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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO - CCE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Ana Beatriz Mello Santiago de Andrade

“Uma Lispector que se chama Elisa”: história(s) de exílio

Florianópolis
Maio de 2020
Ana Beatriz Mello Santiago de Andrade

“Uma Lispector que se chama Elisa”: história(s) de exílio

Dissertação submetida ao Programa de Pós-


Graduação em Literatura da Universidade Federal
de Santa Catarina para obtenção do título de mestra
em literatura.
Orientadora: Profª. Drª Simone Pereira Schmidt

Florianópolis
2020
Ficha Catalográfica
Ana Beatriz Mello Santiago de Andrade

“Uma Lispector que se chama Elisa”: história(s) de exílio

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora
composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Rosana Cássia dos Santos


UFSC

Prof. Dr. Maximiliano Gomes Torres


UERJ

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado

adequado para obtenção do título de mestre em Literatura pelo Programa de Pós-Graduação

em Literatura

___________________________

Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________

Profª. Drª Simone Pereira Schmidt


Orientadora

Florianópolis, 2020
Agradecimentos

À CAPES, pela bolsa de mestrado a mim concedida no ano de 2018.


À minha orientadora, professora Simone, por todo o apoio e orientação desde 2014,
quando o Trabalho de Conclusão de Curso sobre Elisa Lispector e o curso de mestrado ainda
eram projetos distantes. Durante esses seis anos, a convivência com a professora Simone foi
sempre enriquecedora. Agradeço pela orientação, pelas aulas, pela companhia nas viagens aos
Seminários Mulher e Literatura e pela leveza e alegria de sempre.
À professora Tânia, pelos anos de nuLIME durante a graduação, pelas trocas, pelas
caronas no táxi do Roberto ao longo da graduação, por todas as leituras que me passou e por ter
sido sempre presente ao longo do mestrado.
À minha avó, Ruth (in memoriam). Por ter sido, em suas palavras, como o “cedro que
enverga, mas não quebra” da fazenda em Lages. Por ter me ensinado que a simplicidade é a
maior qualidade que o ser humano pode ter, por ter compartilhado parte dos seus noventa e
nove anos de vida e aprendizado comigo.
À minha mãe, Silvana, por ter sempre priorizado minha formação e por não medir
esforços para me dar uma vida feliz e confortável. Por me ensinar valores que não se aprende
nos bancos escolares.
Ao meu pai, Nivaldo, por me ensinar desde a infância a gostar dos livros e dos discos.
Pela presença e pelos momentos de bom humor e descontração, tão importantes em momentos
difíceis.
Ao meu noivo, Artur, por ser meu companheiro nos dias bons e ruins, por me incentivar
a estudar sempre mais e por sonhar e projetar um futuro comigo.
À minha irmã, Ana Luíza, e meu cunhado Pedro, historiadores com quem as trocas de
leitura e conhecimento sempre fluem e a convivência é sempre alegre. Agradeço o apoio e a
compreensão que sempre tiveram no que diz respeito às questões acadêmicas e, muito além
disso, na vida.
Ao Francisco, meu sobrinho que chegará em outubro e há de ser minha fonte de
esperança no futuro e alegria nos próximos anos.
Às amigas e aos amigos que estiveram ao meu lado ao longo destes anos de mestrado,
sempre prontos para as conversas e trazendo leveza e diversão nos momentos em que precisei.
RESUMO

Ao longo desta dissertação, apresenta-se uma leitura das obras No exílio (1948) e Retratos
antigos (2012), ambas de Elisa Lispector (1911-1989), escritora nascida na Ucrânia que viveu
desde seus dez anos de idade até o fim de sua vida no Brasil. No exílio tem como plano de fundo
a Ucrânia no contexto pós-invasão russa, a viagem em exílio e a vida da família no Brasil.
Retratos antigos figura como testemunho escrito em primeira pessoa e apresenta, além das
fotografias, a narração da escritora sobre os retratos e as personagens que neles aparecem. Ao
se utilizar de duas estratégias bastante diversas, a escritora traz em sua literatura narrativas de
exílio que em muito se interligam à sua biografia. A leitura que ora se apresenta é feita pelo
viés das escritas de memória e testemunho. Um entendimento do contexto histórico em que
viveu e escreveu Elisa Lispector se fez necessário. As questões de testemunho e trauma são
pensadas na dissertação, bem como a questão das cartas trocadas entre Elisa Lispector e sua
irmã Clarice Lispector.

Palavras-chave: Elisa Lispector. Exílio. Memória. Testemunho. Trauma.


ABSTRACT

Throughout this dissertation, a reading of No Exílio (1948) and Retratos antigos (2012), both
by Elisa Lispector (1911-1989), is presented. The Ukrainian writer lived in Brazil from the age
of 10 until the rest of her life. "No exílio" has as a background Ukraine after the Russian
invasion, the journey in exile and the family life in Brazil. Retratos Antigos is presented as a
written testimony, in the first person, and also shows, besides the photographs, the writer's
narration about the portraits and the characters displayed on them. When using two very
different strategies, the writer brings in her literature narratives of exile that are closely linked
to her biography. The reading here presented is done through the bias of memoir and testimony.
Understanding the historical context in which Elisa Lispector lived and wrote is required.
Testimony and trauma issues are considered throughout the work, as well as some letters
exchanged between Elisa Lispector and her sister Clarice Lispector.

Keywords: Elisa Lispector; Exile; Memoir; Testimony. Trauma.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Fotografia de Tcharna Krigmgold ........................................................................................................ 24
Figura 2 – Fotografia da família Lispector ............................................................................................................ 29
Figura 3 – Fotografia de Elisa Lispector ............................................................................................................... 30
Figura 4 – Fotografias de Pinkhouss Lispector e Mánia Krimgold ....................................................................... 52
Figura 5 – Fotografia de Mosche Krimgold .......................................................................................................... 60
SUMÁRIO

1 Introdução .............................................................................................................................. 11
2 Migrações, pessoas e histórias: Elisa Lispector, narradora ................................................... 14
2.1 Elisa Lispector: fortuna crítica ........................................................................................... 14
2.2 Sobre Elisa Lispector .......................................................................................................... 16
2.3 A invisibilidade da escritora perante o cânone ................................................................... 18
2.4 Retratos antigos: uma narrativa imagética ......................................................................... 22
3. No exílio, Revolução Russa e memória ................................................................................ 32
3.1 No exílio: o romance de memória de Elisa Lispector ......................................................... 32
3.2 Revolução Russa, desdobramentos e o exílio vivido ......................................................... 38
3.3 No exílio e Retratos antigos: memórias escritas ................................................................. 42
4 Testemunho e trauma na obra de Elisa Lispector .................................................................. 50
4.1 Retratos antigos e No exílio: testemunhos de uma escritora .............................................. 50
4.2 O trauma do exílio em forma de romance .......................................................................... 61
4.3 Irmãs escritoras: a correspondência entre Elisa e Clarice Lispector .................................. 66
5 Considerações finais .............................................................................................................. 73
Referências ............................................................................................................................... 75
11

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa de mestrado tem origem em meu Trabalho de Conclusão de Curso na


Graduação em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas na Universidade Federal de Santa
Catarina. A pesquisa, que chamei de “Do mais coletivo dos sentimentos coletivos à mais
privada das emoções privadas: uma leitura de No exílio, de Elisa Lispector” , foi apresentada
em julho de 2016 e me inspirou a continuar pesquisando sobre a escritora e sua obra.
Ao longo do curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Literatura da mesma
Universidade fiz disciplinas que enriqueceram minha pesquisa e trouxeram inúmeras leituras e
reflexões sobre a presença da mulher na Literatura Brasileira e sobre as escritas de memória e
suas construções narrativas, principalmente.
Desta forma, a perspectiva que adoto para apresentar minhas leituras é pautada nas
questões de escrita de memória, narrativas de trauma e testemunho e, principalmente, de exílio.
Para tanto, foi necessário um estudo sobre o contexto histórico da Revolução Russa de 1917,
visto que No exílio se passa num momento após este evento. No romance, é narrado o
movimento de exílio de uma família judaica da Ucrânia ao Brasil: pai, mãe e três filhas são as
personagens do texto de Elisa Lispector. O plano de fundo do romance é a Ucrânia devastada
após a invasão russa, a rotina de viagem, os costumes judaicos, e, finalmente, o Brasil dos anos
vinte aos anos quarenta do século passado.
Outra leitura que realizo nesta dissertação é a de Retratos antigos, visto que as primeiras
anotações de Elisa Lispector para essa publicação datam dos anos quarenta, época em que é
publicada a primeira edição de No exílio. O subtítulo que a autora deu ao livro (Esboços a serem
ampliados) demonstra seu intuito de que a obra fosse, com o tempo, ampliada. Isto aconteceu
em 2012, quando a professora e pesquisadora Nádia Gotlib se fez cocriadora do texto de Elisa
Lispector e trouxe ao público-leitor, muito além dos escritos da escritora, uma apresentação
bastante consistente e os retratos contidos no álbum de fotografias da família.
O objetivo da pesquisa é, portanto, apresentar uma leitura de No exílio e de Retratos
antigos, buscando trazer referências sobre os eixos temáticos os quais optei por desenvolver:
exílio, escrita de memória, testemunho e trauma, bem como pensar na relação entre Elisa
Lispector e Clarice Lispector, duas irmãs escritoras que lidam, cada uma ao seu modo, com a
vivência de um trauma.
Para o desenvolvimento do que se propõe, o trabalho se estrutura da seguinte maneira:
no primeiro capítulo, dividido em quatro seções, apresento Elisa Lispector, falando sobre a
fortuna crítica dedicada à sua obra e sobre sua biografia. A necessidade dessa apresentação que
12

faço da escritora se deve justamente à invisibilidade de Elisa Lispector perante o cânone da


Literatura Brasileira, questão que norteia as reflexões de mais um subcapítulo. Em uma
reportagem da Folha de S. Paulo de 12 de dezembro de 1977, o jornal, ao destacar as 200
pessoas presentes no enterro de Clarice Lispector, comete um equívoco ao se referir a Elisa
Lispector: “De lá o caixão seguiu até o túmulo 123, onde o filho de Clarice, Paulo Gurgel
Valente (o filho Pedro não compareceu por se encontrar com o pai, o embaixador Mauri Gurgel
Valente, em Montevidéu) chorou, sendo constantemente amparado pelas tias Elvira e Tânia,
também escritoras”. Na mesma reportagem, é destaque todo o ritual judaico de limpeza e
purificação seguido nas cerimônias de velório e enterro. Mesmo após a morte da irmã mais
nova, persiste o fantasma da invisibilidade sobre Elisa Lispector. Para fechar o capítulo, os
Retratos antigos são apresentados com uma reflexão sobre as imagens e, ao mesmo tempo, a
escrita em primeira pessoa do testemunho de Elisa Lispector. A publicação póstuma apresenta
ao leitor uma escritora empenhada em não esquecer suas origens. As fotografias, que marcam
tempo e espaço nos cenários, nas datas e até no vestuário das pessoas, são os objetos de
inspiração de Elisa Lispector ao escrever suas memórias, trazendo à escritora recordações de
seus antepassados e dos costumes judaicos.
No segundo capítulo, dedico-me a pensar No exílio como um romance de memória de
Elisa Lispector, escrito em terceira pessoa, também mostrando uma ligação entre o romance e
os retratos, as memórias escritas de Elisa. Ficção e realidade se entrelaçam no romance, que
inicia em 1948 – ano de lançamento de No exílio – com o advento da criação de Israel, o
chamado Estado Judeu. A partir de então, um grande flashback inicia, contando para o leitor a
história de pai, mãe e três filhas: uma família de origem judaica que imigra da Ucrânia ao Brasil
após as perseguições do exército bolchevique, culminando com os pogroms1 nas aldeias da
região onde a família residia.
A perspectiva teórica das escritas de memória se faz presente neste subcapítulo e em
outros momentos desta dissertação, trazendo dados biográficos de Elisa Lispector que podem
auxiliar a embasar a leitura de No exílio como um projeto de memória da escritora. Para pessoas
de origem judaica que viveram a experiência do desterro e optaram por registrar tal vivência, o
dever da memória é o meio de se construir um não-esquecimento do passado.

1
Pogrom: um ataque violento a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente. O termo tem sido usado
para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus e outras minorias étnicas
da Europa. In.: GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. 2ª edição- São Paulo; Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2009. Vale destacar que os pogroms eram uma violência com origem nas questões de imperialismo
russo, não necessariamente atreladas aos bolcheviques.
13

É também neste capítulo que se fala sobre a Revolução Russa de 1917 e seus
desdobramentos, que causaram a vinda da família Lispector para o Brasil em exílio, portanto,
um momento histórico que se encontra representado na literatura de Elisa Lispector.
No terceiro e último capítulo, abordo a questão do testemunho e as diferentes estratégias
narrativas adotadas pela escritora. Ao considerar Retratos antigos uma obra que pode ser
interpretada como um testemunho da escritora, pontuo questões teóricas sobre o conceito do
testemunho e apresento trechos escritos por Elisa Lispector sobre as fotografias, trazendo para
esta dissertação elementos da “leitura” que a escritora faz dos retratos de seus familiares ao
longo da narrativa que constrói em Retratos antigos, esta pautada pelo afeto, pela memória.
Também é neste capítulo que abordo a questão do trauma na literatura de Elisa
Lispector. O aporte teórico sobre o trauma apresentado neste capítulo tem por objetivo pensar
as questões de migração, visto que este é o tema central do romance No exílio. A vivência do
exílio pode ser considerada uma experiência traumática, visto que, aos dez anos de idade, a
escritora teve de abandonar seu país natal e recomeçar a vida ao lado dos pais e das irmãs,
enfrentando todas as dificuldades de adaptação, os problemas financeiros da família, a doença
e posterior morte da mãe. As questões referentes ao trauma do exílio, como, por exemplo, a
dificuldade em aprender uma nova língua, aparecem no romance.
Para finalizar, apresento algumas cartas trocadas entre Elisa e Clarice Lispector, com o
objetivo de refletir sobre a maneira como lidavam com a questão do exílio. As cartas aparecem
para encerrar esta dissertação como uma reflexão sobre a diferença entre as irmãs Lispector,
que tratam de modo bastante distinto a vivência do exílio e a história da família, o que, por
consequência, reflete na literatura criada por cada uma. Enquanto Clarice prefere o silêncio
quanto a essas questões, Elisa tem a necessidade de narrar o vivido.
14

2 MIGRAÇÕES, PESSOAS E HISTÓRIAS: ELISA LISPECTOR, NARRADORA

E assim, chegar e partir


São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro
É também despedida.

Milton Nascimento2

2.1 ELISA LISPECTOR: FORTUNA CRÍTICA

A busca por Elisa Lispector começou, para mim, enquanto leitora, com leitura de
Retratos antigos, publicado em 2012, pela pesquisadora e biógrafa de Clarice Lispector, Nádia
Battella Gotlib. Ao ler os Retratos, minha busca era, ainda, por mais detalhes da história da
família Lispector. O texto de Elisa Lispector foi uma leitura instigante e, desde então, fiquei
atenta ao seu nome. Em uma livraria, tempos depois, encontrei No exílio, segundo livro
publicado pela escritora, primeiramente, em 1948. Estes dois livros aqui citados viriam a ser o
corpus de minha pesquisa.
Devido ao fato de Elisa Lispector não ser uma escritora inserida no chamado cânone da
Literatura Brasileira, há uma necessidade de mapear e aqui pontuar o que se tem até hoje escrito
sobre a escritora e suas obras.3 A começar pelo próprio Retratos antigos, livro que traz uma
ampla apresentação escrita por Nádia Gotlib sobre o álbum de fotografias da família e a forma
como Elisa Lispector narra o ato de ver/ler as imagens, além do próprio texto de Elisa Lispector
e das imagens contidas no álbum da família.
Na academia, foram desenvolvidas algumas dissertações sobre a escritora. O trabalho
intitulado “Elisa Lispector – registros de um encontro” realizado por Jeferson Alves Masson,
foi defendido em 2015, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Nela,
o autor se dedica, ao longo de quatro capítulos, a narrar sua relação com o objeto de pesquisa e
seu contato com os arquivos de Elisa Lispector.
Mais uma dissertação que trata sobre Elisa Lispector e sua obra e vale ser citada é a de
Fernanda Cristina de Campos, defendida em 2006, na Universidade de Brasília (UnB): “O
discurso melancólico em Corpo a corpo, de Elisa Lispector”. Também escrita em quatro

2
A letra da música “Encontros e despedidas” está disponível em: https://www.letras.mus.br/milton-
nascimento/47425/. Acesso em 10/05/2020.
3
Para que se reunisse, aqui, uma fortuna crítica, foram necessárias pesquisas no Google Acadêmico, no banco de
teses e dissertações da CAPES e no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Para que se fizesse a pesquisa on-
line, as palavras-chave usadas foram, principalmente “Elisa Lispector” e “No exílio”.
15

capítulos, esta dissertação apresenta uma discussão sobre o cânone e, após isso, dedica-se a
tratar especificamente da temática da melancolia na obra Corpo a corpo, publicada por Elisa
Lispector em 1983, portanto, seu penúltimo livro publicado em vida.4
Em 2015, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Vivian Leone de Castro Buarque
defendeu sua dissertação “Memória, testemunho e exílio no romance No exílio de Elisa
Lispector”. Estruturado em três capítulos, o trabalho traz uma reflexão sobre a cultura judaica
e sua influência na Literatura Brasileira e apresenta alguns aspectos de leitura de No exílio,
como um subcapítulo dedicado à personagem Lizza e suas nuances e à ausência da figura
materna devido à morte da personagem Márim.
Durante a realização do XV Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC), em 2017, a professora Ana Cristina dos Santos e a
doutoranda Débora Magalhães Cunha Rodrigues, ambas da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), apresentaram trabalho intitulado “Elisa Lispector e Samuel Rawet:
contribuições sobre exílio e isolamento intelectual”.
Em artigo publicado em 2014, na Revista semestral de estudos judaicos do Instituto
Cultural Judaico Marc Chagall em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
e intitulado “Clarice e Elisa Lispector: caminhos divergentes”, Berta Waldman mostra os
pontos em comum entre as carreiras de Elisa e Clarice, como, por exemplo, o fato de as duas
irmãs começarem a publicar seus livros nos anos de 1940, e também as divergências entre o
estilo, a escrita e as escolhas narrativas de cada uma.
Berta Waldman destaca, ao tratar de No exílio, o desejo de Elisa Lispector de fazer o
registro da história da família, algo que não se nota na obra da irmã mais nova, Clarice. A autora
destaca, ainda, as diferenças na forma de narrar das obras das duas irmãs escritoras.

Essas e outras questões similares, levantadas a propósito do texto de Elisa, não se


colocam em relação à obra de Clarice Lispector, pois a escritora nunca se preocupou
em narrar os fatos que a irmã aborda em seu romance, que poderiam ter chegado a ela
através dos relatos da família, já que era muito pequena quando deixou a Ucrânia. (...)
Temos aqui uma diferença básica, que funda dois caminhos narrativos: enquanto Elisa
Lispector trabalha com a narrativa linear e onisciente (apesar das quebras na sequência
do romance), em Clarice, a experiência interna ocupa o primeiro plano e traz como
resultado a narrativa fragmentada, a perda da onisciência, o apoio em algum fio de
imagem a partir do qual o sujeito possa vir a construir um percurso (WLADMAN,
2014, p. 13)

4
Ao todo, Elisa Lispector publicou dez livros em vida: dois livros de contos e oito romances. São eles: Além da
fronteira (1945), No exílio (1948), Ronda Solitária (1954), O muro de pedras (1963), O dia mais longo de Teresa
(1965), Sangue no sol (1970), A última porta (1975), Inventário (1977), Corpo a corpo (1983) e O tigre de bengala
(1985).
16

Ao longo de sua carreira, Elisa Lispector recebeu dois prêmios literários: o Prêmio José
Lins do Rêgo, em 1963, e o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, em 1964,
ambos pelo romance O muro das pedras, lançado em 1963 pela editora José Olympio.
Por ocasião do Prêmio José Lins do Rêgo, foi publicada na Revista Manchete, Edição
574 de 1963, reportagem intitulada “Uma Lispector que se chama Elisa”, na qual se narra a
confusão feita pelo fotógrafo entre as irmãs escritoras “Fotografar a escritora Elisa Lispector?
Não é Clarice Lispector que a senhora quer dizer?” e a importância do prêmio: “Ela obteve o
prêmio literário mais cobiçado do Brasil”. Na mesma reportagem, Vera Pacheco Jordão
comenta sobre a surpresa de ter sido Elisa Lispector a vencedora do prêmio naquele ano:

Aberto o envelope, o pasmo foi total: o tão cobiçado prêmio fôra (sic) conquistado
por uma mulher e os homens ainda não se acostumaram às vitórias femininas. Além
disso, o nome da laureada espicaçava a curiosidade. Alguém lembrou que Elisa
Lispector já havia publicado dois ou três romances, bem acolhidos por críticos do
porte de Lúcia Miguel Pereira e Olívio Montenegro, embora sem tanta repercussão
quanto os de Clarice (JORDÃO, 0574, 1963).

