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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

AUGUSTO DA CUNHA SILVEIRA

BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA BPC-LOAS: UMA ANÁLISE


ACERCA DO CRITÉRIO DE MISERABILIDADE DA LEI N° 8.742/93

PALHOÇA
2022
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AUGUSTO DA CUNHA SILVEIRA

BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA BPC-LOAS: UMA ANÁLISE


ACERCA DO CRITÉRIO DE MISERABILIDADE DA LEI N° 8.742/93

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Direito, da Universidade do Sul de Santa
Catarina, como requisito parcial para
obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador(a): Prof. Susana Dos Reis Machado Pretto, MSc.


PALHOÇA
2022
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AUGUSTO DA CUNHA SILVEIRA

BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA BPC-LOAS: UMA ANÁLISE


ACERCA DO CRITÉRIO DE MISERABILIDADE DA LEI N° 8.742/93

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi


julgado adequado à obtenção do título de
Bacharel em Direito e aprovado em sua
forma final pelo Curso de Graduação em
Direito, da Universidade do Sul de Santa
Catarina.

Palhoça, 16 de novembro de 2022.

Professor e orientadora Susana Dos Reis Machado Pretto, MSc.


Universidade do Sul de Santa Catarina

Prof. Nome do Professor, titulação


Universidade do Sul de Santa Catarina

Prof. Nome do Professor, titulação


Universidade do Sul de Santa Catarina
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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA BPC-LOAS: UMA ANÁLISE


ACERCA DO CRITÉRIO DE MISERABILIDADE DA LEI N° 8.742/93

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico e referencial conferido ao presente trabalho, isentando a
Universidade do Sul de Santa Catarina, a Coordenação do Curso de Direito, a
Banca Examinadora e o Orientador de todo e qualquer reflexo acerca deste
Trabalho de Conclusão de Curso.
Estou ciente que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em
caso de plágio comprovado do trabalho monográfico.

Palhoça, 16 de novembro de 2022.

AUGUSTO DA CUNHA SILVEIRA


5

Dedico esse trabalho a Deus e a minha


família, por ter me dado força e resiliência
para enfrentar as adversidades e enfim
alcançar este momento tão gratificante.
.
6

AGRADECIMENTOS

Encerrar a graduação em Direito, com este trabalho, após cinco anos de


grande aprendizado, altos e baixos, é um dos momentos mais gratificantes da
minha vida. Contudo, nada disso seria possível sem que houvesse pessoas tão
especiais ao longo dessa jornada, pessoas essas que tentarei citar e agradecer. À
professora e orientadora Susana Dos Reis Machado Pretto, primeiramente por ter
aceitado o convite para me orientar, também por toda sua dedicação e zelo nesse
período, o seu conhecimento contribuiu de forma acertada auxiliando na construção
e lapidação deste trabalho, por último e não menos importante, ao escritório de
advocacia Debem e Santos, onde me proporcionaram o contato com a área
Previdenciária ao qual pude conhecer de sua extrema importância e ter um enorme
aprendizado. Por tudo isso, quero deixar meus sentimentos de gratidão a todos os
professores, que estiveram comigo no decorrer da graduação, sem dúvida alguma
foi um período de adversidades, principalmente pela pandemia que atingiu o mundo.
Todavia, isso não impediu o comprometimento com o ensino dos alunos. Aos meus
colegas de turma, que continuarão fazendo parte da minha vida. Não há dúvida que
a presença de cada um nessa jornada contribuiu em diversas áreas do
conhecimento e do crescimento pessoal. Ao meu pai José Carlos da Silveira, minha
mãe Suzana da Cunha Silveira e minha irmã Camila da Cunha Silveira, por todo
apoio dado, não apenas no decorrer do curso, mas ao longo da vida, espero
transmitir parte dos ensinamentos que me deram. Não há palavras que expressem a
gratidão que tenho por fazer parte de uma família tão maravilhosa, que me ensinou
valores inenarráveis. Minhas maiores referências sempre estiveram dentro do meu
lar, e isso se deve a vocês. Por fim, agradeço a Deus, pois somente ele para
proporcionar pessoas tão especiais em minha vida.
7

“Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles.” (Rui Barbosa).
8

RESUMO

O presente trabalho verificou o panorama do critério de miserabilidade apto a


conceder um benefício assistencial de prestação continuada à pessoa idosa ou ao
deficiente, que encontra barreiras para participação plena e efetiva na sociedade em
condições de igualdade com as demais pessoas e que comprovem não possuir
meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida através de seus
familiares. Para tanto, buscando estabelecer um quadro referencial teórico
adequado, tematizou-se os institutos basilares que regem a matéria: proteção
social, assistência social, evolução histórica e benefício de prestação continuada.
Para a consecução dos objetivos acima listados, do ponto de vista metodológico,
foram utilizados procedimentos metodológicos e científicos na realização da
presente pesquisa. Quanto ao nível, utilizou-se a pesquisa bibliografica. A
abordagem empregada foi à qualitativa, tendo em vista que se trata de uma análise
subjetiva do problema, baseada em doutrinas, jurisprudências e legislação. Por fim,
chegou-se à conclusão de que os precedentes jurisprudênciais da BPC-LOAS estão
corretos, ao permitirem outros critérios além do puramente econômico para aferição
da miserabilidade, mas que, contudo, deve-se observar os efeitos econômicos e da
reserva do possível a fim de que não se cause uma quebra das contas públicas.

Palavras-chave: Benefício Assistencial. Prestação Continuada. Miserabilidade.


9

SUMÁRIO

1 Introdução 10

2 Assistência social no Ordenamento Jurídico Brasileiro 13


2.1 Evolução Histórica da Proteção Pocial no mundo e no Brasil 13
2.2 Contornos conceituais da assistência social 15
2.3 Princípios norteadores da assistência social 18
2.3.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana 18
2.3.2 Princípio da Universalidade 21
2.4 Conceito e definições aplicáveis ao benefício de prestação continuada 24

3 Benefício da Prestação Continuada 27

3.1 Beneficiários 27
3.2 Requisito da miserabilidade 31
3.3 Vedação da acumulação com outros benefícios 35
3.4 Características do benefício de prestação continuada 36

4 Miserabilidade e o Benefício de Prestação Continuada 38


4.1 Mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana: a nova ordem sócio-
econômica com a constituição de 1988. 38
4.2 Renda mensal familiar e a miserabilidade: oscilações jurisprudenciais e
doutrinárias. 40
4.3 “in claris cessat interpretatio”. Para além de uma interpretação literal da loas: o
salário mínimo como garantia do mínimo existencial. 44

5 Conclusão 48

6 Referências 50
10

1 INTRODUÇÃO

Sabe-se que reconhecidamente a Assistência Social é de suma importância à


discussão e ao debate, haja vista que é um mecanismo de proteção ao idoso e a
pessoa com deficiência de qualquer idade, quando estes se encontram
impossibilitados de prover seu próprio sustento ou de tê-lo provido por sua família.
Convém destacar que o requisito da miserabilidade presente na Lei n°
8.742/93 é considerado um tema controverso, justamente pela idealização por parte
do Poder Judiciário de que esse critério seja algo defasado, principalmente por
entender que o sujeito assistido seja idoso e/ou pessoa com deficiência e este deve
comprovar de forma total a sua situação de hipossuficiência econômica.
No entanto, quando a renda per capita familiar é superior a ¼ do salário
mínimo desemboca em uma ilegibilidade dando margem a uma possível
desassistência.
Deste efeito, é mais que imprescindível que os operadores do direito deverão
levar essa temática com cautela para que haja um debate reflexivo coerente e justo
a fim de promover a dignidade da pessoa humana e justiça social, conforme os
pilares basilares constitucionais.
Neste diapasão, após divergências jurisprudenciais e doutrinárias é
imprescindível o aprofundamento do tema em destaque, buscando-se segurança
jurídica e isonomia.
Destaca-se, portanto, a relevância do assunto que desperta vários debates,
mormente no que tange ao critério de miserabilidade adotado pela Lei de
Assistência Social, podendo existir trabalhos sobre a mesma temática, entretanto
sem guardar semelhança com o presente estudo, o qual segue a ótica e os
parâmetros desse pesquisador.
Diante desse cenário, fica clara a importância, tanto do ponto de vista
acadêmico, quanto do ponto de vista social.
Isto porque após o neoconstitucionalismo, bem como do gerencialismo
estatal, o Estado passa a adquirir grande importância na promoção de políticas
públicas, bem como na garantia de direitos fundamentais.
Assim, surge como objetivo geral deste trabalho analisar o panorama do
critério de miserabilidade apto a conceder um benefício assistencial de prestação
continuada à pessoa idosa ou ao deficiente que encontra barreiras para participação
11

plena e efetiva na sociedade em condições de igualdade com as demais pessoas e


que comprovem não possuir meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la
provida através de seus familiares.
Assim sendo, no primeiro capítulo, buscar-se-á: compreender o surgimento da
Seguridade Social e sua evolução histórica no Brasil; estudar os princípios
norteadores da Seguridade Social, bem como os princípios inerentes à Assistência
Social.
Em seguida, no segundo capítulo, buscar-se-á discorrer sobre os beneficiários
aptos ao benefício assistencial de prestação continuada, sendo a pessoa idosa ou a
pessoa com deficiência.
Ao passo que, no terceiro capítulo, intentar-se-á discutir acerca do critério de
miserabilidade, suas implicações decorrentes da divergência de entendimento da
Administração Pública e do Poder Judiciário frente ao requisito econômico trazido
pela Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS bem como analisar os
entendimentos doutrinários e jurisprudenciais dos Tribunais brasileiros sobre a
matéria em estudo.
Para a consecução dos objetivos acima listados, do ponto de vista
metodológico, foram utilizados procedimentos bibliograficos na realização da
presente pesquisa, os quais auxiliaram na busca pela compreensão da matéria.
Quanto ao nível, utilizou-se a pesquisa exploratória, visando uma
aproximação e familiarização do autor com o tema escolhido (LEONEL;
MARCOMIM, 2015, p. 12).
Quanto ao método de abordagem, adotou-se o método dedutivo, o qual é um
tipo de estrutura de raciocínio lógico que, para chegar a uma conclusão específica,
utiliza uma ideia generalista. Ele parte de um conhecimento amplo e chega a outro,
particular.
A abordagem empregada foi a qualitativa, tendo em vista que se trata de uma
análise subjetiva do problema, baseada em doutrinas, jurisprudências e a legislação,
sendo uma abordagem voltada aos aspectos considerados ocultos, e que devem ser
manifestados pelo pesquisador (MINAYO, 2007 apud LEONEL; MARCOMIM, 2015,
p. 28).
12

Por fim, no que tange aos procedimentos de coleta de dados, foi utilizada a
pesquisa bibliográfica em fontes diversas como obras já publicadas, jurisprudências
e legislação (CARVALHO 2006, p. 100 apud LEONEL; MARCOMIM, 2015, p. 15).
A problemática do presente trabalho é: qual o panorama do critério de
miserabilidade apto a conceder um benefício assistencial de prestação continuada à
pessoa idosa ou ao deficiente que encontra barreiras para participação plena e
efetiva na sociedade em condições de igualdade com as demais pessoas e que
comprovem não possuir meios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida
através de seus familiares?
Dessa maneira, poder-se-á atingir as finalidades teóricas elencadas para este
trabalho.
13

2 ASSISTÊNCIA SOCIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Neste capítulo, através da verificação do conteúdo doutrinário, apresentar-se-


ão os delineamentos conceituais referentes ao assunto abordado, essenciais para o
desenvolvimento teórico e compreensão da temática do presente trabalho, como a
seguir se verá.
Dessa forma, serve o presente capítulo como apresentação teórica e
conceitual, valendo-se de fontes primárias, isto é, o conjunto normativo, como a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como outras normas
infraconstitucionais e a doutrina que interpreta este arcabouço legal.

