direito seria a norma. Esta não seria o único, porém; em seguida, ter proposto um método para seu
estudo e aplicação, qual seja, o método normológico. Este se preocupa, em poucas palavras, com as
conexões de validade entre as normas; e, por ultimo, ter proposto um positivismo "crítico", isto é,
ciente de suas próprias limitações. Isto é bem evidenciado quando vemos qual é a atitude da "Teoria
Pura" frente aos valores. Aquela não trata deles não por achar que eles não existam;não trata deles
por achar que uma abordagem "científica" dos valores não é possível.

A chave, por assim dizer, do problema se situa em indagar o que Kelsen entende por "ciência". Para
ele, somente o conhecimento empírico das ciências naturais e o conhecimento das ciências formais
hipotético-dedutivas, como a matemática e a lógica, mereceriam se enquadrar naquele termo.
Científicas, portanto, só seriam as disciplinas jurídicas que estudassem o Direito enquanto "fato"
(sociologia jurídica) ou enquanto estrutura lógica.

Abstraindo o substrato ético, político, econômico e social do Direito, o projeto da "Teoria Pura" é,
justamente, construir um sistema lógico coerente em que cada elemento, isto é, cada norma, seja
subsumível em outra hierarquicamente superior. Na base de todo esse sistema, garantindo-lhe a
unidade e a coerência, encontramos o axioma do qual ele deve ser deduzido: a norma hipotética
fundamental ou Grundnorm. O operar jurídico fica, então, reduzido a buscar as relações de validade
entre as normas, eliminando lacunas, resolvendo antinomias e mantendo a integridade do sistema.

Um tratamento "científico" do Direito, portanto, só seria possível mediante o emprego de proposições


empíricas, fruto de um juízo sintético a posteriori,e de proposições analíticas, como as da lógica e as
da matemática (voltemos ao que Arruda Alvim disse, mais acima, acerca da natureza do juízo
praticado pelo órgão decisor ao resolver a lide).

Tal ponto de vista (o da "Teoria Pura"), que elimina do estudo do Direito qualquer consideração
acerca de elementos extra-sistemáticos, só nos pode dar uma visão reducionista e estiolada de seu
objeto. Não seria de se estranhar se fôssemos por ele levados a enxergar na atividade judicial um
mero procedimento de lógica formal-dedutiva. Realmente, a teoria normativista de Kelsen é tributária
da mesma matriz de pensamento que elegeu a razão lógico-matemática como melhor critério de
aferição da "verdade" ou da "falsidade" de uma proposição. Essa matriz serviu ainda a uma
finalidade prática: domínio técnico do mundo.

Na própria teoria de Kelsen entretanto, e somos aqui surpreendidos por seu pensamento,
encontramos elementos para combater essa visão simplista da atividade judicial como a elaboração
de um silogismo. Ao conceber a decisão judicial como simultaneamente criadora e aplicadora do
Direito, o Professor vienense chega a uma conclusão diametralmente oposta.

5. DECISÃO JUDICIAL SEGUNDO KELSEN

A crítica à Escola da Exegese, e à sua concepção formalista da atividade judicial, foi feita, por um
lado, em virtude do problema das "lacunas" e da completude do ordenamento jurídico e, por outro
lado, devido à discussão em torno do caráter criador ou não da função jurisdicional. Ambas as
questões se relacionam. Norberto Bobbio12 afirma a respeito que "o caráter peculiar da escola da
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exegese é a admiração incondicional pela obra realizada pelo legislador através da codificação, uma
confiança cega na suficiência das leis, a crença de que o Código, uma vez promulgado, basta-se
completamente a si próprio, isto é, não tem lacunas: numa palavra, o dogma da completude jurídica".
Tal dogma desenvolveu-se simultaneamente com a chamada concepção estatal do Direito, isto é,
aquela concepção "que faz da produção jurídica um monopólio do Estado". Historicamente, ambos
acompanham o surgimento e o fortalecimento dos Estados Nacionais, que repudiavam toda fonte de
produção jurídica que não fosse a Lei ou a vontade do soberano.

