Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Plit0846 D
Plit0846 D
Florianópolis
Maio de 2020
Ana Beatriz Mello Santiago de Andrade
Florianópolis
2020
Ficha Catalográfica
Ana Beatriz Mello Santiago de Andrade
O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado
em Literatura
___________________________
____________________________
Florianópolis, 2020
Agradecimentos
Ao longo desta dissertação, apresenta-se uma leitura das obras No exílio (1948) e Retratos
antigos (2012), ambas de Elisa Lispector (1911-1989), escritora nascida na Ucrânia que viveu
desde seus dez anos de idade até o fim de sua vida no Brasil. No exílio tem como plano de fundo
a Ucrânia no contexto pós-invasão russa, a viagem em exílio e a vida da família no Brasil.
Retratos antigos figura como testemunho escrito em primeira pessoa e apresenta, além das
fotografias, a narração da escritora sobre os retratos e as personagens que neles aparecem. Ao
se utilizar de duas estratégias bastante diversas, a escritora traz em sua literatura narrativas de
exílio que em muito se interligam à sua biografia. A leitura que ora se apresenta é feita pelo
viés das escritas de memória e testemunho. Um entendimento do contexto histórico em que
viveu e escreveu Elisa Lispector se fez necessário. As questões de testemunho e trauma são
pensadas na dissertação, bem como a questão das cartas trocadas entre Elisa Lispector e sua
irmã Clarice Lispector.
Throughout this dissertation, a reading of No Exílio (1948) and Retratos antigos (2012), both
by Elisa Lispector (1911-1989), is presented. The Ukrainian writer lived in Brazil from the age
of 10 until the rest of her life. "No exílio" has as a background Ukraine after the Russian
invasion, the journey in exile and the family life in Brazil. Retratos Antigos is presented as a
written testimony, in the first person, and also shows, besides the photographs, the writer's
narration about the portraits and the characters displayed on them. When using two very
different strategies, the writer brings in her literature narratives of exile that are closely linked
to her biography. The reading here presented is done through the bias of memoir and testimony.
Understanding the historical context in which Elisa Lispector lived and wrote is required.
Testimony and trauma issues are considered throughout the work, as well as some letters
exchanged between Elisa Lispector and her sister Clarice Lispector.
1 Introdução .............................................................................................................................. 11
2 Migrações, pessoas e histórias: Elisa Lispector, narradora ................................................... 14
2.1 Elisa Lispector: fortuna crítica ........................................................................................... 14
2.2 Sobre Elisa Lispector .......................................................................................................... 16
2.3 A invisibilidade da escritora perante o cânone ................................................................... 18
2.4 Retratos antigos: uma narrativa imagética ......................................................................... 22
3. No exílio, Revolução Russa e memória ................................................................................ 32
3.1 No exílio: o romance de memória de Elisa Lispector ......................................................... 32
3.2 Revolução Russa, desdobramentos e o exílio vivido ......................................................... 38
3.3 No exílio e Retratos antigos: memórias escritas ................................................................. 42
4 Testemunho e trauma na obra de Elisa Lispector .................................................................. 50
4.1 Retratos antigos e No exílio: testemunhos de uma escritora .............................................. 50
4.2 O trauma do exílio em forma de romance .......................................................................... 61
4.3 Irmãs escritoras: a correspondência entre Elisa e Clarice Lispector .................................. 66
5 Considerações finais .............................................................................................................. 73
Referências ............................................................................................................................... 75
11
1 INTRODUÇÃO
1
Pogrom: um ataque violento a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente. O termo tem sido usado
para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus e outras minorias étnicas
da Europa. In.: GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. 2ª edição- São Paulo; Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2009. Vale destacar que os pogroms eram uma violência com origem nas questões de imperialismo
russo, não necessariamente atreladas aos bolcheviques.
13
É também neste capítulo que se fala sobre a Revolução Russa de 1917 e seus
desdobramentos, que causaram a vinda da família Lispector para o Brasil em exílio, portanto,
um momento histórico que se encontra representado na literatura de Elisa Lispector.
No terceiro e último capítulo, abordo a questão do testemunho e as diferentes estratégias
narrativas adotadas pela escritora. Ao considerar Retratos antigos uma obra que pode ser
interpretada como um testemunho da escritora, pontuo questões teóricas sobre o conceito do
testemunho e apresento trechos escritos por Elisa Lispector sobre as fotografias, trazendo para
esta dissertação elementos da “leitura” que a escritora faz dos retratos de seus familiares ao
longo da narrativa que constrói em Retratos antigos, esta pautada pelo afeto, pela memória.
Também é neste capítulo que abordo a questão do trauma na literatura de Elisa
Lispector. O aporte teórico sobre o trauma apresentado neste capítulo tem por objetivo pensar
as questões de migração, visto que este é o tema central do romance No exílio. A vivência do
exílio pode ser considerada uma experiência traumática, visto que, aos dez anos de idade, a
escritora teve de abandonar seu país natal e recomeçar a vida ao lado dos pais e das irmãs,
enfrentando todas as dificuldades de adaptação, os problemas financeiros da família, a doença
e posterior morte da mãe. As questões referentes ao trauma do exílio, como, por exemplo, a
dificuldade em aprender uma nova língua, aparecem no romance.
Para finalizar, apresento algumas cartas trocadas entre Elisa e Clarice Lispector, com o
objetivo de refletir sobre a maneira como lidavam com a questão do exílio. As cartas aparecem
para encerrar esta dissertação como uma reflexão sobre a diferença entre as irmãs Lispector,
que tratam de modo bastante distinto a vivência do exílio e a história da família, o que, por
consequência, reflete na literatura criada por cada uma. Enquanto Clarice prefere o silêncio
quanto a essas questões, Elisa tem a necessidade de narrar o vivido.
14
Milton Nascimento2
A busca por Elisa Lispector começou, para mim, enquanto leitora, com leitura de
Retratos antigos, publicado em 2012, pela pesquisadora e biógrafa de Clarice Lispector, Nádia
Battella Gotlib. Ao ler os Retratos, minha busca era, ainda, por mais detalhes da história da
família Lispector. O texto de Elisa Lispector foi uma leitura instigante e, desde então, fiquei
atenta ao seu nome. Em uma livraria, tempos depois, encontrei No exílio, segundo livro
publicado pela escritora, primeiramente, em 1948. Estes dois livros aqui citados viriam a ser o
corpus de minha pesquisa.
Devido ao fato de Elisa Lispector não ser uma escritora inserida no chamado cânone da
Literatura Brasileira, há uma necessidade de mapear e aqui pontuar o que se tem até hoje escrito
sobre a escritora e suas obras.3 A começar pelo próprio Retratos antigos, livro que traz uma
ampla apresentação escrita por Nádia Gotlib sobre o álbum de fotografias da família e a forma
como Elisa Lispector narra o ato de ver/ler as imagens, além do próprio texto de Elisa Lispector
e das imagens contidas no álbum da família.
Na academia, foram desenvolvidas algumas dissertações sobre a escritora. O trabalho
intitulado “Elisa Lispector – registros de um encontro” realizado por Jeferson Alves Masson,
foi defendido em 2015, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Nela,
o autor se dedica, ao longo de quatro capítulos, a narrar sua relação com o objeto de pesquisa e
seu contato com os arquivos de Elisa Lispector.
Mais uma dissertação que trata sobre Elisa Lispector e sua obra e vale ser citada é a de
Fernanda Cristina de Campos, defendida em 2006, na Universidade de Brasília (UnB): “O
discurso melancólico em Corpo a corpo, de Elisa Lispector”. Também escrita em quatro
2
A letra da música “Encontros e despedidas” está disponível em: https://www.letras.mus.br/milton-
nascimento/47425/. Acesso em 10/05/2020.
3
Para que se reunisse, aqui, uma fortuna crítica, foram necessárias pesquisas no Google Acadêmico, no banco de
teses e dissertações da CAPES e no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Para que se fizesse a pesquisa on-
line, as palavras-chave usadas foram, principalmente “Elisa Lispector” e “No exílio”.
15
capítulos, esta dissertação apresenta uma discussão sobre o cânone e, após isso, dedica-se a
tratar especificamente da temática da melancolia na obra Corpo a corpo, publicada por Elisa
Lispector em 1983, portanto, seu penúltimo livro publicado em vida.4
Em 2015, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Vivian Leone de Castro Buarque
defendeu sua dissertação “Memória, testemunho e exílio no romance No exílio de Elisa
Lispector”. Estruturado em três capítulos, o trabalho traz uma reflexão sobre a cultura judaica
e sua influência na Literatura Brasileira e apresenta alguns aspectos de leitura de No exílio,
como um subcapítulo dedicado à personagem Lizza e suas nuances e à ausência da figura
materna devido à morte da personagem Márim.
Durante a realização do XV Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC), em 2017, a professora Ana Cristina dos Santos e a
doutoranda Débora Magalhães Cunha Rodrigues, ambas da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), apresentaram trabalho intitulado “Elisa Lispector e Samuel Rawet:
contribuições sobre exílio e isolamento intelectual”.
Em artigo publicado em 2014, na Revista semestral de estudos judaicos do Instituto
Cultural Judaico Marc Chagall em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
e intitulado “Clarice e Elisa Lispector: caminhos divergentes”, Berta Waldman mostra os
pontos em comum entre as carreiras de Elisa e Clarice, como, por exemplo, o fato de as duas
irmãs começarem a publicar seus livros nos anos de 1940, e também as divergências entre o
estilo, a escrita e as escolhas narrativas de cada uma.
Berta Waldman destaca, ao tratar de No exílio, o desejo de Elisa Lispector de fazer o
registro da história da família, algo que não se nota na obra da irmã mais nova, Clarice. A autora
destaca, ainda, as diferenças na forma de narrar das obras das duas irmãs escritoras.
4
Ao todo, Elisa Lispector publicou dez livros em vida: dois livros de contos e oito romances. São eles: Além da
fronteira (1945), No exílio (1948), Ronda Solitária (1954), O muro de pedras (1963), O dia mais longo de Teresa
(1965), Sangue no sol (1970), A última porta (1975), Inventário (1977), Corpo a corpo (1983) e O tigre de bengala
(1985).
16
Ao longo de sua carreira, Elisa Lispector recebeu dois prêmios literários: o Prêmio José
Lins do Rêgo, em 1963, e o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, em 1964,
ambos pelo romance O muro das pedras, lançado em 1963 pela editora José Olympio.
Por ocasião do Prêmio José Lins do Rêgo, foi publicada na Revista Manchete, Edição
574 de 1963, reportagem intitulada “Uma Lispector que se chama Elisa”, na qual se narra a
confusão feita pelo fotógrafo entre as irmãs escritoras “Fotografar a escritora Elisa Lispector?
Não é Clarice Lispector que a senhora quer dizer?” e a importância do prêmio: “Ela obteve o
prêmio literário mais cobiçado do Brasil”. Na mesma reportagem, Vera Pacheco Jordão
comenta sobre a surpresa de ter sido Elisa Lispector a vencedora do prêmio naquele ano:
Aberto o envelope, o pasmo foi total: o tão cobiçado prêmio fôra (sic) conquistado
por uma mulher e os homens ainda não se acostumaram às vitórias femininas. Além
disso, o nome da laureada espicaçava a curiosidade. Alguém lembrou que Elisa
Lispector já havia publicado dois ou três romances, bem acolhidos por críticos do
porte de Lúcia Miguel Pereira e Olívio Montenegro, embora sem tanta repercussão
quanto os de Clarice (JORDÃO, 0574, 1963).
5
Não se pretende, ao longo desta dissertação, essencializar as vivências dos povos de origem judaica. Dentre as
muitas etnias judaicas, situa-se a família Lispector, porém, não fez parte desta pesquisa a busca pela origem étnica
dos Lispector. Assim, usarei a terminologia “povo judeu” para sinalizar momentos em que a questão judaica teve
influência nas vivências de Elisa Lispector e em sua literatura, ainda que, com isso, assumindo o risco de uma
generalização essencializante.
17
de Pinkhouss Lispector [Teplik, Ucrânia, 1885 (GOTLIB, 2009b, p. 26) – Rio de Janeiro,
Brasil, 1940 (GOTLIB, 2009b, p. 167)] e Mánia Krimgold [Ekaterinka, Ucrânia, 1889
(GOTLIB, 2009a, p. 21) – Recife, Brasil, 1930 (GOTLIB, 2009a, p. 78)] viveu sua primeira
infância na Ucrânia. Ainda hoje, é pouca a informação que se tem da infância da escritora no
país natal. A partir de 1920, ano de nascimento de Clarice Lispector, há um número maior de
informações e pesquisas sobre o exílio vivido pela família, que desembarcou no Brasil em 1921.