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROTEÇÃO SOCIAL NO MUNDO E NO BRASIL

Vislumbrando-se o desenrolar histórico da humanidade, desde a pré-história,

até o Estado Moderno, vê-se em todo esse grande arcabouço sinais de uma
proteção social no Brasil.
Com efeito, desde a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma), observam-se
indícios embrionários de uma ordem que estabeleça a proteção social. Entretanto,
essa proteção social, como se verá, ainda era excessivamente embrionária,
somente se desenvolvendo fortemente, ao ponto de se converter em um direito
subjetivo, com o Estado Moderno (CASTRO, 2020).
Nada obstante, já na Roma e Grécia antiga havia associações destinadas a
prestar ajuda àqueles que, por qualquer razão, acabaram por perder a capacidade
laborativa. Neste estágio histórico, pode-se afirmar que havia, na verdade, um
sistema voluntário de caridade e auxílio, dado que inexistia, no plano jurídico, um
direito subjetivo daquele cidadão que se encontrasse em estado de necessidade,
dependendo este, em verdade, da caridade dos demais cidadãos (SARAIVA, 1997).
Este estado de coisas manter-se-á através do desenrolar histórico, visto que,
no Medievo, manteve-se a mesma lógica de proteção social, dando-se prioridade à
caridade individual, o mesmo ocorrendo com o surgimento do Estado Liberal no bojo
das revoluções do Século XVIII, que atribuíram ao estado um caráter passivo, de
somente proteção da propriedade (RUSSOMANO, 1981, p. 18).
14

Neste contexto, a proteção social continuava a ser gerenciada e resolvida


através da caridade privada, entendendo-se, à época, que caberia ao mercado
suprir as necessidades porventura existentes dos cidadãos.
Com o advento da Revolução Industrial, nota-se que tal modo de pensar
torna-se insustentável, motivo pelo qual, na Europa, os Estados começam a adotar
mecanismos de bem-estar e proteção social, o que lança as bases desse sistema
pela primeira vez na história da humanidade, como apontado por Augusto Venturi
(1990, p. 24), ao distinguir o que havia antes (assistência social) do que estava
sendo criado (proteção / seguro social). Neste sentido, assevera Venturi (1990, p.
24) que:

seguro e assistência, por suas naturezas e técnicas completamente


diferentes, agem, em realidade, em dois planos completamente distintos. O
seguro social garante o direito a prestações reparadoras ao verificar-se o
evento previsto, antes que os danos possam determinar o estado de
indigência, de privação, da pessoa golpeada. A assistência intervém, não de
direito, mas segundo avaliação discricionária, somente quando, por causa
de eventos previstos ou não previstos, esteja já em ato um estado de
indigência, de privação, que ela tem o fim de combater.

Essa tendência vai aumentar, desaguando no Século XX, período no qual


surgiram grandes instrumentos jurídicos voltados a constitucionalizar a proteção
social, exemplo do que ocorre no México, em 1917, bem como na Alemanha, em
1919, na República de Weimar (CASTRO, 2020).
Também houve a replicação desses sistemas em outros países, como nos
Estados Unidos da América, através do New Deal, programa criado após a crise da
bolsa de 1929.
É importante notar que esses primeiros sistemas de proteção social partiam
de uma premissa bismarckiana, também conhecido como sistema de capitalização.
Neste sistema, somente eram englobados pela proteção social os trabalhadores que
contribuíssem para o sistema; dessa forma, não havia beneficiários que não fossem
contribuintes do sistema (CRUZ, 2001, p. 112).
No entanto, a partir de 1944, na Inglaterra, com o Plano Beveridge,
influenciado pelas ideias do economista Keynes, criou-se um sistema diverso, no
qual o sistema da previdência social não era limitado àqueles que contribuíram;
sendo, ao contrário, universalizado, de forma que todos poderiam dele participar,
seja através de proteções contra o desemprego, seja através de atendimento de
Saúde.
15

Dessa forma, cria-se um fundo geral através do qual são retirados valores
para fornecimento de prestações aos que dele necessitam (CASTRO, 2020, p. 67).
No Brasil, a primeira norma voltada à questão da proteção social foi na data
de 1888, ano no qual o Império editou o Decreto n. 9.912-A, através do qual
regulamentou a aposentadoria dos trabalhadores dos Correios (FARIAS, 1997).
Somente a partir da década de 1920 é que, de fato, começam a surgir medidas
legislativas mais sistemáticas, baseadas, inicialmente, no modelo bismarckiano. O
seu marco inicial historico, se deu em 24 de janeiro de 1923, com a publicação da lei
de Eloi chaves, ou também conhecido, pelo decreto sob o n° 4.682.
Neste período, foram criadas inúmeras CAPS (Caixas de Aposentadoria e
Pensões) para funções específicas, através do qual eram criados fundos para
servirem de base à aposentadoria dos trabalhadores. Foi a partir das CAPs que
surgiram os IAPs (Instituto de Aposentadorias e Pensões) no ano de 1933 (FARIAS,
1997).
No ano seguinte, na Constituição de 1934, houve a consagração do direito à
previdência em âmbito constitucional. Esse sistema se manteve até a década de
1960, período no qual foi editada a Lei Orgânica da Previdência Social, que permitiu,
também, a edição do Regulamento Geral da Previdência Social, ainda que este
fosse limitado às profissões urbanas (SANTOS, 1979).
Esse modelo vai sendo paulatinamente aprimorado até a Constituição de
1988, momento no qual há, de fato, no Brasil, o advento da seguridade social de
forma sistemática e constitucional:

A Constituição federal de 1988 trouxe como uma de suas mais


importantes inovações a instituição da seguridade social, sob clara
influência dos modelos de Estado do Bem-Estar Social vigentes em
diversos países europeus, a partir da segunda metade deste século, e dos
ideais de liberdade e justiça social que embasavam o momento de
redemocratização nacional (FARIAS, 1997, p. 33).

Diante desse desenvolvimento histórico descrito em relação assistência social,


cabe, agora, descrever os contornos conceituais relativos à matéria.

2.2 CONTORNOS CONCEITUAIS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

A assistência social, tanto no plano doutrinário quanto no legal, acaba sendo


definida de algumas formas, muitas das vezes aproximando-a de outros termos, a
exemplo da proteção social.
16

Celso Barroso Leite (1978, p. 16), com efeito, adota a seguinte definição de
proteção social, qual seja:

Proteção social, portanto, é o conjunto de medidas de caráter social


destinadas a atender certas necessidades individuais; mais
especificamente, às necessidades individuais que, não atendidas,
repercutem sobre os demais indivíduos e, em última análise, sobre a
sociedade.

Vitor Chaves Pinto (2013, p. 12), orienta no mesmo sentido ao conceituar a


assistência social da seguinte maneira:

Assistência social não é filantropia nem favor estatal. É um direito que


objetiva viabilizar, de forma equânime, a autonomia individual necessária ao
exercício qualificado da cidadania de pessoas que, apesar de materialmente
excluídas, devem ser reconhecidas, a todo o momento, como livres e iguais.

O apontamento realizado por Vitor Chaves Pinto, acima transcrito, segue na


linha da didática constitucional, visto que, na Carta Magna, a assistência social foi
dotada de patamar constitucional, sendo, portanto, abordada e descrita no referido
instrumento normativo.
Com efeito, conforme se verá de maneira mais pormenorizada adiante, sobre
os comandos de assistência social, o artigo 203 da Constituição da República
Federal de 1988 dispõe sobre objetivos para prestações, serviços, programas e
projetos concernentes à assistência no Brasil. Claramente o inciso V da
Constituição Federal prevê o pagamento de benefício de assistência social. O
dispositivo apresenta em seu teor o conceito constitucional de BPC:

A assistência social será prestada a quem dela necessitar,


independentemente de contribuição à seguridade social,
e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade,
à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às
crianças e adolescentes carentes; III – a promoção
da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação
das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à
vida comunitária.
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de
prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme
dispuser a lei. (BRASIL, 1988, ART. 203)
17

Denota-se, pelas transcrições acima realizadas, que há semelhança entre


“assistência social” e “proteção social”, conforme aponta Vaitsman (2009). Assim
se dá porque um dos objetivos da assistência social é também a proteção social.
Neste sentido, a assistência social pode ser assim definida (SANTOS, 2020,
p. 194):

A Assistência Social, a nosso ver, é o instituto que melhor atende o


preceito de redução das desigualdades sociais e regionais, porque se
destina a combater a pobreza, a criar as condições para atender
contingências sociais e à universalização dos direitos sociais.

Complementa tal definição a própria dicção do artigo 203 da Constituição


Federal ao afirmar que a assistência social é direcionada a quem dela necessitar,
independentemente da contribuição à seguridade social.
A Assistência Social, dessa forma, insere-se no âmbito da seguridade social,
motivo pelo qual possui princípios muito semelhantes aos pertencentes ao âmbito
da Seguridade Social (SANTOS, 2020, p. 146).
Tanto é assim que a própria Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742,
de 7 de dezembro de 1993), bem define a noção legal de Assistência Social:

Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política


de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais,
realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e
da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

Desse modo, pela dicção legal acima transcrita, a Assistência Social se


insere no âmbito da Seguridade Social a fim de que, mesmo não contributiva,
sejam providos aos cidadãos os mínimos sociais através de uma série de ações
de iniciativa pública bem como da sociedade como um todo, buscando-se, dessa
maneira, garantir o atendimento das necessidades básicas da população brasileira
(SANTOS, 2022).
Essa noção de Assistência Social, para além dos contornos conceituais
trazidos acima, carrega também uma forte carga principiológica, motivo pelo qual
cabe, agora, trazê-los à luz, buscando esclarecer a relação entre eles, assim como
a relação existente com a Assistência Social e com o Benefício de Prestação
Continuada.
18

2.3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

O âmbito da Assistência Social, como se teve oportunidade de indicar acima,


é parte integrante da Seguridade Social. Justamente por isso, compartilha com a
Seguridade Social uma série de princípios, em grande parte constitucionais.
Certamente a análise e exposição de todos os princípios ultrapassaria o
escopo do presente trabalho, motivo pelo qual abordar-se-ão dois princípios, dos
mais fundamentais: o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da
universalidade que relacionam-se intimamente na fundamentação da Seguridade e
da Assistência Social.