O envelhecimento das codificações, provocado principalmente pelo ritmo vertiginoso com que, a
partir da segunda metade do Século XIX, a Revolução Industrial alterou a sociedade, gerou uma
atitude mais crítica em relação a este monopólio estatal do Direito. Uma das reações mais
significativas a ele foi a da chamada "escola do Direito livre". O seu principal alvo, nos diz Bobbio, é
justamente o dogma da completude do ordenamento jurídico. "Se quisermos criticar o fetichismo
legislativo dos juristas, precisaremos em primeiro lugar abolir a crença de que o Direito estatal é
completo. A batalha da escola do Direito livre contra as várias escolas da exegese é uma batalha
pelas lacunas". Mais adiante, continua ele: "o Direito constituído está cheio de lacunas e, para
preenchê-las, é necessário confiar principalmente no poder criativo do juiz, ou seja, naquele que é
chamado a resolver os infinitos casos que as relações sociais suscitam, além e fora de toda regra
pré-constituída".

O nascimento da "Escola do Direito livre" acompanha o surgimento das Ciências Sociais, no século
passado, e sua polêmica contra o Estado. Diríamos mais, a "descoberta" que essas ciências fizeram
de que há uma sociedade abaixo do Estado. O Direito portanto, seria um produto da sociedade. O
juiz e o jurista teriam que tirar as regras jurídicas, adaptadas "às novas necessidades, do estudo da
sociedade, da dinâmica das relações entre as diferentes forças sociais, e dos interesses que estas
representavam".

Fora dessa perspectiva sociológica, Kelsen também vai defender o caráter criativo da decisão
judicial. É óbvio, porém, que o faz dentro do formalismo de sua doutrina. Inicia o mestre vienense13
afirmando que "a aplicação de uma norma geral a um caso concreto consiste na produção de uma
norma individual, na individualização (ou concretização) da norma geral". E mais adiante: "A relação
que intercede entre as normas gerais criadas por via legislativa ou consuetudinária e a sua aplicação
pelos tribunais ou órgãos da administração é, no essencial, a mesma que existe entre a Constituição
e a criação, por ela regulada, de normas gerais de Direito. A criação de normas jurídicas gerais é
aplicação da Constituição, tal como a aplicação de normas jurídicas gerais pelos tribunais e órgãos
administrativos é criação de normas jurídicas individuais". Não se pode distinguir a atividade de
criação da atividade de aplicação do Direito, já que esta nada mais é que a "criação de uma norma
inferior com base numa norma superior ou execução do ato coercivo estatuído por uma norma".14

Realmente, tomando o ordenamento jurídico como um conjunto escalonado e hierárquico de normas


ou, conforme representação já consagrada, como uma pirâmide, somente em casos extremos
criação e aplicação de Direito não estão simultaneamente presentes. Já que uma norma inferior ou
um ato executivo só são criados caso haja uma norma superior que os autorize, somente no vértice
da pirâmide, isto é, a norma hipotética fundamental, e na sua base, atos coercivos resultantes da não
observância voluntária de uma decisão judicial ou de um ato administrativo, não encontramos ambas
as atividades. Com a norma hipotética fundamental isso ocorre porque, sendo ela pressuposta, não é
antecedida por nenhuma outra norma e, portanto, é responsável unicamente pela criação de outras
normas (constitucionais e infraconstitucionais); com os atos coercivos, ao contrário, há somente
aplicação do que está estatuído em uma decisão judicial ou em um ato administrativo que não foram
voluntariamente cumpridos. A decisão judicial, por sua vez, é uma norma jurídica, integra o
ordenamento, sendo resultado de sua concreção. "A norma individual, que estatui que deve ser
dirigida contra um determinado indivíduo uma sanção perfeitamente determinada, só é criada através
da decisão judicial. Antes dela não tinha vigência. Somente a falta de compreensão da função
normativa da decisão judicial, o preconceito de que o Direito apenas consta de normas gerais, a
ignorância da norma jurídica individual, obscureceu o fato de que a decisão judicial é tão-só a
continuação do processo de criação jurídica e conduziu ao erro de ver nela apenas a função
declarativa".15

