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Desfusão cognitiva na Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT): O

processo de mudança clínica

ASSAZ, Daniel Afonso. Desfusão cognitiva na terapia de aceitação e


compromisso (ACT): O processo de mudança clínica. Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Se eu fosse acreditar mesmo em tudo o que penso, ficaria louco


- Mário Quintana, Caderno H, 1973

[...]desenvolvimento de flexibilidade psicológica por meio de seis processos inter-


relacionados: aceitação, desfusão cognitiva, contato com o momento presente, senso
de self-como-contexto, valores e ação comprometida[...] (ASSAZ, 2019, p5)

[...] comportamento verbal e seu controle sobre o comportamento humano, informado


pela Teoria das Molduras Relacionais (RFT, do inglês Relational Frame Theory).
(ASSAZ, 2019, p7)

A compreensão da desfusão cognitiva enquanto estratégia clínica passa


necessariamente pela compreensão do comportamento verbal e de como ele pode
exercer controle sobre outros comportamentos do indivíduo. (ASSAZ, 2019, p9)

[...]determinados pensamentos e estes exercem controle sobre seu comportamento


verbal e não-verbal, auxiliando-a regular sua conduta e atingir os seus objetivos.
(ASSAZ, 2019, p9)

[...]autorregulação verbal implica que o indivíduo se comporta verbalmente e, ao fazê-


lo, influencia a probabilidade de seus outros comportamentos. (ASSAZ, 2019, p9)

[...] como um conjunto de estímulos visuais e sonoros arbitrariamente definidos pela


cultura, na forma de palavras e frases, pode exercer influência sobre o comportamento
do ouvinte. (ASSAZ, 2019, p9)
Uma explicação para o caráter alterador de função de regras que tem acumulado
evidências empíricas advém dos estudos de relações simbólicas entre estímulos
(O’Hora & Barnes-Holmes, 2004; O’ Hora, Barnes-Holmes & Stewart, 2014). (ASSAZ,
2019, p11)

Esta linha de pesquisa desenvolveu-se a partir dos experimentos pioneiros de Sidman


e colaboradores (Sidman, 1994). Este grupo de pesquisadores utilizou o paradigma
experimental de emparelhamento com o modelo (MTS, do inglês matching-to-sample),
no qual as respostas dos participantes são reforçadas somente quando este escolhe
estímulos-comparação específicos diante dos estímulos-modelo apresentados, como
B1 diante de A1 e B2 diante de A2; mas não ao escolher B1 diante de A2 ou B2 diante
de A1 (Cumming & Berryman, 1965). (ASSAZ, 2019, p11)

Caso a relação entre os estímulos A1-B1 e A2-B2 não seja baseada nas propriedades
formais (i.e., físicas) destes, mas sim nos critérios previamente estabelecidos pelo
experimentador, caracteriza-se uma relação arbitrária ou simbólica (Cumming &
Berryman, 1965). (ASSAZ, 2019, p11)

Estes estudos levaram à descoberta de um fenômeno comportamental inédito: a


emergência de relações derivadas. Diante da aprendizagem direta, por meio de
reforçamento diferencial, de algumas relações simbólicas entre estímulos, outras
relações que não haviam sido diretamente treinadas emergiram no repertório do
indivíduo. (ASSAZ, 2019, p12)

Mais precisamente, ao aprender a responder a B diante de A (A-B), o sujeito também


passava a responder a A diante de B (B-A; i.e. simetria); e ao aprender a responder a
B diante de A (A-B) e a C diante de B (B-C), a pessoa era capaz de responder
corretamente às relações simétricas B-A e C-B e também à A-C (i.e., transitividade) e
C-A (i.e., equivalência) (Sidman, 1994). (ASSAZ, 2019, p12)

Uma classe de estímulos que demonstre as propriedades de simetria e transitividade,


além da reflexividade (A-A) foi denominada de uma classe de equivalência de
estímulos. (ASSAZ, 2019, p12)
Para ilustrar, imagine que uma criança de desenvolvimento típico seja ensinada a,
diante da figura de um queijo (A), falar “queijo” (B); e a apontar para a palavra escrita
QUEIJO (C) após ouvir a palavra falada “queijo” (B). Mesmo sem treinos adicionais,
ela provavelmente será capaz de apontar para a figura de um queijo após ouvir a
palavra falada “queijo” (B-A); falar “queijo” diante da palavra escrita QUEIJO (C-B);
apontar para a palavra escrita QUEIJO diante da imagem do alimento (A-C); e apontar
para a imagem de um queijo diante da palavra escrita QUEIJO (C-A) (Figura 3).
(ASSAZ, 2019, p12)

Além da derivação de relações, os estudos com MTS também demonstraram que um


estímulo pode ter sua função previamente adquirida (seja ela eliciadora, discriminativa,
condicional, contextual, motivacional, reforçadora ou punitiva) transferida para outros
estímulos que compõe uma classe de equivalência. (ASSAZ, 2019, p13)