Os pogroms ocorridos na Ucrânia após a Revolução Russa de 1917 atingiram fortemente
a comunidade judaica do país. Durante o governo de Nicolau II (1894-1917) e ainda após esse
período, as perseguições aos judeus com assassinatos em massa tornaram-se uma constante na
Rússia e em territórios vizinhos (GOTLIB, 2009a, p. 29).
A ocorrência desses ataques aos judeus trouxe momentos bastante difíceis à família
Lispector. A violência étnica e de gênero6 trouxe como consequência para Mánia a
Hemiplegia7. O casal com então duas filhas viu a morte de familiares, conhecidos, vizinhos,
sofreu saques e violência em um destes pogroms. Restou, então, o exílio. A família junta o
pouco que sobrou e seus esforços para conseguir sair da Ucrânia. Pinkhouss envia cartas ao
Brasil e aos Estados Unidos da América. No Brasil, tinham parentes8 e, assim, conseguiram um
destino para a mudança de vida.
Aos dez anos de idade, Elisa Lispector desembarca no Brasil, um país diferente e com
uma língua desconhecida. A menina nasceu na Ucrânia, numa família judaica, mas mora no
Brasil desde os dez anos de idade. No Brasil é, portanto, uma estrangeira, da mesma forma que
muito provavelmente se sentiria caso tivesse um dia retornado ao seu país natal.
Quando adulta, Elisa Lispector atuou como funcionária pública federal do Ministério do
Trabalho, estudou sociologia na Escola Nacional de Filosofia e Crítica de Arte na Fundação
Brasileira de Teatro. Lançou seu primeiro romance, Além da fronteira, em 1945. No exílio
(1948) é seu segundo romance. Em 1963, lançou, pela Editora José Olympio, O muro das
pedras, romance que no mesmo ano recebe o prêmio José Lins do Rêgo e, no ano seguinte,
recebe o prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras. Em 1985, lança O tigre de
bengala, o último livro publicado em vida pela escritora. É importante destacar a publicação
6
Aqui não me refiro à hipótese não comprovada levantada por Benjamin Moser de que “Bem no fim da vida,
Clarice confidenciou à amiga mais íntima que sua mãe fora violentada por um bando de soldados russos. Deles,
ela contraiu sífilis (...)”. (MOSER, 2011, p. 54). A informação não é comprovada documentalmente, portanto, não
deve ser considerada nesta dissertação. Como violência de gênero me refiro ao fato de uma mãe sozinha com suas
três filhas terem sofrido um ataque tão violento.
7
“Paralisia parcial do corpo proveniente de trauma” (LISPECTOR, 2012, p. 63). Apenas com a publicação de
Retratos antigos se tem a causa mortis de Marieta Lispector divulgada.
8
Quem envia a “carta de chamada” para os Lispector virem para o Brasil é José Rabin, casado com Zina Krimglod
Rabin, irmã de Mánia (GOTLIB, 2009a, p. 53).
18
póstuma de seu texto intitulado Retratos antigos, em 2012. Vale mencionar que, desde 2007,
o acervo de Elisa Lispector se encontra no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
Em 6 de janeiro de 1989, aos 77 anos, Elisa Lispector faleceu (LISPECTOR, 2012, p.
59). A escritora não se casou e não teve filhos, tendo deixado como herdeiras sua irmã, Tânia,
e, posteriormente, a sobrinha Márcia.
O termo (do grego “kanon”, espécie de vara de medir) entrou para as línguas
românicas com o sentido de “norma” ou “lei”. Durante os primórdios da cristandade,
teólogos o utilizaram para selecionar aqueles autores e textos que mereciam ser
preservados e, em consequência, banir da Bíblia os que não se prestavam para
disseminar as “verdades” que deveriam ser incorporadas ao livro sagrado e pregadas
aos seguidores da fé cristã. O que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que o
conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se
desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão
investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto
é: de sua classe, de sua cultura, etc.). Convém atentar ainda para o fato de que o
exercício desta autoridade se faz num determinado espaço institucional (no caso, a
Igreja) (REIS, 1992, p. 70).
Assim sendo, visto que há um processo de “classificação” do que se torna boa literatura
ou não, destacando o fato de que o cânone da literatura brasileira é formado majoritariamente
por homens, brancos e heterossexuais, raras eram as mulheres a figurarem entre as publicações,
na Academia Brasileira de Letras e no mercado editorial. Apesar de, nos dias de hoje, as
publicações de mulheres terem crescido numericamente, os marcadores de prestígio literário
como prêmios e participações em feiras no Brasil e no exterior ainda são mais voltados aos
autores homens. A seleção a que Reis se refere implica, como evidente consequência, na
exclusão de mulheres, dissidências de gênero, negros/as, indígenas e demais minorias sociais.
A formação de um cânone literário, ao longo da história, está ligada a critérios de seleção e
julgamentos de valor altamente excludentes e patriarcais, sendo as obras escritas por homens
mais publicadas, lidas e valorizadas do que as escritas por mulheres. Contribuindo para esse
debate, Norma Telles, argumenta que
19
O silenciamento ao qual Norma Telles se refere foi constantemente sofrido por mulheres
ao longo dos anos. A relação entre a academia e o mercado editorial – principais elementos
construtores do cânone literário – não tinha como prioridade de publicação as ideias e os
interesses femininos.
Nos dias de hoje, é possível que se note uma pequena mudança nos paradigmas da
formação de um cânone, isso graças a uma mudança de perspectiva dos teóricos da literatura
no país, como explica Rita Schmidt.
Apesar das ortodoxias que emergem no campo minado onde se digladiam discursos e
práticas críticas, definidas como substancialistas (se alinhadas ao campo da estética
ou às convenções e códigos da tradição erudita) ou progressistas (se identificadas com
o campo político, via de regra, associado à emergência do subalterno), é inegável que
as transformações da teoria têm fomentado uma verdadeira revolução nos estudos
literários contemporâneos, permitindo questionamentos de várias ordens e de vários
lugares sobre o funcionamento da disciplina e a definição de seus objetos, sobre a
natureza da instituição literária e seus mecanismos de controle como discursos de
valoração e interpretação, bem como sobre forma e função do cânone e sua relação
com a narrativa da história da literatura (SCHMIDT, 2010, p. 174).
Assim sendo, Zahidé Muzart conclui sobre as estratégias de como se deve subverter
hoje a esse cânone e resgatar escritoras que publicaram em outros tempos e não tiveram
reconhecimento e visibilidade em sua época:
20
Na medida em que entendemos que os sentidos das representações geradas por essa
memória, em forma de arquivo-escritura, revelam uma relação de cumplicidade entre
aquilo que pode ser dito e lembrado e posições de autoridade investidas de alto poder
regulatório na gestão, social e simbólica das diferenças, a história literária e as
formações canônicas emergem como lugares histórico-político-discursivos, por
excelência, do privilégio de um sujeito enunciador e, consequentemente, da produção
textual de subjetividades hegemônicas (SCHMIDT, 2010, p. 179).
Logo, é importante que se analise os motivos dessa exclusão das mulheres do cânone de
acordo com as relações de poder presentes na sociedade. O sujeito enunciador é, portanto, o
que detém mais privilégio num contexto social hegemonicamente masculino. Por esse viés,
Regina Dalcastagnè pontua que “Os lugares de fala no interior da narrativa também são
monopolizados pelos homens, brancos, sem deficiência, adultos, heterossexuais, urbanos, de
classe média.” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 148). Ou seja, este contexto majoritariamente
masculino culmina na exclusão de mulheres como Elisa Lispector e tantas outras do cânone da
literatura brasileira. Para Dalcastagnè,
Portanto, a partir desta perspectiva é possível que se pense e analise a literatura como
parte ativa da sociedade: se há exclusões dentro da sociedade, também haverá no meio literário.
Ao longo dos séculos passados, era nítida a exclusão (não apenas) de mulheres da literatura,
visto que elas não tinham sequer acesso ao estudo formal. Atualmente, ainda há uma diferença
entre a quantidade de homens e de mulheres publicando literatura, porém, já há uma consciência
crítica a respeito disso e pesquisas como a de Dalcastagnè apontam o problema.
Nesta perspectiva, Elisa Lispector é uma mulher, imigrante judaica, que escreve no
século XX, momento histórico em que ainda são raras as mulheres a alcançarem alguma
visibilidade dentro do cânone literário do Brasil. Mesmo que a escritora não alcance grande
visibilidade, publica seus livros pela Editora José Olympio, uma das maiores do país nas
21
décadas de 1940 e 1950, justamente o período em que Elisa Lispector publica seus primeiros
livros.
Até os dias de hoje, o pouco conhecimento que se tem sobre Elisa Lispector advém das
leituras biográficas sobre sua irmã, a também escritora Clarice Lispector, excepcionalmente,
uma mulher que figura no cânone da Literatura Brasileira.
É possível notar uma diferença entre o modo como Elisa e Clarice lidam com a questão
do exílio e de suas origens judaico-ucranianas, o que pode ter influenciado o processo de
invisibilização de Elisa Lispector perante o cânone. O que chama a atenção nos escritos de Elisa
Lispector é a responsabilidade que toma para si de um registro da história de sua família, desde
seus mais distantes antepassados, “pessoas que nem sequer cheguei a conhecer, mas das quais
não posso me descartar.” (LISPECTOR, 2012, p. 81), até a sua própria história. Sobre a
presença da cultura judaica nas obras das irmãs Lispector, Berta Waldman pontua:
Enfim, comparando a presença do judaísmo nas obras das duas irmãs, tem-se a
dimensão da diferença que existe entre elas. Uma não só aceita esse traço identitário
como faz por perpetuá-lo. A outra sente-se brasileira, russa, mas recalca o traço
judaico que, no entanto, aparece em sua obra de forma oblíqua, na massa comum do
sincretismo religioso tão afeito ao modo de ser do Brasil (WALDMAN, 2014, p. 15).
9
Vale destacar que as duas irmãs escreviam em contextos bastante distintos. Enquanto Clarice Lispector, logo
após publicar seu primeiro livro, muda-se para a Europa com o marido diplomata, Elisa Lispector segue vivendo
no Rio de Janeiro, o que pode ter, de certa forma, influenciado a projeção que cada uma alcança em termos de
mercado literário.
22
O livro Retratos antigos, que conta com texto de Elisa Lispector, uma apresentação
escrita por Nádia Gotlib e fotografias do álbum da família ucraniana, foi publicado em 2012.
Nele, a escritora narra em primeira pessoa uma (possível) história de sua família através do ato
de ver o álbum de fotografias. Conforme Roland Barthes, “A fotografia transformava o sujeito
em objeto, e até mesmo, se é possível falar assim, em objeto de museu” (BARTHES, 2017, p.
19). Objetos de museu no sentido de marcarem um tempo e um espaço específicos, que podem
ser lidos através das roupas e de todo o contexto da imagem.
O desejo da escritora em perpetuar sua história e de seus antepassados é destacável ao
longo de sua obra. Ao tratar dos escritos de Elisa Lispector, é possível, portanto, pensar em uma
(re)criação e (re)invenção do vivido. Essa leitura vai ao encontro das contribuições de Leonor
Arfuch, para quem:
Falar do relato, então, dessa perspectiva, não remete apenas a uma disposição de
acontecimentos – históricos ou ficcionais – numa ordem sequencial, a uma
exercitação mimética daquilo que constituiria primeiramente o registro da ação
humana, com suas lógicas, personagens, tensões e alternativas (ARFUCH, 2010, p.
112).
A subjetividade pode ser notada na obra de Elisa Lispector no sentido de fazer uma
escrita de memória, ou seja, seu material de escrita é altamente subjetivo, pautado em suas
memórias e em memórias que por vezes não são suas, o que confere estatuto ficcional aos seus
textos sobre os retratos. Conforme Aleida Assmann,
Assim sendo, o que se pode ler nos Retratos antigos está ligado aos fragmentos de
memória da escritora, desde o que conta sobre pessoas da família, sobre as quais muitas vezes
apenas ouviu falar, até o que narra sobre seus próprios pais.