A terceira edição de No exílio, publicada em 2005, foi tema de artigo na Tribuna da


Imprensa em 10 de julho de 2007. O texto trata do romance como registro da luta do povo
judeu5 e suas migrações, além de apresentar ao público outros títulos publicados por Elisa
Lispector (OLINTO, 2007).
Assim sendo, neste primeiro subcapítulo, buscou-se apresentar o que já foi produzido e
publicado sobre Elisa Lispector no ambiente acadêmico e na mídia, para que se tenha uma ideia
do alcance que teve a escritora em vida e postumamente. Ainda que Elisa Lispector não tenha
alcançado visibilidade perante o cânone da literatura brasileira, é válido destacar a existência
de pesquisas acadêmicas sobre a escritora, e reportagens e artigos da mídia em que sua obra é
destaque, pois, assim, é possível preencher algumas lacunas que se tem da biografia da escritora.

2.2 SOBRE ELISA LISPECTOR

A escritora nasceu em 1911, em uma cidade chamava Savran, na Ucrânia, cidade em


que seus pais se casaram no ano de 1910 (GOTLIB, 2009a, p. 25). A primogênita de três filhas

5
Não se pretende, ao longo desta dissertação, essencializar as vivências dos povos de origem judaica. Dentre as
muitas etnias judaicas, situa-se a família Lispector, porém, não fez parte desta pesquisa a busca pela origem étnica
dos Lispector. Assim, usarei a terminologia “povo judeu” para sinalizar momentos em que a questão judaica teve
influência nas vivências de Elisa Lispector e em sua literatura, ainda que, com isso, assumindo o risco de uma
generalização essencializante.
17

de Pinkhouss Lispector [Teplik, Ucrânia, 1885 (GOTLIB, 2009b, p. 26) – Rio de Janeiro,
Brasil, 1940 (GOTLIB, 2009b, p. 167)] e Mánia Krimgold [Ekaterinka, Ucrânia, 1889
(GOTLIB, 2009a, p. 21) – Recife, Brasil, 1930 (GOTLIB, 2009a, p. 78)] viveu sua primeira
infância na Ucrânia. Ainda hoje, é pouca a informação que se tem da infância da escritora no
país natal. A partir de 1920, ano de nascimento de Clarice Lispector, há um número maior de
informações e pesquisas sobre o exílio vivido pela família, que desembarcou no Brasil em 1921.
Os pogroms ocorridos na Ucrânia após a Revolução Russa de 1917 atingiram fortemente
a comunidade judaica do país. Durante o governo de Nicolau II (1894-1917) e ainda após esse
período, as perseguições aos judeus com assassinatos em massa tornaram-se uma constante na
Rússia e em territórios vizinhos (GOTLIB, 2009a, p. 29).
A ocorrência desses ataques aos judeus trouxe momentos bastante difíceis à família
Lispector. A violência étnica e de gênero6 trouxe como consequência para Mánia a
Hemiplegia7. O casal com então duas filhas viu a morte de familiares, conhecidos, vizinhos,
sofreu saques e violência em um destes pogroms. Restou, então, o exílio. A família junta o
pouco que sobrou e seus esforços para conseguir sair da Ucrânia. Pinkhouss envia cartas ao
Brasil e aos Estados Unidos da América. No Brasil, tinham parentes8 e, assim, conseguiram um
destino para a mudança de vida.
Aos dez anos de idade, Elisa Lispector desembarca no Brasil, um país diferente e com
uma língua desconhecida. A menina nasceu na Ucrânia, numa família judaica, mas mora no
Brasil desde os dez anos de idade. No Brasil é, portanto, uma estrangeira, da mesma forma que
muito provavelmente se sentiria caso tivesse um dia retornado ao seu país natal.
Quando adulta, Elisa Lispector atuou como funcionária pública federal do Ministério do
Trabalho, estudou sociologia na Escola Nacional de Filosofia e Crítica de Arte na Fundação
Brasileira de Teatro. Lançou seu primeiro romance, Além da fronteira, em 1945. No exílio
(1948) é seu segundo romance. Em 1963, lançou, pela Editora José Olympio, O muro das
pedras, romance que no mesmo ano recebe o prêmio José Lins do Rêgo e, no ano seguinte,
recebe o prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras. Em 1985, lança O tigre de
bengala, o último livro publicado em vida pela escritora. É importante destacar a publicação

6
Aqui não me refiro à hipótese não comprovada levantada por Benjamin Moser de que “Bem no fim da vida,
Clarice confidenciou à amiga mais íntima que sua mãe fora violentada por um bando de soldados russos. Deles,
ela contraiu sífilis (...)”. (MOSER, 2011, p. 54). A informação não é comprovada documentalmente, portanto, não
deve ser considerada nesta dissertação. Como violência de gênero me refiro ao fato de uma mãe sozinha com suas
três filhas terem sofrido um ataque tão violento.
7
“Paralisia parcial do corpo proveniente de trauma” (LISPECTOR, 2012, p. 63). Apenas com a publicação de
Retratos antigos se tem a causa mortis de Marieta Lispector divulgada.
8
Quem envia a “carta de chamada” para os Lispector virem para o Brasil é José Rabin, casado com Zina Krimglod
Rabin, irmã de Mánia (GOTLIB, 2009a, p. 53).
18

póstuma de seu texto intitulado Retratos antigos, em 2012. Vale mencionar que, desde 2007,
o acervo de Elisa Lispector se encontra no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
Em 6 de janeiro de 1989, aos 77 anos, Elisa Lispector faleceu (LISPECTOR, 2012, p.
59). A escritora não se casou e não teve filhos, tendo deixado como herdeiras sua irmã, Tânia,
e, posteriormente, a sobrinha Márcia.

2.3 A INVISIBILIDADE DA ESCRITORA PERANTE O CÂNONE

A formação de um cânone literário é um processo de seleção que acarreta exclusão


(REIS, 1992). Para que um texto literário seja classificado como “boa literatura”, outros tão
bons quanto ou até melhores acabam por ficar à margem do sistema literário. Tal seleção é
motivada por questões relacionadas ao poder:

O termo (do grego “kanon”, espécie de vara de medir) entrou para as línguas
românicas com o sentido de “norma” ou “lei”. Durante os primórdios da cristandade,
teólogos o utilizaram para selecionar aqueles autores e textos que mereciam ser
preservados e, em consequência, banir da Bíblia os que não se prestavam para
disseminar as “verdades” que deveriam ser incorporadas ao livro sagrado e pregadas
aos seguidores da fé cristã. O que interessa reter, mais do que uma diacronia, é que o
conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e, assim, não pode se
desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão
investidos da autoridade para fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto
é: de sua classe, de sua cultura, etc.). Convém atentar ainda para o fato de que o
exercício desta autoridade se faz num determinado espaço institucional (no caso, a
Igreja) (REIS, 1992, p. 70).

Assim sendo, visto que há um processo de “classificação” do que se torna boa literatura
ou não, destacando o fato de que o cânone da literatura brasileira é formado majoritariamente
por homens, brancos e heterossexuais, raras eram as mulheres a figurarem entre as publicações,
na Academia Brasileira de Letras e no mercado editorial. Apesar de, nos dias de hoje, as
publicações de mulheres terem crescido numericamente, os marcadores de prestígio literário
como prêmios e participações em feiras no Brasil e no exterior ainda são mais voltados aos
autores homens. A seleção a que Reis se refere implica, como evidente consequência, na
exclusão de mulheres, dissidências de gênero, negros/as, indígenas e demais minorias sociais.
A formação de um cânone literário, ao longo da história, está ligada a critérios de seleção e
julgamentos de valor altamente excludentes e patriarcais, sendo as obras escritas por homens
mais publicadas, lidas e valorizadas do que as escritas por mulheres. Contribuindo para esse
debate, Norma Telles, argumenta que
19

Os silêncios cercavam e cercam o patrimônio cultural das mulheres. Cada nova


geração precisa refazer os passos e retomar os caminhos. Octavio Paz afirma que
autores não lidos são vítimas do pior tipo de censura possível – a indiferença. O
silêncio, o não dizer, não é a ausência de sentido; ao contrário, o que não se pode dizer
é o que atinge ortodoxias, as ideias, interesses e paixões dos dominantes e suas ordens.
Por outro lado, não se deve esquecer que, embora muitas vezes as rompam, os autores
participam frequentemente das proibições tácitas e imperativos que formam o código
do dizível em cada época e sociedade (TELLES, 1992, p. 50).

O silenciamento ao qual Norma Telles se refere foi constantemente sofrido por mulheres
ao longo dos anos. A relação entre a academia e o mercado editorial – principais elementos
construtores do cânone literário – não tinha como prioridade de publicação as ideias e os
interesses femininos.
Nos dias de hoje, é possível que se note uma pequena mudança nos paradigmas da
formação de um cânone, isso graças a uma mudança de perspectiva dos teóricos da literatura
no país, como explica Rita Schmidt.

Apesar das ortodoxias que emergem no campo minado onde se digladiam discursos e
práticas críticas, definidas como substancialistas (se alinhadas ao campo da estética
ou às convenções e códigos da tradição erudita) ou progressistas (se identificadas com
o campo político, via de regra, associado à emergência do subalterno), é inegável que
as transformações da teoria têm fomentado uma verdadeira revolução nos estudos
literários contemporâneos, permitindo questionamentos de várias ordens e de vários
lugares sobre o funcionamento da disciplina e a definição de seus objetos, sobre a
natureza da instituição literária e seus mecanismos de controle como discursos de
valoração e interpretação, bem como sobre forma e função do cânone e sua relação
com a narrativa da história da literatura (SCHMIDT, 2010, p. 174).

O que acontece, segundo Schmidt, é o questionamento sobre os tradicionais critérios de


valoração do que é ou não boa literatura por parte da academia, ou seja, dos/as estudiosos/as da
literatura. É importante, segundo a autora, que se pense sobre o porquê de a construção de um
cânone ocorrer desta maneira e “a quais interesses serve” (SCHMIDT, 2010, p. 177) este
cânone.
Ainda sobre os critérios de valor que formam um cânone literário, Zahidé Muzart pontua
a importância de se contextualizar a época em que o livro em questão foi produzido e trazer
para os dias de hoje.

O estudo do cânone está ligado, pois, a várias coisas, principalmente à dominante da


época: dominantes ideológicas, estilo de época, gênero dominante, geografia, sexo,
raça, classe social e outros. Aquilo que é canonizado em certas épocas, é esquecido
noutras, o que foi esquecido numa, é resgatado em outra (MUZART, 1995, p. 86).

Assim sendo, Zahidé Muzart conclui sobre as estratégias de como se deve subverter
hoje a esse cânone e resgatar escritoras que publicaram em outros tempos e não tiveram
reconhecimento e visibilidade em sua época:
20

É importante, para reverter o cânone, mostrar o que aconteceu quando o objeto


começou a falar. Para isso, além do resgate da publicação de textos, é preciso fazer
reviver essas mulheres trazendo seus textos de volta aos leitores, criticando-os,
contextualizando-os, comparando-os entre si ou com os escritores homens,
contribuindo para recolocá-las no seu lugar na História (MUZART, 1995, p. 90).

É, ainda, fundamental que se analise a literatura como algo inscrito na sociedade e


sujeito às mudanças sociais que ocorrem ao longo do tempo. Também é imprescindível que se
pense no lugar de enunciação do sujeito que produz literatura no Brasil. Conforme Schmidt:

Na medida em que entendemos que os sentidos das representações geradas por essa
memória, em forma de arquivo-escritura, revelam uma relação de cumplicidade entre
aquilo que pode ser dito e lembrado e posições de autoridade investidas de alto poder
regulatório na gestão, social e simbólica das diferenças, a história literária e as
formações canônicas emergem como lugares histórico-político-discursivos, por
excelência, do privilégio de um sujeito enunciador e, consequentemente, da produção
textual de subjetividades hegemônicas (SCHMIDT, 2010, p. 179).

Logo, é importante que se analise os motivos dessa exclusão das mulheres do cânone de
acordo com as relações de poder presentes na sociedade. O sujeito enunciador é, portanto, o
que detém mais privilégio num contexto social hegemonicamente masculino. Por esse viés,
Regina Dalcastagnè pontua que “Os lugares de fala no interior da narrativa também são
monopolizados pelos homens, brancos, sem deficiência, adultos, heterossexuais, urbanos, de
classe média.” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 148). Ou seja, este contexto majoritariamente
masculino culmina na exclusão de mulheres como Elisa Lispector e tantas outras do cânone da
literatura brasileira. Para Dalcastagnè,

O problema que se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas a


invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas
sociais. A literatura é um artefato humano e, como todos os outros, participa de jogos
de força dentro da sociedade. Essa invisibilização e esse silenciamento são
politicamente relevantes, além de serem uma indicação do caráter excludente de nossa
sociedade (e, dentro dela, de nosso campo literário) (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 149).

Portanto, a partir desta perspectiva é possível que se pense e analise a literatura como
parte ativa da sociedade: se há exclusões dentro da sociedade, também haverá no meio literário.
Ao longo dos séculos passados, era nítida a exclusão (não apenas) de mulheres da literatura,
visto que elas não tinham sequer acesso ao estudo formal. Atualmente, ainda há uma diferença
entre a quantidade de homens e de mulheres publicando literatura, porém, já há uma consciência
crítica a respeito disso e pesquisas como a de Dalcastagnè apontam o problema.
Nesta perspectiva, Elisa Lispector é uma mulher, imigrante judaica, que escreve no
século XX, momento histórico em que ainda são raras as mulheres a alcançarem alguma
visibilidade dentro do cânone literário do Brasil. Mesmo que a escritora não alcance grande
visibilidade, publica seus livros pela Editora José Olympio, uma das maiores do país nas
21

décadas de 1940 e 1950, justamente o período em que Elisa Lispector publica seus primeiros
livros.
Até os dias de hoje, o pouco conhecimento que se tem sobre Elisa Lispector advém das
leituras biográficas sobre sua irmã, a também escritora Clarice Lispector, excepcionalmente,
uma mulher que figura no cânone da Literatura Brasileira.
É possível notar uma diferença entre o modo como Elisa e Clarice lidam com a questão
do exílio e de suas origens judaico-ucranianas, o que pode ter influenciado o processo de
invisibilização de Elisa Lispector perante o cânone. O que chama a atenção nos escritos de Elisa
Lispector é a responsabilidade que toma para si de um registro da história de sua família, desde
seus mais distantes antepassados, “pessoas que nem sequer cheguei a conhecer, mas das quais
não posso me descartar.” (LISPECTOR, 2012, p. 81), até a sua própria história. Sobre a
presença da cultura judaica nas obras das irmãs Lispector, Berta Waldman pontua:

Enfim, comparando a presença do judaísmo nas obras das duas irmãs, tem-se a
dimensão da diferença que existe entre elas. Uma não só aceita esse traço identitário
como faz por perpetuá-lo. A outra sente-se brasileira, russa, mas recalca o traço
judaico que, no entanto, aparece em sua obra de forma oblíqua, na massa comum do
sincretismo religioso tão afeito ao modo de ser do Brasil (WALDMAN, 2014, p. 15).

Muitas são as possibilidades de se interpretar o processo de invisibilização sofrido pela


escritora, visto que Elisa era irmã de ninguém menos que Clarice Lispector, escritora ucraniana
naturalizada brasileira com grande volume de publicações e reconhecida pelo cânone literário
do país.9 O que Clarice nega e Elisa faz questão de afirmar é justamente o passado judaico-
ucraniano.
Logo, é possível pensar em uma construção de nuances da invisibilidade de Elisa
Lispector dentro do cânone da literatura brasileira. Ao mesmo tempo em que publica seus livros,
em sua maioria, pela Editora José Olympio e recebe dois prêmios, um deles na Academia
Brasileira de Letras, a escritora segue sem ter um efetivo reconhecimento por parte da academia
e do público-leitor do país.

9
Vale destacar que as duas irmãs escreviam em contextos bastante distintos. Enquanto Clarice Lispector, logo
após publicar seu primeiro livro, muda-se para a Europa com o marido diplomata, Elisa Lispector segue vivendo
no Rio de Janeiro, o que pode ter, de certa forma, influenciado a projeção que cada uma alcança em termos de
mercado literário.
22

2.4 RETRATOS ANTIGOS: UMA NARRATIVA IMAGÉTICA

O livro Retratos antigos, que conta com texto de Elisa Lispector, uma apresentação
escrita por Nádia Gotlib e fotografias do álbum da família ucraniana, foi publicado em 2012.
Nele, a escritora narra em primeira pessoa uma (possível) história de sua família através do ato
de ver o álbum de fotografias. Conforme Roland Barthes, “A fotografia transformava o sujeito
em objeto, e até mesmo, se é possível falar assim, em objeto de museu” (BARTHES, 2017, p.
19). Objetos de museu no sentido de marcarem um tempo e um espaço específicos, que podem
ser lidos através das roupas e de todo o contexto da imagem.
O desejo da escritora em perpetuar sua história e de seus antepassados é destacável ao
longo de sua obra. Ao tratar dos escritos de Elisa Lispector, é possível, portanto, pensar em uma
(re)criação e (re)invenção do vivido. Essa leitura vai ao encontro das contribuições de Leonor
Arfuch, para quem:

Falar do relato, então, dessa perspectiva, não remete apenas a uma disposição de
acontecimentos – históricos ou ficcionais – numa ordem sequencial, a uma
exercitação mimética daquilo que constituiria primeiramente o registro da ação
humana, com suas lógicas, personagens, tensões e alternativas (ARFUCH, 2010, p.
112).

A escritora carrega, por opção sua, a responsabilidade de recriar a memória de sua


família. Os registros que faz têm por principal objetivo o não esquecimento da história de sua
família. Assim sendo, é possível que se entenda a escrita de Elisa Lispector como baseada em
sua memória, daquilo que lhe foi contado por seus pais, no caso, seus ascendentes mais
próximos, num relato escrito assumidamente em primeira pessoa.
Logo, o que o leitor encontra nos Retratos é a narrativa da história dos antepassados de
Elisa Lispector através da perspectiva da autora, que não necessariamente vivenciou os
costumes que narra, nem sequer conheceu muitas das pessoas que aparecem nos retratos
incorporados nesses esboços a serem ampliados, mas se utiliza da linguagem para produzir a
memória (ou, ainda, uma possível memória) da família. É notável em sua obra o desejo por uma
pátria, algo que a escritora possivelmente não chega a ter, visto que o exílio foi uma experiência
marcante em sua formação, subjetivação; por isso, pode-se perceber em algumas de suas obras
o sentimento de não pertencer a um lugar. Para Claudio Guillén, “O exílio, voluntário ou
imposto, sempre foi e será, em situações de opressão intolerável, uma forma de sobreviver sem
perder a própria voz” (GUILLEN, 1995, p. 11-12), o que densifica a materialização de
memórias – suas ou dos seus, inventadas ou nem tanto – registradas em Retratos antigos.
23

A subjetividade pode ser notada na obra de Elisa Lispector no sentido de fazer uma
escrita de memória, ou seja, seu material de escrita é altamente subjetivo, pautado em suas
memórias e em memórias que por vezes não são suas, o que confere estatuto ficcional aos seus
textos sobre os retratos. Conforme Aleida Assmann,

A escrita como metáfora da memória é tão indispensável e sugestiva quanto


extraviadora e imperfeita. A presença permanente do que está escrito contradiz
ruidosamente, no entanto, a estrutura da recordação, que é sempre descontínua e
inclui necessariamente intervalos da não presença. Não se pode recordar alguma coisa
que esteja presente. E para ser possível recordá-la, é preciso que ela desapareça
temporariamente e se deposite em outro lugar, de onde se possa resgatá-la. A
recordação não pressupõe nem presença permanente nem ausência permanente, mas
uma alternância de presenças e ausências (ASSMANN, 2011, p. 166).

Assim sendo, o que se pode ler nos Retratos antigos está ligado aos fragmentos de
memória da escritora, desde o que conta sobre pessoas da família, sobre as quais muitas vezes
apenas ouviu falar, até o que narra sobre seus próprios pais.
24

Figura 1 – Fotografia de Tcharna Krigmgold.

Fonte: LISPECTOR, 2012, p. 9.

A fotografia acima mostra Tcharna Krigmgold (LISPECTOR, 2012, p. 4), avó materna
de Elisa Lispector falecida em 1914, quando a escritora tinha apenas três anos de idade. Ela usa
joias e, conforme descreve a neta nos Retratos antigos: “Em obediência aos ditames religiosos,
traz sobre os próprios cabelos uma peruca de matrona armada em bandós caprichados”
(LISPECTOR, 2012, p. 101). Elisa Lispector lembra da avó como uma pessoa generosa e
devotada aos mitzvot (LISPECTOR, 2012, p. 101), ou seja, aos deveres que o judaísmo pregava.
25

Para Roland Barthes, o distanciamento temporal que se impõe entre quem fala sobre
uma fotografia e a pessoa fotografada em questão é o que constitui o ato de “ver” um retrato.

Assim, a vida de alguém cuja existência precedeu um pouco a nossa mantém


encerrada em sua particularidade a própria tensão da História, seu quinhão. A História
é histérica; ela só se constitui se a olhamos – e para olhá-la é preciso estar excluído
dela (BARTHES, 2017, p. 64).

