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Sebenta de Epistemologia da Enfermagem

Com a epistemologia pretendemos estudar a origem do conhecimento e a sua relação com a


explicação da realidade. É também conhecida como

No caso concreto da Enfermagem, pretende-se compreender:

 Como é que o conhecimento cientifico nasce e se desenvolve?


 Enfermagem tem conhecimentos próprios?
 Que conhecimentos a Enfermagem mobiliza?
 Porque é importante o conhecimento em Enfermagem

Capítulo 1 – História do Cuidar

1.1 – Fase Doméstica

Cuidar é a mais antiga prática do Mundo. A origem dos cuidados de Enfermagem remonta aos
tempos mais remotos da Humanidade. Nos primórdios, competia ao homem realizar as
atividades de uma maior exigência física, enquanto as mulheres colhiam os produtos que
advinham dos inícios da agricultura. Para além desta tarefa, competia às mulheres
assegurarem as necessidades básicas relacionas com a continuidade da espécie, desde o
nascimento até à morte. Contudo, na presença de uma doença mais grave, o recurso era feito
através de curandeiros. Esta fase é correspondente à Fase Doméstica na história do cuidar.

Com a progressão dos tempos, a experiência adquirida por estas mulheres permitiu
desenvolver um tipo de conhecimento que advinha precisamente deste acumular de
situações, e que era transmitida de geração para geração, estando na origem de um
conhecimento ainda hoje utilizado nas comunidades mais rurais, os “chás e as mezinhas”. Para
além deste conhecimento, também a prática relacionada com os cuidados ao nascer, assim
como o cuidar dos idosos era transmitido entre gerações. Além desta transmissão entre
gerações, sendo esta uma atividade independente, sem qualquer tipo de necessidade de
responder a um elemento hierarquicamente superior na comunidade, pressuponha que a
troca de conhecimentos e partilha de experiências pudesse ser realizado através de encontros
sociais entre estas mulheres dentro e fora das comunidades. Estas mulheres são conhecidas
como mulheres de virtude.

Do ponto de vista social, estas mulheres tinham um papel preponderante na sociedade, com
as mais velhas, devido ao conhecimento e respeito obtido pela sua prática de cuidados, a
serem muitas vezes as líderes das mesmas, ou seja, estando perante uma fase em que as
sociedades eram matriarcais. A acrescentar que apenas poderiam participar nos partos quem
já tivesse sido mãe, sendo este um requisito específico para acederem a esta atividade, com
impacto na sua possibilidade de acesso ao topo da comunidade.

Do ponto de vista económico, nesta economia mista em que as funções estavam distribuídas
por ambos os sexos, estas mulheres não tinham qualquer tipo de compensação, apesar de,
indiretamente, observar-se um impacto no modo como todos os membros poderiam
contribuir para a sociedade, ou seja, mantinham indiretamente a economia a funcionar
adequadamente pelo papel que desempenhavam no assegurar a continuidade de cuidados
(ex: uma sociedade doente é muito menos produtiva, logo gera menos riqueza).

1.1.1 – Bem vs Mal

Nesta fase existem dois tipos de cuidar. Um baseado no “Bem”, ou seja, no assegurar da
continuidade da espécie, aos cuidados ao longo da vida, desde o nascer ao morrer, e um outro
cuidar baseado no “Mal”. A necessidade de distinguir o Mal deve-se ao desconhecimento, isto
é, na presença de algo com o potencial de causar uma enfermidade. Por exemplo, o banhar-se
num lago que possuía um parasita e levava ao desenvolvimento de doença levava a que se
referenciasse que existia um mal naquele lago, mal este que desconheciam, mas que
necessitavam circunscrever de modo a levar que os elementos da comunidade não o
utilizassem para se banharem. Do mesmo modo, o desenvolvimento de uma infeção de uma
ferida, não existindo compreensão do porquê do seu desenvolvimento, leva à necessidade de
referir que é um “mal” (desconhecido”) que causa aquele problema, sendo nestes casos
chamado sempre o curandeiro/shaman.

Como podemos verificar, ambas as visões são importantes para a espécie, apesar da
perspetiva ser diferente, ou seja, uma procura um cuidar que assegura a continuidade da
espécie, compreendendo as especificidades associadas ao ciclo de vida (ou seja, o Bem), e
outra visa tratar o mal, recorrendo à sua circunscrição com o intuito de impedir que o mesmo
se alastre.

É importante reter que esta distinção ainda existe nos dias de hoje, tendo as suas raízes neste
tempo pré-histórico, adaptando-se à evolução do conhecimento. De notar que o problema não
se prende com esta distinção, mas sim com o foco de abordagem principal. Se o foco do nosso
cuidar estiver centrado no circunscrever o mal, vamos focar-nos no problema e não no
contexto, ou seja, vamos tratar de uma ferida numa perna, e não vamos pensar na abordagem
global que um cuidado centrado na pessoa nos permite. Se nos centrarmos na ferida vamos
procurar um tratamento com recurso a terapêuticas que podem aparentemente ser as
melhores para a situação, mas que, ao não terem em conta todas as condições associadas à
pessoa (ex: desnutrição, desidratação, necessidade de ser posicionado mais vezes), ou seja,
que não tenham em atenção todas as necessidades da pessoa, não irá ser eficaz.

Além deste aspeto, é importante compreender que, ao ter como base um “tratar a doença”, se
não conseguir ser eficaz no evitar a morte, vou-a considerar como uma derrota. Este aspeto
leva a que possam ocorrer situações na prática que levem ao prolongamento da vida da
pessoa para evitar a morte, mesmo quando esta é inevitável, prolongando o sofrimento da
pessoa (distanásia). Pelo contrário, uma visão que englobe a morte como um processo natural
do ciclo de vida, pode levar à promoção de uma morte tranquila.

Um enfoque maior no “mal” é observada nos dias de hoje no nosso sistema nacional de saúde,
com um rácio cerca de 3-4x superior nos cuidados diferenciados (ex: hospitais), onde se
procura circunscrever e tratar o “mal” (a doença, o problema), face aos cuidados de saúde
primário que visam mais o assegurar as necessidades da pessoa, promover a saúde (ex:
consultas de acompanhamento à criança, planeamento familiar, etc.).

Em conclusão, as duas visões são importantes. Por vezes é necessário tratar o “mal”, mas
devemos ter sempre em conta as necessidades da pessoa ao longo do seu ciclo vital, utilizando
este conhecimento para uma melhor prática do cuidar.
1.2 – Fase Vocacional

Dois momentos estão na origem desta mudança na prática do cuidar. A primeira relaciona-se
com os movimentos de emancipação da mulher na sociedade romana onde, ao recusar o
casamento, a mulher possui mais tempo livre por não ter de realizar as atividades domésticas,
tempo este que vai utilizar para dar apoio aos pobres e doentes. Deste modo, serão as virgens
quem assumem este cuidado, com grande impacto no modo como a sociedade valoriza a
virgindade. Este aspeto terá um forte impacto quando associado ao movimento descrito a
seguir.

O outro momento/movimento que gerou uma mudança na prática de cuidar, relaciona-se com
o surgimento do cristianismo e com as implicações associadas ao modo como a Humanidade
passa a compreender/ver o corpo. Passamos de uma visão onde corpo, espírito e ambiente
eram visualizados de modo integrado, e em que a prática de cuidar tinha em atenção estes
aspetos, para uma fase em que o corpo é prisão da alma, que impede o Homem de atingir o
além. Para além deste aspeto, começa-se a atribuir uma causa religiosa/espiritual à ocorrência
dos problemas de saúde, sendo os mesmos relacionados com a presença de um pecado. Deste
modo, as manifestações físicas serão manifestações de uma alma impura. Associado a este
aspeto, o facto de, de acordo com o Cristianismo, Jesus Cristo ter sofrido na cruz pelos pecados
do mundo, leva à crença que o Homem também deverá sofrer para expurgar os seus pecados.

Passamos então de uma fase (doméstica) em que corpo, espírito e mundo se interligam e em
que o cuidar se foca nesta relação entre todos os elementos, para um foco único e exclusivo
no cuidar da alma/espírito.

Com o evoluir dos séculos, a Igreja procura reter todo o conhecimento e a educação deste
mesmo conhecimento no seu seio. Deste modo consegue controlar todos os tipos de Poder.
Um destes conhecimentos que a Igreja procura reter no seu seio prende-se com a prática do
cuidar, levando à atribuição de uma origem do conhecimento das mulheres de virtude a
práticas relacionadas com feitiçaria/bruxedos, originando uma caça às bruxas e ao
desaparecimento progressivo deste conhecimento informal. A prática de cuidados deve estar
sob a alçada da Igreja, sendo que mesmo as parteiras (única prática permitida por estas
mulheres na sociedade), devem possuir algum tipo de formação regida pela Igreja. Toda a
restante prática de cuidados, no caso concreto, à alma, é realizada pelas Religiosas. Existe uma
distanciação dos cuidados físicos para um cuidado espiritual.

Estas Religiosas, à imagem da Virgem Maria, e com influência do movimento descrito


anteriormente relacionado com a emancipação das mulheres romanas, exige da sua parte o
voto de celibato e de renúncia aos prazeres carnais, uma vez que devem ser “puras” para
poderem cuidar da alma.

De notar que, o cuidar físico é, nesta fase, assegurada por pessoal subalterno, estando o tratar
do mal associado inicialmente aos monges e, posteriormente, com o contacto com o Mundo
Árabe, bastante civilizado, no séc. XIII, aos médicos, através do surgimento das primeiras
Escolas de Medicina. É nesta fase que surge a primeira profissão de saúde, no sentido que
exigia uma educação específica no seio da Igreja e com remuneração e reconhecimento social.
Contudo, esta prática tinha por base o expurgar o mal e não tão pouco o objetivo observado
nos médicos dos dias de hoje. Apesar de ser quase exclusivamente dominado pelos homens,
algumas mulheres poderiam ter acesso a estes cursos, mas, como seria expectável, apenas
quem pertencesse a famílias de status sociais mais elevados. Quem dispensasse esta formação
corria o risco de ser considerado feiticeiro(a). Esta caça às bruxas, assim como a Inquisição, são
movimentos de retaliação face a uma mudança que se anunciava.

Não é reconhecido valor ao mundo físico, existindo uma hipervalorização do mundo espiritual,
originando o desprezo pelos cuidados/práticas de higiene, com influência no surgimento de
cada vez mais doenças e infeções.