24
A fotografia acima mostra Tcharna Krigmgold (LISPECTOR, 2012, p. 4), avó materna
de Elisa Lispector falecida em 1914, quando a escritora tinha apenas três anos de idade. Ela usa
joias e, conforme descreve a neta nos Retratos antigos: “Em obediência aos ditames religiosos,
traz sobre os próprios cabelos uma peruca de matrona armada em bandós caprichados”
(LISPECTOR, 2012, p. 101). Elisa Lispector lembra da avó como uma pessoa generosa e
devotada aos mitzvot (LISPECTOR, 2012, p. 101), ou seja, aos deveres que o judaísmo pregava.
25
Para Roland Barthes, o distanciamento temporal que se impõe entre quem fala sobre
uma fotografia e a pessoa fotografada em questão é o que constitui o ato de “ver” um retrato.
Assim sendo, pode-se pensar na perspectiva de Elisa Lispector, autora dos relatos a
respeito da família, como “excluída” do momento histórico em que tais fotografias foram feitas
e, portanto, distante em tempo e espaço, o que constitui a ficcionalidade ao olhar que tem sobre
o passado.
A família Lispector fixou residência no Brasil em 1921. Primeiro, em Maceió; depois,
em Recife e, anos mais tarde, no Rio de Janeiro. As vivências de exílio de cada membro da
família são bastante distintas. A mãe adquiriu uma doença em decorrência de um pogrom, o
que a afetou de maneira significativa nos dez anos em que viveu o exílio, até falecer, em 1930.
Só se tem um esclarecimento sobre a doença adquirida por Marieta com a publicação de
Retratos antigos. Nádia Gotlib, organizadora do livro, explica:
É o caso da mãe (Mánia), que nessas memórias que ora se publicam, surge envolvida
de ternura pela filha, Elisa. Além desse envolvimento, digno de nota, acrescente-se
que neste texto aparece a explicitação da doença da mãe: “hemiplegia”, ou seja,
paralisa parcial do corpo proveniente de trauma. E a narradora completa essa
informação ao definir a origem do trauma: a violência causada por bolcheviques
durante um pogrom (LISPECTOR, 2012, p. 63).
O que Brah propõe, então, é que se analise a relação de cada geração posterior com a
vivência de exílio de maneira distinta. No caso dos Lispector, deve-se pensar essas gerações a
partir de Pedro e Marieta, passando pelas filhas Elisa, Tania e Clarice e chegando aos filhos
dessas três irmãs, que já nasceram no Brasil e, portanto, terão uma visão diferente daqueles que
migraram: Márcia (de Tânia), Pedro e Paulo (de Clarice).
Os pais da escritora são a primeira geração desta família em exílio; as três filhas, a
segunda. A partir da terceira geração, portanto, dos dois filhos de Clarice Lispector – Pedro e
Paulo – e da filha de Tania Kauffmann – Márcia – a ideia de exílio torna-se mais longínqua. Ao
notar essa passagem do tempo ao longo das gerações, Elisa Lispector assume o papel de deixar
um registro escrito aos futuros descendentes sobre quem são os antepassados e qual destino
tiveram.
Conforme a autora, essa leitura de um passado tende a ser um tanto idealizada, visto que
a pessoa tende a guardar certo apego pelo vivido. No caso dos Retratos antigos, é com o devido
respeito ao passado que Elisa Lispector assume a narração dessas memórias, dos ritos da cultura
judaica e das vidas das pessoas que nas imagens capturadas figuram. Em seu relato, a escritora
reflete sobre os mais variados processos de migração sofridos pelo povo judeu. A falta de uma
pátria faz com que muitos percam o contato com suas origens.
Elisa Lispector também trata dos pogroms. Foi justamente um destes ataques que fez
com que os Lispector saíssem da Ucrânia em exílio em 1921. Os pogroms atingiam
27
pontualmente os judeus e eram uma perseguição violenta e ofensiva. A escritora fala das
porcentagens de judeus e seus direitos dentro da sociedade, desde direito ao estudo até mesmo
o direito de existir, o que expõe nitidamente a segregação sofrida.
Vale destacar que os pogroms ocorrem desde o século XIX na Europa, atingindo o povo
judeu e causando, desde então, inúmeros processos migratórios. Natália dos Reis Cruz pontua
essa questão dos pogroms e das migrações:
era preparado com muito zelo para que se vivesse o sábado tal e qual mandava a Torah, o livro
sagrado dos judeus, o qual tinha como fiel seguidor Pedro Lispector, descrito como pessoa
íntegra.
E bem pelo contrário, tanto mais reconhecesse as qualidades nobres de alguém, mais
sóbrio se mostrava no trato. Uma expressão que usava com alguma frequência era a
fainer mensh (uma pessoa distinta), mas se a pessoa lhe merecia a admiração total,
designava-a tão somente com a expressão mensh (mensh: pessoa, gente). Assim,
quando dizia fulano é “um mensh”, havia-lhe rendido a mais alta homenagem
(LISPECTOR, 2012, p. 113).
Ainda sobre o pai, Elisa Lispector narra um episódio curioso, no qual o pai lhe faz uma
proposta de escrita. Pedro, já no fim da vida, sugere que a filha mais velha escreva sobre “um
homem que se perdeu” (LISPECTOR, 2012, p. 125). Isso fez com que a filha se questionasse
sobre o porquê de o pai ter feito tal proposta de tema de escrita.
Lembro-me de certa noite em que, após ler um de meus primeiros escritos numa
revista literária, pensando e repensando com a revista na mão, falou:
– Vou-lhe sugerir um tema. Escreva sobre um homem que se perdeu, um homem que
perdeu o caminho.
Permaneceu um bom tempo calado, depois retirou-se para o seu quarto. Nada mais
acrescentou. E eu fiquei a imaginar o que teria feito sentir-se como um náufrago, em
que ponto de suas dúvidas ele havia se extraviado ao oscilar entre dois mundos,
perdido entre várias culturas (LISPECTOR, 2012, p. 125).
A morte do pai também aparece na narrativa, pois marcou as irmãs Lispector. Muito
provavelmente, se questionada sobre como definiria seu pai, Elisa teria escolhido justamente a
palavra mensh, tão usada por Pedro para descrever pessoas as quais considerava dignas de
admiração e respeito: “O pai morreu em virtude de um choque operatório, sem saber que eu me
empenhava em cumprir o que ele me havia pedido, de transpor para o papel o sonho que a vida
lhe negara realizar” (LISPECTOR, 2012, p. 126).
A “narração” de um álbum de fotografias depende das imagens nele contidas e da
interpretação que o narrador faz delas. No caso dos Retratos, o texto de Elisa Lispector está
pautado nas lembranças que ela tem das personagens das fotografias ou, ainda, do que lhe foi
dito a respeito delas. nesse sentido, conforme Barthes,
A Fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com
certeza daquilo que foi. Essa sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência
não toma necessariamente a via nostálgica da lembrança (quantas fotografias estão
fora do tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente no mundo, a via
da certeza: a essência da Fotografia consiste em ratificar o que ela representa
(BARTHES, 2017, p. 80-81).
29
A imagem mostra os cinco membros da família Lispector: Pedro, Marieta, Elisa, Tania
e Clarice. Segundo Nádia Gotlib, “cópia dessa foto aparece no passaporte familiar expedido
pelo Consulado da Rússia em Bucareste (Romênia), em janeiro de 1922, quando a família
viajava para o Brasil.” (LISPECTOR, 2012, p. 138). O retrato é um dos raríssimos em que estão
presentes todos os integrantes da família, visto que a fotografia era um recurso caro e não muito
utilizado no início do século XX. Outro motivo que justifica a raridade desta imagem é a morte
prematura de Marieta, que faleceu em 1930, apenas nove anos após chegar ao Brasil.
30
A leitura aqui apresentada dos Retratos antigos tem como intuito pensar como a família
judaica, seus costumes e a vivência do exílio tiveram influência sobre a obra literária de Elisa
Lispector, bem como a memória é tema e recurso estético fundamental no trabalho da escritora.
A escritora utiliza a estratégia da escrita em primeira pessoa para deixar um registro escrito a
respeito do passado e de sua família – o que se busca ler como um possível recorte histórico,
algo que mais famílias também judaicas e imigrantes possam ter vivido.
A escritora deixa evidente que não tem o objetivo de remontar a árvore genealógica da
família (LISPECTOR, 2012, p. 83), mas, ao mesmo tempo, demonstra seu interesse em deixar
um registro escrito para que não se esqueça a memória dos familiares que vieram antes dela.
A escritora demonstra, no subtítulo, que esta não é uma obra pronta. Os “esboços a
serem ampliados” (LISPECTOR, 2012, p. 80) poderiam ter ido além, como o foram com a
publicação do livro em 2012 por Nádia Gotlib, que organizou o texto de Elisa Lispector,
trazendo, além dele, as fotografias encontradas no álbum da família e uma apresentação que
situa o leitor. Talvez a escritora almejasse uma ampliação feita pelos sobrinhos ou, ainda pelas
próximas gerações, visto que dedica o livro a eles e ainda acrescenta nos originais uma nota:
“atenção, Márcia”. (LISPECTOR, 2012, p. 57)
O livro é dedicado aos sobrinhos e sobrinhos-netos de Elisa Lispector, os da terceira
geração, aqueles que, ainda bem, não tiveram a vivência do exílio, mas que, para sua tia/tia-
avó, não devem esquecer suas origens. O passado e o futuro podem ser pensados, portanto,
como elo notável na escrita de memórias desenvolvida por Elisa Lispector. Os que estão por vir
conhecerão, através desses relatos da escritora, um pouco da história e do passado de sua
família. A ligação que a escritora busca criar entre os de gerações futuras e suas origens é peça-
chave na leitura dos Retratos antigos.
32
A partir do início do segundo capítulo, começa um flashback, que chega ao ano de 1921,
quando há perseguição contra os judeus na Ucrânia e, por isso, a família protagonista do
romance vivencia o exílio. No romance, tal perseguição se dá em forma de um pogrom, que
atinge a todos, mas especialmente à mãe, Márim. Este foi o estopim para que a família decidisse
partir, depois de ter passado por um período de escassez de mantimentos e ter visto amigos e
familiares morrerem.
No romance, são citadas algumas cidades pelas quais a família Lispector passou. Na
ficção, são narrados momentos de dificuldades que a família protagonista enfrenta em alguns
destes lugares. A família de Elisa Lispector – bem como a da personagem Lizza – passou por
algumas cidades antes de embarcar para o Brasil.
33
Já eram cinco: o pai, a mãe e as três filhas. Em direção a Odessa, cidade do mar Negro,
onde talvez pudessem embarcar num vaio? Difícil conseguir embarcar nessa cidade,
tomada, depois da Revolução de 1917 e durante a Primeira Guerra, por franceses,
ingleses alemães e, só naquele ano mesmo de 1920, recuperada pela Rússia. Antes da
viagem mais longa, a outra opção seria, então atravessar a fronteira da Ucrânia, o que
se costumava fazer com dificuldade, subornando os guardas da fronteira. Teriam
conseguido sair do território russo atravessando a fronteira pelo rio Dniester, na
Moldávia, em direção a Bucareste, passando por Kichinev, na Moldávia, e Galatz, no
sul da Romênia. Após conseguirem o passaporte russo no Consulado da Rússia em
Bucareste, teriam seguido viagem para a Hungria, em direção aos lugares de onde
costumavam sair os navios para a América: Itália, França, Bélgica, Holanda,
Alemanha. Teriam, então, atravessado a fronteira da Romênia em direção a Budapeste
passando pela atual República Tcheca e pela Alemanha. Esse é um dos roteiros
possíveis.
Foi num porto da Alemanha, Hamburgo, que embarcaram num navio em direção à
América (GOTLIB, 2009, p. 45-46).
tinham medo. Com o cair da noite, a inquietação se foi apoderando novamente dos
habitantes.
Novos tiros esparsos, seguidos de gritos lancinantes denunciavam que algo terrível
estava acontecendo. Dos que os ouviam, alguns permaneciam mudos, estarrecidos,
enquanto a outros o pavor ensandecia, e também eles se punham a gritar.
Portas e janelas forçadas, imprecações e insultos. Casa adentro fez-se silêncio, por um
instante cheio de temerosa expectativa. Não sabiam se deviam pedir socorro, sair à
rua, ou esconder-se por trás dos móveis. Marim não pensou muito. Lançou-se à sorte.