Mais além entretanto, Kelsen exprimiu de forma magistral, dentro dos limites de seu formalismo, a
necessidade de realizar valorações por parte do aplicador da norma e a certa margem de liberdade
que este deve ter: "Com efeito, o tribunal recebe competência para criar apenas uma norma
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individual, válida unicamente para o caso que tem perante si. Mas esta norma individual é criada pelo
tribunal em aplicação de uma norma geral tida por ele como desejável, como justa,que o legislador
positivo deixou de estabelecer. Somente enquanto aplicação de uma norma geral não positiva é
possível afirmar como justa (correta) a norma individual estabelecida pelo tribunal".

E mais adiante: "...à função criadora de Direito dos tribunais tem de ser deixada uma certa margem
de livre apreciação. A norma jurídica geral positiva não pode prever (e predeterminar) todos aqueles
elementos que só aparecem através das particularidades do caso concreto (...) A norma jurídica é
sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual. Mas
esta moldura pode ser mais larga ou mais estreita"16 (grifos nossos). Assim é que Kelsen critica,
dentro de sua teoria, a concepção mecânica da atividade judicial. Percebemos claramente,
entretanto, que o grau de liberdade do aplicador da norma ainda é limitado. Por outras palavras, é
balizado pelo próprio sistema, já que é dentro da "moldura" representada pelas normas gerais
positivas, e somente dentro delas, que o órgão aplicador pode buscar as soluções para os casos que
se lhe apresentam.

6. Outras críticas à concepção mecânica da atividade judicial

Recaséns Siches, indo além desta perspectiva formalista, vai buscar na experiência e na
necessidade inerente ao ser humano de fazer valorações os argumentos principais de sua refutação
da concepção silogística da atividade judicial.

Tendo criticado esta como o resultado de uma transposição descabida para o domínio humano da
lógica matemática, propõe substituí-la por uma "lógica do razoável". A compreensão desta exige que
estejamos atentos ao fato de que, quando nos referimos ao homem, não podemos pretender atingir
"certezas" ou "verdades" matemáticas a seu respeito. Pelo contrário. A lógica do razoável está
"impregnada de valorações", como estão a vida humana e o próprio Direito. "El legislador opera con
valoraciones sobre tipos de situaciones reales o hipotéticas en términos genéricos y relativament
abstratos. Lo esencial en su obra no consiste nunca en el texto de la ley, sino en los juicios de valor
que el legislador adoptó como inspiración y como pauta para su regla".17

E logo em seguida: "El proceso de producción del Derecho continua en la obra del órgano
jurisdicional (Juez o funcionário administrativo), el cual, en lugar de valorar, en términos generales,
tipos de situaciones, tiene que valorar, debe hacerlo, en términos concretos de situaciones
particulares. Para eso, tiene que valorar la prueba, valorar los hechos del caso planteado,
comprendiendo su especial sentido; calificandolos juridicamente; y juzgando cuál sea la regla
pertinente. El conjunto de esas operaciones, ligadas recíproca e indisolublemente entre sí, es el
proyecto de solución más justa dentro del orden jurídico positivo".

Assim como Kelsen, Siches reconhece na atividade jurisdicional uma dimensão criadora de Direito,
se bem que por razões distintas. A perspectiva lógico-objetivante do normativismo kelseniano por
sua vez, não abarca toda a riqueza do fenômeno jurídico. Enxerga o Direito como um "dado", uma
estrutura, ignorando o papel dos sujeitos que nele participam. Daí porque Siches acerta ao afirmar
que o tratamento lógico-formal do Direito não pode conduzir à Justiça. A lógica jurídica deve ser a
lógica do humano e do razoável.