O desprezo por tudo o que é carnal, e com o objetivo de reduzir o acesso à tentação, estas
Religiosas são enclausuradas como método de prevenção. Este aspeto, apesar de
aparentemente não ser muito relevante do ponto de vista da saúde, acaba por levar a uma
mudança do modo assistencial, uma vez que anteriormente existia um cuidar da pessoa na sua
casa, na comunidade, levando este “pormenor” à obrigatoriedade do deslocar-se da pessoa a
necessitar de cuidados para os conventos. A Função hospitalar mantinha-se como atividade
anexa em relação à vida conventual. É nesta fase que observamos o surgimento dos primeiros
hospitais, com influência no modo como a assistência é realizada ainda nos dias de hoje.

Com o aumento cada vez maior das necessidades da sociedade, e com o advento da revolução
industrial (Séc. XIX), recupera-se parte das práticas ancestrais, assim como o movimento
assistencial na Comunidade, através das “Filhas da caridade”, que assumem uma vocação
menos religiosa, na medida em que realizavam apenas votos simples, privados, anuais. Ou
seja, começamos a observar um ponto de viragem que anuncia a “morte” desta forma de
cuidar.

Do ponto de vista social, e sendo a Mulher considerada impura, fonte de desejo carnal, as
Religiosas obtêm uma visão/perspetiva contrária, uma vez que são extremamente valorizadas
por serem virgens, puras.

Já do ponto de vista económico, as Religiosas não tinham qualquer tipo de remuneração,


sendo mão de obra barata a custo quase nulo, uma vez que requeriam alimentação e roupas,
prestando uma atividade exclusivamente vocacional. Deste modo, estas Religiosas
providenciavam um serviço gratuito, com elevado impacto económico muito positivo na Igreja
no sentido em que as doações que advinham deste ato por todas as classes sociais, largamente
ultrapassavam qualquer custo relacionado com o cuidar. Eram eixo de um sistema económico
de alto rendimento.

1.3 – Fase Técnica

Com o aparecimento e desenvolvimento das ciências, o modo como a realidade é


percecionada sofre uma enorme mutação. Começam-se a questionar os dogmas e a visão
espiritual do mundo, surgindo movimentos anticlericais que visam modificar o modo como
vemos o Homem e o Mundo. Com o aparecimento do RX, dos microscópios, com a genética, e
o afastamento das crenças religiosas como a Geração Espontânea para explicar o mundo,
começamos a obter uma visão mais real do mundo, inclusive do que está na origem das
doenças. Foi nesta época que se começam a identificar alguns agentes patogénicos e a se
estabelecer a sua relação com algumas patologias. Mais tarde foram descobertos os
antibióticos, melhorada a assepsia, com um maior controlo do ambiente.

1.3.1 – Florence Nightingale

Florence Nightingale, filha de uma família com elevado status social, e com acesso ao poder
em Inglaterra, teve acesso a uma educação digna de uma princesa. Florence surge numa época
em que existe um claro problema de saúde pública, inclusive nos locais de prestação de
cuidados, sendo que quem cuidava nestes locais possuía um baixo nível de educação,
utilizando conhecimento básico e pouco ou nada científico. Além disso, muitas destas pessoas
eram obrigadas a prestar cuidados, uma vez que a opção seria a prisão.

Florence, com o seu elevado nível de formação e educação, pela experiência adquirida nas
suas visitas a hospitais noutros países e na prestação de cuidados em instituições de saúde em
Inglaterra, compreendia a importância de um controlo ambiental para uma redução dos
fatores que influenciavam a saúde das pessoas. Devido ao fácil acesso ao poder, consegue ter
acesso à prestação de cuidados durante a Guerra da Crimeia, onde procura colocar em prática
esta sua visão do controlo do ambiente, tornando-se fundamental na redução das taxas de
mortalidade e morbilidade nos soldados. É interessante verificar que este controlo do
ambiente já era defendido por Hipócrates na Grécia Antiga, e como estes conhecimentos
foram ignorados durante séculos. Como enfermeira fez um estudo aprofundado dos relatórios
das comissões médicas e dos panfletos das autoridades sanitárias, assim como da história dos
hospitais ingleses, dos quais fez uma estatística. Passou a definir Enfermagem como alguém
que age sobre o corpo e sobre o ambiente, que era influenciador da saúde e da doença.

Nesta fase (1850-1900), a Enfermagem assume uma vertente virada para a Saúde Pública,
onde o controlo ambiental seria fundamental para a prestação de cuidados que reduzissem os
riscos e promovessem o desenvolvimento do ser humano nas condições ideais.

Contudo, a importância de Florence para a Enfermagem, prende-se com o facto de ter sido ela
a primeira a afirmar e demonstrar que seria necessário um grupo de profissionais (enfoque no
termo profissionais) com um nível adequado de formação e educação para o desenvolvimento
das suas competências. Além desta sua visão, foi ela, de certo modo, a primeira teórica ao ter
definido o nível de organização, as diretrizes dos cursos de Enfermagem e, acima de tudo, por
ter diferenciado a Enfermagem das restantes profissões/disciplinas e por ter sido a primeira a
definir ENFERMAGEM.

1.3.2 – Enfermeiro: Auxiliar do médico

O desenvolvimento científico e tecnológico trouxe enormes aportes à profissão médica.


Estamos neste período, finais do séc. XIX inícios do séc. XX, numa Medicina Científica, ao invés
do observado antes do desenvolvimento científico. Esta evolução trouxe uma enorme
revolução à profissão médica, aumentando significativamente o número de atividades e,
consequentemente, a carga de trabalho destes profissionais. Este aspeto levou à necessidade
de delegação de determinadas funções por parte destes profissionais noutro grupo. Pelo
reconhecimento obtido junto da comunidade médica por Florence durante a Guerra da
Crimeia, os médicos visualizam os Enfermeiros como o grupo que melhor preparado estará
para poder executar algumas tarefas consideradas básicas. Por este motivo, no início do séc.
XX, os médicos procuram desenvolver cursos de Enfermagem para a formação de enfermeiros
que desempenhem este tipo de tarefas. Procura-se que este grupo de enfermeiros apoiem o
médico, que preparem o material e realizem atividades delegadas. Com o evoluir do tempo
vamos assistir a uma complexificação das atividades desenvolvidas (ex: colocação de sondas
nasogástricas, colheita de espécimes, etc.).

1.3.3 – Cursos de Enfermagem

Estamos perante dois movimentos semelhantes, mas distintos neste final de séc. XIX-princípios
de séc. XX. Estes cursos diferenciavam-se na medida em que o defendido por Florence
Nightingale observava uma hierarquia e uma orientação assente num corpo docente de
enfermeiros, que procurariam desenvolver um ensino baseado nas diretrizes de Florence,
enquanto os cursos defendidos pelos médicos assentavam numa orientação médica, desde o
corpo docente ao diretor da escola, com um ensino que tinha como foco as necessidades dos
médicos, apesar de beberem parte das suas diretrizes no que foi definido por Florence.

Como seria expectável, devido às dificuldades relacionadas com o facto de Florence, apesar do
seu poder político, estar só contra todo um grupo profissional que apresentava uma
necessidade efetiva, tendo prevalecido esta segunda visão face à de Florence.

Este aspeto leva a que o enfoque/vertente dos cuidados, inicialmente centrados na Saúde
Pública, transitem para uma visão semelhante à dos médicos, ou seja, orientados para a
Doença. Contudo, ao se basearem nas diretrizes de Florence Nightingale, fica a semente da
origem da Enfermagem e da noção de uma diferenciação entre ambas as profissões, médico e
enfermeiro.

Capítulo II – À Procura da Identidade – Demarcação do Ascendente Médico

Como pudemos verificar até ao momento, o conhecimento da Enfermagem assenta-se na área


disciplinar da Medicina, seguindo deste modo uma abordagem centrada no modelo
biomédico.

Neste capítulo iremos procurar compreender o que esteve na origem desta contínua
construção da Profissão e Disciplina de Enfermagem, caminhando para a Fase Profissional.

Assim sendo, é importante compreender como tem evoluído o conhecimento da Enfermagem


de modo a compreender como esta se assume como disciplina do Conhecimento. Com o
intuito de explicar o desenvolvimento da ciência de Enfermagem, iremos compreender qual a
melhor teoria que possa explicar este mesmo desenvolvimento.

1.1 – Teorias do desenvolvimento do conhecimento

A Teoria da Revolução, desenvolvida por Kuhn, refere que as mudanças nas ciências se
produzem de forma repentina, radical e completa. Este autor afirma que as ciências se
desenvolvem por saltos e períodos de crise, isto é, as teorias competem entre si até à
predominância de uma sobre todas as outras. A um período de crise (definido como um
momento de rutura, necessidade de mudança), segue-se um período de tranquilidade,
durante a qual os membros de uma ciência aceitam a predominância de uma determinada
teoria. Kuhn defende que as crises são inevitáveis para o desenvolvimento de uma dada
ciência e que o desenvolvimento científico não é cumulativo (rompe com tudo o que está
definido anteriormente). Diz que os aspetos úteis de uma dada teoria não são apreciados e
que estas ideias de rutura total de uma ciência levam à crença que as disciplinas nos levam a
um determinado paradigma aceite num determinado momento.

As críticas apontadas a Kuhn prendem-se com o requisito de rutura total, impedindo que as
ciências sociais e humanas, assim como a Enfermagem, não pudessem ser consideradas
ciências, uma vez que não possuíam um modelo que as definisse como ciência e sobre o qual
pudesse existir uma rutura, pelo que se situariam num estadio pré-paradigmático.

Como alternativa foi proposta uma outra de nominada de Teoria da Evolução (1972) e
desenvolvida por Toulmin. Segundo esta teoria, há uma continuidade e uma mudança do mais
simples para o complexo e no sentido de uma maior coerência entre os conceitos. Esta teoria
tem como base a teoria da Evolução de Darwin, tendo Toulmin afirmado que cada disciplina
tem o seu campo de conceitos, áreas de preocupação metodologias e objetivos próprios, todos
eles em processo de mudança. Este processo de mudança é dotado de continuidade e caminha
num sentido de maior coerência. Outro aspeto defendido por Toulmin refere-se ao facto das
ideias, bem como os conceitos e metodologias, estão em permanente processo de discussão,
face às novas descobertas. Deste processo contínuo de mudança resulta a retenção de
conceitos e mutação de outros, numa dinâmica de mudanças, mas em constante estabilidade.
O terceiro aspeto refere que as alterações profundas ou substantivas num determinado campo
de conhecimentos, são reunidas em alguns critérios e condições. Uma das condições é a
existência de um grupo de pessoas qualificadas capaz de produzir novas ideias, e da existência
de um espaço de reflexão e discussão dessas novas ideias e conceitos. O último aspeto
referido por Toulmin afirma que a escolha das ideias, dos conceitos e das teorias mais úteis diz
respeito à capacidade para encontrar respostas para os problemas colocados pela disciplina
em determinado momento.