Pinkhas estava em viagem, retido pelos acontecimentos tumultuados. Era, pois, a ela
que cabia agir para salvar as filhas, e as mulheres e crianças que se haviam refugiado
em sua casa (LISPECTOR, 2005, p. 34).
Após o ataque sofrido pela família protagonista do romance, acontece o exílio, que
aparece na trama como o evento central a ser narrado, não só o momento da viagem da família
como a vida das personagens no Brasil, seus percursos e, principalmente, o sentimento de Lizza,
de ser exilada. A viagem ao Brasil apresentou inúmeras dificuldades, desde a falta de recursos,
a necessidade de subornar guardas até o agravamento da doença de Márim. A chegada ao Brasil
também não foi tão hospitaleira quanto as personagens imaginaram, visto que o cunhado de
Márim foi, por vezes, hostil com Pinkhas e as crianças.
– Henrique, preciso que me empreste algum dinheiro. É para leva Marim para o
hospital. Preciso interná-la. Henrique esboçando um sorriso num canto da boca,
– Bem, mas você sabe...
– Marim tem um colar de ouro. Posso empenhá-lo.
Henrique sorrindo, agora satisfeito, cordato.
Pinkhas conduzindo as crianças para a casa do cunhado; em seguida, à claridade da
lua cheia, a canoa transportando-o e a Marim para o navio que os levaria a Recife
(LISPECTOR, 2005, p. 100).
Pela primeira vez, eu estava privado do ambiente linguístico de que dependia para ter
uma alternativa às atenções hostis dos anglo-saxões cujo idioma não era o meu e que
não hesitavam em deixar claro que eu pertencia a uma raça inferior e, de algum modo,
condenada (SAID, 2001, p. 306).
O que Said narra neste trecho é justamente o que acontece com a personagem Lizza, a
hostilidade de suas colegas não lhe permitia esquecer que era estrangeira, exilada, e isso lhe
trazia infelicidade. A minoria étnica à qual a personagem pertencia era a dos judeus exilados,
sem uma pátria.
35
Convencera-se de que as relações com meninas da sua idade não mais seriam
possíveis. Sofrera durante as aulas, vendo-se demasiado crescida para estar entre as
crianças que apenas se iniciavam nas letras; nos recreios, a sensação de mal-estar
aumentava ainda mais.
– Diga cadeado, diga.- As crianças cercavam-na e a apoquentavam, com maldade.
– Ca-de-a-do-repetia, pondo acento em cada sílaba, com medo de errar. A meninada
ria, pulava em torno, uma puxando-lhe a saia, outra, o cabelo maltratado. Suportava,
de dentes cerrados, contendo-se para não dar parte de fraca. Se chorasse, seria pior.
Então, as crianças cansavam-se desse brinquedo e abandonavam-na no meio do pátio,
como uma coisa inútil. Lizza ficava sozinha, a um canto, esperando o recreio acabar.
A alegria ruidosa das outras não a contagiava, mesmo quando se mostravam benévolas
e condescendentes para com ela, a imigrante (LISPECTOR, 2005, p. 108).
Lizza começou a sentir o coração doendo muito, uma dor como a dilacerá-la até o
âmago. [...] Sofria pela mãe morta, e sofria pelo pai, e as irmãs órfãs. Todos tinham
ficado órfãos. E quando pensou em si mesma, sentiu mais que a orfandade. Estava
simplesmente sem rumo. Para tudo mais que não fosse a assistência que prestara à
mãe doente, estava mutilada na vida corrente de interesses e liames (LISPECTOR,
2005, p. 142).
É depois da morte de alguém que a atenção dos seus se fixa com maior força sobre
sua pessoa. É então, também, que sua imagem é a menos nítida, que ela se transforma
constantemente, conforme as diversas partes de sua vida que evocamos. Em realidade,
nunca a imagem de um falecido se imobiliza. À medida que recua no passado, muda,
porque algumas impressões se apagam e outras se sobressaem, segundo o ponto de
vista de onde a encaramos, isto é, segundo as condições novas onde ela se encontra
quando nos voltamos pra ela (HALBWACHS, 1990, p. 74).
Assim sendo, é possível notar que, para a personagem Lizza, a morte da mãe foi um
marco. O cotidiano da personagem pautava-se nos cuidados com sua mãe. Na ocasião, Lizza
sofria por si e pela orfandade de todos. Junto a suas irmãs, após o ritual do velório, falavam,
mesmo que timidamente, sobre a mãe, por quem se apiedavam devido à doença e à morte.
Pinkhas evitava falar na esposa morta. Com o passar do tempo, apesar dos pensamentos e
orações de todos se voltarem para Márim, ela havia se tornado assunto velado. A família
mudou-se de casa, pois, ao passar pelo quarto, ouviam a mãe chamar e reviviam seu sofrimento.
36
Sobre a morte da mãe na literatura de autoria feminina, Norma Telles pontua que é um
momento de maior profundidade na trama, o que se pode aplicar ao caso de No exílio, visto que
a morte de Márim é um momento de profunda tristeza e reflexão para sua filha Lizza.
Na literatura masculina a morte do pai sempre foi o rito de passagem para o herói,
aqui a morte da mãe, testemunhada e transcendida pela filha, torna-se uma das
ocasiões de maior profundidade da literatura escrita por mulheres (TELLES, 1992, p.
60).
Vale ressaltar que as perseguições aos judeus fazem parte da história do século XX
desde seu princípio e tiveram consequências, como, por exemplo, o exílio e a doença da
personagem Márim do romance. O êxodo de judeus de suas terras aconteceu em diferentes
momentos históricos. Nos dias de hoje, o termo “holocausto” para se referir à perseguição aos
judeus é questionado. Leila Danzinger, em artigo intitulado “Shoah ou Holocausto: a aporia dos
nomes” levanta questões ligadas ao termo holocausto e alguns de seus problemas, como, por
exemplo, a seguinte reflexão: “De origem religiosa, o termo Holocausto empresta caráter
voluntário e passivo à morte, aceita em submissão à vontade divina” (DANZINGER, 2007, p.
02).
Ainda sobre o uso da denominação Holocausto, a qual passa por um processo de
banalização, Danzinger traz para seu texto outros autores que pensam sobre o uso desta palavra
e questões a ele intrínsecas:
Apesar desta “banalização” do termo, a autora pondera que, de certa forma, ele teve sua
importância no discurso das vítimas deste horror e, principalmente, para romper os silêncios.
Outro termo que a autora apresenta é Shoah, termo no qual, segundo Danzinger
Danzinger traz para o leitor, ainda, uma citação de Primo Levi que trata dos problemas
que migrantes judeus enfrentam no que diz respeito à linguagem e à comunicação, bem como
as situações vividas em um campo de concentração. A questão da língua é sempre um desafio
37
para os que migram, pois é uma grande barreira na comunicação e na construção de relações
interpessoais ao se chegar em um país estrangeiro, bem como as situações vividas em um campo
de concentração.
A conclusão a que a autora chega sobre estes termos aqui apresentados e seus usos ao
longo do século XX é justamente a de que nenhuma denominação é capaz de exprimir os
horrores vividos pelo povo judeu, desde as primeiras perseguições sofridas até o extermínio
vivido na Segunda Guerra Mundial.
Outro episódio importante narrado em No exílio é a morte do pai das personagens Lizza,
Ethel e Nina: Pinkhas, sempre descrito no romance como pessoa correta, trabalhadora e honesta.
Este é mais um acontecimento que traz a sensação de perda e angústia a Lizza.
sobre a situação da Palestina. As questões que envolvem o povo judeu estão sempre presentes
nos pensamentos, conversas e preocupações da personagem.
Após a morte dos pais, o fim da Guerra e alguns outros acontecimentos, Lizza, a
protagonista do romance, é internada em um sanatório, de onde sai após “18 meses de reclusão
e de tormento” (LISPECTOR, 2005, p. 200). No romance, não se explica o motivo que a levou
a esta internação, mas vale contextualizar que, nos anos 1940, era comum pessoas que tinham
tuberculose ficarem por alguns meses reclusas em regiões de maior altitude, como serras, por
exemplo. Por isso, é possível aventar a hipótese de que a personagem não estaria num
manicômio propriamente dito, mas sim em um processo de tratamento de uma tuberculose, por
exemplo.
Mas o poder da luz é mais forte que o das trevas. Sob a pesada crosta de egoísmo e de
cegueira, pulsava no homem aquela centelha generosa e pura, o lume que lhe incutia
intuição e discernimento para orientar-se na larga estrada da vida (LISPECTOR, 2005,
p. 201).
O que Beatriz Sarlo salienta são as dificuldades de conciliação entre memória e história
na construção de uma ideia de passado. Na obra de Elisa Lispector, além de a escritora se utilizar
de recursos da memória para construir suas narrativas, é de bastante relevância todo o contexto
histórico em que as personagens vivem e que a escritora traz ao leitor com riqueza de detalhes.
Em 1919, o General czarista Anton Denikin10 comandou as tropas na ofensiva contra o
exército vermelho (bolchevique), que combatia o exército da República Nacional da Ucrânia.
O propósito do exército branco de Denikin era acabar com as organizações da nação ucraniana:
escolas, livros e quaisquer postos administrativos. O poder local foi, então, devolvido à nobreza.
De setembro a dezembro de 1919, a República Nacional da Ucrânia declarou guerra ao exército
de Denikin. Após a crise política, o exército branco, em dezembro de 1919, deixou Kiev. A
derrota de Denikin deve-se ao seu objetivo restaurar o czarismo. Em 1920, após a derrota,
Denikin foi substituído no exército e passou a viver no ocidente como imigrante. Conforme
aponta Orlando Figes,
Neste contexto de saques, a violência esteve presente. A crença na riqueza dos judeus
levou a um discurso contra esta etnia. Afirmava-se sobre a ilegalidade da riqueza dos judeus
em meio à crise e, assim sendo, foi propagada uma onda antissemita num momento já
turbulento.
A família Lispector passou justamente pelo trauma de um pogrom. Durante uma viagem
de Pinkhouss, Márian e as crianças tiveram a residência invadida, seus poucos bens roubados e
sua integridade física atingida. A mãe de Elisa Lispector sofreu pelo resto de seus dias as
10
Anton Denikin: Rússia, 1872 – Estados Unidos da América, 1947. Foi o General responsável pelo exército
branco na disputa pelo território da Ucrânia após a Revolução Russa de 1917. Após a derrota, acabou seus dias
como imigrante nos Estados Unidos da América.
40
consequências do pogrom: além do trauma psicológico de ter sua vida e de suas filhas postas
em risco, o trauma físico da agressão sofrida trouxe-lhe uma doença chamada hemiplegia
(paralisia parcial do corpo), a qual faria com que Marieta Lispector visse seu corpo se degenerar
ao longo da vida.
Os líderes dos pogroms costumavam impor um alto tributo revolucionário aos judeus,
por acreditarem que todos eram, invariavelmente, muito abastados. Os que não
pagavam a taxa cobrada corriam o risco de ver seus parentes, tomados como reféns,
morrerem à bala (FIGES, 1999, p. 832).
Neste contexto, após o ataque, a família Lispector toma aquela que talvez fosse a única
decisão possível à sobrevivência: o exílio. Conforme Edward Said, sobre essa decisão:
No fim das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos
acontece. Mas, desde que o exilado se recuse a ficar sentado à margem, afagando uma
ferida, há coisas a aprender: ele deve cultivar uma subjetividade escrupulosa (não
complacente ou intratável) (SAID, 2001, p. 57).
Said sugere justamente a inexistência de opções no que diz respeito à vivência do exílio,
mesmo que, para o autor, deva-se considerar o aprendizado possível e necessário advindo desta
experiência. Para as famílias que vivem horrores como a guerra, a fome e a miséria, o exílio
não se apresenta como alternativa e sim como a única saída possível para sobrevivência.
A busca por uma pátria pode ser pensada também como uma busca por identidade, visto
que, conforme Stuart Hall, “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”
(HALL, 2003, p. 26-27). No caso de Elisa Lispector, a questão das múltiplas identidades
aparece bem marcada pela autora, a de mulher, de origem judaica, exilada. Para Avtar Brah:
por judeus ucranianos num contexto pós-revolução russa de 1917. Portanto, a leitura que se faz
das obras de Elisa Lispector passa tanto pelos aspectos mais subjetivos quanto pelo senso de
coletividade para com o seu povo.