A dimensão especificamente jurídica da norma, isto é, o fato de estabelecer uma disciplina


intersubjetiva de condutas, deve ser ressaltada. Essa dimensão, que é necessariamente social, não
pode ser apreendida a partir de uma perspectiva formalista. Somente do ponto de vista de uma
práxis é que ela pode ser visualizada. Esta práxis compreende o relacionamento dialético, dentro de
uma dada ordem social, entre os diferentes atores sociais, os diferentes projetos de sociedade que
eles se propõem realizar e os diferentes valores que esses projetos implicam. Envolve ainda o
conflito entre o Direito já positivado e as novas situações da vida geradas pela evolução da
sociedade. É por isso que, conforme diz Miguel Reale,18 "a norma jurídica não pode ser considerada
pelo intérprete como um modelo definitivo; é um modelo sujeito à prudência determinada pelo
conjunto das circunstâncias fáctico-axiológicas em que se encontra situado o administrador ou o
juiz". Opõe assim, o jusfilósofo paulista, uma perspectiva operacional à perspectiva formalista da
"Teoria Pura".

Chamamos aqui a atenção para a dupla tendência que se contém no fenômeno jurídico: por um lado,
a busca de segurança, de estabilidade; por outro, a realização da justiça, que em uma sociedade
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dividida em classes, que experimenta a emergência de novos grupos e de novas aspirações, só


pode redundar em uma certa instabilidade. Um movimento centrípeto e outro centrífugo. O Prof.
Agostinho Ramalho19 afirma, a respeito desse conflito, que há uma dialética entre "validade formal" e
"legitimidade material". A primeira corresponde ao valor "certeza", que um dado ordenamento jurídico
deve oferecer à sociedade que o elaborou; a segunda, refere-se ao grau de observância de um
ordenamento que, por contemplar as aspirações da maioria, conduz à realização do valor "justiça".
Acreditamos que o papel desempenhado pelos órgãos decisores, isto é, juízes e tribunais, no
equacionamento deste conflito e na determinação do justo devido a cada um é sumamente
importante. A norma, ou o ordenamento jurídico como um todo, constitui o elemento sobre o qual o
Juiz irá trabalhar para formar sua decisão. A ela porém, não deve estar totalmente adstrito. Isto
porque a concepção mecânica tinha um outro terrível aspecto, para o qual os órgãos decisores
devem estar atentos: ao desejar juízes que se comportassem como autômatos, afastavam destes
todo e qualquer senso de responsabilidade social. Seus atos não seriam mais que a explicitação de
comandos abstratos contidos nas normas. Não importava se tais comandos viessem a corroborar
injustiças ou a se mostrar desatualizados face à evolução da sociedade. Como diz Siches, à ilusão
do legislador, de criar todo o Direito, correspondia a ilusão do Juiz, de poder retirar todo o Direito da
lei.

Esta atitude de absolutização da razão matemática, que pode ser encontrada mesmo na Grécia
Antiga, parece ter encontrado seu divulgador, no Ocidente, em René Descartes. Nesse sentido, as
regras contidas no "Discurso do Método" não são mais que uma descrição da maneira que o espírito
pensa ao pensar matematicamente. Ao pretender estender a todo o corpo das ciências este método
matemático, Descartes almejava fazê-las atingir os mesmos padrões de "certeza" e de "verdade"
daquela disciplina.

A razão cartesiana, com seus ideais de certeza e precisão, dominou amplamente os paradigmas
políticos, sociais e científicos da modernidade. No campo do Direito, a concepção mecânica da
atividade judicial foi uma das expressões mais perversas desta hegemonia. As reações feitas a essa
concepção evidenciaram a necessidade do aplicador da norma estar atento a elementos exteriores
ao sistema. Deve buscar no sentimento de justiça existe em um dado momento e nas aspirações
sociais majoritárias, por exemplo, subsídios para valorar consentaneamente os dados de que dispõe.
Por outras palavras, deve estar pronto a, como diz Siches, fazer um "raciocínio estimativo".