Assim sendo, pode-se pensar na perspectiva de Elisa Lispector, autora dos relatos a
respeito da família, como “excluída” do momento histórico em que tais fotografias foram feitas
e, portanto, distante em tempo e espaço, o que constitui a ficcionalidade ao olhar que tem sobre
o passado.
A família Lispector fixou residência no Brasil em 1921. Primeiro, em Maceió; depois,
em Recife e, anos mais tarde, no Rio de Janeiro. As vivências de exílio de cada membro da
família são bastante distintas. A mãe adquiriu uma doença em decorrência de um pogrom, o
que a afetou de maneira significativa nos dez anos em que viveu o exílio, até falecer, em 1930.
Só se tem um esclarecimento sobre a doença adquirida por Marieta com a publicação de
Retratos antigos. Nádia Gotlib, organizadora do livro, explica:

É o caso da mãe (Mánia), que nessas memórias que ora se publicam, surge envolvida
de ternura pela filha, Elisa. Além desse envolvimento, digno de nota, acrescente-se
que neste texto aparece a explicitação da doença da mãe: “hemiplegia”, ou seja,
paralisa parcial do corpo proveniente de trauma. E a narradora completa essa
informação ao definir a origem do trauma: a violência causada por bolcheviques
durante um pogrom (LISPECTOR, 2012, p. 63).

O livro apresenta, portanto, um modo de registro de trauma, um modo de performar a


dor, como é o caso citado da doença e posterior morte de Marieta. O pai trabalhava muito para
sustentar a esposa e as filhas, guardando sempre suas crenças de judeu e seus rituais,
frequentando a sinagoga e passando para as filhas seus ensinamentos. Elisa, a filha mais velha,
teve sua infância e a juventude vividas em função dos cuidados com a mãe e com as irmãs mais
novas. Sentia o peso de ser exilada em seu processo de socialização com meninas da sua idade,
o que foi penoso. Tania e Clarice, tendo vindo ao Brasil ainda muito crianças, provavelmente
tinham pouca ou nenhuma lembrança da Ucrânia, além de terem sido alfabetizadas já em língua
portuguesa, o que talvez tenha tornado sua experiência de exílio bastante distinta da vivência
de Elisa Lispector, mesmo sendo ambas pertencentes à segunda geração de migração. Segundo
Avtar Brah,

Certamente, a relação da primeira geração com o lugar de migração é diferente da das


gerações seguintes, a estar mediada pelas recordações do que se havia desejado antes,
e pelas experiências de separação e “deslocalização”, ao mesmo tempo que se tenta
26

reorientar, formar novas redes sociais e aprender a negociar novas realidades


econômicas, culturais e políticas (BRAH, 2011, p. 225).

O que Brah propõe, então, é que se analise a relação de cada geração posterior com a
vivência de exílio de maneira distinta. No caso dos Lispector, deve-se pensar essas gerações a
partir de Pedro e Marieta, passando pelas filhas Elisa, Tania e Clarice e chegando aos filhos
dessas três irmãs, que já nasceram no Brasil e, portanto, terão uma visão diferente daqueles que
migraram: Márcia (de Tânia), Pedro e Paulo (de Clarice).
Os pais da escritora são a primeira geração desta família em exílio; as três filhas, a
segunda. A partir da terceira geração, portanto, dos dois filhos de Clarice Lispector – Pedro e
Paulo – e da filha de Tania Kauffmann – Márcia – a ideia de exílio torna-se mais longínqua. Ao
notar essa passagem do tempo ao longo das gerações, Elisa Lispector assume o papel de deixar
um registro escrito aos futuros descendentes sobre quem são os antepassados e qual destino
tiveram.

Tempo que transcorreu, existências que se findaram...Que restou dos personagens


desses retratos, além de uma descendência não muito numerosa? Talvez a memória.
Mas esta reside em nós, que, aos poucos, vamos correndo também. Então penso o que
será deles, quando os da minha própria geração não mais existirem, e não houver mais
ninguém para dar testemunho de suas vidas, de seus graus de parentesco
(LISPECTOR, 2012, p. 81).

No caso do álbum de fotografias, as pessoas que figuram nele são os antepassados


ucranianos da família: tios, avós, primos e os próprios pais de Elisa Lispector são vistos nos
retratos, em situações e momentos que a autora tenta descrever conforme a memória do que
viveu e do que lhe foi contado a respeito deste passado. Segundo Susan Sontag, a partir da
materialidade da imagem capturada em uma fotografia, é importante levar em conta que,

Assim como o fascínio que a fotografia exerce é um lembrete de morte, é também um


convite ao sentimentalismo. A fotografia transforma o passado em objeto de carinhoso
respeito, confundindo diferenças morais e desarmando julgamentos históricos, através
do patético generalizado que é olhar para o tempo passado (SONTAG, 1981, p. 70).

Conforme a autora, essa leitura de um passado tende a ser um tanto idealizada, visto que
a pessoa tende a guardar certo apego pelo vivido. No caso dos Retratos antigos, é com o devido
respeito ao passado que Elisa Lispector assume a narração dessas memórias, dos ritos da cultura
judaica e das vidas das pessoas que nas imagens capturadas figuram. Em seu relato, a escritora
reflete sobre os mais variados processos de migração sofridos pelo povo judeu. A falta de uma
pátria faz com que muitos percam o contato com suas origens.
Elisa Lispector também trata dos pogroms. Foi justamente um destes ataques que fez
com que os Lispector saíssem da Ucrânia em exílio em 1921. Os pogroms atingiam
27

pontualmente os judeus e eram uma perseguição violenta e ofensiva. A escritora fala das
porcentagens de judeus e seus direitos dentro da sociedade, desde direito ao estudo até mesmo
o direito de existir, o que expõe nitidamente a segregação sofrida.

– Como se iniciava um pogrom? já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não


soube responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogroms, não
pudessem dizer. – Amargas realidades para as quais não havia justificativa, mas que
prevaleciam como nas cidades grandes, a protséntnaia norma, ou seja, a porcentagem
de judeus que podiam cursar escolas e universidades, ou este outro mandato que tinha
a iníqua designação de pravo jítelstva, o direito de viver (!), que se referia ao direito
dos judeus de morarem nas cidades, quando é certo que até nos pequenos vilarejos,
nos casebres de madeira, nas ruas tortuosas de caminhos de lama, os judeus viviam
segregados e com medo (LISPECTOR, 2012, p. 90).

Elisa Lispector é, portanto, a primogênita que se dedica a salvaguardar a memória da


família. Um ano após completar seu centenário de nascimento, a publicação póstuma de
Retratos antigos figura como fundamental para que o leitor conheça a memória que a escritora
se empenhou em registrar. A escritora narra o ato de ver os retratos e relembrar as histórias da
família e das pessoas que nele figuram. Talvez a lembrança mais triste seja a da própria mãe,
Marieta, que sofreu as consequências de um pogrom até o dia de sua morte.

Ah, os penares que se seguiram!


Migrações. Pesares. Dificuldades sem conta. A hemiplegia de que a mãe fora
acometida numa fatídica noite de pogrom progredindo devagar, mas insidiosamente.
Um dia, já no Brasil, passados poucos anos, jovem ainda – contava só 42 anos –
conformada e temente a Deus, a mãe pedira ao pai que lhe comprasse um novo Sidur
(livro de orações), e orou durante uma semana inteira, ao fim da qual ela morreu
(LISPECTOR, 2012, p. 111).

Vale destacar que os pogroms ocorrem desde o século XIX na Europa, atingindo o povo
judeu e causando, desde então, inúmeros processos migratórios. Natália dos Reis Cruz pontua
essa questão dos pogroms e das migrações:

Na Europa, os judeus enfrentavam constantemente os chamados Pogroms, e tal


realidade fez com que se iniciasse já no final do século XIX, tentativas de emigração
por parte dessa população judaica. Este grande fluxo de emigrantes judeus da Europa
para outros países, durante as últimas décadas do século XIX, levou a um intenso
debate entre organizações e lideranças judaicas sobre a atitude a ser adotada frente à
emigração. Enquanto alguns eram favoráveis à emigração como forma de resolver o
problema judaico, outros achavam que se deviam fazer mais esforços para melhorar a
situação dos judeus nos países em que viviam (CRUZ, 2009, p. 226).

A comunidade judaica muito antes do holocausto já era alvo de violência, de


perseguições e de migrações forçadas. Os costumes judaicos da família são narrados por Elisa
Lispector, como, por exemplo, as celebrações dos sábados: “Um simples Sábado, que se repetia
semana após semana, mas que cada vez se constituía numa renovação da vida.” (LISPECTOR,
2012, p. 107). Desde a culinária até a arrumação da casa, os trajes usados pelas pessoas: tudo
28

era preparado com muito zelo para que se vivesse o sábado tal e qual mandava a Torah, o livro
sagrado dos judeus, o qual tinha como fiel seguidor Pedro Lispector, descrito como pessoa
íntegra.

E bem pelo contrário, tanto mais reconhecesse as qualidades nobres de alguém, mais
sóbrio se mostrava no trato. Uma expressão que usava com alguma frequência era a
fainer mensh (uma pessoa distinta), mas se a pessoa lhe merecia a admiração total,
designava-a tão somente com a expressão mensh (mensh: pessoa, gente). Assim,
quando dizia fulano é “um mensh”, havia-lhe rendido a mais alta homenagem
(LISPECTOR, 2012, p. 113).

Ainda sobre o pai, Elisa Lispector narra um episódio curioso, no qual o pai lhe faz uma
proposta de escrita. Pedro, já no fim da vida, sugere que a filha mais velha escreva sobre “um
homem que se perdeu” (LISPECTOR, 2012, p. 125). Isso fez com que a filha se questionasse
sobre o porquê de o pai ter feito tal proposta de tema de escrita.

Lembro-me de certa noite em que, após ler um de meus primeiros escritos numa
revista literária, pensando e repensando com a revista na mão, falou:
– Vou-lhe sugerir um tema. Escreva sobre um homem que se perdeu, um homem que
perdeu o caminho.
Permaneceu um bom tempo calado, depois retirou-se para o seu quarto. Nada mais
acrescentou. E eu fiquei a imaginar o que teria feito sentir-se como um náufrago, em
que ponto de suas dúvidas ele havia se extraviado ao oscilar entre dois mundos,
perdido entre várias culturas (LISPECTOR, 2012, p. 125).

A morte do pai também aparece na narrativa, pois marcou as irmãs Lispector. Muito
provavelmente, se questionada sobre como definiria seu pai, Elisa teria escolhido justamente a
palavra mensh, tão usada por Pedro para descrever pessoas as quais considerava dignas de
admiração e respeito: “O pai morreu em virtude de um choque operatório, sem saber que eu me
empenhava em cumprir o que ele me havia pedido, de transpor para o papel o sonho que a vida
lhe negara realizar” (LISPECTOR, 2012, p. 126).
A “narração” de um álbum de fotografias depende das imagens nele contidas e da
interpretação que o narrador faz delas. No caso dos Retratos, o texto de Elisa Lispector está
pautado nas lembranças que ela tem das personagens das fotografias ou, ainda, do que lhe foi
dito a respeito delas. nesse sentido, conforme Barthes,

A Fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com
certeza daquilo que foi. Essa sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência
não toma necessariamente a via nostálgica da lembrança (quantas fotografias estão
fora do tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente no mundo, a via
da certeza: a essência da Fotografia consiste em ratificar o que ela representa
(BARTHES, 2017, p. 80-81).
29

Figura 2 – Fotografia da família Lispector.

Fonte: LISPECTOR, 2012, p. 53.

A imagem mostra os cinco membros da família Lispector: Pedro, Marieta, Elisa, Tania
e Clarice. Segundo Nádia Gotlib, “cópia dessa foto aparece no passaporte familiar expedido
pelo Consulado da Rússia em Bucareste (Romênia), em janeiro de 1922, quando a família
viajava para o Brasil.” (LISPECTOR, 2012, p. 138). O retrato é um dos raríssimos em que estão
presentes todos os integrantes da família, visto que a fotografia era um recurso caro e não muito
utilizado no início do século XX. Outro motivo que justifica a raridade desta imagem é a morte
prematura de Marieta, que faleceu em 1930, apenas nove anos após chegar ao Brasil.
30

Figura 3 – Fotografia de Elisa Lispector.

Fonte: LISPECTOR, 2012, p. 131.

Em paralelo ao retrato anteriormente mostrado, da escritora com sua família na infância,


traz-se esse registro de Elisa Lispector já em torno dos 60 anos de idade, visto que a fotografia
foi feita entre 1970-1980 (LISPECTOR, 2012, p. 130). As mãos cruzadas sobre as pernas
denotam elegância.
31

A leitura aqui apresentada dos Retratos antigos tem como intuito pensar como a família
judaica, seus costumes e a vivência do exílio tiveram influência sobre a obra literária de Elisa
Lispector, bem como a memória é tema e recurso estético fundamental no trabalho da escritora.
A escritora utiliza a estratégia da escrita em primeira pessoa para deixar um registro escrito a
respeito do passado e de sua família – o que se busca ler como um possível recorte histórico,
algo que mais famílias também judaicas e imigrantes possam ter vivido.
A escritora deixa evidente que não tem o objetivo de remontar a árvore genealógica da
família (LISPECTOR, 2012, p. 83), mas, ao mesmo tempo, demonstra seu interesse em deixar
um registro escrito para que não se esqueça a memória dos familiares que vieram antes dela.
A escritora demonstra, no subtítulo, que esta não é uma obra pronta. Os “esboços a
serem ampliados” (LISPECTOR, 2012, p. 80) poderiam ter ido além, como o foram com a
publicação do livro em 2012 por Nádia Gotlib, que organizou o texto de Elisa Lispector,
trazendo, além dele, as fotografias encontradas no álbum da família e uma apresentação que
situa o leitor. Talvez a escritora almejasse uma ampliação feita pelos sobrinhos ou, ainda pelas
próximas gerações, visto que dedica o livro a eles e ainda acrescenta nos originais uma nota:
“atenção, Márcia”. (LISPECTOR, 2012, p. 57)
O livro é dedicado aos sobrinhos e sobrinhos-netos de Elisa Lispector, os da terceira
geração, aqueles que, ainda bem, não tiveram a vivência do exílio, mas que, para sua tia/tia-
avó, não devem esquecer suas origens. O passado e o futuro podem ser pensados, portanto,
como elo notável na escrita de memórias desenvolvida por Elisa Lispector. Os que estão por vir
conhecerão, através desses relatos da escritora, um pouco da história e do passado de sua
família. A ligação que a escritora busca criar entre os de gerações futuras e suas origens é peça-
chave na leitura dos Retratos antigos.
32

3 NO EXÍLIO, REVOLUÇÃO RUSSA E MEMÓRIA

1917. Fadiga. Exaustão. Campos abandonados. Estradas obstruídas. Quebranto de


forças e esperanças sumidas. E por toda parte uma dolorosa fome de pão e de sossego
– pão, para saciar as ânsias do corpo, sossego e esquecimento para apagar as
amarguras da alma (LISPECTOR, 2005, p. 31).

3.1 NO EXÍLIO: O ROMANCE DE MEMÓRIA DE ELISA LISPECTOR

Em No exílio, o narrador em terceira pessoa conta, ao longo do romance, histórias e


ideias de seus personagens, desde os costumes judaicos tradicionais, os esponsais de Pinkhas e
Márim, a vivência dos ataques na Ucrânia até a adaptação no Brasil, seguida de dias difíceis e,
posteriormente, de dias mais tranquilos para a família. No romance de memória, ficção e
realidade se revezam para contar alguns fatos reais – como a fundação do estado de Israel e as
consequências da Revolução Russa para o povo judeu – através do prisma da personagem Lizza,
menina ucraniana de origem judaica que, aos dez anos de idade, vê seu destino mudar ao
experienciar o exílio. O romance, portanto, dedica-se a contar, principalmente, a vivência do
exílio de uma família composta por pai, mãe e três filhas.
A narrativa inicia em 1948, ano de criação do tão sonhado “Estado Judeu”.
Coincidentemente, o ano de lançamento do romance. Na citação abaixo, nota-se a sensação da
personagem Lizza, protagonista do romance, filha mais velha de Pinkhas e Márim, ao saber da
notícia da criação de Israel

Nascia-lhe uma doce esperança nos destinos do mundo. A humanidade estava-se


redimindo. Começava, enfim, a resgatar sua dívida para com os judeus. Valera ter
padecido e lutado. Quantas lágrimas, quanto sangue derramado. Eles não morreram
em vão (LISPECTOR, 2005, p. 8).

A partir do início do segundo capítulo, começa um flashback, que chega ao ano de 1921,
quando há perseguição contra os judeus na Ucrânia e, por isso, a família protagonista do
romance vivencia o exílio. No romance, tal perseguição se dá em forma de um pogrom, que
atinge a todos, mas especialmente à mãe, Márim. Este foi o estopim para que a família decidisse
partir, depois de ter passado por um período de escassez de mantimentos e ter visto amigos e
familiares morrerem.
No romance, são citadas algumas cidades pelas quais a família Lispector passou. Na
ficção, são narrados momentos de dificuldades que a família protagonista enfrenta em alguns
destes lugares. A família de Elisa Lispector – bem como a da personagem Lizza – passou por
algumas cidades antes de embarcar para o Brasil.
33

Já eram cinco: o pai, a mãe e as três filhas. Em direção a Odessa, cidade do mar Negro,
onde talvez pudessem embarcar num vaio? Difícil conseguir embarcar nessa cidade,
tomada, depois da Revolução de 1917 e durante a Primeira Guerra, por franceses,
ingleses alemães e, só naquele ano mesmo de 1920, recuperada pela Rússia. Antes da
viagem mais longa, a outra opção seria, então atravessar a fronteira da Ucrânia, o que
se costumava fazer com dificuldade, subornando os guardas da fronteira. Teriam
conseguido sair do território russo atravessando a fronteira pelo rio Dniester, na
Moldávia, em direção a Bucareste, passando por Kichinev, na Moldávia, e Galatz, no
sul da Romênia. Após conseguirem o passaporte russo no Consulado da Rússia em
Bucareste, teriam seguido viagem para a Hungria, em direção aos lugares de onde
costumavam sair os navios para a América: Itália, França, Bélgica, Holanda,
Alemanha. Teriam, então, atravessado a fronteira da Romênia em direção a Budapeste
passando pela atual República Tcheca e pela Alemanha. Esse é um dos roteiros
possíveis.
Foi num porto da Alemanha, Hamburgo, que embarcaram num navio em direção à
América (GOTLIB, 2009, p. 45-46).

Em No exílio, a família passa por diversos problemas ao longo da viagem. Logo no


início, Márim se vê obrigada a subornar um guarda com suas poucas joias, os últimos recursos
da família, para que pudessem seguir viagem. Além disso, o frio e a fome se fizeram presentes
em alguns momentos narrados no romance. Ainda no correr da trajetória da família até o Brasil,
Márim começa a apresentar os sintomas de sua doença degenerativa.
O romance cita episódios de pogroms ocorridos ainda antes da Primeira Guerra Mundial
(1914-1918), demonstrando que a perseguição aos judeus vinha acontecendo em diferentes
momentos e contextos.

– Quem não se lembra de 1905 e 1906?


– Pogroms, crimes nefandos.
– E dizer que o tzarismo acreditava poder afogar no sangue judaico a revolução
iminente!
– A revolução veio.
Está aí – pensou Pinkhas –, mas não para o judeu. Bandeiras vermelhas, lenços
vermelhos – tudo tinto de sangue judeu. Tudo crismado com sangue de judeu!
(LISPECTOR, 2005, p. 30).

Neste contexto do romance, o foco narrativo está nas lembranças de Pinkhas,


principalmente em como se dava o tratamento ao judeu na sociedade ucraniana antes da Guerra
e também depois dela. O enredo traz a ocorrência de diversos ataques em povoados da Ucrânia
desde o início do século XX, devido ao objetivo do governo russo de expandir seus territórios
e fundar, em 1917, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Tais ataques tiveram como
alvo principalmente o povo judeu ucraniano.

O dia despontara ao clarão dos incêndios. A cidade, vencida; o combate, cessado.


Apenas tiros esparsos, aqui e ali, iam arrematando. Rumor desusado começou a
animar as ruas. Pesados carros rolando sobre o calçamento, repercutindo em pancadas
surdas no coração. Gritos de comando, pragas, vociferações, rasgavam o dia claro e
doce. Das habitações ninguém se animava a sair. Olhavam pelas frestas das janelas e
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tinham medo. Com o cair da noite, a inquietação se foi apoderando novamente dos
habitantes.
Novos tiros esparsos, seguidos de gritos lancinantes denunciavam que algo terrível
estava acontecendo. Dos que os ouviam, alguns permaneciam mudos, estarrecidos,
enquanto a outros o pavor ensandecia, e também eles se punham a gritar.
Portas e janelas forçadas, imprecações e insultos. Casa adentro fez-se silêncio, por um
instante cheio de temerosa expectativa. Não sabiam se deviam pedir socorro, sair à
rua, ou esconder-se por trás dos móveis. Marim não pensou muito. Lançou-se à sorte.
Pinkhas estava em viagem, retido pelos acontecimentos tumultuados. Era, pois, a ela
que cabia agir para salvar as filhas, e as mulheres e crianças que se haviam refugiado
em sua casa (LISPECTOR, 2005, p. 34).

