Você está na página 1de 6

Portal de Memória - Processos Históricos | A Revolta da Vacina

Arquivo/Fiocruz
A REVOLTA DA VACINA:
TRADIÇÃO X CIÊNCIA
Mauro Figueiredo*

Como sabido, os processos judiciais bilidade dos direitos concernentes à liberda-


históricos da Justiça Federal da 2ª Região de, à segurança individual e à propriedade,
constituem importante fonte primária de nos termos seguintes:
pesquisa para estudiosos da história dos di-
reitos sociais e políticos no Brasil. ......................................................................
O processo histórico foco de análise .......................................................................
deste breve artigo é um Habeas Corpus im-
petrado pelo advogado Deodato Cesino Vi- § 22 - Dar-se-á o habeas corpus, sempre que
lella dos Santos em favor de si próprio e de o indivíduo sofrer ou se achar em iminente
sua esposa e filhos menores, contra a vio- perigo de sofrer violência ou coação por ile-
lência da Lei n.º 1.261/1904, que impunha galidade ou abuso de poder.
a todos os cidadãos a imunização contra a O impetrante aponta como uma das
varíola por meio da vacina. O impetrante, ci- inconstitucionalidades da Lei da Vacina a
dadão e advogado, evocou o art. 72, § 22, incompetência do Congresso Nacional para
da Constituição Federal de 1891, que abaixo legislar sobre a higiene do Distrito Federal e
descrevo, in verbis: dos Estados. Apontou também conflito com o
disposto pela Lei n.º 85/1822, que organizou
Constituição Federal de 24 de Fevereiro de 1891 a municipalidade do Distrito Federal, assegu-
Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros rando sua competência para legislar sobre os
e a estrangeiros residentes no País a inviola- serviços de higiene.
1
Portal de Memória - Processos Históricos | A Revolta da Vacina

Deodato Vilella dos Santos também ............................................................


questiona a eficácia da vacina sob o ponto .............................................................
de vista bacteriológico, e cita a fala do autor
do Projeto de Lei, o médico e Senador Ma- Por sua vez, a letra “f” do § 3º do art.
nuel Duarte, que a definiu como “moléstia 1º do Decreto n.º 1.151/1904, que reorgani-
febril”, que traria perturbações ao organis- zava os serviços da higiene administrativa da
mo humano. O impetrante prossegue afir- União, dispunha o seguinte:
mando que a própria Lei manda adiar a va-
cinação em casos de moléstia provada, para DECRETO Nº 1.151, DE 5 DE
“não trazer complicações ou comoções ao JANEIRO DE 1904
estado mórbido do doente”. Art. 1º E’ reorganizada a Directoria Geral de
Sustenta ainda que ninguém conhece Saúde Publica, ficando sob sua competencia,
os meios de agir da vacina; ignora como esta além das attribuições actuaes, tudo que no
atua; ou por quê imuniza a uns, e a outros Districto Federal diz respeito á hygiene do-
deixa de imunizar, ou prejudica. Ademais, miciliaria, policia sanitaria dos domicilios, lo-
questiona os segredos da vacinação, que se- gares e logradouros publicos, tudo quanto se
ria uma prática empírica, sem base científica. relaciona á prophyIaxia geral e especifica das
Alguns estudiosos do período argu- molestias infectuosas, podendo o Governo
mentam que uma análise do levante popular fazer as installações que julgar necessarias e
deve extrapolar a mera oposição entre vaci- pôr em prática as actuaes posturas municipa-
nistas e antivacinistas. Sustentam que, de um es que se relacione com a hygiene.
lado, via-se o conhecimento científico dando O isolamento hospitalar só terá logar
suporte e legitimidade a medidas impostas quando a residencia do doente não se prestar
pelo aparelho do Estado no campo social e na ás medidas sanitarias exigidas pelos regula-
esfera individual, enquanto, de outro, verifi- mentos; e, no caso de internação em hospital,
cava-se a rejeição popular à vacinação com- a familia terá direito a acompanhar o doente,
pulsória, movimento que vinha ancorado em sendo-lhes proporcionados todos os recursos
uma noção de cidadania, o que se dava em por conta do Estado, e podendo o tratamento
uma disputa pelas formas de organização do medico ser dirigido pelo facultativo que o do-
espaço urbano e do controle social. ente ou sua familia quizer, segundo o proces-
De fato, a LEI Nº 1.261, DE 31 DE OU- so therapeutico que lhe aprouver respeitada
TUBRO DE 1904, que tornava a vacinação e a a disciplina interna do estabelecimento.
revacinação contra a varíola obrigatórias em
toda a República, assim dispunha em seu art. .................................................
2º, alínea “e”: .................................................
.................................................
Art. 2º Fica o Governo autorizado a regula-
menta-la sob as seguintes bases: § 3º Fica o Governo autorizado a promulgar o
Codigo Sanitario, de accôrdo com as seguin-
............................................................ tes bases:
............................................................ .................................................
.................................................
e) O Governo lançara mão, afim de que sejam ..................................................
fielmente cumpridas as disposições desta lei,
da medida estabelecida na primeira parte da f) II. A declaração de interdicção de predios,
lettra f do § 3º do art. 1º do decreto n. 1151, obras e construcções por parte da autoridade
de 5 de janeiro de 1904; administrativa terá por effeito:

2
Portal de Memória - Processos Históricos | A Revolta da Vacina

Quanto aos predios:


1º Serem elles desoccupados amigavel ou ju- lar de êxito baseado na defesa dos
dicialmente pelos inquilinos dentro de um a direitos dos cidadãos de não serem
oito dias, conforme a urgencia; arbitrariamente tratados pelo gover-
no. Mesmo que a vitória não tenha
2º Serem reparados ou demolidos pelos seus sido traduzida em mudanças políti-
proprietarios no prazo que lhes fôr assignado. cas imediatas além da interrupção
Si estes se recusarem fazel-o, as reparações da vacinação, ela certamente deixou
ou demolições serão feitas á sua custa, fican- entre os que dela participaram um
do em um ou outro caso o predio ou terreno sentimento profundo de orgulho e
por elle occupado legalmente hypothecado autoestímulo, passo importante na
para garantia da despeza feita, classe o dia da formação da cidadania. O repórter
declaração da interdicção. do jornal A Tribuna (...) ouviu de um
preto acapoeirado: (...) O mais im-
Quanto ás obras e construcções: portante era mostrar ao governo que
1º Serem ellas immediatamente suspensas; ele não põe o pé no pescoço do povo.

2º Serem reparadas ou demolidas nas mes- Na verdade, relatos históricos são


mas condições e com os mesmos onus que unânimes ao apontar que a revolta não foi
os predios. motivada apenas pelo medo da injeção, mas
foi precedida por um longo processo de re-
Os relatos e estudos históricos sobre organização e distribuição do espaço urba-
os acontecimentos da época possuem várias no, que deu lugar à uma cidade com con-
áreas de intersecção, bem como diferenças tornos nitidamente burgueses. Tal processo
pontuais acerca de outros tantos aspectos de expropriação já havia submetido a popu-
envolvendo a Revolta da Vacina. lação de baixa renda ao bota-abaixo da Re-
Segundo ARRUDA (2000: 332), o le- forma Pereira Passos. Não se pode olvidar,
vante teve como causa inúmeros fatores, tampouco, o descontentamento de parte
como a carestia e o desemprego decorrentes das elites nacionais com os rumos adotados
da política econômica posta em prática pelo pelo Novo Regime.
governo que antecedeu o de Campos Sales; Convém, também, ressaltar que, mes-
as obras de modernização da cidade que im- mo antes da regulamentação da Lei da Vaci-
puseram a demolição de cortiços, desabri- na, já havia sido encaminhada ao Congresso
gando milhares de pessoas humildes. listas assinadas por 15 mil pessoas contra a
SEVCENKO (1993), por sua vez, sus- obrigatoriedade da imunização. A regulamen-
tenta que a revolta não possuía plataforma tação só veio incendiar ainda mais os ânimos
ou objetivos explícitos, mas surgiu como algo já exaltados.
improvisado, difuso, sem um líder, sem par- O atestado de vacina era exigido para
tido, que se propaga e espalha, não ficando tudo: matrícula em escolas, emprego público,
adstrito a um grupo específico. A revolta, ain- doméstico ou nas fábricas, viagem, casamen-
da segundo o autor citado, era um grito de to, voto, hospedagem em hotéis e casa de cô-
indignação. modos etc.
Segundo José Murilo de Carvalho, Oswaldo Cruz, que assumiu em 1903
a Diretoria Geral de Saúde Pública, deu início
A Revolta da Vacina permanece a uma campanha implacável, que contou com
como exemplo quase único na his- brigadas sanitárias acompanhadas por poli-
tória do país de movimento popu- ciais, que invadiam casas, interditavam pré-