Não quer isso dizer que se deva, como propõem algumas formulações20 da "escola do Direito livre",
abandonar todo e qualquer cânone de segurança e rigor formal. Influenciados ainda pelas teorias
contratualistas de Hobbes e Rousseau, isso parece a nossos olhos um inadmissível retorno ao
estado de natureza. Seria cair no extremo oposto, da incerteza total ou da anarquia. Ao aplicador da
norma porém, deve ser deixada uma certa margem de livre apreciação, como o próprio Kelsen
reconhece, para que possa fazer justiça. E a justiça deve continuar a ser a meta do Jurista.

7. A lógica jurídica é tópica e dialética

Cabe aqui uma explicação do que entendemos por "justiça". Não temos em mente aquela Justiça
nefelibata e platônica, fruto do devaneio de certos jusnaturalismos21 que a consideram em termos
absolutos. A justiça de que se cogita aqui também não é uma idéia vaga, que possa ser livremente
apropriada por algum intelecto relativista ou casuísta. É uma justiça concreta, resultante da inserção
de cada indivíduo em uma rede de relações sociais. Essa concepção aristotélica de justiça, por sua
vez, é completada pela noção também aristotélica de "tópica". Por tópica, ou aporética, entendemos
a técnica de pensamento problemático, que se propõe a analisar cada caso judiciário na sua
especificidade e individualidade, em contraposição à lógica formal cuja perspectiva é como vimos,
sistemático-dedutiva. A apreensão concreta de cada caso permite um melhor dimensionamento do
"justo" devido a cada um, em oposição ao balizamento estreito da lógica formal-dedutiva.

Dentro da linha que adotamos para nossa exposição, merece ser destacada a interessante obra do
Prof. gaúcho Juarez Freitas, A Substancial Inconstitucionalidade da Lei Injusta.22 Neste trabalho, que
corresponde à sua dissertação de Mestrado em Filosofia pela PUC/RS, Freitas afirma que "a decisão
jurídica e a lógica que preside não são silogísticas, tampouco o julgar jurídico é oriundo de uma mera
subsunção, até porque o juiz, ao aplicar a norma, faz sempre por reinventá-la. A lógica do Direito é,
neste sentido, lógica da superação do finito normativo ou positivado, lembrando-se que a finitude
insuperada é o paradigma lógico, ultrapassado e inaceitável, de todo positivismo estrito, ao passo
que estamos propondo uma visão que surpreenda o Direito como um constante ir além de si mesmo,
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ainda que não absolutamente, dado que só há Direito na história, não se podendo, por conseguinte,
pensar o jurídico afugentando a transcendência de sua própria efetivação".23

Sua perspectiva dialética permite tratar de forma construtiva aquele conflito entre "certeza" e "justiça"
ao qual aludimos mais acima. Nesse sentido, Freitas não nega a existência, quiçá a necessidade, de
uma norma fundamental; afirma, porém, que esta deve ser compreendida de outra maneira: "Não se
deve, contudo, negar a existência de uma norma fundamental ou de um conjunto de normas
fundamentais, vale dizer, de princípios fundamentais,consagrados pela Constituição, os quais
decididamente precisam sair do secundaríssimo plano em que se encontram para ocupar o lugar
dado à norma no esquema de Kelsen, sem o seu formalismo positivista, conquanto não se negue um
virtual conflito entre o ético-político e o jurídico-formal, pois do contrário, negaríamos a especificidade
da lógica jurídica, ou melhor, a sua especialização de lógica dialética".24 Ao contrário do ponto de
vista da formulação kelseniana, que considera a norma fundamental, e o ordenamento como um
todo, como vazios de qualquer conteúdo, Freitas afirma que toda norma tem um conteúdo moral.
Caracteriza ele os princípios diretores da Constituição, presentes, segundo ele, no Título I de nossa
Carta Magna (LGL\1988\3), como "transdogmáticos". Isso por transcenderem a finitude do Direito
positivado. Face à insuficiência deste, o intérprete sempre encontraria naqueles princípios uma
orientação, um parâmetro para melhor construir sua decisão, isto é, para construí-la da forma mais
justa.