O exílio aconteceu para os Lispector, como para parte dos judeus ucranianos no início
do século XX. Também é citado no romance No exílio todo o horror sofrido pelo povo judeu
na Alemanha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao longo do século, portanto, judeus
tiveram de sair de seus países e buscar abrigo em diversos lugares, o que fez com que
mantivessem, assim, uma unidade através das práticas identitárias como a religião, os ritos e
laços familiares, mesmo sendo um povo desterritorializado. A criação de Israel trouxe a
esperança de ter uma pátria, de ter um lugar onde fixar raízes e onde, talvez, os judeus
conseguissem obter seu território, o que aumentaria a unidade do povo judeu após tantos
percalços ao longo do tempo. Segundo Avtar Brah:
A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito
na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há
experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-
a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é,
no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu
acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo
42
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe
uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido,
ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança, e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucesivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história
é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A
memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história,
uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda
a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais
ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas,
censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda
análise e discurso crítico. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer
dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que
ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A
43
história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o
universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no
objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das
coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo (NORA, 1984, p.
9).
A oposição entre memória e história, no entanto, é construída sem que haja ruptura
efetiva com a tradição aristotélica que entende a memória (ou melhor, a reminiscência,
o ato de lembrar), sobretudo em sua função cognitiva, como conhecimento do passado
(SEIXAS, 2001, p. 39).
O que a autora propõe é que a construção da memória vai além da habilidade cognitiva
de lembrar, visto que a memória é, também, uma construção coletiva e histórica. Um dos
aspectos da memória é conhecer um passado. Assim, vale considerar que o que se sabe hoje
sobre a vida de Elisa Lispector – que advém das obras biográficas dedicadas à sua irmã mais
nova, Clarice Lispector – é o que permite, de certa forma, que se tenha uma ideia do que foi o
passado da família Lispector.
No exílio pode ser lido como um romance de memória, uma vez que há aproximações e
identificações possíveis entre as personagens do romance e os familiares de Elisa e Clarice
Lispector, descritos em sua biografia, e também entre o contexto vivido pela escritora e o
narrado no romance. Com relação aos usos da memória,
Apoiando-se nas teorias de Pierre Nora e Maurice Halbwachs, Jacy Seixas pontua a
importância da memória coletiva na consolidação de uma memória individual e aponta a
diferença entre memória coletiva e história. Assim sendo, é válido salientar a relevância da
memória coletiva do povo judeu na construção dos relatos de memória de Elisa Lispector.
Ao escrever, em primeira pessoa, os Retratos antigos, a autora se debruça sobre aquilo
que, durante toda a vida, ouviu ser contado sobre os antepassados de sua família. Muitas das
personagens dos Retratos Elisa não chegou a conhecer, portanto, contou com histórias que lhe
foram contadas pelos pais para construir seu relato, com o intuito de não esquecimento. Mas o
exercício de rememorar não é tarefa simples. Ainda de acordo com Jacy Seixas,
Nos Retratos antigos, ao ler o álbum de fotografias e a narrativa que Elisa Lispector cria
sobre as personagens dos retratos, motivada, então, pelas imagens capturadas, o leitor pode
perceber as nuances de memória deixadas pela escritora em seus registros: de familiares com
quem não manteve nenhum contato até seus próprios pais, que aparecem apresentados com
muito respeito e afetividade, como, por exemplo, no capítulo em que a escritora se dedica a
apresentar o pai como um homem de respeito e caráter. (LISPECTOR, 2012, p. 113) A projeção
que Jacy Seixas cita em direção ao futuro aparece na dedicatória que Elisa Lispector escreve
para seus sobrinhos, para que preservem a memória da família e tenham atenção ao que ela
escreve. Quanto à relação entre memória individual e coletiva, Maurice Halbwachs indaga:
Resulta disso que a memória individual, enquanto se opõe à memória coletiva, é uma
condição necessária e suficiente do ato de lembrar e do reconhecimento das
lembranças? De modo algum. Porque, se essa primeira lembrança foi suprimida, se
não nos é mais possível encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais
parte do grupo em cuja memória ela se conservava. Para que nossa memória se auxilie
com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda
que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos
de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser
reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por
peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É
necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que
se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam
incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram
45
Os nomes do pai, da mãe e das duas irmãs, Tania e Elisa, ou são exatamente iguais ou
muito semelhantes entre si. A alteração mínima ao mesmo tempo favorece a relação
de semelhança sem desmanchar a da diferença. O cotejo entre dados aí narrados e
registros documentais de pessoas da família permite constatar que a história que aí se
conta é a da família Lispector. Toques ficcionais de semelhança (bem urdidos)
permitem então o trânsito entre o campo dessa realidade familiar e o campo da ficção,
sem, naturalmente, afetar ou prejudicar o poder, em si, de sustentabilidade da própria
estrutura romanesca (GOTLIB, 2012, p. 65).
Por meio de um narrador em terceira pessoa, pode-se notar o desejo da autora de deixar
em sua literatura, em forma de romance, um registro através de sua perspectiva do que viveu.
Outro dado relevante para a leitura que se faz são os elementos extratextuais, como, por
exemplo, o prefácio do romance, que apresenta a autora Elisa Lispector - conhecida de maneiras
diferentes pelo público-leitor dos anos 1940 e de hoje em dia - e os dados biográficos que se
tem da escritora. Aqui podemos ver confirmada a concepção de Philipe Lejeune, um dos mais
consagrados estudiosos dedicados ao estudo da autobiografia:
46
Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só
tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define
como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor
do discurso (LEJEUNE, 2008, p. 23).
Logo, uma leitura da obra da autora pela perspectiva de Lejeune pode apresentar Elisa
Lispector como uma pessoa que publica pensando em sua identidade: uma mulher, de origem
judaica, ucraniana, moradora do Brasil, no século XX.
O foco do narrador em terceira pessoa é Lizza, protagonista do romance que revela para
o leitor o ponto de vista e a voz de Elisa Lispector no texto de No exílio. As vivências da
personagem principal do romance são um guia para o leitor, que, assim, acompanha desde a
viagem de exílio da família, as questões político-sociais vividas pelos judeus exilados, até as
experiências da adolescência de Lizza na escola e seus dilemas pessoais como a doença da mãe
e os cuidados com a família. Portanto, é possível que o leitor do romance veja Elisa em Lizza,
mesmo não sendo a escritora personagem ou narradora da trama.
Há uma linha tênue na leitura do romance entre a autobiografia e a ficção. O viés adotado
para que essa leitura seja válida é o da teoria do espaço biográfico, definido por Leonor Arfuch
como espaço textual de fusão de romance, autobiografia e romance autobiográfico:
O eu adulto que escreve está muito distante, não só temporalmente, mas também em
termos de identidade, da criança que ele um dia foi. No romance de Elisa Lispector, a menina
Lizza (re)cria possíveis lembranças da autora: a violência experienciada na Ucrânia, a longa
viagem em exílio ao Brasil, a doença da mãe, as dificuldades de adaptação à nova escola no
Brasil, dentre outras tristes, difíceis e complexas memórias da autora, sejam reais ou ficcionais,
pois as lembranças de infância são fragmentárias e imprecisas, mas condizem, em grande parte,
com as informações que se tem sobre a trajetória da família Lispector.
Entre a memória e a história, Elisa Lispector transita. Uma escritora certamente
preocupada em perpetuar não apenas suas vivências de exílio, mas também um triste capítulo
da história de um povo, o que vai ao encontro de reflexões teóricas tais como as desenvolvidas
por Nora, em especial o conceito de “dever de memória”:
A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade
pela revitalização de sua própria história. O dever de memória faz de cada um o
historiador de si mesmo. O imperativo da história ultrapassou muito, assim, o círculo
dos historiadores profissionais. Não são somente os antigos maginalizados da história
49
oficial que são obcecados pela necessidade de recuperar seu passado enterrado. Todos
os corpos constituídos, intelectuais ou não, sábios ou não, apesar das etnias e das
minorias sociais, sentem a necessidade de ir em busca de sua própria constituição, de
encontrar suas origens (NORA, 1984, p. 17).
Logo, a noção que se tem da relação entre memória – a que é viva – e história – a que é
pontual – é o que norteou as leituras das obras de Elisa Lispector apresentadas neste capítulo.
Ter em mente que a construção narrativa através do passado, da memória e da história são as
estratégias da escritora é a peça-chave para ler os Retratos Antigos e No exílio.
A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado.
Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se
perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número
dessas correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparência
(HALBWACHS, 1990, p. 67).
É destaque na escrita de Elisa Lispector seu desejo por narrar a viagem de sua família
rumo ao desterro. A escritora, em No exílio, constrói uma trama com personagens exiladas e
conta, à sua maneira, as vivências dessas personagens. O exílio figura como um trauma vivido
por tais personagens, por terem sido forçados a deixar sua terra natal devido às perseguições
impostas aos judeus na Ucrânia. O trabalho narrativo da escritora – tanto nos Retratos antigos
como em No exílio – pode ser lido como obra com teor de testemunho, o que permite que se
pense a questão das fronteiras e limites entre o literário, o fictício e o descritivo. Conforme
Márcio Seligmann-Silva:
álbum, imagens capturadas de um tempo inalcançável, e que, de todo modo, são figuras que já
não existem mais.
Com base na terminologia utilizada por Seligmann-Silva, pode-se pensar Elisa Lispector
em dois momentos: a menina que sobrevive ao pogrom, que chega ao Brasil aos dez anos de
idade. E que, após esse momento, volta à vida e faz da literatura seu objeto de trabalho e
construção simbólica do trauma. Em No exílio, ficção e realidade se unem para contar a história
de uma família judaico-ucraniana em desterro. Fatos históricos vivenciados pela família
Lispector são contados em forma de romance de memória. Já nos Retratos antigos, a mesma
escritora narra em primeira pessoa histórias de sua família. Elisa Lispector assume para seu
leitor, como já mencionado anteriormente, que não conheceu de fato todas as personagens das
fotografias, trazendo suas lembranças e registra-as lançando mão de marcas de oralidade,
potencializando por meio desse recurso, as histórias que ouvia seus pais e familiares contavam.
Testemunho que ganha ares literários. “Sem ser ficção, beira as margens da ficção” (GOTLIB,
2012, p. 60).
Antes é por conta da imaginação que muitas acusações são feitas contra o testemunho.
Ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu evidente compromisso com a
imaginação), a própria narrativa testemunhal, que se quer “primeira”, atestação, fonte
original da realidade, mesmo esta narrativa é descartada por muitos historiadores –
como o próprio Raul Hilberg (1996) – como sendo fonte não fidedigna para o
historiador. Neste ponto vislumbramos uma querela que acompanha a historiografia
desde seus primórdios, em sua luta contra a escrita dita imaginativa. Mas ao invés de
negarmos ao testemunho a possibilidade de ver na imaginação e em seu trabalho de
síntese de imagens um potente aliado, devemos, com Derrida (1998), ver nesta
aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação a possibilidade mesma de
se repensar tanto a literatura, como o testemunho e o registro da escrita
autodenominado de sério e representacionista. Ocorre uma revisão da noção de
literatura justamente porque do ponto de vista do testemunho ela passa a ser vista
como indissociável da vida, a saber, como tendo um compromisso com o real
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 71).
biografia pode ser lida, logo, como uma possibilidade de memória. Assim sendo, é possível
encontrar traços de testemunho na narração de viagem da família judaico-ucraniana que Elisa
Lispector traz para a ficção.
A caravana investia na noite profunda e imensa. Não havia o luar e as trevas pareciam
ter a densidade do breu. O silêncio, pesado, impregnado de expectativa e de palavras
reprimidas. Não se ouvia, sequer, o coaxar de rã nem espanto de pássaro
(LISPECTOR, 2005, p. 9).
Sua intenção era clara: apenas o lado heroico da guerra seria lembrado, a impunidade
estaria garantida. A negação antecedeu o próprio ato, ou seja, a tentativa de extermínio
dos judeus europeus. A memória da barbárie tem, portanto, também este momento
iluminista: preservar contra o negacionismo, como que em uma admoestação, as
imagens de sangue do passado (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75).