3
Portal de Memória - Processos Históricos | A Revolta da Vacina

dios, e removiam doentes à força. Tal cam- científicas e ao avanço da medicina da época. As
panha deixou um saldo de 12.971 intimações crenças de parte da população carioca ditavam
e 62 interdições, isso apenas no primeiro se- como algo natural buscar ajuda para suas mo-
mestre de 1904. A inexorabilidade do regula- léstias em um terreiro, local onde suas próprias
mento do sanitarista lhe valeu o apelido de experiências se orientavam. Ainda segundo Pe-
Código de Torturas. reira, a varíola possuía um ritual afro tradicional,
O historiador Nicolau Sevcenko nos dá vez que se acreditava que a doença possuía um
uma noção acerca da força do Código Sanitário: fundo sobrenatural, podendo apenas ser com-
batida por meio de um ritual de cura específico.
Esse instrumento (a lei de março de O historiador ressalta, também, que o Código
1904) lhe permite invadir, vistoriar, Sanitário proposto por Oswaldo Cruz proibia as
fiscalizar e demolir casas e constru- práticas de curandeiros, tanto daqueles que se
ções. Estabelece, ainda, um foro pró- denominavam seguidores do espiritismo cientí-
prio, dotado de um juiz especialmen- fico quanto dos seguidores do candomblé. Além
te nomeado para dirimir as questões disso, para a numerosa população de origem
e dobrar as resistências. Ficam ve- africana, a varíola tinha características sagradas,
dados os recursos à justiça comum. que a vacina profanava (Pereira: 332).
A lei de regulamentação da vacina Como não poderia deixar de ser, a re-
obrigatória, em novembro desse ação foi violenta. Do dia 10 ao 12 de novem-
ano, viria a ampliar e fortalecer es- bro, a cidade foi abalada por choques entre a
sas prerrogativas, colocando toda a polícia e a população, passeatas e comícios.
cidade à mercê dos funcionários e No dia 13, a rebelião ganhava ainda mais cor-
policiais a serviço da Saúde Pública. po, com a ocupação por populares dos pon-
Se alguém escapara dos furores de- tos centrais da cidade, além da construção de
molitórios de Lauro Muller e do pre- trincheiras, e trocas de tiros com a polícia.
feito Pereira Passos, não teria mais No dia 14 de novembro, os enfrenta-
como escapulir aos poderes inquisi- mentos, que tiveram início logo às primeiras
toriais de Oswaldo Cruz. horas do dia, espalharam-se como rastilho de
pólvora para outros bairros da cidade. Relatos
Contudo, aspectos econômicos não da época dão conta de que, em toda a parte,
explicam na totalidade o movimento. Não se viam-se incêndios, saques e depredações.
pode descartar as razões ideológicas e mo- Até mesmo a Escola Militar da Praia Vermelha
rais. Conviviam dois conjuntos de valores. Se, aderiu à revolta. Sua rendição deu-se apenas
por um lado, a elite protestava contra o inter- na madrugada do dia 15 de novembro, ante
vencionismo do Governo e o ataque à liber- a ameaça de bombardeio pelas forças navais
dade individual, por outro, o povo se sentia leais ao Governo.
ameaçado pelos desrespeitos à virtude femi- Com a derrota dos cadetes, o movi-
nina, à honra do chefe de família e à inviola- mento adquiriu contornos mais populares,
bilidade do lar. com a construção de barricadas por operá-
Segundo PEREIRA (2002), há que se levar rios, que atacaram fábricas e uma delegacia.
em conta também princípios culturais, e propõe No bairro da Saúde, segmentos marginaliza-
que a Revolta da Vacina constitui, na verdade, dos da população resistiram até a invasão pe-
uma revolta da tradição cultural. Segundo o au- las forças militares.
tor, a crença nos orixás de um enorme contin- Nesse cenário caótico, o Governo, ao
gente de descendentes africanos tinha seu peso perceber que a polícia não dava conta da de-
no modo como a sociedade se organizava e in- sordem generalizada, lançou mão do Exército,
terpretava o mundo. Esse conjunto de crenças, Marinha e, por fim, da Guarda Nacional, ape-
por sua vez, vinha de encontro às descobertas lando até mesmo para bombardeio de bairros.
4
Portal de Memória - Processos Históricos | A Revolta da Vacina