No caso da Enfermagem, pela dificuldade em existir acordo relativamente à existência de


indicadores de que a disciplina se encontra a desenvolver de um modo cumulativo, e
considerando as características específicas da Enfermagem e da sua própria evolução (com
altos e baixos), impediria a sua afirmação como ciência.

Deste modo, Meleis, através da Teoria da Integração (1991), afirma que a disciplina de
Enfermagem tem efetuado um percurso de desenvolvimento com características próprias
marcado por altos e baixos, e crises de desenvolvimento. Segundo esta autora:

 O desenvolvimento de uma teoria não está necessariamente baseado na investigação


nem esta leva necessariamente a uma teoria;
 Sempre existiram e continuam a existir áreas de acordo, a par de áreas de competição
e desacordo. Por ex., existem metodologias de investigação, diferentes conceitos
sobre cuidar, conforto, etc. Existem também áreas de acordo no que concerne aos
conceitos centrais da Enfermagem;
 Numa disciplina que lida com o ser humano, é pouco credível que uma única teoria
explique, descreve e prediz todos os seus fenómenos;
 Enfermagem age num sistema aberto e é influenciado e reage à sociedade em todo o
momento;
 Não se pode dizer que existam na Enfermagem comunidades organizadas que
suportem uma teoria em competição com outras;
 Pode dizer-se que existe compromisso entre antigos e novos conceitos de
Enfermagem;
 Em situação de mudança, os antigos paradigmas são redefinidos mais do que
rejeitados;
 Verifica-se a existência de debate de ideias, quer em torno de conceitos já
estabelecidos, quer na procura de novos caminhos.

Esta teoria não subestima a necessidade de desenvolvimento e progresso relativamente às


outras disciplinas.

1.2 – Paradigmas da Enfermagem

Paradigma pode ser entendido como um conjunto organizado de crenças, valores, leis,
princípios, metodologias e respetivas formas de aplicação para o qual as disciplinas deveriam
convergir.

1.2.1 – Paradigma da Categorização

Caracteriza-se por perspetivar os fenómenos de forma isolada, não inseridos no seu contexto e
por os entender dotados de propriedades definíveis e mensuráveis (corrente positivista).

As mudanças a partir desta perspetiva, são entendidas como consequência de fatores


anteriores perfeitamente identificáveis (relação causa-efeito). Deste modo, os fenómenos são
divisíveis em categorias, classes ou grupos definidos e considerados elementos isoláveis ou
manifestações simplificáveis.

Se aplicarmos este paradigma ao domínio da saúde, o pensamento é orientado na procura ou


no sentido de procura de um fator causal para as doenças e da associação entre esse fator e
uma determinada doença. Por sua vez, estas manifestações ou causas possuem caraterísticas
bem definidas, mensuráveis e categorizáveis. Cronologicamente podemos considerar o início
deste paradigma por volta do séc. XIX, altura em que se começaram a identificar alguns
agentes patogénicos e se estabeleceu a sua relação com algumas patologias. Mais tarde foram
descobertos os antibióticos, melhoraram as medidas de sepsia e assepsia, assim como o
controlo de infeções e acreditou-se ser possível o controlo e até a irradicação das doenças
transmissíveis. Dentro deste paradigma podem-se identificar duas orientações diferentes da
Enfermagem:

 Saúde Pública (1850-1900)


 Doença (1900-1950)

Na vertente orientada para a saúde pública, existe uma preocupação geral em melhorar as
condições de insalubridade em que se vivia. De notar que um dos grandes princípios de
Nightingale era criar as condições para que a natureza pudesse agir positivamente sobre as
pessoas, nomeadamente em medidas de higiene e melhoria da habitação e da saúde. Foi em
grande parte devido às medidas que Nightingale propôs durante a Guerra da Crimeia que ela
mereceu o respeito dos cirurgiões do exército, inicialmente renitentes à presença de mulheres,
tendo salvo imensas vidas com esta orientação.

A segunda orientação ocorre posteriormente e orienta-se para a doença. Segundo esta


orientação, a pessoa é entendida como um todo formado pela soma das suas partes que são
separadas e identificadas. O ambiente é algo distinto da pessoa e constituído por uma
dimensão física, cultural e social. A saúde é entendida como um estado de equilíbrio altamente
desejável sinónimo de ausência de doença. A origem da doença é reduzida a uma causa única
que orienta para o tratamento. As doenças físicas são consideradas uma entidade
independente do ambiente, da sociedade ou da cultura. Poder-se-á situar aqui o início da
Medicina técnico-científica, sendo o seu objetivo estudar a causa da doença, formular um
diagnóstico e propor um tratamento. Para além disso verifica-se uma marcada evolução
científico-tecnológica que permite à Medicina alargar os seus horizontes. Neste contexto, os
médicos passaram a ter menos tempo e começaram a delegar, pouco a pouco, as tarefas de
rotina às enfermeiras. Daí que venham progressivamente os enfermeiros a ter acesso ao
conhecimento médico. Elas começam a fazer pelo médico e pelo doente, realizando no caso
do doente, o que ele não é capaz de fazer, surgindo uma dupla dependência (médico e
doente). Nightingale, embora aceitasse que as enfermeiras deviam colaborar com o médico,
defende que deveriam ter uma formação específica. Contudo, como foi descrito
anteriormente, é a vertente da doença que se evidencia com o desenvolvimento dos cursos de
Enfermagem com orientação médica.

1.2.2 – Paradigma da Integração

Este paradigma perspetiva os fenómenos como multidimensionais e os acontecimentos como


contextuais. Deste modo, tanto são valorizados os dados objetivos como os subjetivos. Neste
paradigma, as mudanças são entendidas como função de múltiplos antecedentes de relações
probabilísticas, ou seja, este paradigma integra as manifestações de um fenómeno, no
contexto específico em que o mesmo se situa. O modo como a pessoa estiver no contexto vai
influenciar a cura e o efeito do agente patogénico. Este paradigma influenciou a orientação de
Enfermagem para a pessoa, ao contrário do paradigma anterior que via a pessoa como a soma
das partes, mas cada parte de modo isolado.

Esta orientação inicia-se nos anos 50 nos EUA, e é marcada por dois fatos principais. Em
primeiro lugar, a emergência de programas sociais e o desenvolvimento dos meios de
comunicação, decorrentes do fim da 2ª Guerra Mundial, que levou à criação de um sistema de
segurança social que desse resposta às necessidades das pessoas. Verificou-se também um
desenvolvimento notável das ciências sociais e humanas (psicologia, sociologia e antropologia,
por ex.). Nesta fase existe um reconhecimento da importância do ser humano na sociedade.
Neste contexto, começam a surgir as primeiras diferenciações entre a Enfermagem em relação
à Medicina.

De salientar que neste paradigma o grande objetivo dos cuidados de Enfermagem era agora a
manutenção da saúde em todas as dimensões da pessoa. O enfermeiro é responsável pela
avaliação das necessidades de ajuda à pessoa, tendo em conta a sua perceção e globalidade.
Dessa avaliação resultava um diagnóstico que era validade com a pessoa. O projeto de
prestação de cuidados passou a adquirir uma dimensão diferente e, a partir de aqui intervir
significava agir/fazer com. A pessoa passou a ser entendida como um todo formado por partes
tendo então surgido a expressão: “A pessoa como um ser bio-psico-socio-culturo-espiritual”.

Segundo esta perspetiva, a pessoa pode influenciar os fatores preponderantes para a saúde, se
tiver em conta o contexto em que se encontra e, simultaneamente, procurar as melhores
condições com vista a uma saúde ótima. Assim a saúde passou a ser encarada de forma
diferente. Saúde e doença passaram a ser perspetivadas como entidades distintas que
coexistem e estão em interação dinâmica.

Por sua vez, considera-se que o ambiente é constituído por diferentes fatores (históricos,
sociais, políticos…) onde a pessoa vive e se insere. As interações entre o ambiente e a pessoa
fazem-se sob a forma de estímulos positivos ou negativos e de reações de adaptação. Segundo
Kérouac, estas interações são circulares. A partir desta data, a maioria das conceções de
Enfermagem foram criadas tendo como orientação a pessoa, surgindo então, neste período, os
primeiros modelos concetuais para precisar a prática de cuidados de Enfermagem e para
orientar a formação e a investigação. Foi para orientar a formação desta década que as
enfermeiras começaram a desenvolver uma visão teórica da Enfermagem, cuja tónica era a
firmação pela diferença, relativamente ao Modelo Biomédico. A linguagem e a atitude das
enfermeiras modificam-se lentamente, quer na relação com o cliente onde começa a ser dada
preferência ao termo cliente em detrimento do termo doente, quer na forma sistematizada de
planeamento de cuidados, que vai desde a observação/colheita de dados, ao diagnóstico,
intervenção e avaliação.

Também é neste período que se inicia a investigação em Enfermagem surgindo nos EUA uma
publicação periódica, só para divulgar os resultados de investigação de Enfermagem (“Nursing
Research”). Nos anos 60, a investigação interessou-se principalmente pela melhoria dos
cuidados e pela ciência de Enfermagem.

Em todo este período, há dois factos relevantes a considerar. O primeiro tem a ver com o uso
inicial de quadros teóricos oriundos de outras disciplinas, nomeadamente das ciências sociais e
humanas. O segundo facto refere-se à estruturação dos currículos dos cursos de Enfermagem.
A nível da prestação de cuidados poder-se-á dizer que as modificações não foram tão visíveis
porque, apesar da orientação dos cuidados de Enfermagem para a pessoa como um todo, as
enfermeiras continuam focadas no desenvolvimento de tarefas.

1.2.3 – Paradigma da Transformação

Este paradigma perspetiva os fenómenos como únicos e em interação com tudo o que os
rodeia. As mudanças ocorrem por estádios de organização e de desorganização, mas sempre
em direção a níveis de organização superior. Isto é, um fenómeno é único no sentido em que
ele não pode jamais parecer-se completamente com outro.

Podemos situar o início deste paradigma em meados dos anos 70. Ele representa a base de
uma abertura das fronteiras, no plano cultural, depois no económico, e por fim, no político, em
que a cultural ocidental e oriental se influenciam mutuamente. É também neste contexto que
em 1978 ocorre a Conferência Internacional sobre os Cuidados de Saúde Primários, onde é
sublinhada a necessidade de proteger e promover a saúde de todos os povos do mundo. A
OMS elabora a declaração Alma-Ata (1978), onde se propõe um sistema de cuidados individual
e coletiva no planeamento e implementação de medidas de proteção sanitárias que lhes são
destinadas. Pela primeira vez, e de uma forma explícita numa declaração desta natureza, é
reconhecida às pessoas a capacidade e a possibilidade de serem agentes e parceiros nas
decisões de saúde que lhes dizem respeito e que inicialmente eram da única e exclusiva
responsabilidade dos técnicos de saúde.