Assim, diante do ensino direto das relações A-B e B-C e sendo A um estímulo
apetitivo, os estímulos B e C (previamente neutros) adquirirão função apetitiva. Em
outras palavras, eles serão funcionalmente equivalentes nesse contexto: respondemos
a B e C “como se fossem” A. (ASSAZ, 2019, p13)

No exemplo acima, caso a criança tenha experimentado queijo e gostado, é capaz de


que a imagem do alimento possua função apetitiva em decorrência dessa história,
eliciando salivação e evocando aproximação. Consequentemente, ao aprender as
relações arbitrárias entre a figura do alimento, sua pronúncia e sua grafia, é possível
que a simples palavra queijo, seja em seu formato auditivo ou textual, sejam
suficientes para eliciar salivação e evocar aproximação (e.g., pegar ou pedir por
queijo). (ASSAZ, 2019, p13)

Resultado funcionalmente similar ocorreria se a criança tivesse sido simplesmente


informada de que “queijo é muito gostoso”, estabelecendo uma relação de
equivalência entre a palavra “queijo” e “gostoso”, que possivelmente possui função
apetitiva previamente estabelecida na relação com outros alimentos. Assim, a regra
“queijo é muito gostoso” exerceria controle porque ela altera a função de queijo para o
ouvinte (i.e. estímulo apetitivo) por meio de relações arbitrárias entre estímulos.
(ASSAZ, 2019, p13)

Desse modo, a definição do comportamento verbal de Skinner pode ser refinada para
incluir que o ouvinte responde de forma efetiva ao falante em função de um treino
explícito para fazê-lo que envolve o estabelecimento de relações simbólicas entre
estímulos (Chase & Danforth, 1991). (ASSAZ, 2019, p13)
[...] de que forma os pensamentos de Marina podem exercer controle sobre
outros comportamentos dela: por meio da alteração da função de estímulos em
decorrência da participação destes em relações simbólicas. (ASSAZ, 2019,
p13)

de que modo e por que aprendemos a estabelecer tais relações simbólicas entre estímulos?

Dada algumas capacidades e tendências básicas compartilhadas por seres


humanos de desenvolvimento típico, como presença do aparelho auditivo-
fonológico, respostas de observação e rastreamento do olhar, atenção
conjunta, tendência a imitação, repertório de discriminação simples e
condicional e sensibilidade a consequências sociais (Rehfeldt & Barnes-
Holmes, 2009; Sundberg, 2008), bebês começam a ter maior sensibilidade e
preferência pelos fonemas de sua língua materna e a imitar os seus
cuidadores, balbuciando tais fonemas dentro de poucos meses (Kuhl, 2004).
(ASSAZ, 2019, p14)

Na marca dos 18 meses, é comum observar crianças de desenvolvimento típico com um


pequeno vocabulário, nomeando objetos cotidianos e fazendo pedidos simples (Sundberg,
2008). Na taxonomia Skinneriana do comportamento verbal, estas seriam respostas de tato
(sob controle de estímulos antecedentes não-verbais) e mando (sob controle das
consequências da fala) (Skinner, 1957). Porém, esse conjunto de respostas vocais foi
diretamente modelado na interação com os cuidadores. Tais estímulos sonoros produzidos
pela criança não integram relações arbitrárias com outros estímulos, de modo que são
respostas vocais não-simbólicas (cf. Barnes-Holmes, Barnes-Holmes & Cullinam, 2000).
(ASSAZ, 2019, p15)

Nesse momento, essas respostas não são funcionalmente diferentes da pronúncia de uma
palavra em uma língua estrangeira que o indivíduo não conhece; dos “pedidos” de
cachorros a seus donos ao mexer na coleira ou no pote de ração; ou de pombos
“conversando” em caixas experimentais (cf. Epstein, Lanza & Skinner, 1980): são somente
respostas topograficamente distintas modeladas pelas consequências contingentes à sua
emissão e não falas “com compreensão” como as de indivíduos adultos verbalmente aptos
(Hayes & Hayes, 1989). (ASSAZ, 2019, p15)

De acordo com a RFT, a passagem da fala “sem compreensão” (i.e. decorrente de uma
história de condicionamento direto) para a fala “com compreensão” (i.e. na qual as palavras
estão inseridas em relações simbólicas) decorre de uma história de treino de múltiplos
exemplares (TME) de responder relacional provida pela comunidade verbal do indivíduo
(Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001; Hughes & Barnes-Holmes, 2016; Luciano,
Rodríguez, Mañas, Ruiz, Berens & Valdívia-Salas, 2009). (ASSAZ, 2019, p15)
Para compreender o que isso significa, primeiramente é necessário conceituar o termo
“responder relacional”. Ele se refere a uma resposta do indivíduo não ao estímulo em si,
mas sim a um estímulo em relação a outro(s). Um indivíduo pode aprender por
reforçamento diferencial a, por exemplo, sempre selecionar o maior estímulo, o estímulo
mais acima dentre os apresentados ou o estímulo semelhante ao modelo. (ASSAZ, 2019,
p15)