Houve incidentes isolados até o dia Com o comprometimento do sistema


19 de novembro. Após ter sido debelada, a imunológico, a doença pode também provo-
revolta deixou um saldo de 945 prisões, 461 car cegueira ao acometer a córnea, além de
deportados, 110 feridos e 30 mortos, além de morte por broncopneumonia e outras doen-
700 pessoas detidas. ças oportunistas.
Ao buscarmos nas análises históricas A varíola consta no rol de doenças er-
propostas por diversos estudiosos da Revolta radicadas da Organização Mundial de Saúde.
da Vacina, tomamos conhecimento de várias É oportuno também lembrar que a primeira
aspectos sociais, econômicos e culturais sub- vacina produzida no mundo foi justamente a
jacentes ao movimento insurgente. vacina contra a varíola. Arquivo/Fiocruz
O Habeas Corpus, que in-
tegra o acervo de processos his-
tóricos da Justiça Federal da 2ª
Região, impetrado pelo advogado
Deodato Cesino Vilella dos San-
tos em favor de si, de sua esposa
e filhos menores corrobora a tese
defendida por alguns historiado-
res acerca de um dos diversos
aspectos do levante, qual seja, a
contraposição do conhecimento
científico legitimador de medi-
das draconianas impostas pelo
Poder Público à resistência popu-
lar àquilo que era visto pelo povo
como novo e desconhecido. Cartuns publicados à época retratam o clima de
guerra que tomou conta da Cidade do Rio de Janeiro
A EPIDEMIA DA VARÍOLA
A varíola que grassava no Rio de Janei-
ro já era uma velha conhecida da humanida- BIBLIOGRAFIA
de. Análises feitas em múmias do antigo Egi-
to, como a de Ramsés V, já revelaram sinais ARRUDA, José Jobson de A. e PILETTI, Nelson.
típicos da doença. TODA A HISTÓRIA: HISTÓRIA GERAL E HISTÓ-
RIA DO BRASIL. SP: Editora Ática: 2000.
Conhecido pelo nome científico Or-
thopoxvírus Variolae, o vírus é transmitido CARVALHO, José Murilo de. “Cidadãos Ativos:
por contato direto prolongado, pelo ar, ou A Revolta da Vacina.” In “Os Bestializados” 3.
ed. São Paulo. Companhia das Letras. 1987.
por meio de gotículas que escapam quando
um indivíduo infectado tosse, espirra ou fala. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das
Ao penetrar no corpo, o patógeno almas: o imaginário da República no Brasil –
se espalha pela corrente sanguínea, insta- São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
lando-se principalmente na região cutânea, Fundação OSWALDO CRUZ. - ALMANAQUE
provocando sintomas como febre alta, mal HISTORICO - O MÉDICO DO BRASIL – PROJETO
estar, dores no corpo e problemas gástricos. MEMÓRIA 2003. P. 54
A fase seguinte da infecção faz surgir em PEREIRA, Leonardo. As barricadas da saúde.
todo o corpo inúmeras protuberâncias re- Ed: Perseu Abramo, 2002.
pletas de pus, que provocam coceiras e do-
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. Ed:
res intensas, e que dificilmente cessam sem Scipione, 1993
deixar cicatrizes.
5
Portal de Memória
Processos Históricos

A Revolta da Vacina

Você também pode gostar