Após o ataque sofrido pela família protagonista do romance, acontece o exílio, que
aparece na trama como o evento central a ser narrado, não só o momento da viagem da família
como a vida das personagens no Brasil, seus percursos e, principalmente, o sentimento de Lizza,
de ser exilada. A viagem ao Brasil apresentou inúmeras dificuldades, desde a falta de recursos,
a necessidade de subornar guardas até o agravamento da doença de Márim. A chegada ao Brasil
também não foi tão hospitaleira quanto as personagens imaginaram, visto que o cunhado de
Márim foi, por vezes, hostil com Pinkhas e as crianças.

– Henrique, preciso que me empreste algum dinheiro. É para leva Marim para o
hospital. Preciso interná-la. Henrique esboçando um sorriso num canto da boca,
– Bem, mas você sabe...
– Marim tem um colar de ouro. Posso empenhá-lo.
Henrique sorrindo, agora satisfeito, cordato.
Pinkhas conduzindo as crianças para a casa do cunhado; em seguida, à claridade da
lua cheia, a canoa transportando-o e a Marim para o navio que os levaria a Recife
(LISPECTOR, 2005, p. 100).

Lizza, personagem principal do romance, passou por difíceis momentos na escola,


devido ao fato de não falar bem a língua portuguesa e, por isso, se tornar alvo de zombaria por
parte das colegas. Com relação a esse aspecto, o domínio sobre uma língua faz com que a
identidade com um grupo social se estabeleça. A falta deste domínio traz como consequência
problemas no convívio para pessoas exiladas, principalmente pela dificuldade que se encontra
na comunicação. Sobre a questão da língua e como ela influencia na vida dos exilados, Edward
Said pontua:

Pela primeira vez, eu estava privado do ambiente linguístico de que dependia para ter
uma alternativa às atenções hostis dos anglo-saxões cujo idioma não era o meu e que
não hesitavam em deixar claro que eu pertencia a uma raça inferior e, de algum modo,
condenada (SAID, 2001, p. 306).

O que Said narra neste trecho é justamente o que acontece com a personagem Lizza, a
hostilidade de suas colegas não lhe permitia esquecer que era estrangeira, exilada, e isso lhe
trazia infelicidade. A minoria étnica à qual a personagem pertencia era a dos judeus exilados,
sem uma pátria.
35

Convencera-se de que as relações com meninas da sua idade não mais seriam
possíveis. Sofrera durante as aulas, vendo-se demasiado crescida para estar entre as
crianças que apenas se iniciavam nas letras; nos recreios, a sensação de mal-estar
aumentava ainda mais.
– Diga cadeado, diga.- As crianças cercavam-na e a apoquentavam, com maldade.
– Ca-de-a-do-repetia, pondo acento em cada sílaba, com medo de errar. A meninada
ria, pulava em torno, uma puxando-lhe a saia, outra, o cabelo maltratado. Suportava,
de dentes cerrados, contendo-se para não dar parte de fraca. Se chorasse, seria pior.
Então, as crianças cansavam-se desse brinquedo e abandonavam-na no meio do pátio,
como uma coisa inútil. Lizza ficava sozinha, a um canto, esperando o recreio acabar.
A alegria ruidosa das outras não a contagiava, mesmo quando se mostravam benévolas
e condescendentes para com ela, a imigrante (LISPECTOR, 2005, p. 108).

Marca a narrativa o momento da morte de Márim, a mãe da família. Após anos de


doença e de cuidados por parte da filha mais velha, a mãe vem a falecer. Lizza sente muito a
morte da mãe, de quem cuidou por anos a fio, como sua principal ocupação. A infância e a
adolescência vividas em função de cuidar da mãe doente, da casa, das irmãs haviam acabado
para a personagem.

Lizza começou a sentir o coração doendo muito, uma dor como a dilacerá-la até o
âmago. [...] Sofria pela mãe morta, e sofria pelo pai, e as irmãs órfãs. Todos tinham
ficado órfãos. E quando pensou em si mesma, sentiu mais que a orfandade. Estava
simplesmente sem rumo. Para tudo mais que não fosse a assistência que prestara à
mãe doente, estava mutilada na vida corrente de interesses e liames (LISPECTOR,
2005, p. 142).

A representação da morte na literatura de Elisa Lispector torna-se algo possivelmente


pautado nas lembranças que a escritora tem da perda de sua mãe, Marieta, que, assim como a
personagem Márim, padeceu por conta de uma doença degenerativa originada na violência do
pogrom.

É depois da morte de alguém que a atenção dos seus se fixa com maior força sobre
sua pessoa. É então, também, que sua imagem é a menos nítida, que ela se transforma
constantemente, conforme as diversas partes de sua vida que evocamos. Em realidade,
nunca a imagem de um falecido se imobiliza. À medida que recua no passado, muda,
porque algumas impressões se apagam e outras se sobressaem, segundo o ponto de
vista de onde a encaramos, isto é, segundo as condições novas onde ela se encontra
quando nos voltamos pra ela (HALBWACHS, 1990, p. 74).

Assim sendo, é possível notar que, para a personagem Lizza, a morte da mãe foi um
marco. O cotidiano da personagem pautava-se nos cuidados com sua mãe. Na ocasião, Lizza
sofria por si e pela orfandade de todos. Junto a suas irmãs, após o ritual do velório, falavam,
mesmo que timidamente, sobre a mãe, por quem se apiedavam devido à doença e à morte.
Pinkhas evitava falar na esposa morta. Com o passar do tempo, apesar dos pensamentos e
orações de todos se voltarem para Márim, ela havia se tornado assunto velado. A família
mudou-se de casa, pois, ao passar pelo quarto, ouviam a mãe chamar e reviviam seu sofrimento.
36

Sobre a morte da mãe na literatura de autoria feminina, Norma Telles pontua que é um
momento de maior profundidade na trama, o que se pode aplicar ao caso de No exílio, visto que
a morte de Márim é um momento de profunda tristeza e reflexão para sua filha Lizza.

Na literatura masculina a morte do pai sempre foi o rito de passagem para o herói,
aqui a morte da mãe, testemunhada e transcendida pela filha, torna-se uma das
ocasiões de maior profundidade da literatura escrita por mulheres (TELLES, 1992, p.
60).

Vale ressaltar que as perseguições aos judeus fazem parte da história do século XX
desde seu princípio e tiveram consequências, como, por exemplo, o exílio e a doença da
personagem Márim do romance. O êxodo de judeus de suas terras aconteceu em diferentes
momentos históricos. Nos dias de hoje, o termo “holocausto” para se referir à perseguição aos
judeus é questionado. Leila Danzinger, em artigo intitulado “Shoah ou Holocausto: a aporia dos
nomes” levanta questões ligadas ao termo holocausto e alguns de seus problemas, como, por
exemplo, a seguinte reflexão: “De origem religiosa, o termo Holocausto empresta caráter
voluntário e passivo à morte, aceita em submissão à vontade divina” (DANZINGER, 2007, p.
02).
Ainda sobre o uso da denominação Holocausto, a qual passa por um processo de
banalização, Danzinger traz para seu texto outros autores que pensam sobre o uso desta palavra
e questões a ele intrínsecas:

Alguns pensadores evitam terminantemente o termo Holocausto, dentre os quais


Giorgio Agamben. O filósofo italiano identifica no termo não apenas a “equação
inaceitável entre fornos crematórios e altares”, mas também resgata sua “herança
semântica que possui desde a origem uma coloração antijudaica”. A história
semântica do termo Holocausto é, principalmente, cristã, pois os homens da igreja o
utilizaram para traduzir, sem maiores rigores, a doutrina complexa do sacrifício na
Bíblia (DANZINGER, 2007, p. 02).

Apesar desta “banalização” do termo, a autora pondera que, de certa forma, ele teve sua
importância no discurso das vítimas deste horror e, principalmente, para romper os silêncios.
Outro termo que a autora apresenta é Shoah, termo no qual, segundo Danzinger

[...] está contida a representação deuteronômica da devastação e sentença divinas. Mas


o lastro religioso foi progressivamente esvaziado por historiadores, escritores e
teólogos que, em Israel, recusaram o endereçamento do conceito a suas raízes
religiosas e sua interpretação em sentido metafísico, alterando assim suas pesadas
conotações de expiação e castigo (DANZINGER, 2007, p. 03).

Danzinger traz para o leitor, ainda, uma citação de Primo Levi que trata dos problemas
que migrantes judeus enfrentam no que diz respeito à linguagem e à comunicação, bem como
as situações vividas em um campo de concentração. A questão da língua é sempre um desafio
37

para os que migram, pois é uma grande barreira na comunicação e na construção de relações
interpessoais ao se chegar em um país estrangeiro, bem como as situações vividas em um campo
de concentração.

Na memória de todos nós, sobreviventes, sofrivelmente poliglotas, os primeiros dias


de Lager ficaram impressos sob a forma de um filme desfocado e frenético, cheio de
som e de fúria, e carente de significado: um caleidoscópio de personagens sem nome
nem face, mergulhados num contínuo e ensurdecedor barulho de fundo, sobre o qual,
no entanto, a palavra humana não aflorava. Um filme em cinza e negro, sonoro, mas
não falado (LEVI apud DANZINGER, 2007, p. 03).

A conclusão a que a autora chega sobre estes termos aqui apresentados e seus usos ao
longo do século XX é justamente a de que nenhuma denominação é capaz de exprimir os
horrores vividos pelo povo judeu, desde as primeiras perseguições sofridas até o extermínio
vivido na Segunda Guerra Mundial.

O que todas as denominações analisadas possuem em comum é o caráter parcial e


insatisfatório. A aproximação deste acontecimento histórico é rodeada de formas
aporéticas, que reafirmam tanto a absoluta necessidade de seu enfrentamento, quanto
a impossibilidade da tarefa empreendida. Com o desaparecimento progressivo dos
sobreviventes da Shoah, as gerações seguintes assumem o trabalho de elaborar e
transmitir esta memória, ou seja, de encontrar palavras, formas, imagens e sons que a
atualizem e a humanizem, incorporando-as, na medida possível, à vida presente
(DANZINGER, 2007, p. 07).

No romance No exílio, a política de antissemitismo que iniciou ainda nos primórdios do


século XX chega ao governo de Adolf Hitler na Alemanha e aparece na percepção das
personagens sobre o ocorrido e o sentimento de ser judeu, que conduz a narrativa.

E aumentam as correntes de prisioneiros judeus conduzidos para os matadouros.


Conduzem-nos a pé, seminus e descalços através de caminhos gelados, e os
transportam mais rapidamente nos “trens da morte”, mas não com velocidade bastante
para que, os poucos que resistem à tortura das viagens nos vagões superlotados,
forrados de cal viva e hermeticamente fechados, possam escapar à perda da razão
(LISPECTOR, 2005, p. 175).

Outro episódio importante narrado em No exílio é a morte do pai das personagens Lizza,
Ethel e Nina: Pinkhas, sempre descrito no romance como pessoa correta, trabalhadora e honesta.
Este é mais um acontecimento que traz a sensação de perda e angústia a Lizza.

Lizza foi encontrá-lo, na manhã seguinte, estendido no leito, os braços ao longo do


corpo, a fisionomia serena. Uma pancada surda ecoou em seu coração, o sangue a
fugir-lhe do rosto, a terra sumindo de sob os pés. E novamente era aquela sensação
angustiante do irremediável (LISPECTOR, 2005, p. 186).

Quase ao final do romance, é narrado o momento em que é anunciado o fim da Segunda


Guerra Mundial, período em que foram mortos milhares de judeus, o que, de certa forma, abala
Lizza. Ao longo deste período, o que se narra são conversas que Lizza tem com algumas pessoas
38

sobre a situação da Palestina. As questões que envolvem o povo judeu estão sempre presentes
nos pensamentos, conversas e preocupações da personagem.

Após a morte dos pais, o fim da Guerra e alguns outros acontecimentos, Lizza, a
protagonista do romance, é internada em um sanatório, de onde sai após “18 meses de reclusão
e de tormento” (LISPECTOR, 2005, p. 200). No romance, não se explica o motivo que a levou
a esta internação, mas vale contextualizar que, nos anos 1940, era comum pessoas que tinham
tuberculose ficarem por alguns meses reclusas em regiões de maior altitude, como serras, por
exemplo. Por isso, é possível aventar a hipótese de que a personagem não estaria num
manicômio propriamente dito, mas sim em um processo de tratamento de uma tuberculose, por
exemplo.

Os primeiros dias de sanatório foram difíceis. Toda contenção em que se


entrincheirara nos dias que os precederam repentinamente cedeu, como o degelo. O
tempo também havia mudado. Chovia e ventava continuamente. As noites eram
longas, intermináveis, povoadas de dores e de espectros. Sentia-se literalmente
perdida (LISPECTOR, 2005, p. 197).

Ao final do romance, pode-se encontrar uma reflexão sobre a humanidade e os caminhos


que percorreu e percorre, sobre a desrazão da guerra e uma esperança, que traz um senso
coletivo de boas projeções para o futuro, de uma vida mais digna e de mais fraternidade entre
as pessoas.

Mas o poder da luz é mais forte que o das trevas. Sob a pesada crosta de egoísmo e de
cegueira, pulsava no homem aquela centelha generosa e pura, o lume que lhe incutia
intuição e discernimento para orientar-se na larga estrada da vida (LISPECTOR, 2005,
p. 201).

3.2 REVOLUÇÃO RUSSA, DESDOBRAMENTOS E O EXÍLIO VIVIDO

A narração de fatos históricos se faz presente em No exílio. Desde o primeiro capítulo


do romance, em que aparece narrada a fundação do Estado de Israel em 1945 e, a partir de
então, em uma espécie de flashback, os pogroms contra o povo judeu e a Revolução Russa de
1917 e suas consequências fazem parte do romance como cenários de vivências difíceis para a
família-personagem.

O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a


história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória
desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da
lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir
um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um
lugar comum (SARLO, 2005, p. 9).
39

O que Beatriz Sarlo salienta são as dificuldades de conciliação entre memória e história
na construção de uma ideia de passado. Na obra de Elisa Lispector, além de a escritora se utilizar
de recursos da memória para construir suas narrativas, é de bastante relevância todo o contexto
histórico em que as personagens vivem e que a escritora traz ao leitor com riqueza de detalhes.
Em 1919, o General czarista Anton Denikin10 comandou as tropas na ofensiva contra o
exército vermelho (bolchevique), que combatia o exército da República Nacional da Ucrânia.
O propósito do exército branco de Denikin era acabar com as organizações da nação ucraniana:
escolas, livros e quaisquer postos administrativos. O poder local foi, então, devolvido à nobreza.
De setembro a dezembro de 1919, a República Nacional da Ucrânia declarou guerra ao exército
de Denikin. Após a crise política, o exército branco, em dezembro de 1919, deixou Kiev. A
derrota de Denikin deve-se ao seu objetivo restaurar o czarismo. Em 1920, após a derrota,
Denikin foi substituído no exército e passou a viver no ocidente como imigrante. Conforme
aponta Orlando Figes,

Sem nenhum sistema administrativo eficiente, em condições de organizar a


distribuição local do que ainda restava de suprimentos, os homens recorreram aos
saques. Como o próprio Denikin reconheceria, as investidas violentas contra as aldeias
só serviram para tornar o Exército Branco ainda mais antipático aos olhos da
população, acelerando a sua derrota (FIGES, 1999, p. 817).

Neste contexto de saques, a violência esteve presente. A crença na riqueza dos judeus
levou a um discurso contra esta etnia. Afirmava-se sobre a ilegalidade da riqueza dos judeus
em meio à crise e, assim sendo, foi propagada uma onda antissemita num momento já
turbulento.

Em meio ao mais absoluto colapso moral, o Terror Branco atingiu o clímax ao se


desencadear contra judeus. Foi o último ato de selvageria em represália a uma etnia
que, no entender de muitos, parira a revolução. O antissemitismo fez parte da vida
russa durante todo o período revolucionário. Os judeus foram alvos constantes da fúria
das massas. A palavra pogrom poderia significar tanto ataques aos judeus quanto
assaltos a propriedades. O regime czarista estimulara a primeira interpretação do
termo, sempre cuidando para que não resvalasse para a segunda. Fazer dos judeus
bodes expiatórios tornou-se prática generalizada a partir de 1914 (FIGES, 1999, p.
830).

A família Lispector passou justamente pelo trauma de um pogrom. Durante uma viagem
de Pinkhouss, Márian e as crianças tiveram a residência invadida, seus poucos bens roubados e
sua integridade física atingida. A mãe de Elisa Lispector sofreu pelo resto de seus dias as

10
Anton Denikin: Rússia, 1872 – Estados Unidos da América, 1947. Foi o General responsável pelo exército
branco na disputa pelo território da Ucrânia após a Revolução Russa de 1917. Após a derrota, acabou seus dias
como imigrante nos Estados Unidos da América.
40

consequências do pogrom: além do trauma psicológico de ter sua vida e de suas filhas postas
em risco, o trauma físico da agressão sofrida trouxe-lhe uma doença chamada hemiplegia
(paralisia parcial do corpo), a qual faria com que Marieta Lispector visse seu corpo se degenerar
ao longo da vida.

Os líderes dos pogroms costumavam impor um alto tributo revolucionário aos judeus,
por acreditarem que todos eram, invariavelmente, muito abastados. Os que não
pagavam a taxa cobrada corriam o risco de ver seus parentes, tomados como reféns,
morrerem à bala (FIGES, 1999, p. 832).

Neste contexto, após o ataque, a família Lispector toma aquela que talvez fosse a única
decisão possível à sobrevivência: o exílio. Conforme Edward Said, sobre essa decisão:

No fim das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nascemos nele, ou ele nos
acontece. Mas, desde que o exilado se recuse a ficar sentado à margem, afagando uma
ferida, há coisas a aprender: ele deve cultivar uma subjetividade escrupulosa (não
complacente ou intratável) (SAID, 2001, p. 57).

Said sugere justamente a inexistência de opções no que diz respeito à vivência do exílio,
mesmo que, para o autor, deva-se considerar o aprendizado possível e necessário advindo desta
experiência. Para as famílias que vivem horrores como a guerra, a fome e a miséria, o exílio
não se apresenta como alternativa e sim como a única saída possível para sobrevivência.
A busca por uma pátria pode ser pensada também como uma busca por identidade, visto
que, conforme Stuart Hall, “na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas”
(HALL, 2003, p. 26-27). No caso de Elisa Lispector, a questão das múltiplas identidades
aparece bem marcada pela autora, a de mulher, de origem judaica, exilada. Para Avtar Brah:

As identidades se inscrevem através de experiências construídas culturalmente nas


relações sociais. A subjetividade – o espaço onde se desenrolam os processos que
dotam de sentido a nossa relação com o mundo – é a modalidade na qual a natureza
precária e contraditória do sujeito-em-processo se significa ou “se experimenta” como
identidade (BRAH, 2011, p. 145).

As vivências culturais de pessoas exiladas – como no caso de Elisa Lispector – são


múltiplas e nem sempre positivas. Desde a decisão pelo exílio, as identidades tornam-se
fragmentadas. A pessoa passa a não pertencer mais a seu país natal, a seu lugar de origem,
tampouco pertencerá ao destino de exílio. Além da fragmentação no sentido de território, há as
vivências culturais como a religião – no caso dos Lispector, o judaísmo, tão estigmatizado – a
língua, que passa a ser uma barreira na comunicação e no aprendizado; além de costumes como
a culinária, os hábitos cotidianos, entre outros.
Nesse sentido, a obra da escritora pode ser lida também como um interessante registro
memorialístico para o povo judeu, visto que fala de um momento histórico vivido pontualmente
41

por judeus ucranianos num contexto pós-revolução russa de 1917. Portanto, a leitura que se faz
das obras de Elisa Lispector passa tanto pelos aspectos mais subjetivos quanto pelo senso de
coletividade para com o seu povo.

A relação entre biografia pessoal e história coletiva é complexa e contraditória.


Enquanto as identidades pessoais são sempre articuladas com a experiência coletiva
de um grupo, a especificidade da experiência de vida de uma pessoa, gravada em
chamas nas minúcias cotidianas das relações sociais vividas, produz trajetórias que
simplesmente refletem a experiência em grupo. Da mesma forma, as identidades
coletivas não podem ser reduzidas à soma das experiências de indivíduos. A
identidade coletiva é o processo de significação pelo qual a comum da experiência em
torno de um eixo específico de diferenciação, digamos classe, casta ou religião, não é
visitada por um significado particular. Nesse sentido, uma dada identidade coletiva
apaga parcialmente outras identidades, mas também carrega consigo vestígios delas
(BRAH, 2011, p. 152).