Assim sendo, as narrativas de trauma pós-segunda guerra podem ser lidas como uma
possibilidade de libertação para quem sobreviveu ao horror nazista. A busca por expressão do
trauma demonstra lacunas e silêncios. Segundo Seligmann-Silva,
É na literatura e nas artes onde esta voz poderia ter melhor acolhida, mas seria utópico
pensar que a arte e a literatura poderiam, por exemplo, servir de dispositivo
testemunhal para populações como as sobreviventes de genocídios ou de ditaduras
violentas. Mas isto não implica, tampouco, que nós não devamos nos abrir para os
hieróglifos de memória que os artistas nos têm apresentado. Podemos aprender muito
com eles (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 78).
55
Portas e janelas forçadas, imprecações e insultos. Casa adentro fez-se silêncio, por um
instante cheio de temerosa expectativa. Não sabiam se deviam pedir socorro, sair à
rua, ou esconder-se por trás dos móveis. Marim não pensou muito. Lançou-se à sorte.
Pinkhas estava em viagem, retido pelos acontecimentos tumultuados. Era, pois, a ela
que cabia agir para salvar as filhas, e as mulheres e crianças que se haviam refugiado
em sua casa (LISPECTOR, 2005, p. 34).
Nesse capítulo, o leitor encontra situações muito próximas às que a escritora vivenciou,
como o pogrom, que, no romance, aparece como momento-chave em que as personagens
resolvem migrar para o Brasil. Outra questão que chama a atenção é a configuração familiar de
pai, mãe e filhas, uma coincidência entre ficção e biografia. Como no romance, a família
Lispector era composta por Pedro, Marieta e as três filhas: Elisa, Tania e Clarice.
O exílio em si é um trauma maior que permeia toda a trama de No exílio. Já nos Retratos,
a escritora utiliza o álbum de fotografias para contar a história de seus antepassados com o
objetivo de registro de memória e para dar maior amplitude às suas próprias memórias
familiares, incluindo sua experiência numa experiência coletiva mais ampla, mais larga, mais
antiga. Não por acaso, Retratos antigos figura como publicação póstuma.
Nos estudos literários, o conceito de testemunho tem sido repensado, principalmente no
que diz respeito à questão das fronteiras entre ficção e realidade. Seligmann-Silva destaca,
ainda, o sentido jurídico de testemunho.
A questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada desde os anos 1970. Para
evitar confusões, devemos deixar claro dois pontos centrais: a) ao invés de se falar em
“literatura de testemunho”, que não é um gênero, percebemos agora uma face da
literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e que faz com que toda a
história da literatura — após duzentos anos de autorreferência — seja revista a partir
do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. Nos estudos
de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor testemunhal” que marca toda obra
literária, mas que aprendemos a detectar a partir da concentração desse teor na
literatura e escritura do século XX. Esse teor indica diversas modalidades de relação
metonímica entre o “real” e a escritura; b) em segundo lugar, esse “real” não deve ser
confundido com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance
realista e naturalista: o “real” que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave
freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85).
O historiador que toma consciência do caráter literário, até mesmo retórico, narrativo
de sua empresa, não corre o risco de apagar definitivamente a estreita fronteira que
separa a história das histórias, o discurso científico da ficção, ou ainda a verdade da
mentira? E aquele que insiste sobre o caráter necessariamente retrospectivo e
subjetivo da memória em relação ao objeto de lembrança, ele também não corre o
risco de cair num relativismo apático, já que todas as versões se equivalem se não há
mais ancoragem possível em uma certeza objetiva, independente dos diferentes rastros
que os fatos deixam nas memórias subjetivas e da diversidade de interpretações
sempre possíveis a partir dos documentos existentes? (GAGNEBIN, 2006, p. 41-42).
Assim sendo, a reflexão da filósofa é em torno da linha tênue entre ficção e realidade.
Elisa Lispector faz as vezes de historiadora do que se chama de História Oral em Retratos
antigos, seguindo o que Walter Benjamin chama de “Tese sobre o conceito de história”,
propondo uma visão da história através da perspectiva dos vencidos. A perspectiva
historiográfica de Benjamin sugere que: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de
exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 1940, p.3). Portanto, segundo o autor,
deve-se considerar as representações coletivas e de estruturas sociais levando em conta a
perspectiva dos oprimidos. Por isso, é possível colocar a perspectiva de Elisa Lispector como
próxima a esta metodologia da História. Ao narrar as histórias de seus familiares, recorre aos
retratos do álbum e à sua própria memória.
A verdade histórica, segundo Gagnebin, não depende de uma verificação dos fatos, algo
apenas possível para ciências experimentais segundo a autora (GAGNEBIN, 2006, p. 42).
Logo, o conceito de verdade não se atém a qualquer verificação factual, sendo a verdade uma
ideia abstrata. As tensões da memória se fazem presentes na construção de uma narrativa da
verdade.
Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão frequentemente a imagem — o conceito
— de rastro? Porque a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência,
presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença
do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza
da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro
(GAGNEBIN, 2006, p. 44).
A ideia de rastro é a que sintetiza as lacunas entre a presença e a ausência no que diz
respeito à memória. É impossível que se construa uma narrativa de memória sem essas lacunas.
A escrita da memória familiar de Elisa Lispector é feita de rastros. O álbum de fotografias é seu
objeto de leitura dessa memória e, com ele, a escritora trava sua luta contra o esquecimento,
tanto da história de sua família como do que outras famílias também judaicas viveram no
mesmo contexto.
A autora traz, além do trauma dos campos de concentração em si, outro obstáculo
enfrentado por sobreviventes: a dificuldade em encontrar escuta em outras pessoas para contar
o horror vivido. Talvez por uma certa defesa, familiares e amigos de sobreviventes criam essa
resistência a ouvir o outro. Gagnebin pontua que os sobreviventes do horror nazista, mesmo
que quisessem, jamais esqueceriam, visto que a experiência do trauma carrega consigo essa
impossibilidade do esquecimento. Assim sendo, o “primeiro esforço” (GAGNEBIN, 2006, p.
99) do sobrevivente é tentar contar o que é incontável, no que Gagnebin chama de uma
“tentativa de elaboração simbólica do trauma que lhes permitisse continuar a viver e,
simultaneamente, numa atitude de testemunha de algo que não podia nem devia ser apagado da
memória e da consciência da humanidade” (GAGNEBIN, 2006, p. 99).
Para a autora, a testemunha é também quem está em um lugar de escuta na narração
“insuportável” de quem narra e que aceita que suas palavras levem adiante a história deste outro,
59
“porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível,
somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas
a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 57). No caso
dos Retratos antigos, assim sendo, é possível que o leitor reconheça Nicole, a sobrinha-neta
para quem Elisa Lispector escreve suas memórias, como testemunha das narrativas de sua tia.
Para Gagnebin, a luta contra o esquecimento é política, visto que é também uma luta
contra a repetição do terror nazista. Assim, num sentido amplo, as palavras do historiador que
narra os horrores do campo de concentração “ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar
um túmulo para aqueles que dele foram privados” (GAGNEBIN, 2006, p. 47). Pensando por
essa perspectiva, podemos ler a narrativa de Elisa Lispector sobre os Retratos como uma
lembrança dos mortos e do passado que melhoram a vida no presente, pois “a preocupação com
a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser
verdadeiro.” (GAGNEBIN, 2006, p. 47). Sobre o trabalho do narrador em momentos de
catástrofe, a autora propõe:
No retrato, Mosche Krimgold, que envia a fotografia para sua irmã Márian com o recado
no verso: “Uma lembrança para minha amada irmã Marieta, de seu irmão M. Krimgold, pelos
meus 46 anos de vida. 1914.”11 O retrato do tio materno de Elisa Lispector apresenta para o
11
O recado aparece traduzido para o português em Retratos antigos. Originalmente, foi escrito em russo.
(LISPECTOR, 2012, p. 136)
61
leitor o hábito que se tinha de correspondência através das fotografias, muito comum no início
do século XX.
Nádia Gotlib, organizadora do livro publicado postumamente, chama a atenção para o
conceito de rememoração, utilizado também nos Retratos antigos de Elisa Lispector. O ato de
compartilhar o álbum de fotografias com a sobrinha-neta Nicole é o incentivo para Elisa
Lispector escrever suas memórias.
Portanto, a partir das fotografias, Elisa Lispector vê a si e às pessoas que aparecem nos
retratos, nessas imagens capturadas, como personagens de sua narrativa, os quais fazem parte
de todo um contexto de acontecimentos, de rituais religiosos e de costumes narrados ao longo
do texto. Logo, a memória familiar do álbum de retratos está ligada pelo fio das lembranças às
experiências narradas em No exílio, pois, em ambos os livros, Elisa Lispector apresenta ao leitor
sua perspectiva sobre a história familiar.
O romance, gênero impuro, que desde seu surgimento parasitou os outros gêneros,
pode se utilizar de todos os procedimentos, como afirma Marthe Robert (1972, 15): a
descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; ele
pode se apresentar como fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopeia; ele
não sofre nenhuma proibição e nenhuma prescrição; em geral, em prosa, ele pode,
eventualmente, recorrer também à poesia. Quanto ao mundo real, o romance pode
pintá-lo de maneira fiel, como pode deformá-lo, falseando as proporções e as cores
(FIGUEIREDO, 2013, p. 13).
Por ser um romance de memória, nele, a escritora recorre às suas lembranças para narrar
o exílio vivido por sua família. Vale ressaltar que Elisa Lispector viveu a experiência do exílio
aos dez anos de idade. Portanto, as lembranças de infância da escritora podem ter sido material
para sua escrita.
Freud, ao estudar as lembranças infantis, demonstrou que muitas delas são falseadas
porque se misturam com outras, passadas em épocas diferentes; algumas cenas são
retidas de um modo incompleto e o que é omitido pode ser o mais importante. Para
Freud, há duas forças oponentes: de um lado, o desejo de preservar, de outro, a
resistência. Nenhuma das forças predomina porque se efetua uma conciliação entre as
duas, assim, se preserva, mas não a verdadeira imagem, ocorrendo deslocamentos.
Daí surge o conceito de lembrança encobridora: “aquela que deve seu valor enquanto
lembrança não a seu próprio conteúdo, mas às relações existentes entre aquele
conteúdo e algum outro, que foi suprimido” (FREUD, 1976, p. 351 apud
FIGUEIREDO, 2013, p. 45).
Assim como Pedro Nava, Elisa Lispector situa seus escritos entre o presente da
enunciação e suas lembranças do passado, de um passado que viveu e do que ouviu ser contado
por seus pais e familiares. A ideia de romance de memória pode ser aplicada à leitura de No
63
exílio, visto que o romance traz nuances da memória de sua família ao criar sua ficção. Essas
nuances são identificadas pelo leitor em alguns detalhes, como as datas citadas, os nomes das
personagens, que muito se assemelham com os nomes dos familiares da escritora 12, situações
similares às que viveu a família migrante, de acordo com as biografias de Clarice Lispector.
Na construção de um romance de memórias, presente e passado caminham lado a lado.
Em No exílio, Elisa Lispector possivelmente usa, no presente momento em que escreve, o
passado que viveu, as lembranças de outras pessoas que foram contadas a ela e memórias
também inventadas como material de sua ficção.
Outro conceito que pode ser aproximado da obra de Elisa Lispector é o de literatura de
testemunho. O objetivo, aqui, não é definir taxativamente qual das duas leituras de No exílio –
como romance de memória ou como literatura de testemunho – se aproxima melhor do
romance, mas sim pontuar aproximações teóricas com a literatura da escritora.
A literatura de testemunho é apresentada por Jaime Ginzburg como uma forma de
expressão que não fica alheia às questões da sociedade. Assim sendo, pode-se pensar em uma
leitura de No exílio como um romance que visa, além da ficção, ser uma espécie de testemunho
de Elisa Lispector. Para Ginzburg, a escrita de testemunho transgride os moldes canônicos da
literatura, pois vai além da “arte pela arte”, o que retoma a ideia de Theodor Adorno da
impossibilidade de se escrever um poema sobre Auschvitz.
A literatura de testemunho não se filia à concepção de arte pela arte. Ela vai reivindicar
uma conexão com o mundo extraliterário (SELIGMANN-SILVA: 2003, 379).
Teoricamente, nesse sentido, é importante examinar o caráter específico da
configuração discursiva do testemunho. Estabelecendo dificuldades para abordagens
e procedimentos convencionais da Teoria Literária, não estamos em um campo de
entendimento da arte como representação, no sentido atribuído à mimese aristotélica
(GINZBURG, 2006, p. 2).