Ao juiz cabe um papel fundamental na determinação destes princípios e no afastamento de


interpretações que, por destoarem deles, originam injustiças. "Ao invés de perquirismos se uma lei
em si mesma é justa ou não, o mais conseqüente e lógico-ético seria indagar se a interpretação da
norma é justa. Nesse sentido, sustentamos que a tarefa da interpretação não é tomar conhecimento
do compreendido, senão o desenvolvimento das possibilidades projetadas no compreender".25

Freitas lembra que a aplicação do esquema do silogismo tradicional e formalista à atividade judicial,
acaba reduzindo-a a uma prática mecânica e distante da realidade. Isto porque uma perspectiva
puramente axiomática, isto é, baseada na simples dedução de proposições a partir de um princípio
básico ou axioma, como é a perspectiva do silogismo clássico, não pode abranger a busca da
justiça. Este silogismo, que na filosofia aristotélica recebe o nome de "categórico", prima pela
dedução de conclusões necessárias a partir de premissas e princípios com valor axiomático. A
sentença judicial, ao contrário, é elaborada a partir de um caso concreto e contingente, '"através de
um raciocínio persuasivo e aproximativo do justo". O silogismo categórico porém, que é aquele visto
sob a perspectiva da extensão, não foi o único estudado por Aristóteles. Este também analisou os
silogismos provável, ou tópico, e o retórico. "O silogismo tópico ou dialético é o que chega a
conclusões prováveis, pois parte de premissas não necessárias. Com efeito, quando se trata de uma
realidade jurídico-normativa de ordem cultural e contingente, enquanto tal, não é possível ter um
conhecimento com absoluta necessidade universal".26

À luz dos chamados "princípios transdogmáticos", caberia ao julgador aplicar a norma da maneira
mais justa. "A presença de uma certa dose de subjetividade e de indeterminidade do aplicador em
todas as suas decisões faz com que a dimensão ética, vez por todas, deva ser considerada
inafastável do julgamento jurídico, conquanto este exija, em todos os casos, uma fundamentação
última, lógico-ética e objetiva, baseada nos critérios de universalização e de transparência".27

8. Conclusão

O papel criador da jurisdição, resultante da insuficiência do Direito Positivo, e a crença de que o


ordenamento jurídico, como totalidade destinada a um fim, deve ser compreendido como um meio de
realizar a justiça, são algumas das conclusões a que pretendíamos chegar. A lógica formal,
evidentemente, não consegue dar conta dessa perspectiva aberta e dialética.

A axiomatização que a característica só pode ter, no domínio humano, uma aplicação limitada e
parcelar. A concepção mecânica da atividade judicante, tida por muito tempo como a elaboração de
um silogismo, se mostra plenamente insuficiente para tratar de cada caso concreto e contingente. À
ela, e à lógica que a preside, deve ser oposta a lógica do humano e do razoável, dialética e tópica.
Só ela permite tratar de forma construtiva os grandes desafios que a atualidade oferece ao Jurista.

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1. Cf., "Three Views Conceming Human Knowledge", in Conjectures and Refutations,Londres, 1972,
Routledge & Kegan, pp. 97-119.

2. Paulo Ferreira da Cunha, introdução de Aristóteles - Obra Jurídica,Rés-Editora, Porto (Portugal),


1989, pp. 35-36.