Os cuidados de Enfermagem foram fortemente influenciados por esta abertura para o mundo.
Nesta perspetiva, os cuidados visam manter o bem-estar tal como a pessoa o define. Assim,
intervir neste paradigma significa “ser com” a pessoa, ou seja, o indivíduo e o enfermeiro
tornam-se parceiros de cuidados. O conceito de pessoa é definido como um todo indissociável
e maior que a soma das suas partes. A saúde é encarada como um valor e uma experiência
vividas segundo a perspetiva de cada um. Por sua vez, a experiência de doença é vista como
fazendo parte da experiência de saúde. Também neste paradigma, embora distinto da pessoa,
o ambiente e pessoa coexistem, encontrando-se em constante mudança e influenciando-se
mutuamente.

A investigação em Enfermagem é considerada algo de normal e necessária, sendo baseada nos


modelos concetuais próprios da disciplina de Enfermagem. Na prestação de cuidados, o
enfermeiro encara a pessoa como um todo, realizando cuidados globais, e com a pessoa como
parceiro de cuidados, sendo esta uma das diferenças mais significativas relativamente ao
paradigma anterior.

Em conclusão, passamos de um “fazer por” (paradigma da categorização), para um “fazer com”


(paradigma da integração), para um “ser com” (paradigma da transformação).

Capítulo 3 – Escolas do Pensamento

Estas escolas surgiram a partir dos anos 50 e é no mesmo período que, nos Estados Unidos, se
começa a desenvolver o paradigma da integração. Concomitantemente verificou-se o
aparecimento de diversas teorias na área das ciências sociais e humanas, tais como a teoria da
motivação humana de Maslow (1943, 1970), a teoria do "stress" de Selye (1965), a teoria do
desenvolvimento de Erikson (1971) e a teoria dos sistemas de von Bertalanffy (Moigne, 1977),
entre outras. Qualquer destas teorias é fundamental para a caracterização e compreensão do
paradigma da integração. A sua influência faz-se também sentir no aparecimento das escolas
de pensamento em enfermagem e nas características que estas assumiram. Já referimos que o
paradigma da integração se caracteriza pela orientação para a pessoa e acontece que qualquer
uma das primeiras quatro escolas de pensamento em enfermagem se caracteriza igualmente
pela sua orientação para a pessoa. Um outro fator que terá sido marcante no aparecimento
dessas escolas foi o primeiro programa de estudos graduados para enfermeiras oferecido pelo
Columbia University's Teachers College (Meleis, 1991). O contexto em que se revelaram as
escolas de pensamento em enfermagem, aliado à experiência e à formação das enfermeiras-
mentoras, é responsável pelas principais características que as escolas assumiram. Por último,
é relevante referir que embora Meleis (1991) afirme que se pode falar em teorização em
enfermagem desde Nightingale, o certo é que só a partir da década de 50 houve uma tentativa
de teorização sistemática. Assim, apenas consideraremos os modelos teóricos posteriores a
esta data.
De acordo com tudo o que atrás dissemos e com as suas bases científicas, podemos reagrupar
os conceitos da disciplina de enfermagem em seis escolas: a escola das necessidades, a da
interação, a dos efeitos desejados, a da promoção da saúde, a do ser humano unitário e a do
cuidar (Kérouac et al., 1994). As quatro primeiras são escolas orientadas para a pessoa,
enquadrando-se no âmbito do paradigma da integração. As duas últimas escolas caracterizam-
se por uma abertura para o mundo, enquadrando-se por isso no paradigma da transformação.

1.1 – A escola das necessidades

Nesta escola é notória a influência da teoria da motivação humana de Maslow (1943, 1970) e
da teoria do desenvolvimento de Erikson (1971). Sendo uma das escolas que se integra no
paradigma da integração, a sua orientação é para a pessoa. Neste contexto, o conceito de
pessoa assume uma importância central: É entendida como um ser em crescimento e em
mudança desde a conceção até à morte (Pearson & Vaughan, 1986). Entende-se ainda que
toda a pessoa possui um conjunto de necessidades, hierarquizadas de acordo com o grau de
importância, para a sua sobrevivência. Só após a satisfação das necessidades mais prementes
(i.e., respirar, comer, beber, eliminar, etc.), a pessoa ·estará capaz de se preocupar com outras
necessidades também elas importantes, mas não vitais (e.g., amor e pertença, auto e hetero-
estima, etc.). Assim, a pessoa desenvolve-se na tentativa de satisfazer as suas necessidades de
modo· autónomo. A pessoa necessitará de cuidados de enfermagem sempre que, por qualquer
razão, ela própria não consiga satisfazer as suas necessidades.

Os obstáculos mais frequentes à satisfação das necessidades são as situações de doença e,


deste modo, poder-se-á dizer que as enfermeiras têm por objetivo assistir a pessoa naquilo
que ela não consegue fazer sozinha, sempre no pressuposto da recuperação da independência
ou da capacidade de autocuidado.

O principal papel assumido pela enfermeira será o de substituição da pessoa até esta
readquirir a sua independência. Por sua vez, a saúde é encarada como a capacidade de ser
independente em relação à satisfação das suas próprias necessidades. Os fatores ambientais
são tidos em consideração na medida exata em que contribuem, ou não para a satisfação e
para a independência na satisfação das necessidades das pessoas.

De entre os diversos modelos conceptuais que se podem englobar nesta escola destacamos o
de V. Henderson (1969, 1978), F. Abdelah (1969) e D. Orem (1980).

1.2 – A escola da Interação

Esta escola tem origem nos Estados Unidos da América, próximo do fim da década de 50 e
princípio da de 60. O seu aparecimento enquadra-se num contexto de desenvolvimento
económico e cultural em que se verificava um crescente aumento de atenção para as
necessidades relacionais e de intimidade das pessoas. Como exemplo pode apontar-se a
importância e o sucesso que a teoria psicanalítica alcançou nos Estados Unidos,
magistralmente caricaturado em alguns filmes de Woody Allen. A escola da interação foi
influenciada por outras teorias tais como a terapia centrada no cliente, de Rogers (1974), a
teoria sistémica de von Bertalanffy (Moigne, 1977), a fenomenologia e o existencialismo. Das
diversas teóricas que se podem incluir nesta escola, destacamos H. Peplau (1990), I. King
(1968) e I. Orlando (Marriner, 1989).
Na escola da interação a pessoa é perspetivada a partir da teoria sistémica. Assim, encara-se a
pessoa como um sistema aberto, delimitado por fronteiras permeáveis face ao ambiente
circundante, com o qual mantém trocas de matéria, de energia e informação. Considera-se
ainda que a pessoa é constituída por vários subsistemas, sendo que esta escola atribui atenção
especial ao psicológico. A saúde é definida de um ponto de vista dinâmico, como a capacidade
de ajustamento aos "stressares" do ambiente interno e externo e pela utilização ótima dos
recursos, com o objetivo de a pessoa aprofundar o seu potencial máximo de vida. Por sua vez,
o ambiente é constituído pelo conjunto de pessoas significativas com o qual cada um de nós
interage. Pode ser definido também como um suprassistema com o qual existe uma troca
sistemática de matéria, de energia e de informação. Os cuidados de enfermagem são
entendidos como um processo interativo entre uma pessoa que tem necessidade de ajuda e
uma outra capaz de lha oferecer.

Este último papel é assumido pela enfermeira que, como forma de se habilitar para ajudar a
outra pessoa, precisa de clarificar os seus próprios valores. Isso permitir-lhe-á usar a sua
própria pessoa de modo terapêutico e comprometer-se nos cuidados que presta. O fim último
dos cuidados de enfermagem é a criação de condições que permitam o desenvolvimento da
personalidade da pessoa carenciada de ajuda.

O processo de cuidados desenvolve-se em quatro fases: orientação, reconhecimento,


aprofundamento e resolução. Durante todo o processo é essencial manter a integridade da
pessoa e ter em consideração que ela é capaz de reconhecer as suas necessidades e de
promover a sua autoformação. A subjetividade e a intuição passaram a ser valorizadas em
todo o processo de prestação de cuidados (Peplau, 1990).

1.3 – A escola dos efeitos desejados

Esta escola adaptou esta designação porque as teóricas que a criaram (e.g., Neuman, 1982;
Roy, 1988) tentaram conceptualizar os resultados ou os efeitos desejados dos cuidados de
enfermagem.

Isto acontece porque entendem que o objetivo final dos cuida dos de enfermagem consiste em
estabelecer o equilíbrio, a estabilidade, a homeostasia, ou em preservar a energia. Algumas
das teorias em que esta escola se baseia são a teoria dos níveis de adaptação de Helson
(Kérouac et al., 1994; Meleis, 1991), a teoria da crise de Caplan (1980), a teoria do "stress" de
Selye (1965) e a teoria geral dos sistemas de von Bertalanffy (Moigne, 1977), entre outras.

Esta escola também se enquadra no paradigma da integração, orientando-se para a pessoa.


Neste contexto, a pessoa é concetualizada como um ser bio-psico-cultural, um sistema de
adaptação em constante interação com o meio ambiente e dispondo de quatro modos de
adaptação: o modo fisiológico, o modo "conceito de si", o modo "função segundo os papéis" e
o modo interdependência.

A saúde é perspetivada como um estado dinâmico de bem-estar ou de doença, determinado


pelas variáveis fisiológicas, psicológicas, socioculturais e espirituais ligadas ao desenvolvimento
(Neuman, 1982). Ou então como um estado ou um processo de ser ou de vir a ser uma pessoa
integrada e unificada. O ambiente é conceptualizado como tudo o que seja suscetível de afetar
o desenvolvimento da pessoa (Roy, 1988).
Neste contexto, os cuidados de e1:1fermagern são perspetivados como intervenções que
visam a integridade da pessoa e que se interessam por todas as variáveis que têm efeito sobre
a resposta da pessoa aos agentes de "stress", com o objetivo de lhes reduzir o efeito.

1.4 – A escola da promoção de saúde

Esta escola baseia-se na filosofia dos cuidados de saúde primários e na teoria da aprendizagem
social de Bandura (Kérouac et al., 1994) e tem ainda como referência a teoria geral dos
sistemas (Moigne, 1971) aplicada à família. Conjugando estes diversos contributos constata-se
que a preponderância que as anteriores escolas atribuíam à pessoa é, neste caso, conferida à
família. Esta é entendida como um grupo social capaz de aprender a partir das suas próprias
experiências. Aliás, a família é apresentada, simultaneamente, como recurso e como entidade
passível de ser intervencionada pela enfermeira. Por sua vez, a saúde é vista como um dos
recursos mais valiosos de uma nação e entendida como um processo social que encerra
atributos interpessoais aprendidos e desenvolvidos com o tempo, principalmente no contexto
familiar.