Conforme Ginzburg, o escritor que opta por escrever um testemunho lidará com essa
“ameaça” da realidade. Elisa Lispector traçou um caminho de ficção que cruza acontecimentos
reais. Ou, acontecimentos reais que cruzam a ficção. Daí a dificuldade de a escritora narrar os
fatos de maneira absolutamente fiel à realidade e a dificuldade de seu leitor em discernir ficção
e realidade. O trauma e o compartilhamento público das dores individuais e coletivas estão
presentes no relato que o leitor encontra no romance da escritora, o que aproxima sua literatura
do conceito de testemunho.
Como sobrevivente de um pogrom, a escritora carrega consigo, por escolha própria ou
por necessidade, por dever de memória, a responsabilidade de ser a narradora da história da
12
Conforme citado na seção “2.3 A invisibilidade da escritora perante o cânone”.
64
família. O que Ginzburg chama de elaboração das vivências é justamente algo que Elisa
Lispector faz em sua literatura.
Via literatura, a escritora constrói um panorama coletivo das vivências dos judeus, além
de narrar vivências pessoais. O desejo pelo não esquecimento das histórias dessas pessoas fica
evidente nos textos de Elisa Lispector, que afirma:
Para quem pertence a um povo que raramente chega a enterrar num mesmo solo os
seus mortos de duas ou três gerações, em consequência dos surtos de perseguições e
das migrações que fatalmente se impõem, mais fácil do que situar raízes dos
antepassados ainda que próximos, é invocar o testemunho dos Reis e Profetas
Bíblicos, seus ancestrais (LISPECTOR, 2012, p. 83).
A partir do trecho citado, é possível, para o leitor, entender ainda mais o desejo de Elisa
Lispector pela escrita de memórias da família. Com a impossibilidade de “fincar raízes” em
uma só pátria, a escritora reconhece a dificuldade que as próximas gerações terão de conhecer
os antepassados e se encarrega da responsabilidade de contar, em forma de suas escritas, a
história da família Lispector. Assim, a ideia de Ginzburg sobre “dar túmulo aos mortos”
também é presente no testemunho feito por Elisa Lispector. O pesquisador se refere
pontualmente aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, mas, em outro
contexto, pode-se entender que a literatura de Elisa Lispector tem, para além de fins estéticos,
o compromisso com a história dos que não sobreviveram ao horror dos pogroms.
Ginzburg pontua, ainda, que
O valor do testemunho não está na sua capacidade de ser comprovado, como se fosse
posto à prova em termos científicos (GARCÍA: 2003, 44). De acordo com Márcio
Seligmann-Silva, a base do testemunho consiste em uma ambiguidade: por um lado,
a necessidade de narrar o que foi vivido, e por outro, a percepção de que a linguagem
é insuficiente para dar conta do que ocorreu (SELIGMANN-SILVA: 2003, 46). A
identidade do sujeito da enunciação é apresentada como objeto perdido, e o discurso,
um esforço de elaboração (PENNA: 2003, 312). Sem identidade segura, a voz de
enunciação faz da narração a busca de um sentido que não foi antecipadamente
definido. Trata-se de um discurso instável, híbrido, em que os conflitos sociais são
incorporados aos fundamentos expressivos (GARCÍA: 2003, 50) (GINZBURG, 2006,
p. 4).
Tal como se vê na reflexão de Ginzburg, a literatura de Elisa Lispector tem uma função
política e social, sendo instrumento de libertação de suas lembranças e traumas e fazendo o
mesmo pelos demais judeus que passaram pelos mesmos traumas que a escritora e sua família.
A escritora passa, então, a ocupar o espaço da literatura para levar ao público-leitor histórias de
vítimas do impacto de um trauma.
Nos estudos literários, a troca de correspondência entre escritores gera curiosidade entre
o público leitor. As cartas, de certo modo, não devem ser consideradas uma forma de expressão
totalmente espontânea, visto que quem as escreve é atravessado por filtros ao escrever: o lugar
de onde escreve, o momento em que se dispõe a escrever, vivências que opta por não colocar
no papel para evitar reações de seu interlocutor, enfim, muitos são os filtros que perpassam o
autor de uma carta. Pode-se pensar uma carta, portanto, como uma escrita de si, uma
ficcionalização do vivido.
As cartas trocadas entre Elisa e Clarice Lispector instigam os leitores pois, além de
serem duas talentosas escritoras, são irmãs. É possível notar uma diferença de procedimentos
67
de memória entre as obras literárias de Elisa e Clarice Lispector, o que, de certa forma, reflete-
se na correspondência trocada entre as irmãs no período em que Clarice morou na Europa. A
leitura aqui apresentada das cartas se atém ao conteúdo desta correspondência entre irmãs e faz
um paralelo com as obras literárias de Clarice e Elisa Lispector, porém, pensando que os
escritores de cartas têm certos filtros ao escrever, como citado anteriormente, não se pode
medir, por exemplo, a importância que cada uma das irmãs dá à vivência de exílio. O que se
pode ler é apenas o que as irmãs Lispector optam por externalizar em suas cartas.
Ao pensar no teor de literatura de memória das obras de Elisa Lispector, é possível que
se reflita sobre a relação entre as irmãs escritoras Elisa e Clarice, pois, de certo modo, Clarice
demonstra em muitas das cartas enviadas para Elisa sua preocupação com o que a irmã publica,
visto que pergunta insistentemente sobre a publicação do livro de estreia de Elisa Lispector;
talvez por não ser seu desejo tratar da história de sua família, do exílio e do fato de ter nascido
em outro país. O modo como as irmãs lidam – e aqui se fala em termos de vida e literatura –
com a história da família é bastante diverso. Enquanto Elisa tem necessidade de narrar, como
ficção ou não, as memórias, suas e de sua família, Clarice escreve seus “Esclarecimentos –
explicação de uma vez por todas”, sem querer falar de sua origem, mas já falando, com certo
incômodo.
E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia
chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante.
Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando
para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em
Tchechelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas
dois meses de idade (LISPECTOR, 2005. apud GOTLIB, 2009a, p. 34).
Na crônica, fica evidente, já pelo subtítulo (“explicação de uma vez por todas”), certa
impaciência de Clarice com as perguntas que recebe sobre suas origens. A escritora enfatiza
que chegou ao Brasil ainda bebê, o que contribui, aparentemente, para que não se sinta
estrangeira.
O leitor encontra nas cartas uma narrativa de afeto entre irmãs. Desde os pormenores do
cotidiano até conversas sobre literatura, cinema e a Segunda Guerra Mundial, que aconteceu no
período em que Clarice morava na Europa. Também é perceptível na correspondência entre as
irmãs o temperamento de cada uma. Elisa se mostra mais fechada, reservada, até por conta disso
o leitor encontra um total de 26 cartas para Elisa, 48 cartas para Tania e 49 cartas que Clarice
escreve para ambas, totalizando, assim, 123 correspondências.
Elisa, irmã mais velha, era dotada de um temperamento reservado, seu primeiro
romance, Além da fronteira, foi escrito sem o conhecimento de sua irmã Tania. Nas
cartas percebe-se o pudor de Elisa diante de Clarice quando o assunto é o seu primeiro
livro, lançado sem que esta soubesse ao menos do que se tratava. A paixão pelas letras
era compartilhada igualmente pelas três irmãs Lispector (MONTEIRO, 2007, p. 11).
Nas cartas trocadas entre elas, é perceptível uma preocupação de Clarice com relação a
Elisa em diferentes momentos: quando Clarice morava no Rio de Janeiro com o pai e Elisa
ficou internada em uma fazenda na região serrana, e quando Clarice morava na Europa com o
marido e Elisa no Rio de Janeiro. Em carta de 3 de janeiro de 1945, escrita em Roma, Clarice
sugere cuidados à irmã mais velha: “Enfim... Minha querida, cuide-se como se você fosse de
13
ouro, ponha-se você mesma de vez em quando numa redoma e poupe-se.” (MONTEIRO,
2007, p. 47). A preocupação da caçula gira em torno da saúde de Elisa e de suas publicações.
Elisa tinha um pessimismo, uma tristeza que angustiava Clarice. Isso se reflete em sua
literatura.
Elisa, querida:
Recebi sua cartinha, que embora curta, me adiantou muito porque assim que eu vi que
você já deve estar boa do resfriado. Tome cuidado, sim? Querida, o verão do Rio é
uma fonte de resfriados Tania me escreveu que seu livro sairá talvez nesse mês; então
já deve ter saído. Peço-lhe enormemente que me mande um dos primeiros exemplares.
Quem fez a capa? Tenho tanta vontade de ler...Tenho muitas esperanças nele e em
você. Alguém mais leu? Por que você não me escreve nem ao menos rapidamente
sobre ele? Fico tão sentida, nem uma palavra, quando tudo isso me interessa tanto
(MONTEIRO, 2007, p. 73).14
Como a carta acima citada é de 1945, subentende-se que Clarice se refira ao primeiro
livro publicado por Elisa: Além da fronteira. Clarice em suas cartas insiste em perguntar sobre
o livro de Elisa, que não aparenta estar muito aberta para conversar com a irmã mais nova – e
13
Carta enviada por Clarice Lispector de Roma, em 3 de janeiro de 1945.
14
Carta enviada por Clarice Lispector de Nápoles, em 29 de janeiro de 1945.
69
também escritora – sobre o assunto. A ansiedade de Clarice Lispector para ler o romance de
estreia de sua irmã pode ser lida de alguns modos: como a pura curiosidade de ler o que Elisa
escreve ou, ainda, como um certo medo de ver publicada a história de sua família.
Querida, como eu quero ler o seu livro! Que horror esperar até que venha d. Zuza!
Não há nenhum jeito de mandar antes? Fico impaciente, e quase ofendida pela demora
como se a culpa fosse sua. É que pegarei no livro com enorme prazer. Talvez aconteça
comigo o que aconteceu com você, que sentia a dificuldade de dar sua opinião sobre
meu livro porque estava perto de mais de mim como irmã e “conhecida”
(MONTEIRO, 2007, p. 87).15
Quando Clarice Lispector e Maury Gurgel Valente se mudaram para a Europa, Clarice
havia lançado Perto do coração selvagem (1943) e O lustre (1946), portanto, a escritora
acompanhou a repercussão de suas obras no Brasil a distância, através de cartas e notícias que
as irmãs e seus amigos lhe enviavam. A escritora recém-casada também faz uso das cartas para
desabafar com Tania, dizendo: “Eu sou horrivelmente difícil de se viver com. Mas não é por
culpa minha, acredite. Eu bem que me controlo, mas sou tão sensível. Eu me pareço com Elisa.”
(MONTEIRO, 2007, p. 35)16
O silêncio de Elisa Lispector em alguns momentos nas cartas trocadas com as irmãs
gera angústia em Clarice. Por estar morando em outro país, a irmã mais nova utiliza a
correspondência para acompanhar as vidas de seus familiares.
Elisa, queridinha:
você não é minha amiga? Por que você não me escreve dizendo coisas suas, dizendo
do apartamento, do trabalho, de você mesma?
Estou escrevendo à última hora, antes de levarem as cartas, e mesmo depois de ter
escrito a vocês duas. Mas quis ainda fazer este apelo de última hora, na esperança de
comover você. Me diga também sobre a Tania, se ela está muito cansada. Por favor,
se você me quer bem, escreva.
Cuide-se, divirta-se, cuide de Tania, seja feliz. Nem sei mais o que dizer, tão aflita
fico por convencer. Diga sobretudo o motivo por que até agora não me escreveram.
Um abraço da
Sua Clarice (MONTEIRO, 2007, p. 44)17.
O fato de serem duas escritoras pode influenciar nesse silêncio e timidez de Elisa
Lispector quanto a seu primeiro romance em relação à irmã mais nova, já escritora conhecida.
Ao agradecer a Elisa pelas cartas enviadas, Clarice busca incentivar a irmã, afirmando ter
gostado do pouco que leu do livro.
Elisa, queridíssima:
15
Carta enviada por Clarice Lispector de Nápoles, em 13 de agosto de 1945.
16
Clarice Lispector em carta para Tania Kaufmann, Belém, 8 de julho de 1944.
17
Clarice Lispector para Elisa Lispector, Roma, 8 de novembro de 1944.
70
Que cartas lindas eu recebi de você, meu Deus! Não conheço seu livro, mas tenho
certeza de que ele é bom, basta as amostras que eu recebo. Tão delicada você, tão
engraçadinha (MONTEIRO, 2007, p. 45)18.