3. Cf., Primeiras Linhas de Direito Processual Civil,Saraiva, S. Paulo, 1989, v. 3.º/09-10.

4. Vide Manual de Direito Processual Civil,Saraiva, S. Paulo, 1976, 2.ª ed., v. III/29.

5. Cf., Manual de Direito Processual Civil,Ed. RT, S. Paulo, 1978, v. II - "Processo do Conhecimento",
p. 345.

6. Arruda Alvim, "Sentença no Processo Civil - As diversas formas de terminação do processo em


primeiro grau", in RePro 23-25, abr.-jun./1976.

7. Vide, Curso de Direito Processual Penal,Saraiva, S. Paulo, 1989, 19.ª ed., pp. 214-215.

8. Cf., Lógica Formal Lógica Dialética,Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1987, trad. Carlos Nelson
Coutinho, 4.ª ed., pp. 153-154.

9. Vide, "Elementos de Lógica Clássica Formal e Material", in Revista da Universidade Católica de


São Paulo,XL/24, jan.-jun./1971, fascs. 77-78, (2.ª ed.), cap. III (apud Arruda Alvim, in RePro 2/24,
abr.-jun./76).

10. Cf., Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho,Ed. Porrua, México, 1973.

11. João Baptista Machado, Prefácio de A Justiça e o Direito Natural,de Rans Kelsen, Arménio
Amado Editor, Coimbra, 1979, pp. IX, X e XI.

12. Cf., Teoria do Ordenamento Jurídico,Ed. UNB e Ed. Polis, S. Paulo/Brasília, 1989, trad. Cláudio
de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos, pp. 120-125.

13. Rans Kelsen, Teoria Pura do Direito,Arménio Amado Ed., Coimbra, 1984, trad. João Baptista
Machado, 6.ª ed., pp. 320-322.

14. Idem, ibidem, p. 325.

15. Idem, ibidem, p. 330.

16. Idem, ibidem, p. 337.

17. Luís Recaséns Siches, in ob. cit., pp. 288 e 289.

18. Citado por João Baptista Machado no Prefácio de sua tradução de A Justiça e o Direito Natural,
ob. cit., pp. XX e XI.

19. Em Palestra proferida por ocasião do Seminário sobre Metodologia e Ensino Jurídico, realizado
em Fortaleza-CE, em nov./1990.

20. Há várias formulações que se encaixam sob a epígrafe de "Escola do Direito Livre". Citaríamos
as obras de Geny (Méthode d'Interprétation et sources du Droit Positif), de Gaston Morin (La Révolte
des Faits Contre la Loi) e de Kantorowicz (A Luta pela Ciência do Direito - Der Kampf um die
Rechtswissenschaft) como as que propõem uma atitude mais crítica em relação ao Direito Positivo.
Para uma melhor visão sobre o assunto, sugeriríamos a leitura da obra já citada de Bobbio, a partir
da p. 115.

21. Kelsen, em "A Justiça e o Direito Natural", disseca sob o prisma de seu formalismo as principais
manifestações históricas do Direito Natural, condenando a concepção dualista da "Justiça" de Platão
e da Teologia Cristã. Estas opõem, uma ordem ideal, metafísica, a outra positiva e instituída pelo
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homem, "absolutizando" a Justiça. Apesar de Aristóteles ter tratado melhor o problema da Justiça,
Kelsen considera a formulação do "meio termo" como tautológica. Comparar suas conclusões (ob.
cit., pp. 36-39 e 89-103) com a abordagem de Paulo Ferreira da Cunha, desenvolvida no Prefácio de
Aristóteles - Obra Jurídica,já citada.

22. Publicado pela Editora Vozes em co-edição com a Ed. da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Petrópolis/ Porto Alegre, 1989.

23. Ob. cit., p. 20.

24. e 25. Idem, ibidem, pp. 22-23.

25

26. Idem, ibidem, p. 97.

27. Idem, ibidem, p. 107.

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