O ambiente é apresentado como o contexto social no qual se processa a aprendizagem. Por


último, os cuidados de enfermagem são perspetivados com o objetivo de promover, de
reforçar e de desenvolver a saúde da família e de todos os seus membros, através da ativação
do seu processo de aprendizagem.

1.5 – A escola do ser humano unitário

Esta é a primeira escola que se situa no contexto da abertura sobre o mundo, integrando-se,
portanto, no paradigma da transformação, As teorias que servem de referência a esta escola
são a fenomenologia, a teoria sistémica e as teorias da física, entre outras. O conceito base
desta escola é o de "ser humano unitário", proposto como substituto do conceito de holismo.
Tal substituição tem a ver com a perda progressiva de significado do termo "holismo" devido
ao seu uso sistemático e por vezes inadequado. Apesar disso, o conceito é, basicamente, o
mesmo, pretendendo-se que nesta escola readquira o seu verdadeiro significado e dimensão.

Das diversas autoras desta escola destacamos, Martha F. Rogers (1988, 1989) e Rosemarie R.
Parse (1990, 1992) (ver Quadro 5). De acordo com elas, a pessoa é encarada como um ser
aberto, tendo a capacidade de agir em sinergia com o universo, ou então, como um campo de
energia unitário e pandimensional, em que o todo não pode ser compreendido a partir do
conhecimento das partes.

A saúde das pessoas é encarada como um valor e como um pro cesso contínuo de troca de
energia favorecedora da expressão do potencial máximo da pessoa. O ambiente é também ele
considerado um campo de energia pandimensional, onde são reagrupados e reorganizados
todos os elementos exteriores ao campo de energia humano.

Os cuidados de enfermagem visam a promoção da saúde, de modo a favorecerem a inter-


relação harmoniosa entre o homem e o ambiente. É ainda objetivo de quem presta os
cuidados de enfermagem, a qualidade de vida, através da participação qualitativa da pessoa
nas suas experiências de saúde.
1.6 – A escola do cuidar

Nos últimos anos o conceito de "cuidar" tem vindo a aparecer sistematicamente na literatura
de enfermagem. De facto, é difícil encontrar uma revista da especialidade que não contenha
pelo menos um artigo que, fale do cuidar. O interesse por este conceito é relativamente
recente, podendo-se dizer que remonta, na literatura norte americana, ao início da década de
80. Uma das primeiras autoras a propô-lo como tema central para a disciplina de enfermagem
foi Leininger (1981, 1989). Posteriormente Benner e Wrubel, na obra "The Primacy of Caring"
(1989), sugerem que a prática de enfermagem baseada na primazia do cuidar deverá substituir
aquela em que a base era a promoção, a prevenção e a restauração da saúde. Por seu lado,
Watson (1985, 1988) afirma que as enfermeiras criaram um ideal do cuidar que é
simultaneamente humanista e científico. A escola do cuidar é a segunda cuja orientação se
situa· no contexto da abertura para o mundo e, portanto, engloba-se no paradigma da
transformação. Das diversas autoras desta escola destacamos Madeleine Leininger (1981,
1989) e Jean Watson (1985, 1988).

De acordo com elas, a pessoa é um ser vivente que crê e compreende corpo, alma e espírito
(Watson, 1985). Pode-se também entender como um ser cultural que sobreviveu ao tempo e
ao espaço (Leininger, 1981). Neste contexto, a saúde das pessoas é entendida como a
harmonia entre corpo, a alma e o espírito. O ambiente é constituído por todos Os aspetos
contextuais nos quais se encontram os indivíduos e os grupos culturais (Leininger, 1981). As
teóricas desta escola creem que as enfermeiras podem melhorar a qualidade dos cuidados que
prestam às pessoas, se se abri rem a dimensões como a espiritualidade e a cultura, e se
integrarem os conhecimentos ligados a estas dimensões na prestação de cuidados. Os
cuidados de enfermagem, de acordo com as mesmas teóricas, são simultaneamente uma arte
e uma ciência humana do cuidar, um ideal moral e um processo transpessoal que visam a
promoção da harmonia entre "corpo-alma-espírito".

Capítulo 4 – A Enfermagem como Ciência e Disciplina do Conhecimento

Antes de abordarmos a Enfermagem como Ciência e Disciplina do Conhecimento, é importante


clarificar alguns conceitos fundamentais para a compreensão da nossa evolução como ciência
do cuidar.

1.1 – Filosofia

“Uma filosofia contribui para o profissionalismo. Ter uma orientação filosófica distingue o
educador profissional do paraprofissional, pois o primeiro está consciente do que está a fazer e
porque o está a fazer”.

Deste modo, com a filosofia pretende-se obter uma compreensão do objetivo real, no caso
concreto, da Enfermagem. Ou seja, se eu souber para que faço, qual a minha intenção,
também saberei porque o faço, distinguindo-me do que realiza rituais. Deste modo, a filosofia
consiste nas assunções básicas e nas crenças que são construídas a partir da teorização,
ajudando a guiar a disciplina.

1.2 – Conceito
O uso da palavra conceito é parte do background histórico da enfermagem. Apesar deste
aspeto, e sendo utilizado o termo desde a década de 1950, é um termo sem um significado
específico, sendo que poderemos entender como um veículo de ideias que envolvem imagens,
noções abstratas, como uma formulação mental complexa de um objeto, propriedade ou
acontecimento e constituem os componentes básicos da teoria.

1.3 – Teoria

As teorias constituem uma forma sistemática de olhar para o mundo, descrevê-lo, explicá-lo,
prevê-lo ou controlá-lo, sendo compostas por conceitos, definições, modelos e pressupostos
baseados em suposições.

Os Modelos são representações da interação entre conceitos, evidenciando padrões,


enquanto os Pressupostos são afirmações que explicam as relações entre os conceitos. Deste
modo, os modelos são representações ilustradas dos pressupostos.

As teorias constroem-se a partir de conceitos que procuram representar a realidade. A teoria


apenas é teoria quando sistematizada. Este facto permite afirmar que Nightingale, apesar de
poder ser considerada a primeira teórica da Enfermagem, não o é na realidade, por não criar
uma articulação sistematizada entre os conceitos. Esta articulação apenas surge a partir do
paradigma da integração.

Podemos definir como características de uma teoria:

 As teorias podem interrelacionar conceitos de modo a criar uma forma diferente de se


explicar determinado fenómeno;
 As teorias devem ser lógicas por natureza;
 As teorias devem ser relativamente simples, contudo generalizáveis;
 As teorias podem ser as bases para as hipóteses a serem testadas;
 As teorias colaboram e ajudam no sentido de aumentar o conhecimento da disciplina,
através da investigação;
 As teorias podem ser utilizadas pelos profissionais como um guia e como modo de
aperfeiçoamento prático;
 As teorias devem ser compatíveis com outras teorias, leis e princípios confirmados,
aceitando que toda a realidade não se encontra explicada e carece de investigação
contínua.

1.4 – Conceitos centrais da Enfermagem

Também descritos como metaparadigmas, Fawcett (1984), ao analisar os vários modelos


teóricos, observou a presença de quatro conceitos centrais:

 Pessoa
 Saúde
 Ambiente
 Enfermagem

Esta análise proposta por Fawcett (1984) é aceite pela comunidade de Enfermagem como
sendo capaz de ser suficientemente neutra para explicar todos modelos e teorias de
Enfermagem, ao mesmo tempo que permite a identificação de um corpo de conhecimento
próprio e distinto das restantes áreas disciplinares.

O conceito de Pessoa pode ser definido como um todo caracterizado pela existência de
necessidades fundamentais, ser único, com o seu próprio poder criativo. O valor do ser
humano reside no existir e na qualidade dessa existência, sendo a liberdade de escolha um
direito inalienável, e as suas opiniões e pontos de vista têm um valor intrínseco. Na
compreensão da pessoa devemos contemplar a sua dimensão universal (como um ser
holístico, caracterizado por um conjunto de necessidades fundamentais, num processo de
crescimento e desenvolvimento vital, com uma relação de pertença que traduz a sua
identidade) bem como a sua dimensão singular (as suas características pessoais, modo de
satisfação das necessidades fundamentais, e os recursos internos para a manutenção da
independência).

O conceito de Saúde pode ser definido como uma resposta contínua adaptada aos fatores do
meio interno e externo, que requer uma utilização ótima dos recursos de cada um para
alcançar o seu máximo potencial de desenvolvimento. Saúde e bem-estar são sinónimos (de
acordo com o modelo eudemonístico), sendo uma entidade distinta da doença.

O conceito de Ambiente refere-se a tudo o que circunda a pessoa (físico, socio-afetivo e


político cultural), em que indivíduo e ambiente influenciam-se mutuamente.

O conceito de Enfermagem, tal como os anteriores conceitos, varia de acordo com o


modelo/teoria utilizado, mas é utilizado para a definição de qual o papel do enfermeiro tendo
por base a sua definição de Pessoa, Saúde e Ambiente.

1.5 – Ciência de Enfermagem

A ciência de Enfermagem é a essência da Enfermagem como Disciplina Académica, sem ela


não pode existir Enfermagem, apenas cuidar.

Como podemos verificar pela análise da frase anterior, a construção de um corpo de


conhecimento específico para a Enfermagem vai permitir-lhe assumir-se como Disciplina do
conhecimento. Para além deste aspeto, sem o uso deste conhecimento e dos modelos teóricos
na prática de cuidar, produzimos um cuidar que outro profissional poderá realizar por não ser
exclusivo da Enfermagem, ou seja, retiramos-lhe a essência.

Ciência, segundo Parse (1997), é a explicação teórica do objeto de estudo e o processo


metodológico para a obtenção de conhecimento disciplinar. Isto significa que ciência é tanto
processo como resultado, ou seja, ciência tem o potencial para metodologicamente produzir
um conhecimento específico da Enfermagem, assim como o resultado deste processo
metodológico vai permitir alterar o modo como cuidamos em Enfermagem. Deste modo, a
nossa ciência é uma ciência extremamente prática, com uma constante translação entre a
prática e a investigação.