O exílio aconteceu para os Lispector, como para parte dos judeus ucranianos no início
do século XX. Também é citado no romance No exílio todo o horror sofrido pelo povo judeu
na Alemanha na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao longo do século, portanto, judeus
tiveram de sair de seus países e buscar abrigo em diversos lugares, o que fez com que
mantivessem, assim, uma unidade através das práticas identitárias como a religião, os ritos e
laços familiares, mesmo sendo um povo desterritorializado. A criação de Israel trouxe a
esperança de ter uma pátria, de ter um lugar onde fixar raízes e onde, talvez, os judeus
conseguissem obter seu território, o que aumentaria a unidade do povo judeu após tantos
percalços ao longo do tempo. Segundo Avtar Brah:

Sugeriria que esse conceito de diáspora representa as especificidades econômicas,


políticas e culturais que unem entre si esses componentes. Isso significa que essas
muitas viagens podem configurar uma só através de uma confluência de narrações
conforme se vive, se revive, se produz, se reproduz e se transforma através da
memória individual e coletiva e a rememoração (BRAH, 2011, p. 207).

A junção de memória individual e de memória coletiva é justamente o que se consegue


ler nas obras de Elisa Lispector. A rememoração de fatos que ocorreram com sua própria família
– como, por exemplo, a viagem de pai, mãe e três filhas da Ucrânia ao Brasil – se junta às
memórias de tantas outras famílias judias que desembarcaram do mesmo navio em busca de
uma vida nova. Famílias estas que passaram pelas mesmas questões econômicas e sociais e,
portanto, partilham de vivências de exílio semelhantes às da escritora Elisa Lispector.

A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito
na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há
experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-
a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é,
no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu
acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo
42

irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade,


que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (SARLO, 2005, p. 24).

Assim, conforme Beatriz Sarlo, as narrações de vivências são o caminho para a


libertação das lembranças, rompendo, logo, o silêncio da experiência. Elisa Lispector faz uso
da literatura como seu meio de colocar no papel seus pensamentos e sentimentos sobre o vivido.
A ideia de diferença, citada, a seguir, por Stuart Hall, é justamente o que cria fronteiras
e, inevitavelmente, exclusões. As fronteiras servem justamente para diferenciar os povos: por
uma bandeira, pela língua, pelos costumes, pelas leis e, em nome da defesa de tais fronteiras,
são feitas guerras, batalhas e motins. “O conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma
concepção binária de diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão
e depende da construção de um ‘Outro’ e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora”
(HALL, 2003, p. 32-33).
A decisão da família Lispector pelo exílio foi, portanto, consequência da Revolução
Russa. Seus desdobramentos afetaram diretamente a Ucrânia e, em específico, a população
judaica que lá vivia. Pois, em palavras de Elisa Lispector, “– Tudo quanto ocorre no mundo
inteiro – respondeu – tem um significado profundo para o judeu. Onde quer que o vendaval
irrompa, é primeiramente ao judeu que ele castiga” (LISPECTOR, 2005, p. 160).

3.3 NO EXILIO E RETRATOS ANTIGOS: MEMÓRIAS ESCRITAS

A concepção de memória e de história apresentada por Pierre Nora é de suma


importância para que se apresente uma boa leitura das obras de Elisa Lispector, tendo em vista
que a escritora usa a literatura como estratégia de escrita de suas lembranças pessoais e,
concomitantemente, apresenta um panorama político, histórico e social em que viviam os
judeus ucranianos no início do século XX.

Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe
uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido,
ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança, e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucesivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história
é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A
memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história,
uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda
a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais
ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas,
censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda
análise e discurso crítico. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer
dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que
ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A
43

história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o
universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no
objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das
coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo (NORA, 1984, p.
9).

O que Nora explica são justamente as especificidades da construção de uma memória e


da formação da história, pontuando as incompletudes de cada uma delas, as quais, mesmo
opostas, podem coexistir. O autor destaca que a memória é fluida, pois carregada por pessoas,
pautada na vida, enquanto a história é ciência, ato de remontar o passado com base em análises
documentais. Assim sendo, a leitura que se apresenta de No exílio tem por objetivo buscar
vestígios de Elisa Lispector e de sua família na obra, visando possíveis aproximações entre a
biografia da autora e passagens narradas no romance, com o objetivo de apresentar, aqui,
algumas possibilidades de interpretação da obra da escritora.
A escrita de memória é uma possibilidade de se ler e entender a obra de Elisa Lispector.
Ao construir uma narrativa possivelmente próxima à sua, a escritora transita entre a ficção e o
testemunho, montando um relato que pode ser sobre sua família ou mesmo sobre outras tantas
famílias judaicas que viveram episódios semelhantes. Entre a memória e a história, assim sendo,
pode-se situar No exílio. Para Jacy Seixas,

A oposição entre memória e história, no entanto, é construída sem que haja ruptura
efetiva com a tradição aristotélica que entende a memória (ou melhor, a reminiscência,
o ato de lembrar), sobretudo em sua função cognitiva, como conhecimento do passado
(SEIXAS, 2001, p. 39).

O que a autora propõe é que a construção da memória vai além da habilidade cognitiva
de lembrar, visto que a memória é, também, uma construção coletiva e histórica. Um dos
aspectos da memória é conhecer um passado. Assim, vale considerar que o que se sabe hoje
sobre a vida de Elisa Lispector – que advém das obras biográficas dedicadas à sua irmã mais
nova, Clarice Lispector – é o que permite, de certa forma, que se tenha uma ideia do que foi o
passado da família Lispector.
No exílio pode ser lido como um romance de memória, uma vez que há aproximações e
identificações possíveis entre as personagens do romance e os familiares de Elisa e Clarice
Lispector, descritos em sua biografia, e também entre o contexto vivido pela escritora e o
narrado no romance. Com relação aos usos da memória,

Nora retoma e apropria-se das ideias básicas de Halbwachs – a oposição que


estabelece entre memória individual e memória coletiva e, sobretudo, entre memória
coletiva e história. À memória coletiva, Halbwachs confere o atributo de atividade
natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe
possa ser útil para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história,
que constitui um processo interessado, político e, portanto, manipulador. A memória
44

coletiva, sendo sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de


narrativas; a história é uma atividade da escrita, organizando e unificando numa
totalidade sistematizada as diferenças e lacunas. Enfim, a história começa seu
percurso justamente no ponto onde se detém a memória coletiva (SEIXAS, 2001, p.
39).

Apoiando-se nas teorias de Pierre Nora e Maurice Halbwachs, Jacy Seixas pontua a
importância da memória coletiva na consolidação de uma memória individual e aponta a
diferença entre memória coletiva e história. Assim sendo, é válido salientar a relevância da
memória coletiva do povo judeu na construção dos relatos de memória de Elisa Lispector.
Ao escrever, em primeira pessoa, os Retratos antigos, a autora se debruça sobre aquilo
que, durante toda a vida, ouviu ser contado sobre os antepassados de sua família. Muitas das
personagens dos Retratos Elisa não chegou a conhecer, portanto, contou com histórias que lhe
foram contadas pelos pais para construir seu relato, com o intuito de não esquecimento. Mas o
exercício de rememorar não é tarefa simples. Ainda de acordo com Jacy Seixas,

É do interior deste caldeirão, carregado de fortes sentimentos e emoções que


memórias extremamente diversificadas irrompem e invadem a cena pública, buscam
reconhecimento, visibilidade e articulação, respondendo provavelmente a uma
necessidade que a racionalidade histórica é impotente para exprimir e atualizando no
presente vivências remotas (revisitadas, silenciadas, recalcadas ou esquecidas) que se
projetam em direção ao futuro (SEIXAS, 2001, p. 53).

Nos Retratos antigos, ao ler o álbum de fotografias e a narrativa que Elisa Lispector cria
sobre as personagens dos retratos, motivada, então, pelas imagens capturadas, o leitor pode
perceber as nuances de memória deixadas pela escritora em seus registros: de familiares com
quem não manteve nenhum contato até seus próprios pais, que aparecem apresentados com
muito respeito e afetividade, como, por exemplo, no capítulo em que a escritora se dedica a
apresentar o pai como um homem de respeito e caráter. (LISPECTOR, 2012, p. 113) A projeção
que Jacy Seixas cita em direção ao futuro aparece na dedicatória que Elisa Lispector escreve
para seus sobrinhos, para que preservem a memória da família e tenham atenção ao que ela
escreve. Quanto à relação entre memória individual e coletiva, Maurice Halbwachs indaga:

Resulta disso que a memória individual, enquanto se opõe à memória coletiva, é uma
condição necessária e suficiente do ato de lembrar e do reconhecimento das
lembranças? De modo algum. Porque, se essa primeira lembrança foi suprimida, se
não nos é mais possível encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais
parte do grupo em cuja memória ela se conservava. Para que nossa memória se auxilie
com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda
que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos
de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser
reconstruída sobre um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por
peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É
necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que
se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam
incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram
45

e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos


compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e
reconstruída (HALBWACHS, 1990, p. 34).

Halbwachs trata da oposição entre memória individual e memória coletiva, porém,


pensando nas obras de Elisa Lispector, o leitor pode enxergar, além da (re)construção de
memórias da escritora pautada em lembranças de cunho pessoal – tanto nos Retratos antigos
como em No exílio – uma narrativa de memória coletiva, visto que muitas famílias judaicas,
ucranianas e imigrantes passaram pelo mesmo penoso processo pelo qual passaram os
Lispector. O autor afirma que, ao se pensar a memória de um grupo, primeiramente são
considerados os acontecimentos que atingem o maior número de seus membros. Assim, as
memórias individuais, mesmo sendo de experiências que afetam o todo de um grupo, passam a
ser consideradas coadjuvantes.
Para o autor, as memórias coletivas de um grupo estão em primeiro plano, ou seja, no
caso de Elisa Lispector, o pertencimento a um grupo específico que teve a vivência de exílio,
todo o processo da viagem e a origem judaica aparecem para o seu leitor antes das próprias
lembranças pessoais da autora, tendo mais destaque e fazendo, assim, com que outros migrantes
judeus exilados se identifiquem com sua obra.
Se pensarmos No exílio como possível escrita de memória, o cotejo de dados biográficos
com os nomes das personagens apresenta uma leve mudança dos nomes da família Lispector
na Ucrânia – Pinkhouss, Mánia, Leia, Tania e Haia- no romance No exílio – Pinkhas, Márim,
Lizza, Ethel e Nina – e no Brasil – Pedro, Marieta, Elisa, Tânia e Clarice, respectivamente.
Sobre isso, Nádia Gotlib, organizadora do livro Retratos antigos, pontua:

Os nomes do pai, da mãe e das duas irmãs, Tania e Elisa, ou são exatamente iguais ou
muito semelhantes entre si. A alteração mínima ao mesmo tempo favorece a relação
de semelhança sem desmanchar a da diferença. O cotejo entre dados aí narrados e
registros documentais de pessoas da família permite constatar que a história que aí se
conta é a da família Lispector. Toques ficcionais de semelhança (bem urdidos)
permitem então o trânsito entre o campo dessa realidade familiar e o campo da ficção,
sem, naturalmente, afetar ou prejudicar o poder, em si, de sustentabilidade da própria
estrutura romanesca (GOTLIB, 2012, p. 65).

Por meio de um narrador em terceira pessoa, pode-se notar o desejo da autora de deixar
em sua literatura, em forma de romance, um registro através de sua perspectiva do que viveu.
Outro dado relevante para a leitura que se faz são os elementos extratextuais, como, por
exemplo, o prefácio do romance, que apresenta a autora Elisa Lispector - conhecida de maneiras
diferentes pelo público-leitor dos anos 1940 e de hoje em dia - e os dados biográficos que se
tem da escritora. Aqui podemos ver confirmada a concepção de Philipe Lejeune, um dos mais
consagrados estudiosos dedicados ao estudo da autobiografia:
46

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só
tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define
como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor
do discurso (LEJEUNE, 2008, p. 23).

Logo, uma leitura da obra da autora pela perspectiva de Lejeune pode apresentar Elisa
Lispector como uma pessoa que publica pensando em sua identidade: uma mulher, de origem
judaica, ucraniana, moradora do Brasil, no século XX.
O foco do narrador em terceira pessoa é Lizza, protagonista do romance que revela para
o leitor o ponto de vista e a voz de Elisa Lispector no texto de No exílio. As vivências da
personagem principal do romance são um guia para o leitor, que, assim, acompanha desde a
viagem de exílio da família, as questões político-sociais vividas pelos judeus exilados, até as
experiências da adolescência de Lizza na escola e seus dilemas pessoais como a doença da mãe
e os cuidados com a família. Portanto, é possível que o leitor do romance veja Elisa em Lizza,
mesmo não sendo a escritora personagem ou narradora da trama.
Há uma linha tênue na leitura do romance entre a autobiografia e a ficção. O viés adotado
para que essa leitura seja válida é o da teoria do espaço biográfico, definido por Leonor Arfuch
como espaço textual de fusão de romance, autobiografia e romance autobiográfico:

Qual o limiar que separa a autobiografia de ficção? “Sob a forma de autobiografia ou


confissão [dirá Starobinski], e apesar do desejo de sinceridade, o “conteúdo” da
narração pode escapar, se perder na ficção, sem que nada seja capaz de deter essa
transição de um plano para outro” (p. 67). Assim, mesmo quando o caráter atual da
autobiografia, ancorada na instância da enunciação, permitir a conjunção de história
e discurso, para tomar as célebres categorias de Benveniste (1966, p. 242) , fazendo
dela uma entidade “mista”, não poderá escapar de um paradoxo: não somente o relato
“retrospectivo” será indecidível em termos de sua verdade referencial, mas, além
disso, resultará de uma dupla divergência, “uma divergência temporal e uma
divergência de identidade” (Starobinski, [1970] 1974, p. 72; os itálicos são meus.)
(ARFUCH, 2010, p. 54).

Em No exílio, é possível que se note a dualidade que Arfuch chama de indagação do


mundo privado versus consciência histórica. Ao mesmo tempo que são narrados os dilemas
interiores da jovem Lizza, o plano de fundo é a invasão russa na Ucrânia, a guerra, a devastação
e o exílio da família. A narração da viagem, do quotidiano, das tradições judaicas, da doença
da mãe e dos costumes faz com que se construa para o leitor um panorama do contexto
específico em que se encontrava a autora/narradora. Portanto,

O espaço biográfico assim entendido – confluência de múltiplas formas, gêneros e


horizontes de expectativa – supõe um interessante campo de indagação. Permite a
consideração das especificidades respectivas sem perder de vista sua dimensão
relacional, sua interatividade temática e pragmática, seus usos nas diferentes esferas
da comunicação e da ação (ARFUCH, 2010, p. 59).
47

O romance memorialístico de Elisa Lispector traz a construção de personagens e de toda


uma trama a qual o leitor pode associar à vida da autora, o que possibilita que o leitor encontre
fragmentos de identidade de sua autora. Assim sendo, de acordo com Eurídice Figueiredo:

Apesar de ser difícil fazer a separação clara entre personagem/narradora/autora […]


deve ficar claro que mesmo a figura da escritora já é uma ficcionalização, porque não
há como escrever sem organizar, selecionar, dar ênfase, ocultar ou velar
(FIGUEIREDO, 2013, p. 10).

Para o leitor de No exílio, há a dificuldade a que se refere Eurídice Figueiredo em se


dissociar personagem, narradora e autora. A narradora em terceira pessoa narra a trajetória de
Lizza, a protagonista do romance, este, por sua vez, escrito por Elisa Lispector. Como já citado
anteriormente, a vida de cada um dos familiares da personagem tem significativas e frequentes
aproximações com os membros da família Lispector. Pai, mãe e três filhas, no romance, podem
representar justamente a estrutura familiar da escritora Elisa Lispector. No romance
autobiográfico clássico, existe a identidade nominal entre personagem, autor e narrador, que é
quase o que acontece em No exílio, visto que Lizza (personagem) e Elisa (autora) têm nomes
muito semelhantes foneticamente.
Na obra de Elisa Lispector, a escrita de memória pode ser entendida como um modo de
externar os fantasmas do passado e se livrar deles, num processo de autorreflexividade: a autora
reflete sobre si, fazendo uma (re)leitura daquilo que viveu/sentiu. Dubrovsky propõe que:
“Mesmo querendo dizer a verdade, se escreve falso. Se lê falso. Loucura. Uma vida real passada
se apresenta como uma vida fictícia futura. Contar sua vida é sempre o mundo às avessas”
(DUBROVSKY, 1989, p. 92 apud FIGUEIREDO, 2013, p. 11).
No extratexto, o leitor encontra elementos que o induzem a ler o romance como uma
escrita de memória. No caso de No exílio, as informações sobre a autora aparecem na orelha do
livro e em uma breve apresentação – de uma página – antes do primeiro capítulo. A
fragmentação do sujeito, questão pertinente às literaturas contemporâneas, faz-se presente no
romance de Elisa Lispector, no qual o leitor encontra a escritora em diversos momentos de
memória diferentes: ora narra-se o passado mais remoto, ora são tratados temas mais atuais.
Focado no presente, o sujeito/autor vai se projetar sobre o passado, criando, assim, uma
narrativa de memória individual e coletiva. Essa mescla temporal dá ao leitor a possibilidade
de ler, na personagem Lizza, a autora Elisa.
Uma ficcionalização da autora, que se torna personagem escrita por si, criando, nesse
caso, um contexto no qual Elisa Lispector está no centro do romance. A história contada se
oferece ao leitor como sendo verdadeira, ou, ao menos, plausível, verossímil.
48

No romance No exílio, a infância da protagonista Lizza é um dos momentos mais


relevantes na leitura. É ainda na infância que a família migra da Ucrânia ao Brasil, portanto, é
quando Lizza toma conhecimento de todo o contexto político de perseguições que envolvem
ela, sua família e seus correligionários judeus. Com relação a essa primeira fase da vida:

Essas ocasiões nas quais, em consequência de alguma comoção do meio social, a


criança vê subitamente se entreabrir o círculo estreito que a encerrava, essas
revelações, através de repentinas escapadas, de uma vida política, nacional, ao nível
da qual ela não alcança normalmente, são bastante raras (HALBWACHS, 1990, p.
64).

Literariamente, a personagem Lizza vive justamente na infância a convulsão política e


social pós Revolução Russa, a perseguição aos judeus e o pogrom que atinge sua família. Ainda
aos dez anos, a personagem já começa a criar a consciência de cuidado com a família, o que é
incomum para crianças de dez anos que não têm experiências semelhantes às da menina Lizza.
O ato de materializar na personagem Lizza possíveis vivências pessoais é um meio de Elisa
Lispector elaborar, em sua escrita, o sofrimento de uma criança judaica ucraniana no início do
século XX em condição de desterro. Figueiredo, em seu estudo, retoma as discussões proposta
por Denise Escarpit, para quem os relatos de infância representam

um texto escrito […] no qual um escritor adulto, através de diversos procedimentos


literários, de narração e de escrita, conta a história de uma criança – ele próprio ou um
outro- ou um recorte da vida de uma criança: trata-se de um relato biográfico real –
que pode então ser autobiográfico – ou fictício (ESCARPIT, 1993, p. 24 apud
FIGUEIREDO, 2013, p. 44).

O eu adulto que escreve está muito distante, não só temporalmente, mas também em
termos de identidade, da criança que ele um dia foi. No romance de Elisa Lispector, a menina
Lizza (re)cria possíveis lembranças da autora: a violência experienciada na Ucrânia, a longa
viagem em exílio ao Brasil, a doença da mãe, as dificuldades de adaptação à nova escola no
Brasil, dentre outras tristes, difíceis e complexas memórias da autora, sejam reais ou ficcionais,
pois as lembranças de infância são fragmentárias e imprecisas, mas condizem, em grande parte,
com as informações que se tem sobre a trajetória da família Lispector.
Entre a memória e a história, Elisa Lispector transita. Uma escritora certamente
preocupada em perpetuar não apenas suas vivências de exílio, mas também um triste capítulo
da história de um povo, o que vai ao encontro de reflexões teóricas tais como as desenvolvidas
por Nora, em especial o conceito de “dever de memória”:

A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade
pela revitalização de sua própria história. O dever de memória faz de cada um o
historiador de si mesmo. O imperativo da história ultrapassou muito, assim, o círculo
dos historiadores profissionais. Não são somente os antigos maginalizados da história
49

oficial que são obcecados pela necessidade de recuperar seu passado enterrado. Todos
os corpos constituídos, intelectuais ou não, sábios ou não, apesar das etnias e das
minorias sociais, sentem a necessidade de ir em busca de sua própria constituição, de
encontrar suas origens (NORA, 1984, p. 17).

Logo, a noção que se tem da relação entre memória – a que é viva – e história – a que é
pontual – é o que norteou as leituras das obras de Elisa Lispector apresentadas neste capítulo.
Ter em mente que a construção narrativa através do passado, da memória e da história são as
estratégias da escritora é a peça-chave para ler os Retratos Antigos e No exílio.

A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado.
Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se
perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número
dessas correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparência
(HALBWACHS, 1990, p. 67).

Portanto, os caminhos da memória, da história e da autobiografia estão presentes no


romance No exílio, de Elisa Lispector. A leitura que se faz caminha, principalmente, pelo viés
da escrita de memórias, pois a proposta, como foi anteriormente citado, é apresentar uma leitura
que considere as identificações entre a obra e a vida da autora, percebendo a memória como
livre do compromisso com o ‘real’ e, portanto, livre para (re)inventar, no contexto da literatura,
aquilo que foi vivido.
50

4 TESTEMUNHO E TRAUMA NA OBRA DE ELISA LISPECTOR

A literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos e até triunfais da vida


de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da
separação (SAID, 2001, p. 46).