Querida, eu lhe peço: cuide-se extraordinariamente, pense que isso também é para
mim, eu lhe peço. E pelo amor de Deus, veja nas minhas palavras mais do que minhas
palavras. Aquela sua carta em que você diz que nós temos a intimidade que
deveríamos ter, é certa de algum modo. E se você nas suas cartas não é tão íntima
comigo eu no entanto adivinho, perdoo ao acaso e às circunstâncias o fato de termos
uma espécie de pudor, uma em relação a outra. Mas leio suas cartas como se você me
dissesse tudo, e na verdade é tudo o que você quer dizer. Tania, por exemplo, se deixa
mais acarinhar do que você, não é verdade? E do que eu.(MONTEIRO, 2007, p. 65)20.
Uma das possíveis motivações para esse afastamento entre as duas irmãs é a diferente
visão que as irmãs têm sobre escrever ou não a respeito da história de sua família. Enquanto
Elisa Lispector sente uma grande necessidade de narrar o trauma e o exílio, Clarice não
demonstra interesse em escrever sobre o vivido, atendo-se a outros temas em sua literatura,
talvez pelo fato de ter meses de vida quando a família saiu da Ucrânia em direção ao Brasil e,
assim, ter vivenciado de forma diferente a migração. Em confidência à irmã Tania Kaufmann,
Clarice Lispector fala sobre o silêncio de Elisa em suas cartas, o que gera a distância entre as
irmãs.
18
Carta de Clarice Lispector de Roma, em 3 de janeiro de 1945.
19
Carta de Clarice Lispector de Roma, em 1 de maio de 1945.
20
Carta de Clarice Lispector de Nápoles, em 18 de dezembro de 1944.
71
Minha florzinha delicada, você está bem, não é? Me escreva dando notícias. E Elisa?
Há quanto e quanto tempo não recebo de Elisa uma verdadeira carta. Desisti de lhe
mandar cartas grandes porque tudo fica sem resposta, em resposta vem um bilhete
curto que fala de tudo menos dela. Mas ela está bem, não é? É o que importa
(MONTEIRO, 2007, p. 161)21.
Uma das coisas de que eu estou surpreendida e vocês certamente também é que no
bilhete de hoje de manhã não falei no fim da guerra. Eu pensava que quando ela
acabasse eu ficaria durante alguns dias zonza. O fato é que o ambiente influiu muito
nisso. Aposto que no Brasil a alegria foi maior. Aqui não houve comemorações se não
feriado ontem; é que veio tão lentamente esse fim, o povo está tão cansado (sem falar
que a Itália foi de algum modo vencida) que ninguém se emocionou de mais
(MONTEIRO, 2007, p. 72)22.
Na hora derradeira, uns riram, outros choraram. Mais uma vez saíram às ruas, gritaram
e se embebedaram. Alguns apenas ergueram os olhos para o alto e fizeram uma prece
por um morto querido. Muito poucos foram os que oraram por todos os mortos
esquecidos. Houve, ainda, os que não interromperam seus afazeres, não beberam nem
oraram. Simplesmente ouviram e silenciaram (LISPECTOR, 2005, p. 189).
As reações das pessoas ao fim da guerra foram o meio que a escritora encontrou de
trazer para a literatura a derrota do nazismo, regime autoritário que matou milhões de judeus e
ficou marcado na história como um dos maiores horrores vividos pela humanidade no século
XX.
O que se encontra na obra de Elisa Lispector é, portanto, um projeto de memória coletiva
e familiar, responsabilidade que a escritora toma para si e cumpre a função de perpetuar nos
livros o exílio e o trauma vividos por sua família, enquanto Clarice Lispector, sua irmã mais
nova, opta por se eximir desta função em sua literatura, o que muito possivelmente provoca
uma grande distância entre a literatura de uma e de outra e, assim, acaba-se criando uma
distância entre as duas. Enquanto a irmã mais velha se volta para si e para sua memória, a mais
nova nega ou não constrói essa memória familiar traumática em suas obras.
É possível, nos dias de hoje, pensar aproximações entre o texto literário e o texto
epistolar de Elisa Lispector e Clarice Lispector devido ao conhecimento que se tem da produção
cultural das escritoras há décadas. O intuito desta aproximação que se fez entre Clarice e Elisa
21
Carta de Clarice Lispector de Berna, em 29 de março de 1947.
22
Carta de Clarice Lispector a Elisa Lispector e Tania Kaufmann, de Roma, em 9 de maio de 1945.
72
Lispector é, portanto, pensar nas diferenças entre as obras literárias das duas irmãs escritoras,
visto que Clarice alcança lugar de visibilidade dentro do cânone da literatura brasileira, tendo
biografias publicadas, inúmeras pesquisas acadêmicas sobre suas obras e muitos relançamentos
e novas edições de sua obra, enquanto a Elisa Lispector coube um número reduzido de pesquisas
acadêmicas sobre sua obra, bem como são poucas as reedições de seus livros e é grande a falta
de conhecimento do público leitor sobre “a irmã escritora de Clarice Lispector”.
73
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após apresentar No exílio e Retratos antigos, com apoio das leituras teóricas aqui
discutidas, conclui-se que, através de duas estratégias narrativas bastante diversas entre si, Elisa
Lispector dedica um espaço de sua literatura a narrar o exílio, o trauma, os costumes judaicos
e a perpetuar as memórias de sua família. Nos limites da ficção, a escritora cria suas
personagens e impõe a elas situações e vivências que em muito podem ser lidas como suas. Ao
assumir a primeira pessoa nos Retratos antigos, Elisa Lispector abre o álbum de fotografias da
família e convida seu leitor a uma viagem ao passado, em que apresenta seus antepassados,
visto que a escritora faz da fotobiografia um espaço de ficção, para que não sejam esquecidos
pelos descendentes das próximas gerações de Krimgold e Lispector. Portanto busquei, ao longo
da elaboração de minha leitura, pontuar a importância da escrita de testemunho por parte de
Elisa Lispector sobre toda a perseguição vivida, dando destaque à violência dos pogroms.
Em No exílio, por vezes, o narrador se dedica a relatar o momento histórico vivido pela
família na Ucrânia, de forma que memórias familiares e memória coletiva se (con)fundem. Em
outros momentos do romance, o destaque são os desafios impostos àquela família de imigrantes
e, principalmente, os sentimentos de Lizza, protagonista do romance, sobre toda a viagem de
exílio e a adaptação à vida nova no Brasil. Logo, a leitura que procurei apresentar do romance
se pauta em buscar aproximações entre a biografia da escritora e sua ficção, pensando em como
as vivências da protagonista do romance podem ser lidas como muito similares às da escritora,
bem como pontuar as semelhanças entre as personagens construídas por Elisa Lispector e seus
familiares.
No romance, portanto, o leitor encontra os caminhos da memória, da história e da
autobiografia construídos por Elisa Lispector. A leitura que procurei apresentar teve por
objetivo pontuar o aspecto de escrita de memórias de No exílio, para fazer algumas
identificações entre a obra e a vida da autora, num entendimento de que a memória é isenta de
compromisso com o ‘real’, assim sendo, tem liberdade para se (re)inventar, no contexto da
literatura.
A história através do álbum de fotografias da família é a base de criação para Elisa
Lispector assumir o papel de narradora/historiadora de sua família. As fotografias são objeto de
(re)criação de cenas e personagens que a escritora apresenta aos seus leitores. Assim, busquei
apresentar uma leitura que mostrasse o desejo da escritora de registrar a história dos
74
antepassados por escrito, bem como busquei pontuar a influência que a origem judaica e a
experiência do exílio têm sobre a obra de Elisa Lispector.
Ao ler Retratos antigos, é possível, ainda, pensar como a vivência do passado e a
expectativa no futuro são um elo na escrita de memórias desenvolvida por Elisa Lispector.
Enquanto rememora personagens do passado, a escritora faz com que pessoas das próximas
gerações conheçam, por meio deste relato, um pouco da história de sua família. Portanto, é
chave para a leitura dos Retratos antigos – em consonância a seu projeto literário – que se
entenda a constante busca de Elisa Lispector por uma ligação entre passado e futuro.
Ao se deparar com essas duas obras de Elisa Lispector, o leitor encontra as palavras de
uma escritora que faz do trauma, da memória e do exílio sua matéria de criação, trazendo esses
aspectos para a ficção. É possível para o leitor entender um pouco da biografia de Elisa
Lispector através dos Retratos antigos e, dessa forma, preencher a ausência de biografias
publicadas sobre a autora.
Ao final da dissertação , procurei apresentar, por meio de cartas trocadas entre Elisa
Lispector e sua irmã Clarice, a existência de uma divergência entre os procedimentos de
memória adotados pelas duas irmãs escritoras. É notável certa negação por parte de Clarice
Lispector sobre a memória de sua família, um certo desejo de não falar sobre a memória de
exílio, enquanto Elisa Lispector tem justamente a necessidade contrária à da irmã: a de
expressar e narrar a vivência do exílio.
A conclusão a que se chega é, portanto, de que Elisa Lispector tem um projeto de
memória familiar que aparece tanto na ficção como em seu relato em primeira pessoa. Ao
utilizar essas duas estratégias narrativas, a escritora apresenta ao seu leitor suas memórias, ou
uma (re)criação delas. Além disso, a escrita de Elisa Lispector contribui para registro histórico
de memória coletiva de costumes judaicos e de perseguições, migrações e vivências de pessoas
de origem judaica. Desta forma, o registro de memória da viagem da família Lispector ao Brasil
em exílio pode se unir às histórias de exílio de outras tantas pessoas de origem judaico-
ucraniana que desembarcaram de navios como aquele que trouxe a família Lispector ao Brasil
em 1921. Pessoas que, por terem passado pelos mesmos problemas sociais e econômicos,
possivelmente tiveram experiências de exílio muito próximas às da escritora Elisa Lispector.
75
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Coleção Clássicos para todos.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
CRUZ, Natália dos Reis. A imigração judaica no Brasil e o anti-semitismo no discurso das
elites. Política e Sociedade: Revista de Sociologia Política, Florianópolis, v. 8, n. 15, p. 225-
250, 2009. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-
7984.2009v8n15p225. Acesso em: 13/12/2019.
DANZINGER, Leila. Shoah ou Holocausto: a aporia dos nomes. Arquivo Maaravi: Revista
Digital de Estudos Judaicos da UFMG, [S.l.], v. 1, n. 1, p. 50-58, out. 2007. ISSN 1982-3053.
Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/985.
Acesso em: 26/05/2020.
FOLHA DE S. PAULO. Clarice, um enterro simples. Folha de S. Paulo, ano LVI, n. 17.785,
Folha Ilustríssima, p. 28, segunda-feira, 12 de dezembro de 1977.
Disponível em:
https://acervo.folha.com.br/compartilhar.do?numero=6427&anchor=4279120&pd=c858b667
043edfed2b581d2d15b73f1a. Acesso em: 25/05/2020.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora H34, 2006.
76
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2009a.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 6. ed., revisada e aumentada. São
Paulo: Edusp, 2009b.
GUILLÉN, Claudio. O sol dos desterrados: Literatura e exílio. Tradução de Maria Fernanda
de Abreu. Lisboa: Teorema, 1995.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice; Editora Revista
dos Tribunais Ltda., 1990.
JORDÃO, Vera Pacheco. Uma Lispector que se chama Elisa. Manchete, Rio de Janeiro, Edição
0574, p. 01-02, 1963. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/004120/50087. Acesso
em 25/05/2020.
LISPECTOR, Elisa. Retratos antigos: esboços a serem ampliados. Elisa Lispector; Nádia
Battella Gotlib, organizadora. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012
MOSER, Benjamin. Clarice,. Cosacnaify. Tradução: José Geraldo Couto. São Paulo,
Cosacnaify, 2ª edição, 2011.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. Revista
do Programa de Estudos Pós-graduados de História, São Paulo, p. 07-28, 1993.
OLINTO, Antonio. História de uma luta. Tribuna da Imprensa (RJ) 10/07/2007. Disponível
em: http://www.academia.org.br/artigos/historia-de-uma-luta. Acesso em: 13/12/2019.
77
REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago,
1992. p. 65-82.
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. 2. ed. Tradução de Pedro Maia
Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005.
SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. 3. ed. Tradução de Joaquim Paiva. Rio de
Janeiro: Arbor, 1981.
TELLES, Norma. Autor+a. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago,
1992. p. 45-64.