2.3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

Nessa toada, inicialmente, cumpre discorrer sobre a dignidade da pessoa


humana, porquanto intimamente ligada à ideia de direitos fundamentais (SARLET,
2002, p. 106).
Ela, no plano da história das ideias, é fruto de uma Weltanschauung de
caráter marcadamente judaico-cristão (RATZINGER, 2005, p. 206). Entretanto, o
conceito da dignidade da pessoa humana ganhou uma roupagem secularizada no
modus pensandi racionalista hegemônico no iluminismo, tendo como maior prócer
Kant. A sua concepção de dignidade da pessoa humana é exposta na obra
"Fundamentação da metafísica dos costumes". Nela, o conceito de dignidade se
relaciona intimamente com a ideia de que o ser humano é um fim em si mesmo
(KANT, 2007, p. 68). Enquanto dotado de tal dignidade, o ser humano não seria
equivalente a nenhum preço (KANT, 2007, p. 68).
Deste modo, a dignidade da pessoa humana adquire um caráter ontológico,
congênita ao próprio ser humano, sendo alçada ao status de um imperativo
categórico e, como corolário, obtendo "o valor de máxima universal” (LIMA, 1958).
Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana é tomada como ponto
arquimédico da ordem jurídica (cf. art. 1º, inc. III, CRFB), atingindo até mesmo as
relações de caráter privado (LIMA, 1958, p. 52).
É certo que, relativamente à dignidade humana, essas não são as duas
únicas (pensamento judaico-cristão e kantismo) tradições do pensamento ético (ou
metaético) que procuram fundamentá-la; ao contrário, o número de autores que lida
19

com essa questão são inumeráveis, bem assim como a forma de lidar com o tema. A
título de exemplo, Karl-Otto Apel, com sua pragmática-transcendental, poderia
fornecer um arcabouço teórico que tornasse inteligível e racional a ideia de uma
dignidade humana, como esboçou Hans-Hermann Hoppe, ao passo que Hans
Kelsen, com seu ceticismo, rejeitaria in totum tal ideia (KELSEN, 1998).
Com efeito, Kelsen (1998), seguindo seu quadro teórico positivista, adotava
uma postura ética cética, sequer atribuindo valor de verdade às sentenças éticas
(que ele entendia serem caracterizadas por um dever-ser (Sollen).
Apesar de tais discussões no âmbito filosófico, o fato é que, como já afirmado
anteriormente, a ideia de uma dignidade intrínseca à pessoa humana foi adotada
pelo ordenamento jurídico brasileiro, porquanto albergada pela Constituição.
Ocorre, contudo, que, posta no mais alto ponto da ordem jurídica, a dignidade da
pessoa humana torna-se (ainda mais) genérica (DIMOULIS, 2012, p. 46), dado que,
conforme se sobe na hierarquia das normas, estas "tornam-se cada vez menos
numerosas e mais genéricas" (BOBBIO, 1999, p. 40), o que não implica, todavia,
ausência de aplicabilidade. Ao contrário, encontrando-se no topo da hierarquia do
ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa humana serve de premissa para a
dedução dos direitos fundamentais e para os direitos de personalidade1.
Ainda que não estivesse no topo da ordem jurídica, a dignidade da pessoa
humana é, per si, genérica:

A dignidade humana é um conceito muito abstrato que não impõe


determinadas medidas nem engloba necessariamente todos os direitos
garantidos no art. 5º da CF. Podemos muito bem conceber que um ser
humano preservaria sua dignidade ainda que o exercício do habeas data
não fosse gratuito, conforme estipula o inciso LXXVII do art. 5o da CF.
Mesmo a privação de uma liberdade importante como a liberdade de
reunião (inciso XVI) não tem a priori o condão de ferir a dignidade da
pessoa humana (DIMOULIS, 2012, p. 46).

Além disso, a aplicabilidade da dignidade da pessoa humana se amplia ainda


mais em virtude do fenômeno da "Constitucionalização do Direito" 2. Em virtudedele.
1
Nesse sentido dispõe o enunciado Enunciado n. 274 do CJF/STJ da IV Jornada de Direito Civil: "os
direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da
cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da
dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os
demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação".
2
Fenômeno já reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 1.183.378/RS.
20

A Constituição passou a ocupar um papel central para todos os chamados


“ramos” do Direito, sejam “matérias” públicas ou privadas. Assim, por
exemplo, o Código Civil, classicamente compreendido dentro do Direito
Privado, não deixa de sofrer o influxo constante dos preceitos
constitucionais (TAVARES, 2012, p. 42).

Por conta disso, é inconteste a importância que, hodiernamente, a dignidade


da pessoa humana assume no âmbito jurídico.
A garantia de direitos mínimos aos cidadãos faz parte de um conjunto de
valores humanos civilizatórios do qual encontra respaldo no princípio da dignidade
da pessoa humana, o qual é previsto constitucionalmente como maior patrimônio da
humanidade (CASSAR, 2014, p. 67).
O epicentro de todo o ordenamento jurídico brasileiro é o princípio da
dignidade da pessoa humana, que está disposto no artigo 1º, III, da CF, razão pela
qual não há imprescindibilidade de muito esforço intelectivo para que se possa
demonstrar que tal princípio alcança em cheio o direito do trabalho, visto que todo
trabalhador (ou trabalhadora) é, antes de qualquer coisa, um ser humano. (LEITE,
2021, p. 54).
Sendo assim, é inegável que toda a norma trabalhista tem o dever de sempre
ter como base o respeito à dignidade humana do trabalhador, como também de visar
os valores sociais do trabalho. (ROMAR, 2018, p. 63).
Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p.32), conceitua a dignidade da pessoa humana
de acordo:

Uma qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz


merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Consoante se pode observar, o conceito de dignidade da pessoa humana se


encaixa perfeitamente no âmbito de qualquer relação de trabalho, especialmente na
relação empregatícia, considerando o estado de subordinação a que fica submetido
o empregado à frente do poder empregatício do tomador dos serviços. (LEITE, 2021,
p. 54).
21

Assim sendo, Delgado (2019, p. 94) alude:

O universo social, econômico e cultural dos Direitos Humanos passa, de


modo lógico e necessário, pelo ramo jurídico trabalhista, à medida que este
regula a principal modalidade de inserção dos indivíduos no sistema
socioeconômico capitalista, cumprindo o papel de lhes assegurar um
patamar civilizado de direitos e garantias jurídicas, que, regra geral, por sua
própria força e/ou habilidade isoladas, não alcançariam. Ora, a conquista e
afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à
sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente,
também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico
e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural —, o que se
faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado
das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego,
normatizado pelo Direito do Trabalho.

Dessa maneira, uma das aplicações práticas relativas à dignidade da pessoa


humana versa justamente no campo da seguridade social, visto que, através dela,
busca-se garantir a todos os cidadãos um patamar mínimo e digno de existência.
Ora, uma vez partindo-se da premissa de que todo cidadão é garantidor da
dignidade intrínseca, nos termos acima delineados, exsurge, quase como
necessidade lógica, a ideia de uma universalidade neste princípio, motivo pelo qual,
no tópico seguinte, abordar-se-á o princípio da universalidade.

2.3.2 Princípio da universalidade

Seguindo, pois, passa-se, agora, à análise do princípio da universalidade, um


dos princípios fundamentais no âmbito do direito previdenciário.
De fato, a própria lei que trata da Previdência Social, a Lei n. 8.213, de 1991,
assim disciplina em relação aos princípios fundamentais da matéria:

Art. 1º A Previdência Social, mediante contribuição, tem por fim assegurar


aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de
incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço,
encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam
economicamente.
Art. 2º A Previdência Social rege-se pelos seguintes princípios e objetivos:
I - universalidade de participação nos planos previdenciários;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações
urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios;
V - cálculo dos benefícios considerando-se os salários-de-contribuição
corrigidos monetariamente;
V - irredutibilidade do valor dos benefícios de forma a preservar-lhes o
poderaquisitivo;
22
VI - valor da renda mensal dos benefícios substitutos do salário-de-
contribuição ou do rendimento do trabalho do segurado não inferior ao do
salário mínimo;
VII - previdência complementar facultativa, custeada por contribuição
adicional;
VIII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a
participação do governo e da comunidade, em especial de trabalhadores em
atividade, empregadores e aposentados.
Parágrafo único. A participação referida no inciso VIII deste artigo será
efetivada a nível federal, estadual e municipal.

Além da legislação infraconstitucional, que definiu como um dos princípios


básicos o da universalidade, também um reforço por parte do texto da Carta Magna,
que, ao tratar da Seguridade Social, assim definiu a questão da universalidade:

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações


de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a
assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência
social.

Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a


seguridade social, com base nos seguintes objetivos:

I - universalidade da cobertura e do atendimento

Dessa maneira, conforme transcrição dos artigos acima indicados nota-se que
um dos princípios basilares é justamente o da universalidade, seja no âmbito
constitucional, seja no âmbito infraconstitucional. Cumpre, contudo, entender a sua a
amplitude conceitual.
Neste sentido, pode-se buscar na doutrina esses delineamentos conceituais.
Cordeiro (2008, p. 55), assim define o princípio da universalidade:

Este princípio, no que tange à política previdenciária, considera que todos


têm os mesmo direitos de contribuir ao sistema para terem acesso aos
benefícios — a universalidade da cobertura — e da defesa contra todas as
adversidades e fatos que resultem em dificuldades de reposição de renda
para um indivíduo — universalidade do atendimento.

Destarte, denota-se que o princípio da universalidade possui dois vértices, por


assim dizer: um referente à cobertura e outro referente ao atendimento, nos moldes
do que é definido, aliás, pela própria Constituição da República no seu artigo 194.
Como consequência dessa divisão, conforme aponta Santos (2020), cumpre
identificar a universalidade em seu aspecto mais específico, referente a estes dois
tópicos: cobertura e atendimento.
23

Em relação à cobertura, também com base nos ensinamentos de Santos


(2020), pode-se deduzir que, em decorrência da garantia constitucional da
universalidade da cobertura, dá-se a todos os cidadãos a possibilidade de criar uma
relação jurídica no âmbito dos seguros sociais (denominada justamente de
cobertura).
Por outro lado, com base na universalidade do atendimento, conforme aponta
o doutrinador Jesus (2015), todos aqueles dentro dos requisitos legalmente
constituídos terão direito ao atendimento em caso de alguma adversidade ou fato
que acarrete uma dificuldade para sua renda e subsistência.
Um ponto relevante, decorrente da adoção do princípio da universalidade, é
que ele mitiga – ou, em outras palavras: elimina – o princípio da solidariedade, visto
que a decorrência deste princípio é justamente a obrigatoriedade, o que, em última
análise, é comum em sistemas de repartição simples, como o que fora adotado em
terras brasileiras:

A obrigatoriedade da contribuição aniquila o princípio mínimo de


solidariedade, assegurado pelo sistema de distribuição primária. Essa
verdadeira clivagem expressa-se na restrição aos direitos sociais de
proteção ao trabalho – árdua conquista dos trabalhadores, advinda da
determinação de suas lutas. Restringe mais, pois,introduz mecanismos
burocráticos, que modificam a atual estrutura de acesso e de concessão,
provocando uma crise em relação aos direitos de proteção social ao
trabalho (CARTAXO, 2003, p. 264).