1.5.1 – Especificidades da Ciência de Enfermagem

Existem algumas especificidades da ciência de Enfermagem, como sejam: o Foco na perceção e


nas respostas humanas aos seus processos de saúde; a Saúde e bem-estar como um conceito
pessoal; o Foco na saúde/Bem-estar/Qualidade de vida da pessoa e não na doença; Família
como área específica de produção de conhecimento; conceito de saúde diferente de ausência
de doença conforme definição de grande parte das ciências da saúde.

Relativamente ao conceito de Família, esta é demasiadamente pequena para se enquadrar na


definição de comunidade, o que torna a Enfermagem ainda mais específica face às restantes
áreas da saúde. Como podemos verificar, os metaparadigmas permitem evidenciar as
especificidades da ciência de Enfermagem, pelo que uma abordagem tendo por base estes
conceitos centrais, irá permitir justificar porque o fenómeno investigado terá uma diferente
abordagem das restantes ciências.

Além deste aspeto, e apesar de não ser exclusiva da Enfermagem, somos uma ciência
extremamente prática, uma vez que no nosso mandato social, ao contrário das restantes
ciências não nos basta desenvolver e disseminar o conhecimento, temos também a obrigação
de o implementar. Ou seja, é obrigação do enfermeiro estar constantemente atualizado e com
foco na produção de conhecimento, guiando a sua prática de acordo com os referenciais mais
recentes.

Contudo, não podemos deixar de referir que, caso não utilizemos teorias e metodologias
específicas da disciplina para investigar, não estaremos a produzir ciência de Enfermagem. Este
facto é muito importante de ter em mente, quer na produção de conhecimento, quer no modo
como aplicamos este conhecimento, pois apenas com conhecimento exclusivo da Enfermagem
estaremos a cuidar com competências específicas dos enfermeiros. Esta produção e uso do
conhecimento específico evidenciará a Enfermagem como uma Disciplina do Conhecimento
para toda a comunidade, inclusive o Senado Universitário (responsável pela definição de que
disciplinas são capazes de produzir conhecimento próprio, ou seja, produzem ciência própria),
levando a uma maior visibilidade dos cuidados à população.

O uso ou a produção de conhecimento tendo por base teorias, métodos e conhecimento de


outras áreas disciplinares leva à produção de cuidados não específicos dos enfermeiros. Este
facto não significa que não possamos utilizar conhecimento de outras áreas disciplinares, pelo
contrário, o mesmo pode e deve ser utilizado quando necessário, apenas significa que
deveremos estar atentos às consequências deste tipo de abordagem.

1.5.2 – Conhecimento privado vs Conhecimento público

Conforme foi referido, a ciência de Enfermagem é uma ciência extremamente prática, como
uma translação contínua entre a praxis e a investigação. Se considerarmos o conhecimento
que advém da investigação como Conhecimento Público, uma vez que estará disponível para
toda a comunidade de enfermeiros, poderemos considerar que o conhecimento específico dos
enfermeiros que não foi ainda alvo de teste é Conhecimento Privado. Esta espiral
hermenêutica, em que o conhecimento privado, ao ser testado e investigado vai-se tornar
conhecimento público, e o conhecimento privado que advém da aplicação deste novo
conhecimento público, leva a que este movimento seja contínuo e constante.

1.6 – Enfermagem e as Outras Disciplinas


É o seu centro de interesse particular que caracteriza a disciplina. No caso da Enfermagem,
tendo em conta os metaparadigmas, será este interesse na pessoa, saúde e ambiente e o
modo como estes se combinam que torna único o nosso centro de interesse, e nos assume
como disciplina do conhecimento.

A relação com as restantes disciplinas tem o potencial de ser uma oportunidade de uma
prestação de cuidados de excelência à pessoa, mas também pode ser fonte de conflito. Dito
isto, como disciplina não existem fontes de conflito, uma vez que a área de interesse particular
assim o impede. O problema surge quando, na prática de cuidados, o uso de conhecimento de
outra área disciplinar pode ser partilhada por mais que um profissional (ex: colheita de sangue
que pode ser realizada tanto pelo enfermeiro, como pelo técnico de análises clínicas).

Deste modo, e se tivermos em conta a divisão das intervenções de Enfermagem em


intervenções autónomas (que derivam do processo de Enfermagem, que envolve colheita de
dados, diagnóstico, intervenção e avaliação realizadas pelo enfermeiro) e intervenções
interdependentes (que decorrem de uma prescrição de outro profissional, mas que o
enfermeiro tem o dever de tomar a decisão de a realizar com o conhecimento multidisciplinar
que possui), muitas vezes na nossa prática de cuidados, mobilizamos conhecimento disciplinar
de Enfermagem, em conjunto com conhecimento disciplinar de outras áreas, ou seja, é por
vezes muito difícil mobilizar conhecimento exclusivamente nosso. Este facto, não sendo
problemático como foi referido anteriormente, deve ser tido em consideração de modo a
garantir que o processo de tomada de decisão tem em consideração sempre o nosso parecer
como enfermeiros. Como exemplo, podemos utilizar a administração da terapêutica. Esta
terapêutica é prescrita por outro profissional (intervenção interdependente), a qual ao ser
administrada, pode ser utilizada em conjunto com conhecimento específico da Enfermagem,
como por exemplo, potenciar esta toma da medicação através da comunicação do que iremos
administrar à pessoa, envolvendo-a no processo e identificando necessidades que possam
advir desta troca de informação (intervenção autónoma).

1.6.1 – Conceitos de Multiprofissionalidade, Monodisciplinaridade, Multidisciplinaridade,


Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade

Muitas vezes temos como hábito referir que estamos no seio de uma equipa multidisciplinar.
Pela análise descrita anteriormente, e tendo em conta a especificação de disciplina, podemos
referir que nem todas as profissões possuem um conhecimento científico na sua base (ex:
cozinheira, assistente operacional), e nem todas possuem ainda um campo específico de
interesse, apesar de utilizarem conhecimento científico de uma disciplina do conhecimento
(ex: terapia da fala). Deste modo, a presença de profissionais sem qualquer conhecimento
científico na sua base impede de considerarmos estar perante uma equipa multidisciplinar,
mas sim, perante uma equipa multiprofissional (constituída por múltiplos profissionais).

Quando na presença de profissões que utilizam conhecimento disciplinar, caso utilizem apenas
uma disciplina como fonte de conhecimento, como por exemplo, o fisiatra e enfermeiro de
reabilitação, em que o enfermeiro de reabilitação irá executar uma técnica prescrita pelo
fisiatra, deste modo utilizando apenas o conhecimento que advém da Medicina, estaremos
perante uma equipa monodisciplinar.
Caso exista uma mobilização de mais que uma disciplina do conhecimento, onde ocorre uma
manutenção da identidade disciplinar, sem integração dos resultados nem articulação entre as
disciplinas, estaremos perante uma equipa multidisciplinar.

As equipas interdisciplinares existem quando se observa uma articulação entre o


conhecimento das várias disciplinas, adotando-se uma perspetiva metodológica idêntica para
todas as disciplinas, promovendo a integração dos resultados obtidos, contudo os interesses
próprios de cada disciplina são preservados.

Na transdisciplinaridade não existe fronteiras entre todas as disciplinas utilizadas na


abordagem/prática de cuidados, indo para além da disciplinaridade. Existe uma integração de
todo o conhecimento, não existindo um mais importante que o outro sendo, desta forma, a
unidade de um conhecimento que torna mais explicado a realidade.

1.7 – Enfermagem como Ciência e Arte

Com este subcapítulo, pretende-se explicar o porquê de Enfermagem ser Ciência e Arte. A
explicação para ser ciência encontra-se referida anteriormente, mas prende-se com o
conhecimento específico e com a capacidade de produção deste mesmo conhecimento.

Já a Enfermagem como arte estará relacionada com o nosso próprio objeto de estudo, ou seja,
com o modo como assumimos que tudo é irrepetível e como tudo é único. Assim, a pessoa
será sempre alvo de um cuidar em Enfermagem único e irrepetível. Imaginemos o cuidado que
prestamos a alguém como um quadro que pintamos. Por mais que tentemos, este mesmo
quadro nunca irá ser completamente idêntico ao primeiro que pintamos, uma vez que tudo em
nós modificou, já tentamos ser mais perfeitos no modo como colocamos o pincel na tela, a
própria tela é diferente, assim como o que pretendo pintar já apresenta características
diferentes. Ou seja, se pegarmos neste exemplo e o aplicarmos à prática de cuidados, o
enfermeiro modifica-se em cada contacto, assim como a pessoa alvo de cuidados será
diferente e influenciada pelo ambiente que nos envolve, com uma obrigatoriedade de darmos
resposta ao modo como a pessoa perceciona a sua experiência de saúde naquele preciso
momento em que colocamos o pincel na tela.

Capítulo 5 – A Enfermagem como disciplina e profissão: a prática do cuidar

Afirmámos que entendíamos a enfermagem como uma disciplina/profissão. No entanto, e


apesar de termos tentado identificar os seus conteúdos consensuais, bem como delinear a
forma como são entendidos em função de cada um dos paradigmas que enunciámos,
entendemos que a enfermagem não se reduz aos mencionados conteúdos. Colliére (1990), ao
referir-se ao processo de profissionalização da enfermagem, afirma que "todos os ofícios que
têm como base o saber das suas práticas se podem profissionalizar sem prejuízo, pois têm as
suas raízes" (p. 46): Isto é, considera que a enfermagem tem por base ''o saber das suas
práticas", e que a profissionalização se poderá, por isso, fazer sem receios. Deste modo, é
colocado em lugar central o papel da prática e do saber prático. Mas o que queremos dizer
quando falamos em prática? O que é uma prática?
Se aceitarmos que "prática" deriva etimologicamente da expressão grega Práxis, então a
mesma terá que ser entendida como uma das três atividades básicas. As outras duas serão
Theoria e Poiesis e cada uma destas atividades implica formas de conhecimento distintas. A
Theoria estava relacionada com Sophia, ou conhecimento teórico; a Praxis estava relacionada
com Phronesis ou conhecimento prático, e a Poiesis estava relacionada com Techne ou
conhecimento artístico. Também os critérios de sucesso eram distintos de umas atividades
para outras. O fim último da Theoria era a Verdade, da Praxis era a Felicidade, e da Poiesis a
Produção de algo bom (Allmark, 1995).