4.1 RETRATOS ANTIGOS E NO EXÍLIO: TESTEMUNHOS DE UMA ESCRITORA

É destaque na escrita de Elisa Lispector seu desejo por narrar a viagem de sua família
rumo ao desterro. A escritora, em No exílio, constrói uma trama com personagens exiladas e
conta, à sua maneira, as vivências dessas personagens. O exílio figura como um trauma vivido
por tais personagens, por terem sido forçados a deixar sua terra natal devido às perseguições
impostas aos judeus na Ucrânia. O trabalho narrativo da escritora – tanto nos Retratos antigos
como em No exílio – pode ser lido como obra com teor de testemunho, o que permite que se
pense a questão das fronteiras e limites entre o literário, o fictício e o descritivo. Conforme
Márcio Seligmann-Silva:

[...] podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma atividade elementar, no


sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager (campo de
concentração) ou de outra situação radical de violência que implica esta necessidade,
ou seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar (SELIGMANN-SILVA,
2008, p. 66).

Nesse trecho, o pesquisador faz referência à experiência de judeus no campo de


concentração para exemplificar a necessidade que se tem de narrar um trauma. Para ele, a ânsia
de se querer narrar uma vivência dessas está ligada ao “desejo de renascer” (SELIGMANN-
SILVA, 2008, p. 66). Ainda para o autor, a narração de um trauma serve para “estabelecer uma
ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o sobrevivente do sítio da outridade”
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 66). Ou seja, uma das funções da narrativa de um trauma é
criar ligações entre a pessoa que sofreu o trauma e os demais.
Sobre esse debate, as contribuições de Jeanne-Marie Gagnebin são importantes. Para
ela,

O trauma é a ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos,


recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em
particular sob a forma de palavra, pelo sujeito. Ora, depois das duas Guerras Mundiais
e, sobretudo, depois da Shoah, a temática do trauma torna-se predominante na reflexão
sobre a memória. Ao que parece, as feridas dos sobreviventes continuam abertas, não
podem ser curadas nem por encantações nem por narrativas. A ferida não cicatriza e
o viajante, quando, por sorte, consegue voltar para algo como uma “pátria”, não
encontra palavras para narrar nem ouvintes dispostos a escutá-lo (GAGNEBIN, 2006,
p. 110).
51

No caso de No exílio, a construção da narrativa da perseguição aos judeus pós-Revolução Russa


na Ucrânia se faz sempre mesclando experiências pessoais das personagens e coletivas do povo
judeu. O romance inicia com a narração da fundação do Estado de Israel, em 1948, marco para
o povo judeu, e, a partir de então, a narrativa é construída através de um flashback e leva seu
leitor até a Ucrânia de 1921. Deste momento em diante, passa-se a acompanhar as vivências da
família da personagem, em um sentido bastante próximo ao discutido por Márcio Seligmann-
Silva em “Narrar o trauma – A questão dos testemunhos de catástrofes históricas”:

Nestas situações, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em massa de


determinadas parcelas da população, a memória do trauma é sempre uma busca de
compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela
sociedade. Aqui a já em si extremamente complexa tarefa de narrar o trauma adquire
mais uma série de determinantes que não podem ser desprezados mesmo quando nos
interessamos em primeiro plano pelas vítimas individuais (SELIGMANN-SILVA,
2008, p. 67).

Dessa forma, nota-se em No exílio, como sugere Seligmann-Silva, um compromisso da


escritora com o registro de acontecimentos históricos que marcaram o povo judeu, como os
pogroms na Ucrânia antes e depois de 1917 e o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945.
Em Retratos antigos, Elisa Lispector constrói uma narrativa através do álbum da família
ucraniana. Ao “ver” os retratos, a narradora traz para o leitor lembranças de cada personagem
que aparece nas fotografias. Lembranças que muitas vezes não são suas, mas que a história oral
da família lhe permite construir, jogo entre passado e presente. O passado capturado em
imagens sendo ressignificados.

Na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente (Mais um paralelo, aliás,


com a cena psicanalítica e sabemos que Freud buscou várias metáforas ao longo de
sua vida, como a da câmara fotográfica, um campo geológico e o bloco mágico, para
exprimir este elemento paradoxal da temporalidade psíquica concentrada em um
mesmo topos.). Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória
de um passado que não passa. O trauma mostra-se, portanto, como o fato psicanalítico
prototípico no que concerne à sua estrutura temporal (SELIGMANN-SILVA, 2008,
p. 69).

A “memória de um passado que não passa” de Elisa Lispector é a experiência do exílio,


das inúmeras perdas que experimentou. A escritora recorre às suas memórias do passado e cria,
a partir de então, seu registro de testemunho, revisitando imagens e apresentando os
antepassados de sua família, a qual teve, para sua sobrevivência, de se espalhar pelo mundo. A
narrativa construída através das fotografias pode também ser lida como uma narrativa de
trauma, visto que elas apresentam para o leitor uma família judaica que, por conta dos pogroms
e das migrações que se seguiram, foi separada e tem neste álbum de fotografias uma de suas
pouquíssimas lembranças. São pessoas que apenas puderam permanecer juntas no espaço do
52

álbum, imagens capturadas de um tempo inalcançável, e que, de todo modo, são figuras que já
não existem mais.

Figura 4 – Fotografias de Pinkhouss Lispector e Mánia Krimgold.

Fonte: LISPECTOR, 2012, p. 26-27.

Na imagem, a página do álbum com uma fotografia de Pinkhous Lispector e outra de


Márian (Krimgold) Lispector, pais de Elisa, Tania e Clarice Lispector, que se casaram em 7 de
setembro de 1910 (LISPECTOR, 2012, p. 134). Ao longo da escrita de Retratos antigos, Elisa
Lispector narra os costumes judaicos vivenciados em sua família. Sobre o retrato de Pinkhous,
a escritora destaca a tristeza e a seriedade que enxerga em seu pai.

O pai. Chamava-se Pinkas.


Com a seriedade e o respeito com que sempre olhou nos olhos de seu interlocutor, ele
fita a lente da máquina fotográfica.
Rosto magro. Semblante triste. Foi sempre triste o semblante de meu pai, mas de uma
gravidade que se impunha (LISPECTOR, 2012, p. 113).

A vivência de um trauma deixa marcas indeléveis nas pessoas. Márcio Seligmann-Silva


propõe que a narrativa de um trauma tem como um de seus objetivos “libertar” o narrador de
uma lembrança traumática. Assim,

Ao invés da imagem calcada e decalcada, chata, advinda do choque traumático, a cena


simbolizada adquire tridimensionalidade. A linearidade da narrativa, suas repetições,
a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta nova dimensão aos
fatos antes enterrados. Conquistar esta nova dimensão equivale a conseguir sair da
posição do sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro
53

que nunca a simbolização é integral e nunca esta introjeção é completa. Falando na


língua da melancolia, podemos pensar que algo da cena traumática sempre permanece
incorporado, como um corpo estranho, dentro do sobrevivente (SELIGMANN-
SILVA, 2008, p. 69).

Com base na terminologia utilizada por Seligmann-Silva, pode-se pensar Elisa Lispector
em dois momentos: a menina que sobrevive ao pogrom, que chega ao Brasil aos dez anos de
idade. E que, após esse momento, volta à vida e faz da literatura seu objeto de trabalho e
construção simbólica do trauma. Em No exílio, ficção e realidade se unem para contar a história
de uma família judaico-ucraniana em desterro. Fatos históricos vivenciados pela família
Lispector são contados em forma de romance de memória. Já nos Retratos antigos, a mesma
escritora narra em primeira pessoa histórias de sua família. Elisa Lispector assume para seu
leitor, como já mencionado anteriormente, que não conheceu de fato todas as personagens das
fotografias, trazendo suas lembranças e registra-as lançando mão de marcas de oralidade,
potencializando por meio desse recurso, as histórias que ouvia seus pais e familiares contavam.
Testemunho que ganha ares literários. “Sem ser ficção, beira as margens da ficção” (GOTLIB,
2012, p. 60).

Antes é por conta da imaginação que muitas acusações são feitas contra o testemunho.
Ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu evidente compromisso com a
imaginação), a própria narrativa testemunhal, que se quer “primeira”, atestação, fonte
original da realidade, mesmo esta narrativa é descartada por muitos historiadores –
como o próprio Raul Hilberg (1996) – como sendo fonte não fidedigna para o
historiador. Neste ponto vislumbramos uma querela que acompanha a historiografia
desde seus primórdios, em sua luta contra a escrita dita imaginativa. Mas ao invés de
negarmos ao testemunho a possibilidade de ver na imaginação e em seu trabalho de
síntese de imagens um potente aliado, devemos, com Derrida (1998), ver nesta
aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação a possibilidade mesma de
se repensar tanto a literatura, como o testemunho e o registro da escrita
autodenominado de sério e representacionista. Ocorre uma revisão da noção de
literatura justamente porque do ponto de vista do testemunho ela passa a ser vista
como indissociável da vida, a saber, como tendo um compromisso com o real
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 71).

Ao aproximar o trabalho imaginativo da literatura ao caráter de verdade histórica do


testemunho, Seligmann-Silva propõe que tanto a literatura como os escritos de representação
do real podem ser lidos como testemunhos. Em Retratos antigos, Elisa Lispector assume o
papel da narradora de um texto “representacionista”, como cita Seligmann-Silva, por mais que
sua escrita seja pautada na memória e essa, por sua vez, apresente inevitavelmente lacunas. Já
em No exílio, a escritora usa dos recursos da ficção para, de certa forma, escrever seu
testemunho. Ao narrar a história da família de origem judaica ucraniana, a escritora esbarra em
pessoas e situações vividas por sua própria família, e que podem ser acessadas também por
meio das biografias produzidas sobre sua irmã Clarice Lispector (GOTLIB, 2009a, 2009b). A
54

biografia pode ser lida, logo, como uma possibilidade de memória. Assim sendo, é possível
encontrar traços de testemunho na narração de viagem da família judaico-ucraniana que Elisa
Lispector traz para a ficção.

A caravana investia na noite profunda e imensa. Não havia o luar e as trevas pareciam
ter a densidade do breu. O silêncio, pesado, impregnado de expectativa e de palavras
reprimidas. Não se ouvia, sequer, o coaxar de rã nem espanto de pássaro
(LISPECTOR, 2005, p. 9).

Para Seligmann-Silva, o testemunho é uma modalidade da memória. por esse viés, as


escritas de memória de Elisa Lispector podem também ser consideradas uma forma de
testemunho. Escritas por quem de fato viveu o exílio, suas memórias, mesmo em forma de
ficção, fazem com que o leitor perceba aproximações entre a biografia da autora e sua ficção.
Para as vítimas de um genocídio, toda catástrofe é única. A singularidade de cada
genocídio na história deve ser respeitada. Não se deve estabelecer comparações entre tais
tragédias. As comparações entre catástrofes causam, para o autor, duas problemáticas: a
primeira é a resistência da pessoa traumatizada à simbolização do trauma e, em segundo lugar,
“o discurso dos algozes que também visa estender um tabu sobre o discurso que recorde as
atrocidades cometidas.” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 73).
O discurso negacionista sobre o genocídio se trata de apagamento da história e da
supressão do direito de narrar o trauma por parte de quem o viveu, visto que o intuito, ao
eliminar o grupo inimigo, é que não existam narrativas do genocídio. No caso da Segunda
Guerra Mundial, o extermínio do povo judeu aconteceu, dentre outros motivos, para que se
apagassem os crimes dos nazistas. Coube, então, aos sobreviventes criarem suas narrativas de
testemunho. Logo,

Sua intenção era clara: apenas o lado heroico da guerra seria lembrado, a impunidade
estaria garantida. A negação antecedeu o próprio ato, ou seja, a tentativa de extermínio
dos judeus europeus. A memória da barbárie tem, portanto, também este momento
iluminista: preservar contra o negacionismo, como que em uma admoestação, as
imagens de sangue do passado (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75).

Assim sendo, as narrativas de trauma pós-segunda guerra podem ser lidas como uma
possibilidade de libertação para quem sobreviveu ao horror nazista. A busca por expressão do
trauma demonstra lacunas e silêncios. Segundo Seligmann-Silva,

É na literatura e nas artes onde esta voz poderia ter melhor acolhida, mas seria utópico
pensar que a arte e a literatura poderiam, por exemplo, servir de dispositivo
testemunhal para populações como as sobreviventes de genocídios ou de ditaduras
violentas. Mas isto não implica, tampouco, que nós não devamos nos abrir para os
hieróglifos de memória que os artistas nos têm apresentado. Podemos aprender muito
com eles (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 78).
55

No caso de Elisa Lispector, a literatura é justamente o ambiente em que expressa suas


memórias de pessoa exilada. O trauma do pogrom é o momento inicial da memória narrada pela
autora.

Portas e janelas forçadas, imprecações e insultos. Casa adentro fez-se silêncio, por um
instante cheio de temerosa expectativa. Não sabiam se deviam pedir socorro, sair à
rua, ou esconder-se por trás dos móveis. Marim não pensou muito. Lançou-se à sorte.
Pinkhas estava em viagem, retido pelos acontecimentos tumultuados. Era, pois, a ela
que cabia agir para salvar as filhas, e as mulheres e crianças que se haviam refugiado
em sua casa (LISPECTOR, 2005, p. 34).

Nesse capítulo, o leitor encontra situações muito próximas às que a escritora vivenciou,
como o pogrom, que, no romance, aparece como momento-chave em que as personagens
resolvem migrar para o Brasil. Outra questão que chama a atenção é a configuração familiar de
pai, mãe e filhas, uma coincidência entre ficção e biografia. Como no romance, a família
Lispector era composta por Pedro, Marieta e as três filhas: Elisa, Tania e Clarice.
O exílio em si é um trauma maior que permeia toda a trama de No exílio. Já nos Retratos,
a escritora utiliza o álbum de fotografias para contar a história de seus antepassados com o
objetivo de registro de memória e para dar maior amplitude às suas próprias memórias
familiares, incluindo sua experiência numa experiência coletiva mais ampla, mais larga, mais
antiga. Não por acaso, Retratos antigos figura como publicação póstuma.
Nos estudos literários, o conceito de testemunho tem sido repensado, principalmente no
que diz respeito à questão das fronteiras entre ficção e realidade. Seligmann-Silva destaca,
ainda, o sentido jurídico de testemunho.

Acredito que os caminhos da memória e do esquecimento do mal sofrido passam


também pela construção da história e pelos julgamentos propriamente jurídicos. O
essencial, no entanto, é ter claro que não existe a possibilidade de se separar os dois
sentidos de testemunho, assim como não se pode separar historiografia da memória.
Devemos aceitar o testemunho com o seu sentido profundamente aporético de
exemplaridade possível e impossível, de singularidade que nega o universal da
linguagem e nos remete “diante da lei”, “Vor dem Gesetz”, para lembrarmos Kafka,
mas ao mesmo tempo exige e cobra essa mesma lei (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.
81).

Desta forma, memória e esquecimento do trauma caminham lado a lado. A construção


social e histórica dos males sofridos influencia diretamente em como esses momentos serão
narrados. Até mesmo a linguagem jurídica do testemunho está calcada na memória e traz
consigo a marca de uma passagem constante entre o real e o simbólico, entre o passado e o
presente. Portanto, a literatura é o meio em que se busca o encontro entre a ficção e o relato do
“real”.
56

Os estudos literários sobre a presença do testemunho na literatura ganharam força na


segunda metade do século XX, pois eventos históricos como as duas guerras mundiais e
ditaduras militares instauradas na América Latina causaram censura, mortes, desaparecimentos,
prisões, tortura e desencadearam os mais diversos traumas à sociedade. Logo, sendo a literatura
um meio de expressão, escritores se utilizaram dela como forma de registrarem seus
testemunhos sobre tais momentos. Portanto, a partir do século XX, a relação entre realidade e
ficção passou a ser discutida em maior profundidade. Segundo Seligmann-Silva,

A questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada desde os anos 1970. Para
evitar confusões, devemos deixar claro dois pontos centrais: a) ao invés de se falar em
“literatura de testemunho”, que não é um gênero, percebemos agora uma face da
literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e que faz com que toda a
história da literatura — após duzentos anos de autorreferência — seja revista a partir
do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. Nos estudos
de testemunho deve-se buscar caracterizar o “teor testemunhal” que marca toda obra
literária, mas que aprendemos a detectar a partir da concentração desse teor na
literatura e escritura do século XX. Esse teor indica diversas modalidades de relação
metonímica entre o “real” e a escritura; b) em segundo lugar, esse “real” não deve ser
confundido com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance
realista e naturalista: o “real” que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave
freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 85).

Em sua reflexão, Márcio Seligmann-Silva recupera as discussões elaboradas por


Theodor Adorno em “Crítica Cultural e Sociedade” (1949), texto escrito em um momento
historicamente ainda muito próximo do fim da segunda guerra mundial, e pondera que:
“escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento
de porque hoje se tornou impossível escrever poemas” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 86).
Ou seja, nenhum poema, nenhuma palavra, conseguiria trazer a dimensão do terror acontecido
em Auschwitz. Em contraponto à ideia de Adorno, acredito na necessidade de se narrar um
trauma. Por mais que não seja tarefa fácil colocar em palavras o horror, a literatura pode ser um
meio de se externalizar o vivido e pode, de certa forma, ter a função de registro histórico de
momentos tão trágicos para a humanidade como o holocausto.
A construção de um testemunho também pode ter a função de unir um grupo de pessoas.
No caso da Shoha os próprios judeus se unem em torno dessa memória coletiva, das vivências
de perseguições, de mortes e de seus sobreviventes (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 87).
A memória coletiva de um povo é, muitas vezes, construída a partir de testemunhos.
Para o povo judeu, principalmente após a segunda guerra mundial, essa construção de memória
coletiva, principalmente através da literatura e das demais artes, aconteceu de maneira mais
intensa.
57

O testemunho funciona como o guardião da memória. O risco da ênfase na memória


coletiva (em oposição a outras comunidades de “memória coletiva”) é sucumbir no
fundamentalismo da memória. A ética da representação, nesse caso do
fundamentalismo, pode levar a uma recaída na lógica do testemunho como uma guerra
entre “provas e evidências” que não deixa mais espaço para o diálogo e para a
transformação da tradição. A riqueza e o segredo da força da tradição do judaísmo
advêm justamente do fato de se ter compreendido que a memória só existe no duplo
trilho do passado e do presente (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 88).

Para o autor, “Literatura e testemunho só existem no espaço entre as palavras e as


‘coisas’. Mas existe uma marca específica de como essa tensão se dá no testemunho”
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 91). Seligmann-Silva ainda destaca o debate estético que
existe atualmente em torno do testemunho na literatura, visto que tal debate traz reflexões sobre
os limites dos registros escritos, aproximando-se de fatos sem o que o autor chama de a “ilusão
do positivismo” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 92).
A escrita da história e a memória do historiador são objetos de reflexão de Jeanne-Marie
Gagnebin. A autora destaca os limites ficção e história (GAGNEBIN, 2006, p. 41). Para ela,

O historiador que toma consciência do caráter literário, até mesmo retórico, narrativo
de sua empresa, não corre o risco de apagar definitivamente a estreita fronteira que
separa a história das histórias, o discurso científico da ficção, ou ainda a verdade da
mentira? E aquele que insiste sobre o caráter necessariamente retrospectivo e
subjetivo da memória em relação ao objeto de lembrança, ele também não corre o
risco de cair num relativismo apático, já que todas as versões se equivalem se não há
mais ancoragem possível em uma certeza objetiva, independente dos diferentes rastros
que os fatos deixam nas memórias subjetivas e da diversidade de interpretações
sempre possíveis a partir dos documentos existentes? (GAGNEBIN, 2006, p. 41-42).

Assim sendo, a reflexão da filósofa é em torno da linha tênue entre ficção e realidade.
Elisa Lispector faz as vezes de historiadora do que se chama de História Oral em Retratos
antigos, seguindo o que Walter Benjamin chama de “Tese sobre o conceito de história”,
propondo uma visão da história através da perspectiva dos vencidos. A perspectiva
historiográfica de Benjamin sugere que: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de
exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 1940, p.3). Portanto, segundo o autor,
deve-se considerar as representações coletivas e de estruturas sociais levando em conta a
perspectiva dos oprimidos. Por isso, é possível colocar a perspectiva de Elisa Lispector como
próxima a esta metodologia da História. Ao narrar as histórias de seus familiares, recorre aos
retratos do álbum e à sua própria memória.

Paralelamente a essa louvável sensibilidade, ressalte-se a dicção livre e dócil, que


deixa a memória fluir, construindo um texto sem maiores exigências de ordem estética
nem grandes compromissos de ordem documental. Daí o caráter de esboço, de texto
não acabado, flagrado em momento mesmo de processo de sua elaboração, como se
ainda houvesse coisas a dizer (aí não ditas), como se a escritora se encontrasse
58

disponível para novos investimentos de escrita que, no entanto, acabaram não


acontecendo. (GOTLIB, 2012, p. 58)

A verdade histórica, segundo Gagnebin, não depende de uma verificação dos fatos, algo
apenas possível para ciências experimentais segundo a autora (GAGNEBIN, 2006, p. 42).
Logo, o conceito de verdade não se atém a qualquer verificação factual, sendo a verdade uma
ideia abstrata. As tensões da memória se fazem presentes na construção de uma narrativa da
verdade.

Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão frequentemente a imagem — o conceito
— de rastro? Porque a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência,
presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença
do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza
da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro
(GAGNEBIN, 2006, p. 44).

A ideia de rastro é a que sintetiza as lacunas entre a presença e a ausência no que diz
respeito à memória. É impossível que se construa uma narrativa de memória sem essas lacunas.
A escrita da memória familiar de Elisa Lispector é feita de rastros. O álbum de fotografias é seu
objeto de leitura dessa memória e, com ele, a escritora trava sua luta contra o esquecimento,
tanto da história de sua família como do que outras famílias também judaicas viveram no
mesmo contexto.

O pesadelo comum que assombra as noites dos prisioneiros no campo — retornar,


enfim, à sua própria casa, sentar-se com os seus, começar a contar o horror já passado
e ainda vivo e notar, então, com desespero, que os entes queridos se levantam e se vão
porque eles não querem nem escutar e nem crer nessa narrativa —, esse pesadelo
torna-se cruelmente real logo após a saída dos campos e quarenta anos mais tarde
(GAGNEBIN, 2006, p. 46).

A autora traz, além do trauma dos campos de concentração em si, outro obstáculo
enfrentado por sobreviventes: a dificuldade em encontrar escuta em outras pessoas para contar
o horror vivido. Talvez por uma certa defesa, familiares e amigos de sobreviventes criam essa
resistência a ouvir o outro. Gagnebin pontua que os sobreviventes do horror nazista, mesmo
que quisessem, jamais esqueceriam, visto que a experiência do trauma carrega consigo essa
impossibilidade do esquecimento. Assim sendo, o “primeiro esforço” (GAGNEBIN, 2006, p.
99) do sobrevivente é tentar contar o que é incontável, no que Gagnebin chama de uma
“tentativa de elaboração simbólica do trauma que lhes permitisse continuar a viver e,
simultaneamente, numa atitude de testemunha de algo que não podia nem devia ser apagado da
memória e da consciência da humanidade” (GAGNEBIN, 2006, p. 99).
Para a autora, a testemunha é também quem está em um lugar de escuta na narração
“insuportável” de quem narra e que aceita que suas palavras levem adiante a história deste outro,
59

“porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível,
somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas
a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 57). No caso
dos Retratos antigos, assim sendo, é possível que o leitor reconheça Nicole, a sobrinha-neta
para quem Elisa Lispector escreve suas memórias, como testemunha das narrativas de sua tia.
Para Gagnebin, a luta contra o esquecimento é política, visto que é também uma luta
contra a repetição do terror nazista. Assim, num sentido amplo, as palavras do historiador que
narra os horrores do campo de concentração “ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar
um túmulo para aqueles que dele foram privados” (GAGNEBIN, 2006, p. 47). Pensando por
essa perspectiva, podemos ler a narrativa de Elisa Lispector sobre os Retratos como uma
lembrança dos mortos e do passado que melhoram a vida no presente, pois “a preocupação com
a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser
verdadeiro.” (GAGNEBIN, 2006, p. 47). Sobre o trabalho do narrador em momentos de
catástrofe, a autora propõe:

“O narrador” formula uma outra exigência; constata igualmente o fim da narração


tradicional, mas também esboça como que a ideia de uma outra narração, uma
narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em
migalhas. Deve-se ressaltar que tal proposição nasce de uma injunção ética e política,
já assinalada pela citação de Heródoto: não deixar o passado cair no esquecimento
(GAGNEBIN, 2006, p. 53).

Assim sendo, para Gagnebin, o narrador é também um “sucateiro” (GAGNEBIN, 2006,


p. 54), pois se atém mais ao que é deixado de lado, que parece não ter muita importância.

[...] rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a


estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não
se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao
passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. (GAGNEBIN,
2006, p. 55).
60

Figura 5 – Fotografia de Mosche Krimgold

Fonte: LISPECTOR, 2012, p. 43.

No retrato, Mosche Krimgold, que envia a fotografia para sua irmã Márian com o recado
no verso: “Uma lembrança para minha amada irmã Marieta, de seu irmão M. Krimgold, pelos
meus 46 anos de vida. 1914.”11 O retrato do tio materno de Elisa Lispector apresenta para o

11
O recado aparece traduzido para o português em Retratos antigos. Originalmente, foi escrito em russo.
(LISPECTOR, 2012, p. 136)
61

leitor o hábito que se tinha de correspondência através das fotografias, muito comum no início
do século XX.
Nádia Gotlib, organizadora do livro publicado postumamente, chama a atenção para o
conceito de rememoração, utilizado também nos Retratos antigos de Elisa Lispector. O ato de
compartilhar o álbum de fotografias com a sobrinha-neta Nicole é o incentivo para Elisa
Lispector escrever suas memórias.

Uma espécie de teatralização desse espetáculo do “ver” e “rememorar”, no início,


encontra-se no simples olhar curioso da sobrinha-neta, postada ali ao lado da tia. Mas
o próprio olhar da tia volta-se para si mesma já como sendo outra, ela também criança,
a criança Elisa, que também renasce das páginas do álbum, como a menina de fita no
cabelo. Infelizmente essa foto – a de Elisa menina com fita no cabelo – não mais se
encontra no álbum. É uma das ausências lamentáveis, entre outras (GOTLIB, 2012,
p. 60-61).

Portanto, a partir das fotografias, Elisa Lispector vê a si e às pessoas que aparecem nos
retratos, nessas imagens capturadas, como personagens de sua narrativa, os quais fazem parte
de todo um contexto de acontecimentos, de rituais religiosos e de costumes narrados ao longo
do texto. Logo, a memória familiar do álbum de retratos está ligada pelo fio das lembranças às
experiências narradas em No exílio, pois, em ambos os livros, Elisa Lispector apresenta ao leitor
sua perspectiva sobre a história familiar.

4.2 O TRAUMA DO EXÍLIO EM FORMA DE ROMANCE

No exílio figura como romance de memória de Elisa Lispector, no qual, através da


ficção, a escritora mescla fatos históricos com algumas vivências pessoais. Como citado no
segundo capítulo deste trabalho, a escritora cria recursos romanescos para instigar o leitor,
como, por exemplo, os nomes das personagens muito semelhantes aos de seus familiares.

O romance, gênero impuro, que desde seu surgimento parasitou os outros gêneros,
pode se utilizar de todos os procedimentos, como afirma Marthe Robert (1972, 15): a
descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; ele
pode se apresentar como fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopeia; ele
não sofre nenhuma proibição e nenhuma prescrição; em geral, em prosa, ele pode,
eventualmente, recorrer também à poesia. Quanto ao mundo real, o romance pode
pintá-lo de maneira fiel, como pode deformá-lo, falseando as proporções e as cores
(FIGUEIREDO, 2013, p. 13).

Assim, conforme Eurídice Figueiredo, o gênero romance tem, por característica, a


hibridez, e desta forma acontece com No exílio, romance que ficcionaliza o real e traz traços de
realidade histórica para a ficção.
62

Por ser um romance de memória, nele, a escritora recorre às suas lembranças para narrar
o exílio vivido por sua família. Vale ressaltar que Elisa Lispector viveu a experiência do exílio
aos dez anos de idade. Portanto, as lembranças de infância da escritora podem ter sido material
para sua escrita.

Freud, ao estudar as lembranças infantis, demonstrou que muitas delas são falseadas
porque se misturam com outras, passadas em épocas diferentes; algumas cenas são
retidas de um modo incompleto e o que é omitido pode ser o mais importante. Para
Freud, há duas forças oponentes: de um lado, o desejo de preservar, de outro, a
resistência. Nenhuma das forças predomina porque se efetua uma conciliação entre as
duas, assim, se preserva, mas não a verdadeira imagem, ocorrendo deslocamentos.
Daí surge o conceito de lembrança encobridora: “aquela que deve seu valor enquanto
lembrança não a seu próprio conteúdo, mas às relações existentes entre aquele
conteúdo e algum outro, que foi suprimido” (FREUD, 1976, p. 351 apud
FIGUEIREDO, 2013, p. 45).

Logo, seguindo o apontamento de Freud e retomando por Figueiredo, pode-se analisar


a memória de infância de Elisa Lispector como presente em sua obra. Eurídice Figueiredo
pontua sobre o conceito de lembrança encobridora de Freud, que trata da tensão entre lembrar
e esquecer; lembrar e resistir à memória. Dessa forma, pode-se pensar as memórias infantis de
Elisa Lispector presentes em No exílio como lembranças encobridoras, já que há, na narração
da memória infantil, junção de diversas situações e momentos que se confundem.
Nos Retratos, a escritora conta ao seu leitor que não conheceu muitas das personagens
das fotografias, ou seja, algumas dessas lembranças da escritora são memórias construídas a
partir de narrativas orais, do que ouviu na infância sobre tais pessoas, o que pode falsear as
memórias apresentadas para o leitor. Já em No exílio, as lembranças da escritora aparecem
deslocadas para a personagem Lizza, menina que, aos dez anos de idade, tal qual Elisa
Lispector, vive a experiência do exílio.
Na literatura brasileira do século XX, as escritas de memória tiveram seu espaço. O
escritor memorialista par excellence é Pedro Nava (FIGUEIREDO, 2013, p. 49)

[...] que começou a escrever tardiamente e se dedicou à escrita de suas memórias,


munido de suas anotações, feitas ao longo dos anos em que exerceu a medicina. [...]
Ele transita entre o presente da enunciação, o passado vivido por ele e o passado de
pessoas que ele nem conheceu, construindo suas histórias com a ajuda de lembranças
ouvidas, lembranças inventadas e alguns documentos. Presente e passado se dão as
mãos, como na passagem: “Assim como hoje se desce de todo o Rio para admirar o
Aterro e o novo Leme, naquele tempo migrava-se dos bairros norte e subúrbios para
ver a Avenida Central em construção” (Nava: 2002, 363) (FIGUEIREDO, 2013, p.
49).

Assim como Pedro Nava, Elisa Lispector situa seus escritos entre o presente da
enunciação e suas lembranças do passado, de um passado que viveu e do que ouviu ser contado
por seus pais e familiares. A ideia de romance de memória pode ser aplicada à leitura de No
63

exílio, visto que o romance traz nuances da memória de sua família ao criar sua ficção. Essas
nuances são identificadas pelo leitor em alguns detalhes, como as datas citadas, os nomes das
personagens, que muito se assemelham com os nomes dos familiares da escritora 12, situações
similares às que viveu a família migrante, de acordo com as biografias de Clarice Lispector.
Na construção de um romance de memórias, presente e passado caminham lado a lado.
Em No exílio, Elisa Lispector possivelmente usa, no presente momento em que escreve, o
passado que viveu, as lembranças de outras pessoas que foram contadas a ela e memórias
também inventadas como material de sua ficção.
Outro conceito que pode ser aproximado da obra de Elisa Lispector é o de literatura de
testemunho. O objetivo, aqui, não é definir taxativamente qual das duas leituras de No exílio –
como romance de memória ou como literatura de testemunho – se aproxima melhor do
romance, mas sim pontuar aproximações teóricas com a literatura da escritora.
A literatura de testemunho é apresentada por Jaime Ginzburg como uma forma de
expressão que não fica alheia às questões da sociedade. Assim sendo, pode-se pensar em uma
leitura de No exílio como um romance que visa, além da ficção, ser uma espécie de testemunho
de Elisa Lispector. Para Ginzburg, a escrita de testemunho transgride os moldes canônicos da
literatura, pois vai além da “arte pela arte”, o que retoma a ideia de Theodor Adorno da
impossibilidade de se escrever um poema sobre Auschvitz.

A literatura de testemunho não se filia à concepção de arte pela arte. Ela vai reivindicar
uma conexão com o mundo extraliterário (SELIGMANN-SILVA: 2003, 379).
Teoricamente, nesse sentido, é importante examinar o caráter específico da
configuração discursiva do testemunho. Estabelecendo dificuldades para abordagens
e procedimentos convencionais da Teoria Literária, não estamos em um campo de
entendimento da arte como representação, no sentido atribuído à mimese aristotélica
(GINZBURG, 2006, p. 2).

Conforme Ginzburg, o escritor que opta por escrever um testemunho lidará com essa
“ameaça” da realidade. Elisa Lispector traçou um caminho de ficção que cruza acontecimentos
reais. Ou, acontecimentos reais que cruzam a ficção. Daí a dificuldade de a escritora narrar os
fatos de maneira absolutamente fiel à realidade e a dificuldade de seu leitor em discernir ficção
e realidade. O trauma e o compartilhamento público das dores individuais e coletivas estão
presentes no relato que o leitor encontra no romance da escritora, o que aproxima sua literatura
do conceito de testemunho.
Como sobrevivente de um pogrom, a escritora carrega consigo, por escolha própria ou
por necessidade, por dever de memória, a responsabilidade de ser a narradora da história da

12
Conforme citado na seção “2.3 A invisibilidade da escritora perante o cânone”.
64

família. O que Ginzburg chama de elaboração das vivências é justamente algo que Elisa
Lispector faz em sua literatura.

A escrita do sobrevivente se vincula à memória daqueles que não sobreviveram. Nesse


sentido, escrever é também uma forma de dar túmulo aos mortos, para que não sejam
esquecidos (SELIGMANN-SILVA: 2003, 55). Para Jorge Semprun, é necessário para
os sobreviventes de campos de concentração o registro ficcional, como condição de
elaboração das vivências (idem, 384) (GINZBURG, 2006, p. 3).

Via literatura, a escritora constrói um panorama coletivo das vivências dos judeus, além
de narrar vivências pessoais. O desejo pelo não esquecimento das histórias dessas pessoas fica
evidente nos textos de Elisa Lispector, que afirma:

Para quem pertence a um povo que raramente chega a enterrar num mesmo solo os
seus mortos de duas ou três gerações, em consequência dos surtos de perseguições e
das migrações que fatalmente se impõem, mais fácil do que situar raízes dos
antepassados ainda que próximos, é invocar o testemunho dos Reis e Profetas
Bíblicos, seus ancestrais (LISPECTOR, 2012, p. 83).

A partir do trecho citado, é possível, para o leitor, entender ainda mais o desejo de Elisa
Lispector pela escrita de memórias da família. Com a impossibilidade de “fincar raízes” em
uma só pátria, a escritora reconhece a dificuldade que as próximas gerações terão de conhecer
os antepassados e se encarrega da responsabilidade de contar, em forma de suas escritas, a
história da família Lispector. Assim, a ideia de Ginzburg sobre “dar túmulo aos mortos”
também é presente no testemunho feito por Elisa Lispector. O pesquisador se refere
pontualmente aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, mas, em outro
contexto, pode-se entender que a literatura de Elisa Lispector tem, para além de fins estéticos,
o compromisso com a história dos que não sobreviveram ao horror dos pogroms.
Ginzburg pontua, ainda, que

O estudo do testemunho exige uma concepção da linguagem como campo associado


ao trauma. A escrita não é aqui lugar dedicado ao ócio ou ao comportamento lúdico,
mas ao contato com o sofrimento e seus fundamentos, por mais que sejam, muitas
vezes obscuros e repugnantes. O século XX se estabeleceu como tempo propício para
testemunho, em virtude da enorme presença das guerras e dos genocídios. Para o
sujeito da enunciação do testemunho, entre o impacto da catástrofe e os recursos
expressivos, pode haver um abismo intransponível, de modo que toda formulação
pode ser imprecisa ou insuficiente (GINZBURG, 2006, p. 3).

O sofrimento aparece como elemento narrativo nos testemunhos de trauma. Ao longo


do século XX, como destaca o autor, as duas Guerras Mundiais e os genocídios, como o
ocorrido com o povo judeu, propiciaram a difusão do testemunho na literatura, pois era preciso
que os sobreviventes contassem, através das artes, o horror vivido.
65

Em contraponto à necessidade da narração, encontra-se a dificuldade em contar o que


foi vivido, pois, por mais que se tente, palavras não conseguem exprimir suficientemente o
terror que se viu e viveu. O testemunho, na literatura, não exige a necessidade de uma
comprovação documental, visto que está inserido numa manifestação artística.

O valor do testemunho não está na sua capacidade de ser comprovado, como se fosse
posto à prova em termos científicos (GARCÍA: 2003, 44). De acordo com Márcio
Seligmann-Silva, a base do testemunho consiste em uma ambiguidade: por um lado,
a necessidade de narrar o que foi vivido, e por outro, a percepção de que a linguagem
é insuficiente para dar conta do que ocorreu (SELIGMANN-SILVA: 2003, 46). A
identidade do sujeito da enunciação é apresentada como objeto perdido, e o discurso,
um esforço de elaboração (PENNA: 2003, 312). Sem identidade segura, a voz de
enunciação faz da narração a busca de um sentido que não foi antecipadamente
definido. Trata-se de um discurso instável, híbrido, em que os conflitos sociais são
incorporados aos fundamentos expressivos (GARCÍA: 2003, 50) (GINZBURG, 2006,
p. 4).

A memória fragmentada na perspectiva da memória do trauma e de falta de uma


identidade segura aparece em Elisa Lispector como narradora, como voz através da qual se
manifesta, retomando Ginzburg, uma “identidade do sujeito da enunciação como objeto
perdido, e o discurso, [como] um esforço de elaboração”. Nos Retratos antigos, os fragmentos
de memória da escritora são percebidos pelo leitor ao longo de todas as lembranças que narra
sobre as personagens dos retratos. Em No exílio, a memória da escritora aparece desde a
vivência de menina exilada até a vida adulta.

A imagem da experiência não é de uma totalidade social, mas de uma “totalidade


relativa, fragmentária” (idem, 314). O testemunho pede a elaboração de um novo
conceito de representação, ligado ao estabelecimento de identidades políticas (idem,
314). É necessário diferenciar narrativas que postulam uma experiência “individual e
particular”, na autobiografia tradicional, e “a formação de uma subjetividade coletiva
do testemunho” (idem, 318). Palmeira observa, no caso dos relatos de cárcere, esse
componente coletivo no discurso (PALMEIRA: 2007, 71). Embora apartados da
sociedade, os prisioneiros expõem comprometimento com valores coletivos (idem,
74). Como explica García, “Indígenas, mulheres operárias, camponeses, donas de
casa, homossexuais, exilados e outros, por meio do testemunho, convertem o livro,
instrumento de cultura, em arma de libertação e defesa de direitos” (GARCÍA: 2003,
33) (GINZBURG, 2006, p. 5).

Tal como se vê na reflexão de Ginzburg, a literatura de Elisa Lispector tem uma função
política e social, sendo instrumento de libertação de suas lembranças e traumas e fazendo o
mesmo pelos demais judeus que passaram pelos mesmos traumas que a escritora e sua família.
A escritora passa, então, a ocupar o espaço da literatura para levar ao público-leitor histórias de
vítimas do impacto de um trauma.

O trauma resiste à representação, e por isso é redimensionada a apropriação do termo


literatura pelo discurso crítico, quando se trata de testemunho: trata-se de dar voz a
vítimas do impacto do trauma, e também apresentar uma posição no campo de
conflitos históricos (idem, 387). O testemunho é necessário, nesse sentido, em
66

contextos políticos e sociais em que a violência histórica foi muito forte,


desempenhando papel decisivo na constituição das instituições. Nesses contextos, as
diferenças de perspectiva entre os setores em conflito implicam em diferenças formais
e temáticas nas concepções de escrita e em seus recursos institucionais de legitimação
(GINZBURG, 2006, p. 5).

Logo, a escrita de testemunhos é legítima em contextos pós-traumáticos de violência. É


papel de escritores como Elisa Lispector, sobrevivente do horror dos pogroms, narrar o ocorrido
e seus traumas para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça na história este tipo de
perseguição. A escritora narra, além dos pogroms, outras violências vividas pelo povo judaico,
como migrações e exílios, além da perseguição nazista. Não apenas para o campo da literatura,
a escrita de testemunhos tem papel importante, mas também em áreas como a história, a
sociologia e a psicologia.

4.3 IRMÃS ESCRITORAS: A CORRESPONDÊNCIA ENTRE ELISA E CLARICE


LISPECTOR

Nos estudos literários, a troca de correspondência entre escritores gera curiosidade entre
o público leitor. As cartas, de certo modo, não devem ser consideradas uma forma de expressão
totalmente espontânea, visto que quem as escreve é atravessado por filtros ao escrever: o lugar
de onde escreve, o momento em que se dispõe a escrever, vivências que opta por não colocar
no papel para evitar reações de seu interlocutor, enfim, muitos são os filtros que perpassam o
autor de uma carta. Pode-se pensar uma carta, portanto, como uma escrita de si, uma
ficcionalização do vivido.