Apesar das clivagens e contradições que a adoção deste princípio pela


Seguridade Social no Brasil tenha acarretado, fato é que, de acordo com o já
apontado anteriormente neste trabalho, este princípio se relaciona intimamente com
o princípio da dignidade da pessoa humana, também presente na Constituição da
República.
Assim o é porque, ao universalizar a cobertura e o atendimento, o princípio da
universalidade busca garantir, em termos práticos, a aplicação do princípio da
dignidade humana, ao impor que todos os cidadãos, uma vez diante de uma
adversidade, terão o atendimento e a cobertura devida, nos moldes da legislação
aplicável.
Assim, dada essa delimitação conceitual em relação ao princípio da
universalidade, bem como agir do princípio da dignidade da pessoa humana, cabe,
agora, trazer luz sobre o Benefício da Prestação Continuada, identificando-se,
24

sobretudo, seus contornos conceituais e definições adotadas na doutrina e na


legislação aplicável.

2.4 CONCEITO E DEFINIÇÕES APLICÁVEIS AO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO


CONTINUADA

Dado todo o histórico da Seguridade Social, o estudo relativo aos princípios


mais relevantes sobre a matéria legal e doutrinariamente previstos, parte-se para a
análise específica do benefício de Prestação Continuada.
De acordo com o que se teve oportunidade de afirmar anteriormente, o
Benefício de Prestação Continuada tem guarida constitucional, na dicção do artigo
203, inciso V, da Constituição da República de 1988:

A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de


contribuição à seguridade social, e tem por
objetivos:
– a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II – o amparo às crianças e adolescentes
parentes;
III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária.
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a
lei. (BRASIL, 1988, ART. 203)

Dessa forma, no amplo histórico da Assistência Social um dos tópicos


protegidos constitucionalmente, em 1988, é o do Benefício de Prestação
Continuada.
No entanto, conforme aponta Penalva (2010), apesar de o Benefício de
Prestação Continuada ter guarida constitucional desde 1988, foi somente em 1993,
com a Lei Orgânica da Assistência Social, que o Benefício de Prestação Continuada
restou definitivamente regulamentado. Mais ainda, em 1996, com o Decreto de n.
1744, de 1995, que o Benefício de Prestação Continuada acabou definitivamente
implantado em termos legais.
Na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (Lei nº 8.742, de 7 de
dezembro de 1993), o Benefício de Prestação Continuada da seguinte maneira:

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-


mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e
cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria
manutenção nem de tê-la provida por sua família.
25

Dessa maneira, pela transcrição do texto acima, o Benefício de Prestação


Continuada, equivalente a um salário mínimo, é garantido às pessoas com
deficiência bem como ao idoso com 65 anos.
Consoante se vê, para a percepção do Benefício de Prestação Continuada,
segundo aponta Santos (2022, p. 149), alguns tópicos são importantes (noção de
idoso, de pessoa com deficiência, bem como a ideia de não poder prover a própria
manutenção, além da questão do que se entende por família).
Quanto aos beneficiários do Benefício de Prestação de Continuada, discutir-
se-á tal ponto de maneira mais pormenorizada no próximo capítulo, o mesmo se
aplicando à questão do critério de miserabilidade e impossibilidade de prover o
próprio sustento.
Cabe, aqui, contudo, explicar o que se entende por família, nos termos da Lei
Orgânica da Assistência Social, bem como alguns outros tópicos doutrinários
referentes ao Benefício de Prestação Continuada.
Em relação à família, a Lei Orgânica, no § 1 do artigo 20 da referida lei, assim
define a questão:

§ 1o Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo


requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles,
a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros
e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

Essa alteração na concepção de família, promovida pela Lei n. 12.435 de


2011, foi realizada, conforme aponta Lima (2018), à revelia do presente na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, estando, pois, incompleta diante da
alteração do fluxo social pelas novas formas familiares reconhecidas atualmente.
Para, além disso, segundo aponta Prates (2018), o rol presente no § 1 do
artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social é taxativo, de modo que, não
obstante haja mais pessoas no “mesmo teto”, não se pode considerar que tais
pessoas constituam família nos termos da legislação aplicável.
Este ponto é relevante, para além de uma mera discussão conceitual, porque
as pessoas que não tenham grau de parentesco com o requerente do Benefício de
Prestação Continuada, ou que não estejam sob o mesmo teto, não serão
consideradas, do ponto de vista legal, como membros da família e não será
computada a renda do respectivo grupo familiar, de forma que, ainda que haja uma
26

renda significativa, não será tal valor considerado óbice à concessão do Benefício de
Prestação Continuada para o requerente, como apontado por Prates (2018).
Justamente por isso, no deferimento ou não do Benefício de Prestação
Continuada pleiteado pelo Requerente, um dos pontos que se avaliará é justamente
a ideia de parentesco e de família, no molde do artigo acima transcrito.
Diante disso, trazida aqui os contornos conceituais iniciais referente ao
Benefício de Prestação Continuada prevista na Lei Orgânica da Assistência Social,
pode-se, agora, no próximo capítulo, dada a conjuntura teórica já exposta, passar-se
a uma análise mais pormenorizada e específica, como a seguir se fará no presente
trabalho.
27

3 BENEFÍCIO DA PRESTAÇÃO CONTINUADA

Neste capítulo, através da verificação do conteúdo doutrinário produzido,


apresentar-se-ão os delineamentos conceituais referentes ao Benefício da
Prestação Continuada.
Inicia–se com a definição legal, doutrinária e jurisprudencial em relação aos
beneficiários, a fim de que se possa identificar os requisitos de miserabilidade.
Adicionalmente, identificar-se-á as mudanças realizadas no decorrer do tempo com
as mais diversas normas, bem como no âmbito jurisprudencial dado a importância
desse tópico para o presente trabalho.
Em seguida, abordar-se-á a discussão da impossibilidade de acumulação do
Benefício de Prestação Continuada com outros benefícios do âmbito da Previdência
Social. Por fim, expor-se-ão algumas características conceituais referentes ao
Benefício de Prestação Continuada, de forma a melhor entendê-lo.

3.1 BENEFICIÁRIOS

No âmbito legal, consoante o já indicado no capítulo anterior, o Benefício de


Prestação Continuada tem como destinatário de seu benefício duas classes de
pessoas: os idosos com 65 anos e as pessoas com deficiência.
Com efeito, esta é a exata transcrição do artigo 20 da Lei Orgânica da
Assistência Social, senão veja-se:

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-


mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e
cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria
manutenção nem de tê-la provida por sua família.

Dessa maneira, pela transcrição do texto do artigo, o Benefício de Prestação


Continuada, equivalente a um salário mínimo, é garantido às pessoas com
deficiência bem como ao idoso com 65 anos.
Este ponto, contudo, pode ser mais bem entendido visto que, no âmbito
jurisprudencial e legal, algumas alterações e interpretações foram criadas a respeito
dos beneficiários englobados no Benefício de Prestação Continuada.
Consoante se identifica na redação original da LOAS, nos termos apontados
por Santos (2020), nota-se que esta possuía a seguinte redação:
28

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário


mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70
(setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.

Dessa maneira, na redação original, tinham-se como beneficiários do


Benefício de Prestação Continuada à pessoa portadora de alguma deficiência e o
idoso, considerando, na referida lei, como aquele maior de 70 (setenta anos).
Já aí se percebem algumas diferenças em relação à redação atual, sobretudo
em relação a dois pontos principais: idade, pois esta foi alterada de 70 para 65 anos;
e também a redação em relação à deficiência, posto que na redação original tratava-
se como “pessoa portadora de deficiência”, ao passo que, na redação atual, fala-se
em pessoa com deficiência, muito mais de acordo com a terminologia atual adotada
em outros diplomas normativos, segundo apontado por Santos (2020).
Quanto à pessoa com deficiência, esta foi entendida de diversas formas
durante as alterações que foram realizadas na LOAS, de acordo com os
ensinamentos de Silveira (2016). Realmente, de acordo com o referido autor, na
redação original da LOAS, a “pessoa portadora de deficiência” (conforme redação
original) era entendida, na forma do §2º do artigo 20, como sendo aquela incapaz
para uma vida independente e, adicionalmente, incapaz também para o trabalho.
Diante dessa definição, segundo Castro (2020), houve severas críticas, tanto
doutrinárias, quanto jurisprudenciais, pois tal definição acabava por confundir a
deficiência com a incapacidade, seja para o trabalho, seja para a vida, que, em
última análise, são questões diversas e não se confundem, motivo pelo qual, desde
a promulgação da lei, exigiu-se mudanças na definição trazida no bojo do diploma
normativo.
Exemplo de tal crítica no âmbito doutrinária é a trazida por Eugênia Fávero
(2004, p. 189):

No artigo 20, § 2º, a LOAS definiu o termo ‘pessoa portadora de deficiência’,


como se esta definição fosse necessária e já não constasse de outros
diplomas legais e infralegais. Fez muito mal, pois definiu pessoa com
deficiência, para efeito deste benefício, como aquela incapacitada para a
vida independente e para o trabalho (art. 20, § 2º). Tal definição choca-se,
frontalmente, com todo o movimento mundial pela inclusão da pessoa que
tem deficiência. Num momento em que se procura ressaltar os potenciais e
as capacidades da pessoa com deficiência, por esta lei, ela deve
demonstrar exatamente o contrário. Nossa Constituição, que não foi
observada pela LOAS, estabeleceu este benefício para a pessoa com
deficiência, e não para a pessoa incapaz, termos que não são sinônimos e
não deveriam ser associados para qualquer fim, sob pena de se estimular a
29
não preparação dessas pessoas para a vida em sociedade. Aliás, é o que
está acontecendo na prática, em razão dessa disciplina da LOAS. Muitos
pais acabam impedindo seus filhos com deficiência de estudar e de se
qualificar, justamente para não perderem o direito a esse salário mínimo.