Animais não-humanos, como pombos e macacos, demonstraram ser capazes de aprender tal
comportamento em contextos experimentais dadas as contingências adequadas (e.g., Frank
& Wasserman, 2005; Harmon, Strong & Pasnak, 1982; Yamazaki, Saiki, Inada, Iriki &
Watanabe, 2014). (ASSAZ, 2019, p15)

Em um determinado momento durante o TME de responder relacional não-arbitrário, o


comportamento do indivíduo pode ficar sob controle da propriedade comum a todas as
tentativas do treino: o contexto relacional, que sinaliza a relação entre os estímulos e, com
isso, a resposta que provavelmente será reforçada. Esse processo, denominado de abstração,
é análogo a como seres humanos aprendem a nomear cores, por exemplo (cf. Skinner,
2003). (ASSAZ, 2019, p16)

Esse processo, denominado de abstração, é análogo a como seres humanos aprendem a


nomear cores, por exemplo (cf. Skinner, 2003). (ASSAZ, 2019, p16)

Uma vez que o comportamento do indivíduo fica sob controle da dica contextual, ela pode
ser utilizada para ensinar relações de igualdade entre estímulos simbólicos, que não
compartilham propriedades físicas, por meio do treino relacional arbitrário.´ (ASSAZ,
2019, p16)

Na Figura 3, temos três estímulos que não compartilham propriedades físicas: eles têm
caráter pictográfico, auditivo e textual. Porém, apesar das diferenças físicas entre eles, uma
pessoa que abstraiu a dica contextual “igual” é capaz de responder à palavra queijo de
forma similar a imagem do alimento (e vice-versa) ao ser informada que “um é igual ao
outro”. (ASSAZ, 2019, p16)

O treino relacional arbitrário é responsável pelo surgimento do comportamento operante


denominado de responder relacional arbitrariamente aplicável (RRAA). (ASSAZ, 2019,
p16)

Isso simplesmente significa que, dados dois estímulos arbitrários (ao menos um com
função previamente adquirida) e as dicas contextuais apropriadas, o indivíduo passa a ser
capaz de responder a um em função do outro e derivar novas relações simbólicas de
acordo. (ASSAZ, 2019, p17)

Em suma, a proposta da RFT é a de que os seres humanos são capazes de responder


a diversos tipos de relações simbólicas entre estímulos para além da equivalência e
que tal comportamento (RRAA) é um operante contextualmente controlado, produto de
uma história de contingências de TME de responder relacional e capaz de transformar
a função de outros estímulos. (ASSAZ, 2019, p17)

Em conjunto, as evidências acima oferecem suporte para a proposta da RFT, na qual


o RRAA ocupa papel central. A importância do RRAA para os seres humanos é
parcialmente decorrente das características constituintes deste operante (Hayes et al.,
2001). A arbitrariedade permite que, em teoria, qualquer estímulo possa ser
relacionado com qualquer outro, dada uma dica contextual apropriada. Assim,
pequenos gestos, sons e marcas no papel, respostas de baixo custo e de fácil
percepção pelo outro, podem adquirir função de estímulo e, dessa forma, ocupar uma
posição de extrema importância no comportamento humano enquanto palavras,
influenciando o comportamento de outras pessoas. (ASSAZ, 2019, p19)

Já o caráter indireto das relações significa que as pessoas podem responder a um estímulo
em função de sua relação com outro, prescindindo do contato direto com o primeiro para
responder de forma efetiva ao ambiente. Desta forma, pode-se aprender sobre eventos
remotos e probabilísticos sem a necessidade de esperar que eles ocorram; sobre eventos
potencialmente perigosos sem correr risco de danos ao organismo; e sobre eventos
passados, impossíveis de terem sido vivenciados diretamente pelo indivíduo. (ASSAZ,
2019, p19)

Ademais, a derivação possibilita aumentar drasticamente a curva de aprendizagem com a


transformação da função de muitos estímulos a partir do aprendizado de poucas relações.
(ASSAZ, 2019, p19)

Em conjunto, essas três propriedades colocam esse repertório na base de muitas das
características comumente associadas à espécie humana, como linguagem (Hayes et al.,
2001; Stewart, McElwee & Ming, 2013), inteligência (Cassidy, Roche & O’Hora, 2010) e
tomada de perspectiva do outro, incluindo empatia e mentira (Barnes-Holmes, McHugh &
Barnes-Holmes, 2004; Vilardaga, 2009). (ASSAZ, 2019, p19)
Levando em consideração as vantagens mencionadas acima, não é nenhuma surpresa que a
comunidade verbal busque desenvolver esse repertório em todos os seus membros. De
forma que é comum observar os cuidadores oferecendo modelo e modelando o operante
RRAA das crianças de forma similar ao feito anteriormente diante da emissão das respostas
verbais não-simbólicas, seja por meio de consequências sociais generalizadas (e.g.,
aprovação, sorriso, atenção) ou socialmente mediadas (e.g., dar o que a criança pede, ajudá-
la diante de um desafio).

Conforme a criança se engaja em RRAA, os critérios para o reforçamento destas respostas


são progressivamente alterados pela comunidade verbal no ensino informal e formal,
favorecendo respostas relacionais cada vez mais complexas e coerentes

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