Neste conceito de Praxis cabiam atividades como o governo de comunidades, visto que o seu
objetivo era a política e a ética (Allmark, 1995). No entanto, e de acordo com Maclntyre
(1990), 'O conjunto das práticas é mais extenso e inclui as artes, as ciências, os jogos, a política,
no sentido aristotélico do termo, a composição e o sustento da vida de família, etc. O termo
"prática" é redefinido por esta última autora (Maclntyre, 1990) da seguinte forma: com a
expressão "prática" pretende-se significar qualquer atividade humana cooperativa, coerente e
complexa e socialmente estabelecida. Todas as atividades humanas com estas características
possuem bens internos que são realizados durante a tentativa para se alcançarem os padrões
de excelência que são considerados apropriados, e parcialmente definitivos, para essa forma
de atividade. Como os padrões de excelência considerados apropriados nunca são definitivos,
a ampliação e a busca constante dessa excelência têm como consequências a ampliação
sistemática da capacidade humana para alcançar essa excelência. Poder-se-á dizer que uma
prática consiste primeiro que tudo num sistema completo de significados e não num 'skill'
particular envolvido numa determinada atividade (Bishop ·& Scudder, 1991). Assim sendo, dar
um pontapé numa bola com perícia ou assentar tijolos numa parede não são uma prática. Mas
será já uma prática o jogo de futebol ou a arquitetura. De igual modo, não será uma prática
plantar batatas, ou fazer a higiene a uma pessoa. Mas sê-lo-á a agricultura ou a enfermagem.

No entanto, a definição apresentada contém alguns aspetos que devem ser clarificados. O
primeiro tem a ver com a noção de 'bens internos'. Para o explicar servir-nos-emos do seguinte
exemplo: Imaginemos uma criança com perto de sete anos, extremamente inteligente e a
quem se pretendia ensinar a jogar xadrez. Porém, ela não mostrava grande interesse por esta
atividade, antes demonstrando um enorme desejo por chocolates, embora tendo poucas
oportunidades de os conseguir. Dir-se-ia à criança que se ela jogasse xadrez uma vez por
semana com a pessoa que lhe pretendia ensinar, ganharia cem escudos para comprar
chocolates. Dir-se-ia ainda à criança que essa pessoa jogaria de forma progressivamente mais
complexa, de tal modo que seria difícil, mas não impossível, ela ganhar. Se o conseguisse,
ganharia um adicional de duzentos escudos. Isto motivaria a criança a jogar, e a jogar para
ganhar. De referir que, nesta situação, a criança tem· boas razões para jogar xadrez, não as
tendo, no entanto, para jogar de forma honesta. O objetivo é, de cada vez que disputa uma
partida, ganhar o dinheiro que lhe permita comprar os chocolates, sendo por isso válidas todas
as hipóteses para atingir tal desiderato. Vamos, no entanto, partir do princípio que com o
tempo a criança encontrará nos bens específicos do xadrez (i.e., uma certa e elevada
capacidade analítica, uma imaginação estratégica e uma intensidade competitiva) ·um novo
conjunto de boas razões, não para ganhar numa situação específica, mas para tentar a
excelência. A partir deste momento, se a criança não jogar de forma honesta engana-se a ela
própria. Tal acontece porque, neste caso, a motivação para ganhar deixou de ser algo de
exterior (ex. ganhar dinheiro para comprar chocolates), passando a ser uma motivação
inerente ao exercício da própria atividade (i.e., jogar bem pelo prazer que isso lhe dá).
Como conclusão deste exemplo poderemos dizer que existem dois tipos de bens que podem
ser alcançados pelo jogo de xadrez. Por um lado, temos aqueles que poderemos denominar de
"bens externos" e que estão ligados ao jogo de xadrez como a qualquer outra prática. Têm a
ver, neste caso, com o ganhar o dinheiro para adquirir os chocolates. Noutros casos, poderão
ter a ver com a aquisição de prestígio, fama, estatuto, etc. Por outro lado, existem os "bens
internos” inerentes à prática de xadrez, bens que não poderão ser alcançados de outra forma
senão jogando xadrez ou participando em qualquer outra prática com estas caraterísticas.
Atribui-se-lhes a designação de 'bens internos' por duas razões: a primeira, porque só
podemos falar dos bens internos de cada uma das práticas específicas, ou seja, não há bens
internos inerentes a todas as práticas, mas sim específicos a cada uma delas. No caso
apresentado, só os podemos especificar em relação ao jogo de xadrez. Segundo, porque eles
só podem ser identificados e reconhecidos pela experiência dos participantes na prática em
questão. Aqueles que fazem parte dessa prática, mas não têm a necessária experiência; são
incompetentes para julgarem os "bens in ternos" (Maclntyre, 1990). Dito de outro modo, cada
um de nós só terá capacidade para apreciar a magistralidade de um determinado lance se for
participante experimentado desta prática.

Um outro aspeto que carece de alguma explicação diz respeito aos padrões de excelência. De
acordo com Maclntyre (1990), uma prática envolve padrões de excelência e obediência a
regras.

Os padrões de excelência e as suas regras acompanham e partilham a história da respetiva


prática. Foi dito, quando se definiu o conceito de "prática", que os padrões de excelência eram
parcialmente definitivos. De facto, assim é visto que eles têm um carácter evolutivo que se
prende, por um lado, com a história da respetiva prática e por outro, com a capacidade dos
participantes dessa prática em expandirem os padrões de excelência. Isto significa que os
padrões de excelência não são imunes à crítica. De notar que, neste caso, a crítica tem como
consequência o desenvolvimento do próprio padrão de excelência. No entanto, não é qualquer
pessoa que pode proceder a essa crítica. Para o fazer carece primeiro de entrar na prática em
questão, de submeter-se aos padrões de excelência alcançados até esse momento da história,
e de sujeitar as suas atitudes, preferências e gostos, aos padrões que definem essa prática, ou
seja, a pessoa precisa de participar e de partilhar os padrões de excelência de uma prática
para, por um lado, compreender esses mesmos padrões e, por outro lado, poder criticá-los e
participar na sua expansão.

Poder-se-á afirmar, neste momento, que existe uma diferença fundamental entre os dois tipos
de bens (Maclntyre, 1990). O 'bem externo', ao ser alcançado, passa a ser propriedade nossa,
possuímo-lo. Quanto mais nós tivermos, menos os outros terão. O 'bem interno' é a meta da
competição para a excelência, e "ao ser alcançado transforma-se num bem para toda a
comunidade que participa nessa prática" (Maclntyre, 1990, pp. 190-191). No entanto, a autora
defende que os bens internos só poderão ser alcançados pelos participantes que possuírem
virtudes, ou seja, por aqueles que tiverem adquirido uma qualidade humana que os capacite
para alcançar esses bens. Por outras palavras, segundo Maclntyre (1990), "temos que aceitar
como componentes de qualquer prática com 'bens internos' e padrões de excelência, as
virtudes da justiça, da coragem e da honestidade"(p. 191).

Poderão estas reflexões ser aplicadas à Enfermagem? Caso possam, quais as implicações?

Face à definição de 'prática' já apresentada (Maclntyre, 1990), somos de opinião que, de facto,
a enfermagem poderá ser considerada uma prática. Parece-nos que ninguém colocará em
dúvida que a enfermagem é uma atividade humana cooperativa, coerente e complexa, e
socialmente estabelecida. É uma atividade humana quer porque é executada por seres
humanos, quer porque se dirige a outros seres humanos. É duplamente cooperativa porque
carece de um grande sentido de união entre todos os seus profissionais e também porque a
pessoa necessitada de cuidados é corresponsável e co prestadora desses cuidados. Por fim, é
socialmente estabelecida, pois que, de acordo com Colliére (1989), "cuidar não pode ser um
ato isolado, amputado de toda a inserção social. ... Cuidar é um ato social. ... e implica uma•
responsabilidade social" (p. 324). Se aceitarmos estes aspetos como verdadeiros, então
também teremos que aceitar que esta atividade possui bens internos. Afirmamos isto porque,
de acordo com Maclntyre (1990), todas as atividades humanas com aquelas características,
possuem bens internos. Independentemente do que acabámos de afirmar, existem razões que
têm a ver com a nossa experiência enquanto pessoa, enquanto profissional de prestação de
cuidados e, ainda com os argumentos ele vários teóricos de enfermagem.

Relativamente à nossa experiência enquanto pessoa, sempre que estivemos na situação de


recetores de cuidados, apreciámos sobremaneira o esforço que era desenvolvido pela pessoa
que cuidava de nós, no sentido de fazer bem o que estava a fazer, pelo simples prazer que isso
lhe dava. De notar que, nesta situação, éramos observadores privilegiados, na medida em que,
estando na condição de recetores de cuidados, fazíamos parte da 'comunidade' de 'práticos',
visto sermos profissionais de enfermagem, quer a pessoa que estava a cuidar de nós o
soubesse, ou não.

No que concerne à nossa experiência como prestador de cuidados, há alguns aspetos que
pensamos serem marcantes. Primeiro, possuímos a convicção, decorrente do convívio
profissional, de que existe concordância dentro da comunidade de profissionais de
enfermagem, sobre o que são "bons cuidados de enfermagem". O segundo, decorrente do
primeiro, é que só os que participam na prática têm noção da complexidade e da perícia
exigida por um determinado cuidado e são capazes de identificar os padrões de excelência
inerentes a essa prática. Por outro lado, os profissionais são adjetivados de bons ou menos
bons no exercício da sua atividade em função da perícia demonstrada na resolução de
situações concretas. E serão considerados tanto melhores profissionais quanto mais próximo
dos padrões de excelência definidos estiver o seu desempenho. De acordo com o que
acabámos de dizer, a excelência no exercício desta prática só se consegue participando dela.
Jamais se começa como perito. Aliás, o trabalho de Benner, “From novice to expert: Excellence
and power in clinical nursing pratice” (1984), faz prova disso mesmo. Com base nos seus
estudos, a autora afirma que os incrementas na perícia do desempenho são baseados quer na
experiência, quer na educação. Afirma ainda que, de acordo com o "Modelo de Aquisição de
Perícia" de Dreyfus, um indivíduo passa através de cinco níveis de proficiência: principiante,
principiante avançado, competente, proficiente e perito. A passagem de um nível a outro
pressupõe mudanças em dois aspetos gerais do desempenho. Um é o movimento de
progressiva confiança em princípios abstratos que o levam à utilização de experiência
concretas passadas, como paradigmas. O outro é uma mudança na perceção e entendimento
da exigência de uma dada situação. De acordo com essa mudança de perceção, a situação
passa a ser encarada menos como uma compilação de pedaços igualmente relevantes, e mais
como um todo completo no qual só alguns aspetos são relevantes. Com base nestes dois
aspetos, o principiante (nível 1) ainda não possui suficientes experiências que possam
funcionar como paradigmas. Por outro lado, não possui capacidade para sopesar os vários
elementos em confronto numa dada situação, pelo que se limita a cumprir regras sem
descortinar as possíveis exceções as mesmas.
O principiante avançado (nível II), detentor de alguma experiência, começa já a ler em
consideração alguns "aspetos" (i.e., caraterísticas globais que requerem experiência em
situações reais para serem reconhecidas). Isto permite-lhe que as orientações para a ação
possam, agora, ser mais gerais. No entanto, ainda persiste uma marcada incapacidade para ir
além das regras e orientações para a ação.