Esse ponto também é reforçado por Santos (2020, p. 153), ao pontuar que,
em decorrência da definição legalmente adotada, acabava-se por criar empecilhos à
concessão do benefício, sobretudo em relação à comprovação de incapacidade para
o trabalho:
Então, parece-nos que o conceito trazido pela LOAS era equivocado e
acabava por tornar iguais situações de desigualdade evidente. E não é só:
ao exigir a comprovação da incapacidade para a vida independente e para o
trabalho, o que não é previsto pela Constituição, acabava por impedir a
integração de muitas pessoas com deficiência.

Diante disso, e de inúmeras outras críticas que foram realizadas à definição


legal adotada na LOAS, de acordo com Castro (2020), no decorrer do tempo, houve
mudanças nessa definição em relação à pessoa com deficiência até se chegar na
redação atual, cristalizada pela Lei n. 13.146 de 2015.
Realmente, em concordância com Costa (2016), desde a promulgação da
LOAS foram pelo menos quatro alterações promovidas em relação ao conceito de
pessoa com deficiência, quais sejam: em 1998, através da Lei n. 9.720; em 2011,
duas vezes, através das Leis ns.12.435 e 12.470; e, finalmente, em 2015, através da
já citada Lei n. 13.146, a qual, como se disse, vigora ainda hoje.
Atualmente, portanto, a LOAS considera como pessoa com deficiência, apta a
receber o Benefício de Prestação Continuada, aquela que tenha um impedimento de
longo prazo, seja ele de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, de forma
que possa impedir ou obstruir a participação plena e efetiva do cidadão em
igualdade com as demais pessoas (IVO, 2011).
Importa salientar que, na forma da LOAS, a deficiência, consistente neste
impedimento de longo prazo, será comprovada através de avaliação médica e social
por peritos e assistentes sociais do INSS, de acordo com o § 6º do artigo 20 da
LOAS. Adicionalmente, nos termos da mesma lei (artigo 20, §10º) o impedimento a
longo prazo é aquele que produza efeitos na pessoa com deficiência por, no mínimo,
dois anos.

Esse impedimento, adicionalmente, levará em linha de conta os padrões


internacionais relativos à matéria, consoante determina o Regulamento do LOAS em
seu artigo 16:
30
A concessão do benefício à pessoa com deficiência ficará sujeita à
avaliação da deficiência e do grau de impedimento, com base nos princípios
da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde
(CIF), estabelecida pela Resolução da Organização Mundial da Saúde n.
54.21, aprovada pela 54ª Assembleia Mundial da Saúde, em 22 de maio de
2001.

Diante dessa alteração legal, deficiências que não necessariamente impedem


o exercício de um trabalho, a exemplo do HIV, passam a permitir, dependendo do
caso concreto, a concessão do Benefício de Prestação Continuado. Exemplo
semelhante disso também é o transtorno do espectro autista que, conforme aponta
Santos (2020), é considerado, nos termos da Lei n. 12.764 de 2012, deficiência para
todos os fins legais, o que admite, como consequência, a concessão do referido
benefício.
Por outro lado, em relação à idade, essa também foi modificada, posto que,
segundo já informado, a redação original previa a idade de 70 anos para
recebimento do Benefício da Prestação Continuada, o que, em virtude de novos
diplomas normativos, acabou por ser alterado, consoante aponta Costa (2016, p. 7):

Quanto à idade mínima para concessão aos idosos inicialmente fixados em


70 anos, foi alterada, primeiramente, em 1998 com a redução de 70 para 67
anos e, posteriormente, em 2004 para 65 anos, atendendo ao disposto no
Estatuto do Idoso de 2003.

Com efeito, a redação atual, que estabelece a idade de 65 anos, decorre,


como apontado acima, do Estatuto do Idoso, visto que o referido diploma normativo,
em seu artigo 34, que assim definiu tal temática (BRASIL, 2022):

Art. 34. Às pessoas idosas, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não
possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua
família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário mínimo, nos
termos da Loas.

Dado todo esse contexto conceitual, legal e histórico trazido em relação aos
beneficiários do Benefício de Prestação Continuada, pode-se melhor identificá-los,
sendo, em síntese, aqueles com 65 (sessenta e cinco) anos ou com alguma
deficiência.

Em termos de nacionalidade, o Benefício de Prestação Continuada, de acordo


com o reconhecido pelo INSS, segundo aponta Castro (2020, p. 1.291), será o
brasileiro nato ou naturalizado, desde que comprove estar residindo no Brasil, além
dos demais requisitos legalmente exigíveis para a concessão do benefício ora em
31

comento.
Em relação aos portugueses, estes também terão direito ao recebimento do
benefício de prestação continuada nas hipóteses em que comprovem, além de
residirem no Brasil, os demais requisitos que a lei exige, bem como os
eventualmente constantes no decreto do Acordo de Seguridade Social, o Decreto n.
8.805 de 2016, que regulamenta a matéria.
Por fim, o estrangeiro residente no Brasil também terá direito ao recebimento
do Benefício de Prestação Continuada, nos termos da decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) que, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, fixou
a seguinte tese a respeito da temática envolvendo o estrangeiro residente no Brasil
e o recebimento do Benefício de Prestação Continuada:

Tema 173: Os estrangeiros residentes no País são beneficiários da


assistência social prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal,
uma vez atendidos os requisitos constitucionais e legais (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2022).

Para além dessas características, os beneficiários também terão de


comprovar a necessidade do recebimento do Benefício de Prestação Continuada,
motivo pelo qual, nesta altura do presente trabalho, cabe contextualizar alguns
apontamentos em relação ao requisito de miserabilidade.

3.2 REQUISITO DA MISERABILIDADE

Para o recebimento do Benefício de Prestação Continuada, para além dos


requisitos indicados no tópico anterior, quais sejam: deficiência e idade, é também
necessário o preenchimento do requisito de miserabilidade, segundo Santos (2020).
Na redação atual da LOAS, foi definido que, para o recebimento, deve a
pessoa com deficiência ou com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais comprovar “não
possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”
(BRASIL, 2022).

Dessa maneira, um dos requisitos para a concessão do Benefício de


Prestação Continuada é justamente aquilo conhecido doutrinariamente como
requisito de miserabilidade, de acordo com Castro (2020).
Para a legislação, a miserabilidade está caracterizada quando houver uma
renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo vigente, segundo
indica o artigo 20, §3º da LOAS (BRASIL, 2022):
32

§ 3º Observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei,


terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a
pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per
capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

Dessa maneira, no âmbito desse diploma normativo, criou-se no plano legal,


de acordo com o que aponta Machado (2021), um requisito objetivo para a
concessão do Benefício de Prestação Continuada.
Apesar disso, fato é que, conforme se abordará de forma mais aprofundada
no próximo capítulo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência vêm relativizando e não
adotando uma interpretação literal do referido artigo, consoante os apontamentos
realizados por Lazzari (2015, p. 27):

Os critérios para aferição do requisito econômico são polêmicos e segundo


orientação do STJ o magistrado não está sujeito a um sistema de tarifação
legal de provas, motivo pelo qual a delimitação do valor da renda familiar
per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de
miserabilidade do requerente.

Com efeito, no âmbito jurisprudencial há também esta tendência como da


prova, por exemplo, o seguinte julgado da Turma Nacional de Uniformização
(BRASIL, 2022a):

INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO INTERPOSTO PELA PARTE AUTORA.


BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. LOAS. DEFICIENTE. RENDA PER CAPITA
SUPERIOR A ¼ DO SALÁRIO-MÍNIMO. MISERABILIDADE PODE SER
AFERIDA POR OUTROS MEIOS. PRECEDENTES DO STJ E DA TNU.
INCIDENTE CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Ação de
concessão de benefício assistencial – deficiente proposta em face do INSS.
2. Sentença improcedente mantida pela Turma Recursal do Alagoas, ante a
ausência de miserabilidade pois a renda per capita é superior a ¼ do salário
mínimo. 3. Incidente de Uniformização de Jurisprudência manejado pela
parte autora, com fundamento no art. 14, § 2º, da Lei nº 10.259/2001.
O recurso foi indeferido pelo Presidente da Turma de origem, mas a sua
remessa foi permitida em virtude de agravo interposto pela parte autora. 4.
Alegação de que o acórdão é divergente de precedentes da jurisprudência
dominante do Superior Tribunal de Justiça. Dissídio jurisprudencial
instaurado. Similitude fática e jurídica amplamente demonstrada entre o
acórdão e os paradigmas.

O Julgado trazido, portanto, em sentença oriunda de discussão sobre o


benefício assistente por cidadão com deficiência, lidou com o questionamento sobre
a discussão relativa ao critério objetivo econômico de ¼ do salário mínimo (TNU -
BRASIL, 2022a):
33

6. No tocante a aferição da renda per capita da parte autora ser ou não


superior a ¼ do salário mínimo, é entendimento esposado por esta Turma
Nacional de Uniformização e pelo Superior Tribunal de Justiça que, no caso
concreto, o magistrado poderá se valer de outros meios para aferição da
miserabilidade da parte autora, não sendo, desta feita um critério absoluto.
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. BENEFÍCIO DE
PRESTAÇÃO CONTINUADA. LOAS. ASSISTÊNCIA SOCIAL. PREVISÃO
CONSTITUCIONAL. AFERIÇÃO DA CONDIÇÃO ECONÔMICA POR
OUTROS MEIOS LEGÍTIMOS. VIABILIDADE. PRECEDENTES. PROVA.
REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N.º 7/STJ. INCIDÊNCIA. 1. Este
Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de que o
critério de aferição da renda mensal previsto no § 3.º do art. 20 da Lei n.º
8.742/93 deverá ser observado como um mínimo, não excluindo a
possibilidade de o julgador, ao analisar o caso concreto, lançar mão de
outros elementos probatórios que afirmem a condição de miserabilidade da
parte e de sua família.