Um outro gênero (auto)biográfico é a correspondência; no caso dos escritores, é


particularmente relevante para se conhecer as ideias, as opiniões, a interlocução,
intelectual, amorosa ou de amizade que cada escritor manteve com seus pares e
familiares. A correspondência sempre mereceu destaque na tradição da literatura
ocidental; no Brasil, no século XX, houve muitas publicações de correspondência
(recíproca ou não) entre escritores, com destaque para a de Mário de Andrade, que
está, porém, longe de se esgotar (FIGUEIREDO, 2013, p. 39).

Segundo Eurídice Figueiredo, a correspondência pode ser considerada um gênero


autobiográfico, visto que, nas trocas interpessoais, a escrita em primeira pessoa e a
subjetividade são destaques. A escrita de cartas, hábito comum nos séculos passados que muito
se perdeu nos dias de hoje, sendo substituída por trocas de e-mails e interações nas redes sociais,
pode apresentar ao leitor as ideias, pensamentos e até leituras do escritor.

As cartas trocadas entre Elisa e Clarice Lispector instigam os leitores pois, além de
serem duas talentosas escritoras, são irmãs. É possível notar uma diferença de procedimentos
67

de memória entre as obras literárias de Elisa e Clarice Lispector, o que, de certa forma, reflete-
se na correspondência trocada entre as irmãs no período em que Clarice morou na Europa. A
leitura aqui apresentada das cartas se atém ao conteúdo desta correspondência entre irmãs e faz
um paralelo com as obras literárias de Clarice e Elisa Lispector, porém, pensando que os
escritores de cartas têm certos filtros ao escrever, como citado anteriormente, não se pode
medir, por exemplo, a importância que cada uma das irmãs dá à vivência de exílio. O que se
pode ler é apenas o que as irmãs Lispector optam por externalizar em suas cartas.
Ao pensar no teor de literatura de memória das obras de Elisa Lispector, é possível que
se reflita sobre a relação entre as irmãs escritoras Elisa e Clarice, pois, de certo modo, Clarice
demonstra em muitas das cartas enviadas para Elisa sua preocupação com o que a irmã publica,
visto que pergunta insistentemente sobre a publicação do livro de estreia de Elisa Lispector;
talvez por não ser seu desejo tratar da história de sua família, do exílio e do fato de ter nascido
em outro país. O modo como as irmãs lidam – e aqui se fala em termos de vida e literatura –
com a história da família é bastante diverso. Enquanto Elisa tem necessidade de narrar, como
ficção ou não, as memórias, suas e de sua família, Clarice escreve seus “Esclarecimentos –
explicação de uma vez por todas”, sem querer falar de sua origem, mas já falando, com certo
incômodo.

E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia
chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante.
Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando
para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em
Tchechelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas
dois meses de idade (LISPECTOR, 2005. apud GOTLIB, 2009a, p. 34).

Na crônica, fica evidente, já pelo subtítulo (“explicação de uma vez por todas”), certa
impaciência de Clarice com as perguntas que recebe sobre suas origens. A escritora enfatiza
que chegou ao Brasil ainda bebê, o que contribui, aparentemente, para que não se sinta
estrangeira.

Figura entre as publicações de correspondências na literatura brasileira o livro Minhas


queridas, lançado no ano de 2007, quando se completaram 30 anos da morte de Clarice
Lispector. Organizado por Teresa Monteiro, o volume apresenta diversas cartas trocadas entre
Clarice, Tania e Elisa, no período em que Clarice morou em Belém – assim que se casou com
Maury Gurgel Valente – e, logo em seguida, quando se mudou com o marido diplomata para a
Europa.
68

A publicação de Minhas queridas compõe uma espécie de trilogia das cartas,


exercendo um papel especial neste triângulo, pois particularmente este volume reúne
uma parte significativa da correspondência inédita de Clarice Lispector, onde se pode
acompanhar de uma forma contínua os seus passos em território estrangeiro. Este
conjunto de cartas encontrava-se nos arquivos particulares de Elisa Lispector e Tania
Kauffmann (MONTEIRO, 2007, p. 10).

O leitor encontra nas cartas uma narrativa de afeto entre irmãs. Desde os pormenores do
cotidiano até conversas sobre literatura, cinema e a Segunda Guerra Mundial, que aconteceu no
período em que Clarice morava na Europa. Também é perceptível na correspondência entre as
irmãs o temperamento de cada uma. Elisa se mostra mais fechada, reservada, até por conta disso
o leitor encontra um total de 26 cartas para Elisa, 48 cartas para Tania e 49 cartas que Clarice
escreve para ambas, totalizando, assim, 123 correspondências.

Elisa, irmã mais velha, era dotada de um temperamento reservado, seu primeiro
romance, Além da fronteira, foi escrito sem o conhecimento de sua irmã Tania. Nas
cartas percebe-se o pudor de Elisa diante de Clarice quando o assunto é o seu primeiro
livro, lançado sem que esta soubesse ao menos do que se tratava. A paixão pelas letras
era compartilhada igualmente pelas três irmãs Lispector (MONTEIRO, 2007, p. 11).

Nas cartas trocadas entre elas, é perceptível uma preocupação de Clarice com relação a
Elisa em diferentes momentos: quando Clarice morava no Rio de Janeiro com o pai e Elisa
ficou internada em uma fazenda na região serrana, e quando Clarice morava na Europa com o
marido e Elisa no Rio de Janeiro. Em carta de 3 de janeiro de 1945, escrita em Roma, Clarice
sugere cuidados à irmã mais velha: “Enfim... Minha querida, cuide-se como se você fosse de
13
ouro, ponha-se você mesma de vez em quando numa redoma e poupe-se.” (MONTEIRO,
2007, p. 47). A preocupação da caçula gira em torno da saúde de Elisa e de suas publicações.
Elisa tinha um pessimismo, uma tristeza que angustiava Clarice. Isso se reflete em sua
literatura.

Elisa, querida:
Recebi sua cartinha, que embora curta, me adiantou muito porque assim que eu vi que
você já deve estar boa do resfriado. Tome cuidado, sim? Querida, o verão do Rio é
uma fonte de resfriados Tania me escreveu que seu livro sairá talvez nesse mês; então
já deve ter saído. Peço-lhe enormemente que me mande um dos primeiros exemplares.
Quem fez a capa? Tenho tanta vontade de ler...Tenho muitas esperanças nele e em
você. Alguém mais leu? Por que você não me escreve nem ao menos rapidamente
sobre ele? Fico tão sentida, nem uma palavra, quando tudo isso me interessa tanto
(MONTEIRO, 2007, p. 73).14

Como a carta acima citada é de 1945, subentende-se que Clarice se refira ao primeiro
livro publicado por Elisa: Além da fronteira. Clarice em suas cartas insiste em perguntar sobre
o livro de Elisa, que não aparenta estar muito aberta para conversar com a irmã mais nova – e

13
Carta enviada por Clarice Lispector de Roma, em 3 de janeiro de 1945.
14
Carta enviada por Clarice Lispector de Nápoles, em 29 de janeiro de 1945.
69

também escritora – sobre o assunto. A ansiedade de Clarice Lispector para ler o romance de
estreia de sua irmã pode ser lida de alguns modos: como a pura curiosidade de ler o que Elisa
escreve ou, ainda, como um certo medo de ver publicada a história de sua família.

Querida, como eu quero ler o seu livro! Que horror esperar até que venha d. Zuza!
Não há nenhum jeito de mandar antes? Fico impaciente, e quase ofendida pela demora
como se a culpa fosse sua. É que pegarei no livro com enorme prazer. Talvez aconteça
comigo o que aconteceu com você, que sentia a dificuldade de dar sua opinião sobre
meu livro porque estava perto de mais de mim como irmã e “conhecida”
(MONTEIRO, 2007, p. 87).15

Quando Clarice Lispector e Maury Gurgel Valente se mudaram para a Europa, Clarice
havia lançado Perto do coração selvagem (1943) e O lustre (1946), portanto, a escritora
acompanhou a repercussão de suas obras no Brasil a distância, através de cartas e notícias que
as irmãs e seus amigos lhe enviavam. A escritora recém-casada também faz uso das cartas para
desabafar com Tania, dizendo: “Eu sou horrivelmente difícil de se viver com. Mas não é por
culpa minha, acredite. Eu bem que me controlo, mas sou tão sensível. Eu me pareço com Elisa.”
(MONTEIRO, 2007, p. 35)16
O silêncio de Elisa Lispector em alguns momentos nas cartas trocadas com as irmãs
gera angústia em Clarice. Por estar morando em outro país, a irmã mais nova utiliza a
correspondência para acompanhar as vidas de seus familiares.

Elisa, queridinha:
você não é minha amiga? Por que você não me escreve dizendo coisas suas, dizendo
do apartamento, do trabalho, de você mesma?
Estou escrevendo à última hora, antes de levarem as cartas, e mesmo depois de ter
escrito a vocês duas. Mas quis ainda fazer este apelo de última hora, na esperança de
comover você. Me diga também sobre a Tania, se ela está muito cansada. Por favor,
se você me quer bem, escreva.
Cuide-se, divirta-se, cuide de Tania, seja feliz. Nem sei mais o que dizer, tão aflita
fico por convencer. Diga sobretudo o motivo por que até agora não me escreveram.
Um abraço da
Sua Clarice (MONTEIRO, 2007, p. 44)17.

O fato de serem duas escritoras pode influenciar nesse silêncio e timidez de Elisa
Lispector quanto a seu primeiro romance em relação à irmã mais nova, já escritora conhecida.
Ao agradecer a Elisa pelas cartas enviadas, Clarice busca incentivar a irmã, afirmando ter
gostado do pouco que leu do livro.

Elisa, queridíssima:

15
Carta enviada por Clarice Lispector de Nápoles, em 13 de agosto de 1945.
16
Clarice Lispector em carta para Tania Kaufmann, Belém, 8 de julho de 1944.
17
Clarice Lispector para Elisa Lispector, Roma, 8 de novembro de 1944.
70

Que cartas lindas eu recebi de você, meu Deus! Não conheço seu livro, mas tenho
certeza de que ele é bom, basta as amostras que eu recebo. Tão delicada você, tão
engraçadinha (MONTEIRO, 2007, p. 45)18.

Em carta datada de 1º de maio de 1945, Clarice Lispector demonstra tristeza diante do


pessimismo que nota na irmã mais velha, inclusive recusa-se a escrever mais naquele dia. No
dia seguinte, ela se desculpa com a irmã pelo que escreveu num momento de tristeza.

Minha queridíssima Elisa:


[...] Mas, querida, porque você está tão pessimista? Minha Elisinha, eu sofro em ver
você assim, sofro em ver você dizendo coisas contra você mesma, você me humilha
com isso, me faz sofrer.
[...] Eu escrevo amanhã de manhã por que hoje fiquei triste (MONTEIRO, 2007, p.
48)19.

É notável na correspondência trocada entre as três irmãs Lispector maior proximidade


entre Clarice Lispector e sua irmã do meio, Tania Kauffmann, até por ter mais cartas destinadas
a ela e por serem cartas mais extensas, conforme a seleção de cartas feita por Teresa Monteiro
e publicada no volume Minhas queridas. A distância entre irmã mais nova e irmã mais velha é
tema de uma carta de dezembro de 1944. Nela, Clarice Lispector fala sobre a intimidade (ou a
falta dela) que tem com Elisa Lispector.

Querida, eu lhe peço: cuide-se extraordinariamente, pense que isso também é para
mim, eu lhe peço. E pelo amor de Deus, veja nas minhas palavras mais do que minhas
palavras. Aquela sua carta em que você diz que nós temos a intimidade que
deveríamos ter, é certa de algum modo. E se você nas suas cartas não é tão íntima
comigo eu no entanto adivinho, perdoo ao acaso e às circunstâncias o fato de termos
uma espécie de pudor, uma em relação a outra. Mas leio suas cartas como se você me
dissesse tudo, e na verdade é tudo o que você quer dizer. Tania, por exemplo, se deixa
mais acarinhar do que você, não é verdade? E do que eu.(MONTEIRO, 2007, p. 65)20.

Uma das possíveis motivações para esse afastamento entre as duas irmãs é a diferente
visão que as irmãs têm sobre escrever ou não a respeito da história de sua família. Enquanto
Elisa Lispector sente uma grande necessidade de narrar o trauma e o exílio, Clarice não
demonstra interesse em escrever sobre o vivido, atendo-se a outros temas em sua literatura,
talvez pelo fato de ter meses de vida quando a família saiu da Ucrânia em direção ao Brasil e,
assim, ter vivenciado de forma diferente a migração. Em confidência à irmã Tania Kaufmann,
Clarice Lispector fala sobre o silêncio de Elisa em suas cartas, o que gera a distância entre as
irmãs.

18
Carta de Clarice Lispector de Roma, em 3 de janeiro de 1945.
19
Carta de Clarice Lispector de Roma, em 1 de maio de 1945.
20
Carta de Clarice Lispector de Nápoles, em 18 de dezembro de 1944.
71

Minha florzinha delicada, você está bem, não é? Me escreva dando notícias. E Elisa?
Há quanto e quanto tempo não recebo de Elisa uma verdadeira carta. Desisti de lhe
mandar cartas grandes porque tudo fica sem resposta, em resposta vem um bilhete
curto que fala de tudo menos dela. Mas ela está bem, não é? É o que importa
(MONTEIRO, 2007, p. 161)21.

Em carta publicada no volume Correspondências – Clarice Lispector (2002), Clarice


Lispector conta às irmãs como foi vivido o fim da Segunda Guerra Mundial na Itália, país que
teve seu regime fascista derrotado.

Uma das coisas de que eu estou surpreendida e vocês certamente também é que no
bilhete de hoje de manhã não falei no fim da guerra. Eu pensava que quando ela
acabasse eu ficaria durante alguns dias zonza. O fato é que o ambiente influiu muito
nisso. Aposto que no Brasil a alegria foi maior. Aqui não houve comemorações se não
feriado ontem; é que veio tão lentamente esse fim, o povo está tão cansado (sem falar
que a Itália foi de algum modo vencida) que ninguém se emocionou de mais
(MONTEIRO, 2007, p. 72)22.

Em No exílio, Elisa Lispector narra esse momento histórico de maneira ficcional. A


escritora utiliza imagens narrativas de como as pessoas viram e sentiram o final da guerra.

Na hora derradeira, uns riram, outros choraram. Mais uma vez saíram às ruas, gritaram
e se embebedaram. Alguns apenas ergueram os olhos para o alto e fizeram uma prece
por um morto querido. Muito poucos foram os que oraram por todos os mortos
esquecidos. Houve, ainda, os que não interromperam seus afazeres, não beberam nem
oraram. Simplesmente ouviram e silenciaram (LISPECTOR, 2005, p. 189).

As reações das pessoas ao fim da guerra foram o meio que a escritora encontrou de
trazer para a literatura a derrota do nazismo, regime autoritário que matou milhões de judeus e
ficou marcado na história como um dos maiores horrores vividos pela humanidade no século
XX.
O que se encontra na obra de Elisa Lispector é, portanto, um projeto de memória coletiva
e familiar, responsabilidade que a escritora toma para si e cumpre a função de perpetuar nos
livros o exílio e o trauma vividos por sua família, enquanto Clarice Lispector, sua irmã mais
nova, opta por se eximir desta função em sua literatura, o que muito possivelmente provoca
uma grande distância entre a literatura de uma e de outra e, assim, acaba-se criando uma
distância entre as duas. Enquanto a irmã mais velha se volta para si e para sua memória, a mais
nova nega ou não constrói essa memória familiar traumática em suas obras.
É possível, nos dias de hoje, pensar aproximações entre o texto literário e o texto
epistolar de Elisa Lispector e Clarice Lispector devido ao conhecimento que se tem da produção
cultural das escritoras há décadas. O intuito desta aproximação que se fez entre Clarice e Elisa

21
Carta de Clarice Lispector de Berna, em 29 de março de 1947.
22
Carta de Clarice Lispector a Elisa Lispector e Tania Kaufmann, de Roma, em 9 de maio de 1945.
72

Lispector é, portanto, pensar nas diferenças entre as obras literárias das duas irmãs escritoras,
visto que Clarice alcança lugar de visibilidade dentro do cânone da literatura brasileira, tendo
biografias publicadas, inúmeras pesquisas acadêmicas sobre suas obras e muitos relançamentos
e novas edições de sua obra, enquanto a Elisa Lispector coube um número reduzido de pesquisas
acadêmicas sobre sua obra, bem como são poucas as reedições de seus livros e é grande a falta
de conhecimento do público leitor sobre “a irmã escritora de Clarice Lispector”.
73

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após apresentar No exílio e Retratos antigos, com apoio das leituras teóricas aqui
discutidas, conclui-se que, através de duas estratégias narrativas bastante diversas entre si, Elisa
Lispector dedica um espaço de sua literatura a narrar o exílio, o trauma, os costumes judaicos
e a perpetuar as memórias de sua família. Nos limites da ficção, a escritora cria suas
personagens e impõe a elas situações e vivências que em muito podem ser lidas como suas. Ao
assumir a primeira pessoa nos Retratos antigos, Elisa Lispector abre o álbum de fotografias da
família e convida seu leitor a uma viagem ao passado, em que apresenta seus antepassados,
visto que a escritora faz da fotobiografia um espaço de ficção, para que não sejam esquecidos
pelos descendentes das próximas gerações de Krimgold e Lispector. Portanto busquei, ao longo
da elaboração de minha leitura, pontuar a importância da escrita de testemunho por parte de
Elisa Lispector sobre toda a perseguição vivida, dando destaque à violência dos pogroms.
Em No exílio, por vezes, o narrador se dedica a relatar o momento histórico vivido pela
família na Ucrânia, de forma que memórias familiares e memória coletiva se (con)fundem. Em
outros momentos do romance, o destaque são os desafios impostos àquela família de imigrantes
e, principalmente, os sentimentos de Lizza, protagonista do romance, sobre toda a viagem de
exílio e a adaptação à vida nova no Brasil. Logo, a leitura que procurei apresentar do romance
se pauta em buscar aproximações entre a biografia da escritora e sua ficção, pensando em como
as vivências da protagonista do romance podem ser lidas como muito similares às da escritora,
bem como pontuar as semelhanças entre as personagens construídas por Elisa Lispector e seus
familiares.
No romance, portanto, o leitor encontra os caminhos da memória, da história e da
autobiografia construídos por Elisa Lispector. A leitura que procurei apresentar teve por
objetivo pontuar o aspecto de escrita de memórias de No exílio, para fazer algumas
identificações entre a obra e a vida da autora, num entendimento de que a memória é isenta de
compromisso com o ‘real’, assim sendo, tem liberdade para se (re)inventar, no contexto da
literatura.
A história através do álbum de fotografias da família é a base de criação para Elisa
Lispector assumir o papel de narradora/historiadora de sua família. As fotografias são objeto de
(re)criação de cenas e personagens que a escritora apresenta aos seus leitores. Assim, busquei
apresentar uma leitura que mostrasse o desejo da escritora de registrar a história dos
74

antepassados por escrito, bem como busquei pontuar a influência que a origem judaica e a
experiência do exílio têm sobre a obra de Elisa Lispector.
Ao ler Retratos antigos, é possível, ainda, pensar como a vivência do passado e a
expectativa no futuro são um elo na escrita de memórias desenvolvida por Elisa Lispector.
Enquanto rememora personagens do passado, a escritora faz com que pessoas das próximas
gerações conheçam, por meio deste relato, um pouco da história de sua família. Portanto, é
chave para a leitura dos Retratos antigos – em consonância a seu projeto literário – que se
entenda a constante busca de Elisa Lispector por uma ligação entre passado e futuro.
Ao se deparar com essas duas obras de Elisa Lispector, o leitor encontra as palavras de
uma escritora que faz do trauma, da memória e do exílio sua matéria de criação, trazendo esses
aspectos para a ficção. É possível para o leitor entender um pouco da biografia de Elisa
Lispector através dos Retratos antigos e, dessa forma, preencher a ausência de biografias
publicadas sobre a autora.
Ao final da dissertação , procurei apresentar, por meio de cartas trocadas entre Elisa
Lispector e sua irmã Clarice, a existência de uma divergência entre os procedimentos de
memória adotados pelas duas irmãs escritoras. É notável certa negação por parte de Clarice
Lispector sobre a memória de sua família, um certo desejo de não falar sobre a memória de
exílio, enquanto Elisa Lispector tem justamente a necessidade contrária à da irmã: a de
expressar e narrar a vivência do exílio.
A conclusão a que se chega é, portanto, de que Elisa Lispector tem um projeto de
memória familiar que aparece tanto na ficção como em seu relato em primeira pessoa. Ao
utilizar essas duas estratégias narrativas, a escritora apresenta ao seu leitor suas memórias, ou
uma (re)criação delas. Além disso, a escrita de Elisa Lispector contribui para registro histórico
de memória coletiva de costumes judaicos e de perseguições, migrações e vivências de pessoas
de origem judaica. Desta forma, o registro de memória da viagem da família Lispector ao Brasil
em exílio pode se unir às histórias de exílio de outras tantas pessoas de origem judaico-
ucraniana que desembarcaram de navios como aquele que trouxe a família Lispector ao Brasil
em 1921. Pessoas que, por terem passado pelos mesmos problemas sociais e econômicos,
possivelmente tiveram experiências de exílio muito próximas às da escritora Elisa Lispector.
75

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