Nesse sentido, portanto, vislumbra-se que o Superior Tribunal de Justiça se


manifesta no sentido de que o critério legal de aferição de renda constante no §3º do
artigo 20 da Lei n. 8.742/93, atua somente como um critério mínimo, podendo o
julgador valer-se de outros elementos probatórios para identificação da
miserabilidade do cidadão que requer o benefício de prestação continuada.
Justamente por isso, estabelecidas essas premissas no julgado em comento,
seguiu-se na seguinte maneira o julgamento (TNU -BRASIL, 2022a):

2. "A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser
considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros
meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja,
presumese absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda
per capita inferior a 1/4 do salário mínimo." (REsp 1.112.557/MG, Rel. Min.
NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 20/11/2009).
.............
4. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag
1394595/SP.AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO
2011/0010708-7/ Relator(a) Ministro OG FERNANDES (1139) / T6 - SEXTA
TURMA/ Data do Julgamento 10/04/2012/ Data da Publicação/Fonte DJe
09/05/2012) 7. Não obstante, o critério objetivo da miserabilidade de ¼ do
salário mínimo, previsto pelo art. 20, §3º, da Lei 8742/1993, foi declarado
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, conforme RE 567985/MT,
rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 17 e
18.4.2013, RE 580963/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, 17 e 18.4.2013 e Rcl
4374/PE, rel. Min Gilmar Mendes, 18.4.2013 (Fonte: Informativo de
Jurisprudência n° 702 – Brasília 15 a 19 de abril de 2013). 8. Segue
transcrição do aresto debatido para melhor elucidação da questão: “Apesar
da conclusão do perito(a) judicial, verifico que o genitor da parte autora,
JANEILSON GOMES DOS SANTOS, percebe uma remuneração mensal
superior a R$ 700,00(anexo 18), sendo o grupo familiar formado pela parte
autora, seus pais e um irmão, a renda mensal per capita do grupo familiar é
superior ao limite exigido em lei, o que afasta a alegação de
hipossuficiência.” 9. Ora, dividindo-se a remuneração percebida pelo genitor
da parte autora pelos membros familiares, chega-se a uma renda per capita
34
de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais). Não se pode olvidar que ¼ do
salário mínimo hoje equivale a R$ 169,50 (cento e sessenta e nove reais e
cinquenta centavos). Diferença ínfima de valores. O critério da renda per
capita de ¼ do salário mínimo não é absoluto, podendo, a miserabilidade,
ser aferida por outros meios. 10. Incidente conhecido e parcialmente provido
para, reafirmar a tese de que o critério objetivo da miserabilidade pela renda
per capita de ¼ do salário mínimo não é absoluto – tendo inclusive sua
inconstitucionalidade declarada, ANULAR a sentença e o acórdão recorrido
e devolver os autos ao Juizado Especial de origem, para que examine os
demais elementos de fato, proferindo decisão adequada ao entendimento
uniformizado.

No julgamento acima, enxerga-se explicitamente o posicionamento dos


julgadores no sentido de que o critério quantitativo é apenas um elemento mínimo na
definição da miserabilidade não sendo, como apontam o julgado e a doutrina, o
único, tampouco o preponderante.
Isto porque, ao adotar-se tal critério de forma absoluta, como limitar de acesso
ao Benefício de Prestação Continuada, estar-se-ia assumindo, implicitamente, que a
pessoa com deficiência ou com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que recebesse
um valor ligeiramente acima do definido em lei, e ainda assim abaixo do salário
mínimo, teria sua dignidade e patamar mínimo existencial garantido, o que
certamente é incongruente com a ordem constitucional criada a partir da
Constituição de 1988, em concordância com o apontado por Santos (2020).
Destarte, em consonância ao apontado e explanado por Triches (2018), o
critério de miserabilidade previsto na LOAS é interpretado como uma presunção
absoluta para o preenchimento do critério de miserabilidade. Em outras palavras, a
pessoa com deficiência ou com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que requer o
Benefício de Prestação Continuada terá seu benefício deferido ao comprovar que
possui renda per capita familiar inferior a um quarto do salário mínimo. Contudo,
caso tal comprovação não seja realizada, não se segue daí um indeferimento
automático do pedido de concessão do benefício; na verdade, o requerente do
benefício, uma vez não comprovado o preenchimento do requisito inscrito em lei,
deverá trazer outras provas a fim de comprovar a miserabilidade que daria azo ao
fornecimento do benefício pleiteado.

Mais recentemente, com a Lei n. 14.176 de 2021, essas ponderações


ganharam status legal a partir da introdução no artigo 20 dos § 11 e 11-a, com as
seguintes redações:
35
§ 11. Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo,
poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de
miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme
regulamento.
§ 11-A. O regulamento de que trata o § 11 deste artigo poderá ampliar limite
de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º deste artigo para até 1/2
(meio) salário-mínimo, observado o disposto no art. 20-B desta Lei.

Dessa forma, seguindo os entendimentos pacificados no âmbito


jurisprudencial e doutrinário, as alterações legislativas cristalizaram no ordenamento
jurídico que o requisito de miserabilidade não se limita tão somente ao critério
objetivo e fracionário relativo ao salário mínimo, podendo-se adotar outros
elementos probatórios.
Importa salientar também a extensão do termo “renda”, trazido pelo LOAS, no
§3º do artigo 20. Isto porque, de acordo com o Decreto n. 7.617, de 2011, a renda
mensal bruta se traduz na (BRASIL, 2011):

soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da


família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias,
benefícios de previdência pública ou privada, seguro-desemprego,
comissões, pró-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado,
rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do
patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada.

Aditivamente, em concordância com a própria delimitação trazida pelo § 9º do


artigo 20 da LOAS, os rendimentos do beneficiário que decorrerem de estágio
supervisionado ou ainda de contrato de aprendizagem não serão computados no
critério de renda familiar.

3.3 VEDAÇÃO DA ACUMULAÇÃO COM OUTROS BENEFÍCIOS

Preenchido os requisitos apontados nos outros pontos do presente trabalho, o


beneficiário fará jus ao recebimento do Benefício de Prestação Continuada. Esse
recebimento, contudo, não poderá ser acumulado com outros benefícios, de acordo
com o exposto por Castro (2020, p. 1.256):

O BPC não pode ser acumulado com qualquer outro benefício (assim
entendidas as prestações de caráter pecuniário) no âmbito da Seguridade
Social ou de outro regime, inclusive o seguro-desemprego, ressalvados o de
assistência médica e a pensão especial de natureza indenizatória.

Essa restrição tem base na própria LOAS, que, no artigo 20, §4º, impede a
acumulação com outros benefícios (BRASIL, 2022):
36

§ 4o O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo
beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro
regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza
indenizatória.

Assim, salvo nas hipóteses em que se esteja tratando de assistência médica


ou de pensão especial de natureza indenizatória, o Benefício de Prestação
Continuada não poderá ser acumulado com outros benefícios concedidos pelo
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Nada obstante, dentro de uma mesma família, poderá haver mais de um
beneficiário do Benefício de Prestação Continuada, isto porque, nos termos do artigo
20, § 15, ficou estabelecido que “o benefício de prestação continuada será devido a
mais de um membro da mesma família enquanto atendidos os requisitos exigidos
nesta Lei” (BRASIL, 2022).
Desse modo, o que se impede a acumulação dos benefícios em uma mesma
pessoa, não se impedindo, com isso, que dentro da mesma família haja tal
impedimento, dado o caráter personalíssimo do benefício, segundo indica Machado
(2021).

3.4 CARACTERÍSTICAS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA

Entendido quem são os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada,


assim como os requisitos para a sua concessão, importa agora trazer à lume
algumas de suas características, porquanto essenciais à presente temática.

Neste sentido, ressalta, inicialmente, entender a origem da sua nomenclatura,


podendo, nesta toada, valer-se dos ensinamentos de Santos (2020, p. 147), que da
seguinte maneira aborda tal questão:

A lei, impropriamente, denomina esse benefício como Benefício de


Prestação Continuada (BPC), porque, na sua maioria, os benefícios são de
prestação continuada, uma vez que pagos mês a mês desde o termo inicial
até o termo final.

O benefício, portanto, tem tal nomenclatura em virtude de seu pagamento dar-


se mês a mês, justamente de forma continuada. Ademais, de acordo com Ramos
(2019), o Benefício de Prestação Continuada tem como data de início a data de
entrada do requerimento para recebimento, de forma que, enquanto estiverem
presentes as condições que deram causa ao seu fornecimento, ele permanecerá
sendo devido.
37

Ainda, de acordo com Silva (2017), nos casos em que o deferimento do


Benefício de Prestação Continuada se dê por conta de processo administrativo ou
ainda por conta de processo judicial, os efeitos da concessão devem retroagir até o
momento em que ocorreu o requerimento pela via administrativa, ou, inexistindo, a
data de início será a do ajuizamento da ação judicial.
Assim se dá por conta do entendimento consolidado na Súmula 22 da Turma
Nacional de Uniformização, na qual ficou definido que o termo inicial do benefício é a
data do requerimento administrativo.
Por outro lado, em concordância com Pereira (2022) a cessação do benefício
dar-se-á nos casos em que as condições que deram causa ao deferimento não mais
subsistirem, a exemplo da questão da miserabilidade. Além deste ponto, também
haverá a cessação do benefício no caso de morte do beneficiário, ou ainda nas
hipóteses em que o beneficiário, quando da revisão do benefício (a cada dois anos),
não comparecer para a realização do exame médico pericial realizado pelo INSS.
Também no momento da revisão do benefício haverá a cessação caso o beneficiário
não apresente a documentação exigida relativa, sobretudo ao seu grupo familiar. Por
fim, haverá o fim do benefício nos casos em que o beneficiário não realize a
inscrição ou atualização de seu cadastro no CADÚNICO, por conta da obrigação
decorrente do Decreto n. 8.805 de 2016, que impõe tal questão.

Também haverá a suspensão do benefício nos casos em que o beneficiário


exercer atividade remunerada, de acordo com o artigo 21-A da LOAS:

Art. 21-A. O benefício de prestação continuada será suspenso pelo órgão


concedente quando a pessoa com deficiência exercer atividade
remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual. § 1o
Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que trata o
caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de pagamento
do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário adquirido direito a
qualquer benefício previdenciário, poderá ser requerida a continuidade do
pagamento do benefício suspenso, sem necessidade de realização de
perícia médica ou reavaliação da deficiência e do grau de incapacidade para
esse fim, respeitado o período de revisão previsto no caput do art. 21.
§ 2o A contratação de pessoa com deficiência como aprendiz não acarreta a
suspensão do benefício de prestação continuada, limitado a 2 (dois) anos o
recebimento concomitante da remuneração e do benefício.

Destarte, dado o avanço teórico já realizado no presente trabalho, cabe, no


próximo capítulo, trata-se especificamente do requisito de miserabilidade e das
decisões judiciais relativas ao tema proposto, visto que tal temática consubstancia a
problemática fundamental dessa pesquisa.
38

4 MISERABILIDADE E O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA

Neste capítulo, verificar-se-á os julgados relativos à questão econômica e da


miserabilidade como critérios para a concessão do benefício de prestação
continuada, bem como o conteúdo doutrinário a respeito da mesma matéria,
buscando-se identificar os posicionamentos externados em ambos os contextos.
Aditivamente, ampliando-se o escopo, traz-se alguns apontamentos em
relação ao mínimo existencial e a maneira como ela se relaciona com o já discutido
princípio-base da dignidade da pessoa humana.
Por fim, uma vez expostos esses contornos, serão traçadas algumas
indicações relativas à situação jurídico-econômica diante das decisões relativas ao
tema do Benefício de Prestação Continuada e como elas se relacionam com os
desafios da Assistência Social diante das novas organizações socioeconômicas.

4.1 MÍNIMO EXISTENCIAL E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A NOVA


ORDEM SÓCIO-ECONÔMICA COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988

Abordar os direitos fundamentais não é das tarefas mais fáceis. De fato,


Wolfang Sarlet, constata, com propriedade, a “existência de uma autêntica lacuna,
no sentido de uma ausência de propostas com relação à definição do conteúdo de
um conceito substancial de direitos fundamentais” (SARLET, 2010, p. 84).
A fim de superar tal lacuna, Marmelstein, divide o conceito em dois aspectos:
um ético (material); outro, normativo (formal). O primeiro aspecto indica que os
direitos fundamentais “são dotados de uma intensa carga axiológica, sendo, com
efeito, considerados como valores essenciais para uma existência digna”
(CESÁRIO, 2016, p. 88); o segundo aspecto, por sua vez, serve para demonstrar
que apenas são direitos fundamentais aqueles que se encontram catalogados no
bloco de constitucionalidade.
O que aparece de novo e revolucionário nessas ponderações é que elas
surgem como superação à perspectiva jurídica da burguesia que privilegiava o
individualismo, admitindo que, atualmente, os interesses que devem ser tutelados
são de ordem coletiva e, portanto, não podem ser abarcados pela estreita visão
individualista. Nasce, pois, a terceira dimensão dos direitos fundamentais (SARLET,
2010).
Além disso, diferentemente do Estado Social em que os direitos fundamentais
calcados na Constituição eram, na melhor das hipóteses, apenas declarações de
boas intenções, no Estado Democrático de Direito os direitos fundamentais
adquirem verdadeira força normativa, sendo sua aplicabilidade imediata, como bem
39

dispõe a Carta Magna (SARLET, 2010).


Entretanto, importante ressaltar que, conquanto a aplicação seja imediata,
baseando-se na teoria do mínimo existencial, deve-se levar em consideração a
“reserva do possível”, dado que os direitos, quando aplicados, geram gastos e não
podem ser aplicados indistintamente.
Com efeito, “a ‘reserva do possível’ deve ser compreendida, em termos
didáticos, como aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da coletividade”
(CESÁRIO, 2016, p. 88).
A reserva do possível, portanto, pode ser definida como sendo uma "condição
da realidade que influencia na aplicação dos direitos fundamentais" (ELBERT, 2011,
p. 47).
Nesse sentido, a reserva do possível apontaria para o fato de que a prestação
dos serviços públicos estatais estaria limitada pela disponibilidade dos recursos. A
aplicação de tais recursos, por sua vez, restaria a ser determinada pelo Poder
Público, sobretudo através do Poder Legislativo (ELBERT, 2011, p. 47).
Se a reserva do possível, de certa maneira, acaba por limitar a atuação do
poder estatal por conta da escassez, dando um caráter omisso ao Poder Executivo
Federal e ao Estado como um todo, a ideia de um mínimo existencial surge, em
contrapartida, como contrapeso dessa teoria.
Isso porque a ideia de um mínimo existencial, enquanto decorrência do
princípio da dignidade da pessoa humana, surge como forma de se garantir aos que
mais precisam um minimum de prestações estatais, sobretudo na forma de se
garantir a efetivação dos direitos sociais, essencial quando se pensa no papel
exercido pela Assistência Social e, em destaque, pelo Benefício de Prestação
Continuada (SARLET, 2011).
Em face dessa nova situação social e jurídica trazida pela Constituição da
República de 1988, ainda que se possa (melhor: que se deva) falar em direitos
sociais juridicamente garantidos e vinculados, não se pode olvidar as limitações
fáticas e orçamentárias existentes, consonante dá prova a noção de reserva do
possível (ALEXY, 2008).

Dessa maneira, a miserabilidade deve ser mitigada pelo Benefício de


Prestação Continuada, e pela Assistência Social como um todo, este ponto,
entretanto, diante de oscilações interpretativas, seja do ponto de vista
jurisprudencial, seja do ponto de vista doutrinário, gerou uma significativa
insegurança jurídica, como se demonstrará a seguir.
40

4.2 RENDA MENSAL FAMILIAR E A MISERABILIDADE: OSCILAÇÕES


JURISPRUDENCIAIS E DOUTRINÁRIAS

Como já exposto nos tópicos anteriores, nos termos da Lei nº 12.435 de 2011,
a família legalmente entendida para fins de benefício de prestação continuada é
aquela constituída por, além do requerente, cônjuge ou companheiro, os pais,
madrasta ou padrasto, os irmãos, desde que sejam solteiros, filhos, enteados,
também sendo necessário que sejam solteiros, e os filhos ou menores de idade
tutelados (VIANNA, 2022, p. 30).
Para esses casos, também se exige, segundo dispõe a da lei, que todos
convivam na mesma residência para que sejam considerados no critério de renda
familiar e, assim, deem azo à concessão do Benefício de Prestação Continuada
(SANTOS, 2022).
Considerando-se essas premissas, estabelece a LOAS (art. 20) que terá
direito ao benefício de prestação continuada o idoso ou pessoa com deficiência cuja
renda familiar seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo vigente, o que,
atualmente, tendo em vista ser o salário mínimo R$ 1.212,00 (mil duzentos e doze
reais), seria o equivalente a R$ 303,00 (trezentos e três reais) (BOCAYUVA, 2022).
Diante dessa interpretação literal e objetiva da norma posta, poder-se-ia,
como aponta Vianna (2022, p. 30), dizer-se que um casal com dois filhos, sendo um
deles pessoa com deficiência, não teria direito ao Benefício de Prestação de
Continuada caso o pai ou mãe recebesse um salário mínimo na atividade laboral por
ele exercida.
Tal situação, ao menos inicialmente, teria uma resposta pelo Poder Judiciário
confirmando esta interpretação, como dá prova o seguinte excerto de julgado
oriundo do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1995):

MEDIDA LIMINAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.


CONCEITO DE “FAMÍLIA INCAPAZ DE PROVER A MANUTENÇÃO DA
PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA OU IDOSA” DADO PELO PAR.
3. DO ART. 20 DA LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (LEI Nº
8.742, DE 7.12.93) PARA REGULAMENTAR O ART. 203, V, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Arguição de inconstitucionalidade do par. 3.
do art. 20 da Lei nº 8.472/93, que prevê o limite máximo de 1/4 do salário
mínimo de renda mensal per capita da família para que seja considerada
incapaz de prover a manutenção do idoso e do deficiente físico, ao
argumento de que esvazia ou inviabiliza o exercício do direito ao benefício
de um salário mínimo conferido pelo inciso V do art. 203 da Constituição. 2.
A concessão da liminar, suspendendo a disposição legal impugnada,
faria com que a norma constitucional voltasse a ter eficácia contida, a
qual, por isto, ficaria novamente dependente de regulamentação legal
para ser aplicada, privando a Administração de conceder novos
benefícios até o julgamento final da ação. 3. O dano decorrente da
41
suspensão cautelar da norma legal é maior do que a sua manutenção
no sistema jurídico. 4. Pedido cautelar indeferido (grifou-se).

Diante desse entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal em 1995,


portanto, poder-se-ia entender que a situação anteriormente descrita seria
justificável, ao menos do ponto de vista objetivo e legal.
Em 2004, segundo esclarece Goes (2022), o Supremo Tribunal Federal
novamente se viu diante de questionamentos sobre essa interpretação objetivista da
legislação e, mais uma vez, reforçou o entendimento já publicizado em 1995:

RECLAMAÇÃO. SALÁRIO MÍNIMO. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA FÍSICA


E IDOSO. ART. 203. CF. A sentença impugnada ao adotar a fundamentação
defendida no voto vencido afronta o voto vencedor e assim a própria
decisão final da ADI 1.232. Reclamação procedente.

Foi somente três anos depois, em 2007, que o Supremo Tribunal Federal,
segundo Vianna (2022), foi alterar seu entendimento na Reclamação nº 4.374, na
qual o pedido de liminar realizado pelo INSS foi indeferido, ao argumento de que o
inciso V do artigo 203 deveria ser reinterpretado:

[...] Portanto, mantendo-se firme o posicionamento do Tribunal em relação à


constitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93, tal como esposado
no julgamento da ADI 1.232, o mesmo não se poderia afirmar em relação ao
que decidido na Rcl – AgR 2.303/RS, Rel. Min. Ellen Gracie (DJ 1.4.2005).
O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do
salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado
de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício
assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição. Entendimento
contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl
2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3º
do art. 20 da Lei nº 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se
aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203,
inciso V, da Constituição. A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203
da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por
esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização
do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93. Diante de todas essas perplexidades
sobre o tema, é certo que o Plenário do Tribunal terá que enfrentá-lo
novamente. Ademais, o próprio caráter alimentar do benefício em referência
torna injustificada a alegada urgência da pretensão cautelar em casos como
este. Ante o exposto, indefiro o pedido de medida liminar.

Nesta decisão, não obstante se tenha considerado o §3º do artigo 20 da


LOAS como constitucional, o Supremo Tribunal Federal avançou no sentido de
reconhecer que o critério estabelecido na legislação não é o único e pode ser
conjugado com outras formas probatórias que denotem a miserabilidade do cidadão
42

que pleiteia o recebimento do Benefício de Prestação Continuada.


Esse entendimento avançou definitivamente quando o Supremo Tribunal Federal
deu nova interpretação ao inciso V do artigo 203 da Constituição da República, ao
assim decidir (VIANNA, 2010, p. 32):

Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art.


203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS),
ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu os
critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido
aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir
meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.2.
Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da
norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232.Dispõe o art. 20, § 3º,
da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da
pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per
capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.O requisito
financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao
fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social
fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto
constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade
1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do
art. 20, § 3º, da LOAS.3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos
preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios
definidos pela Lei 3.742/1993. [...] 4. Declaração de inconstitucionalidade
parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993.
5. Recurso extraordinário a que se nega provimento (grifou-se).

Diante da declaração de inconstitucionalidade parcial realizada pelo Supremo


Tribunal Federal, em que, de forma definitiva e explícita, reconhece-se que o critério
econômico-objetivo não é o único, consolidou-se na jurisprudência tal entendimento,
o que acabou por desembocar nos Tribunais Superiores, a exemplo do Superior
Tribunal de Justiça (BRASIL, 2013):

PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO


ESPECIAL.BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ART. 20, § 3º, DA LEI N. 8.742/93
(LOAS). NECESSIDADE OU HIPOSSUFICIÊNCIA SÓCIO-ECONÔMICA.
CONSTATAÇÃO DA RENDA PER CAPITA INFERIOR A 1/4 DO SALÁRIO
MÍNIMO POR INDIVÍDUO ATRAVÉS DE OUTROS MEIOS. ACÓRDÃO
RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM O ENTENDIMENTO ASSENTADO
NO RESP N. 1.112.557/MG, JULGADO SOB O RITO DO ART. 543-C DO
CPC. 1. Segundo decidido no REsp n. 1.112.557/MG, submetido a
julgamento pelo rito do artigo 543-C do CPC, “A limitação do valor da
renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se
comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas
um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-
se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per
capita inferior a 1/4 do salário mínimo”. 2. Agravo regimental não provido.
43

Apesar da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, fato é que, de


acordo com Santos (2022, p. 141), tal ponto não restou pacificado na doutrina, e até
mesmo na jurisprudência. Isso porque, após o Supremo Tribunal Federal declarar a
inconstitucionalidade do §3º do artigo 20 da LOAS, alguns doutrinadores, como do
Santos (2022), concluíram que o requisito econômico havia sido excluído da ordem
jurídica, não havendo mais, portanto, critério objetivo para a aferição da
miserabilidade exigida na LOAS, cabendo ao Juiz, fundando-se em seu livre
convencimento motivado, identificar a (não) existência da miserabilidade e, por
conseguinte, conceder (ou não) o benefício pleiteado. Esse cenário, se reconhecido
de forma generalizada, levaria a um subjetivismo incompatível com a ordem jurídica
(BOBBIO, 1999).
Atualmente, em face disso, houve tentativas de padronização do critério de
miserabilidade, até mesmo para a fixação de formas de sua comprovação, a
exemplo do definido pela Súmula 79 do Tribunal Nacional de Uniformização: “Nas
ações em que se postula benefício assistencial, é necessária a comprovação das
condições socioeconômicas do autor por laudo de assistente social, por auto de
constatação lavrado por oficial de justiça ou, sendo inviabilizados os referidos meios,
por prova testemunhal”.
Para além desta aproximação teórica, em uma interpretação extensiva,
surgiram também na Doutrina propostas alternativas ao critério puramente
econômico-objetivo previsto de forma literal na LOAS, a seguir analisadas, tendo
como base os conceitos de mínimo existencial e reserva do possível.

4.3 IN CLARIS CESSAT INTERPRETATIO. PARA ALÉM DE UMA


INTERPRETAÇÃO LITERAL DA LOAS: O SALÁRIO MÍNIMO COMO GARANTIA
DO MÍNIMO EXISTENCIAL

No ramo da hermenêutica jurídica, há uma linha de interpretação ou atuação


(chamada de gramatical) representada pelo brocardo jurídico latino segundo o qual,
sendo a norma clara, deve-se cessar a interpretação (em latim: in claris cessat
interpretatio) (SOARES, 2019, p. 32).
Na problemática enfrentada por este trabalho, poder-se-ia, com base nessa
linha de interpretação, ater-se tão somente à descrição literal do §3º do artigo 20 da
LOAS e, portanto, concluir-se que, havendo renda per capita superior a ¼ (um
quarto) do salário mínimo, a pessoa com deficiência ou idoso não teria direito ao
recebimento do Benefício de Prestação Continuada (VIANNA, 2022).
44

Ocorre, entretanto, que esta linha de atuação no campo da hermenêutica


jurídica é superada e, na temática do presente trabalho, revela-se ainda mais
ineficaz (SOARES, 2019). Isso também no âmbito jurisprudencial, de acordo com as
explicações já realizadas noutros tópicos.
Ocorre, contudo, que há na seara do Benefício de Prestação Continuada um
amplo escopo subjetivo para concessão, o que, em última análise, servirá para
definir a garantia ou não do mínimo existencial, de acordo com a lógica social
implementada e reforçada pela Constituição da República.
Diante disso, em vista do subjetivo explorado de forma mais detalhada no
tópico anterior, alguns autores sugeriram critério para eliminá-lo, ou menos mitigá-lo.
Santos (2022, p. 143), por exemplo, propõe que, para a concessão do
Benefício de Prestação Continuada, tenha-se como critério fundamental o salário
mínimo:
Embora o STF tenha reconhecido a inconstitucionalidade da renda per
capita de 1/4 do salário mínimo e também do art. 34 do Estatuto do Idoso, a
nosso ver, a melhor forma de se avaliar a situação de necessidade ainda é
por meio do montante que dos ganhos do grupo familiar caberá a cada um
de seus integrantes. Na linha desse entendimento, pensamos que o valor
per capita a ser considerado, no caso, deverá ser o de um salário mínimo,
pois esse é o valor escolhido pela Constituição para qualificar e quantificar o
bem-estar social, assegurando os mínimos vitais à existência com
dignidade.

Por essa lógica, portanto, seria o salário mínimo o garantidor do mínimo


existencial às pessoas com deficiência ou idosos, nos termos da LOAS. Ocorre,
entretanto, que, sendo implementada, tal lógica acarretaria um desafio financeiro
significativo às contas públicas.
Com efeito, em conformidade com estudo feito pela Instituição Fiscal
Independente, a mera alteração do critério econômico para 1/2 (meio) salário
mínimo, conforme legislação proposta em 2021 acarretaria um impacto às contas
públicas de R$ 43 bilhões até 2030 (IFI, 2021):
45

Figura 1 - Impacto do aumento do BPC.

Neste sentido, portanto, a ideia de tornar o salário mínimo como garantidor do


mínimo existencial previsto na nova ordem jurídica instaurada pela Constituição de
1988 acaba por acarreta um custo inviável ao Estado, sobretudo quando se tem em
linha de conta que, adicionalmente aos R$ 43 bilhões, haveria, também, os gastos já
existentes, que, em 2021, foram de R$ 55 bilhões. Facilmente, portanto, chegar-se-
ia à casa dos R$ 100 bilhões, apenas com o Benefício de Prestação Continuada, o
que seria somada aos outros benefícios já pagos (PORTAL DA TRANSPARÊNCIA,
2022):
46

Figura 2 - Gastos do Governo Federal com benefícios sociais.

Os dados traduzem o difícil (senão impossível) cenário econômico trazido


pela implementação do posicionamento doutrinário segundo o qual o critério de
miserabilidade deveria tomar como base o salário mínimo.
No entanto, este cenário se torna ainda mais complexo quando se tem em
linha de conta os inúmeros processos (que também trazem custos consigo) em
relação ao Benefício de Prestação Continuada: em 2021, por exemplo, dos 4,7
milhões de benefícios ativos, mais de 541 mil foram adquiridos pela via judicial (IFI,
2021). Portanto, tomando-se como base o custo médio do processo judicial, de
acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (2011), é de R$ 4.685,39. Esse
número, multiplicado pela quantidade de benefícios concedidos pela via judicial,
aponta que o Executivo teve, adicionalmente aos valores acima indicados, o custo
de R$ 2.534.795.990,00 (dois bilhões e quinhentos e trinta e quatro milhões e
setecentos e noventa e cinco mil e novecentos e noventa reais) (IFI, 2021).
Defronte a esta conjuntura econômica, jurídica e social, nota-se que a ideia
difundida como panaceia ao subjetivismo do critério de miserabilidade não pode
prosperar, diante da noção da reserva do possível, que limita financeiramente a
possibilidade de se adotar ½ (meio) salário mínimo como critério e, muito menos, um
salário mínimo (IFI, 2021).
Assim sendo, ainda que se possa, acertadamente, criticar o subjetivismo
trazido pela legislação e pela jurisprudência, não se pode, contudo, partir para um
aumento indiscriminado do valor definido para a miserabilidade, pois, caso contrário,
esbarrar-se-ia com a reserva do possível e, mais ainda, com uma significativa
quebra das contas públicas (IFI, 2021).
Enquanto isso, salvo nos casos de judicialização, de acordo com o Acórdão
1.435/2020 do TCU, “as concessões administrativas acabam usando o critério de
renda do texto da lei, sem considerar outros critérios de miserabilidade” (IFI, 2021, p.
13).
Destarte, parece haver, de um lado, um subjetivismo em relação à concessão
ante a falta de critérios para miserabilidade ou, de outro lado, a fixação objetiva, que
pode acarretar baixos valores (caso do ¼ (um quarto) do salário mínimo) ou um
estouro das contas públicas (caso do salário mínimo).
47

5 CONCLUSÃO

O presente estudo teve por objetivo analisar os critérios utilizados, seja na via
jurisprudencial, seja na via legal e doutrinária, a respeito da miserabilidade e sua
relação para a concessão do benefício de prestação continuada.
Para tanto, tratou-se da evolução histórica da proteção social, tanto no Brasil
quanto no mundo. Estabelecido isso, passou-se a uma análise dos contornos
conceituais da Assistência Social, bem como dos princípios mais relevantes que
ordenam a noção da Assistência Social. Além disso, abordou-se, no segundo
capítulo, os conceitos e definições aplicáveis ao Benefício de Prestação Continuada,
seja do ponto de vista doutrinário, jurisprudencial ou legal.
Nessa análise, continuada no capítulo seguinte, viu-se que o Benefício de
Prestação Continuada tem como um de seus requisitos a miserabilidade do cidadão,
assim entendida como sendo a situação na qual a renda familiar (incluindo pessoas
no mesmo teto) seja, per capita, inferior a um quarto do salário mínimo, o que,
atualmente, é equivalente a R$ 303,00 (trezentos e três reais), sendo tal requisito,
adicionalmente, não possível de se acumular com outros.
Em seguida, constatou-se a identificação mais aprofundada da
miserabilidade, sobretudo diante das decisões judiciais e posicionamentos
doutrinários existentes. Nessas decisões, sobretudo oriundas do STF e STJ, ficou-se
definido que o critério objetivo previsto na legislação não era aplicável e, tampouco,
o único, motivo pelo qual são possíveis outras maneiras de se verificar a
miserabilidade do cidadão que pleiteia o benefício de prestação continuada.
Contudo, diante da ausência de um critério objetivo, há ainda uma
insegurança e subjetivismo, motivo pelo qual a doutrina sugeriu outros critérios, a
exemplo do salário mínimo, que, diante da realidade fiscal, mostrou-se inexequível
Diante de tudo isso, para se responder à pergunta problema (qual o
panorama do critério de miserabilidade apto a conceder um benefício assistencial de
prestação continuada à pessoa idosa ou ao deficiente que encontra barreiras para
participação plena e efetiva na sociedade em condições de igualdade com as
demais pessoas e que comprovem não possuir meios de prover sua própria
manutenção ou de tê-la provida através de seus familiares?), conclui-se que, não
obstante estejam acertadas as decisões e panoramas que fundam a miserabilidade
48

não somente em uma interpretação restrita e pretensamente objetiva da legislação,


é necessário que, para a concessão dos benefícios de prestação continuada, tenha-
se em linha de conta, também, os desafios socioeconômicos existentes, sobretudo
em uma perspectiva futura.
Adicionalmente, conclui-se também que é necessária uma ponderação mais
detida, seja por parte da doutrina, seja por parte do Poder Judiciário, tendo em vista
os pontos acima delineados.
Por conseguinte, o critério de miserabilidade necessita de um olhar mais
compassivo e voltado para a realidade das pessoas que carecem de um benefício
assistencial dessa natureza, de maneira que, efetivamente, haja o atingimento da
razão pela qual se propõe conceder condições mínimas de sobrevivência digna.
49

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