O nível de competente (nível III) começa a ser atingido por volta dos três anos de exercício
profissional. Neste nível existe já alguma experiência profissional acumulada, o que permite à
enfermeira começar a ver as suas ações em função de 9bjectivos de longo alcance ou de
planos. Estes planos estabelecem uma perspetiva e assentam na avaliação consciente, abstrata
e analítica dos problemas.

No entanto, só no nível seguinte - proficiente - é que a enfermeira percebe as situações


globalmente e é guiada por máximas, isto é, adquire de facto. a capacidade de abstração a
partir da sua própria prática. Por último, no nível de perito, a enfermeira deixa de se guiar por
princípios analíticos (i.e., regras, diretrizes, etc.) e passa a entender a situação intuitivamente e
como um todo, e a concentrar a sua atenção sobre o essencial (Benner, 1982, 1984). A
enfermeira perita age a partir de um conhecimento profundo da situação, quando interrogada
acerca das suas ações responde, à semelhança de um mestre de xadrez que efetuou um lance
magistral, 'porque sentia que era certo' (Benner, 1982). Relativamente aos argumentos de
teóricos de enfermagem, gostaríamos de salientar Benner e Wrubel (1989), que assumem no
seu livro 'The primacy of caring’, que a prática de enfermagem é um todo sistemático com uma
noção de excelência inerente. à própria prática: "a excelência está incorporada na própria
prática, e a prática é, por isso, uma arte moral e não simplesmente uma ciência aplicada ou
uma tecnologia" (Benner & Wrubel, 1989, pp. 19-20). Por sua vez, Watson (1988) define o
conceito de 'human care' como um processo entre seres humanos (i.e., enfermeira e pessoa)
que implica um compromisso moral de proteção da dignidade humana e de preservação da
própria humanidade. Para este compromisso moral ter verdadeira expressão, não pode ser
reduzido a mera retórica. De salientar, aliás, que a própria autora refere que o "cuidar só pode
ser verdadeiramente demonstrado e praticado, interpessoalmente" (Marriner, 1989, p. 168).

Conjugando isto com o que é referido por Benner e Wrubel (1989), jamais· se conseguirá algo
que é apresentado como "o ideal moral da enfermagem", se nos limitarmos à aplicação de um
conjunto de técnicas aprendidas. É necessário -que a enfermeira participe na prática para que
consiga atingir uma excelência que lhe permita pôr a técnica ao serviço da pessoa de forma
criativa, transformando assim a prestação de cuidados numa arte, e preservando deste modo a
dignidade da pessoa.

Não é pretendido. que daqui se conclua que se defenda uma clivagem entre a teoria e a
prática com valorização de uma face à outra. Pretende-se, tão só, chamar a atenção para o
facto de que a prática dos cuidados· de enfermagem vai além de qualquer saber teórico e/ou
técnico que possamos considerar (não o dispensando, no entanto). É pressuposto que tais
cuidados se submetam a padrões de natureza ético-moral. Nesta perspetiva, e de acordo com
Benner e Wrubel (1989), a prática é uma fonte constante de novos dados e de novos saberes
que enriquecem de modo progressivo qualquer teoria. Por estas razões, pensamos que é
importante estudar a prática dos peritos no sentido de que ela nos abra novos conhecimentos,
novas áreas de interrogação ou novos entendimentos (Benner & Wrubel, 1989).

Capítulo 6 – Enfermagem em Portugal


Nightingale iniciou o movimento na segunda metade do séc. XIX, mas em Portugal a
Enfermagem foi assumida como profissão apenas em 1919.

Inicialmente praticada por leigos, iniciamos o séc. XXI com um grupo profissional técnico-
científico. Estamos perante uma evolução social e política traduzida (em parte) nos
documentos legislativos.

1.1 – A necessidade de um novo grupo de prestadores de cuidados

Foram vários os fatores que contribuíram para o surgir de um novo grupo de prestação de
cuidados. A expulsão das Ordens Religiosas devido às guerras liberais decorridas na primeira
metade do séc. XIX, e tendo em conta que a prestação dos cuidados estava a seu cargo, levou
à admissão de pessoal analfabeto, aos quais se tentava transmitir uma formação empírica
ocasional.

Costa Simões, por exemplo, considera as irmãs de caridade “um estorvo permanente á
regularidade do serviço recomendada pelos clínicos. Dando pouca importância aos preceitos
technicos, dedicam-se principalmente às práticas religiosas, que lhes são preceituadas pelos
seus directores espirituaes. Não se apresentam como empregadas, que devam subordinação
aos directores do serviço technico; pelo contrario inculcam-se como obsequiadoras d’essa
direcção, e como credoras do seu agradecimento”.

Na segunda metade do séc. XIX surgem duas tentativas para a introdução de uma classe de
enfermeiros conscientes e empenhados, através da implementação de cursos de formação. A
primeira tentativa surge por intermédio de Costa Simões, em 1881, nos Hospitais da
Universidade de Coimbra, e a segunda tentativa em 1886, através da Portaria do Ministério do
Reino, de 28 de Janeiro, no Diário do Governo nº 22, em que é criada a Escola de Enfermeiros
do Hospital S. José. Inicia-se o primeiro curso em 1887, tendo como diretor o Dr. Artur Ravara
e destinava-se exclusivamente aos empregados em serviço no referido hospital.

No entanto, ambas fracassam, sobretudo devido à aceitação de indivíduos analfabetos, à falta


de apoio financeiro (no caso de Costa Simões que financiou o curso sem qualquer tipo de
apoio) e principalmente, ao desajustamento dos cursos relativamente às capacidades e
disponibilidade dos alunos, uma vez que estes faltavam às aulas para poder prestar cuidados
aos doentes. Ocorre a supressão de ambos os cursos.

Em 1901, Curry Cabral dirige um relatório ao Ministro do Reino propondo a criação de uma
Escola de Enfermeiros. Surge, pelo Diário do Governo nº 204, a Escola Profissional de
Enfermeiros. Em 1902 o curso é aprovado, ministrado por dois médicos, um Enfermeiro e um
servente, nomeados pela Administração. Este encontrava-se dividido em duas partes: a
primeira relacionava-se com aspetos clínicos e a segunda com aspetos funcionais. Os alunos
eram convertidos em empregados, não recebendo qualquer remuneração.

Todavia, fracassa um ano após o seu início.

1.2 – Um novo período na Enfermagem (1918-1940)


Em 1918 encontramos um Decreto-Lei que revoluciona a visão de Enfermagem. No Decreto nº
4563 de 9 Junho 1918 é afirmado que “Deixam muito a desejar os serviços de enfermagem e é
mau o recrutamento do seu pessoal, porque é menos que miseravelmente retribuído, apesar
do seu pesado encargo (…). Urgia pôr termo a semelhante situação (…) por tratar-se dos
funcionários do Estado que pior remunerados são (…). A completa remodelação dos serviços de
enfermagem da Escola Profissional de Enfermeiros, e a fixação de competência, idoneidade,
moral e aptidão para tal modo de vida para recrutamento do pessoal, constituíram
preocupação desta organização como precisam de ser pontos cardeais a outras direcções
hospitalares, que quiserem ter e criar para todo o país serviço de enfermagem e não um
nateiro de curandeiros ou enfermeiros clínicos, como os hospitais têm produzido por quase
exclusivamente culpa dos seus clínicos”.

Este decreto proporciona uma reorganização da Escola Profissional de Enfermeiros em Escola


Profissional de Enfermagem, sendo conferido um estatuto diferente à Enfermagem, passando
a ser considerada Profissão, através de suportes legais.

Uma revolução do ensino da enfermagem é iniciada com a criação de novas escolas e


substituição de cursos lecionados em escolas.

Surge em 1940 a Escola Técnica de Enfermeiras, uma escola diferente das outras existentes no
país, com uma formação influenciada pelo sistema americano, inspirado no modelo de
Nightingale. Esta escola prepara enfermeiras de cultura superior nas ciências naturais e de
saúde pública, sobretudo nos campos da física e das radiações, o que não cabia no âmbito das
escolas então existentes.

1.3 – Década de 40

Ao longo deste período, as reformas implementadas vão alterar profundamente a


Enfermagem em Portugal.

No Decreto-Lei nº 31913 de 1942, surge a proibição do casamento, sendo a prática exclusiva


para mulheres solteiras e viúvas sem filhos. Mas é em 1947, com o Decreto-Lei nº36:219, que
surge a primeira grande revolução na Enfermagem. O preâmbulo deste documento legislativo
dá-nos uma visão da sociedade da época e do que os políticos e a sociedade esperam da
Enfermagem. É referida a criação em 1860 da primeira Escola de Enfermagem na Inglaterra e
que desde essa época multiplicaram-se as escolas por todo o mundo. Também as necessidades
de assistência sanitária eram superiores ao ritmo do número de efetivos nos Estados Unidos da
América. No entanto, em Portugal verificam-se quatro problemas:

 Duplicou o número de doentes internados;


 Entram em funcionamento novos estabelecimentos;
 Existe falta de pessoal de enfermagem;
 Verifica-se um baixo nível de preparação técnica (compensado pelo tradicional carinho
dispensado aos doentes).

Mas a grande revolução que este decreto traz para a Enfermagem é a criação de um novo
grupo profissional, baseada num estudo das condições do trabalho hospitalar, realizado em
Inglaterra, que conclui que 55% da atividade das enfermeiras não tinha carácter profissional e
podia ser confiado a «enfermeiras práticas». É então apresentada a justificação para a criação
dos auxiliares de enfermagem.

Por este meio são criados os cursos preparatórios ou de pré-enfermagem, de auxiliares de


enfermagem e de enfermeiros e os respetivos requisitos. O curso de pré-enfermagem tinha
uma duração de 2 anos, sendo exigida a 4ª classe, e uma idade mínima de 15 anos. Procura-se
com este curso preparar a admissão ao curso geral das candidatas que não possuíssem as
habilitações literárias exigidas. O curso de auxiliares de enfermagem tinha um ano de duração,
sendo exigida a instrução primária, e uma idade compreendida entre os 18 e os 30 anos. Com
3 anos de bom efetivo (classificação atribuída anualmente após uma avaliação) poderiam
habilitar-se ao exame de aptidão para o curso de enfermeiros. O curso de enfermeiros tinha a
duração de 2 anos, sendo exigido o 1º ciclo liceal ou curso de auxiliares com 3 anos de bom
efetivo, e idade entre os 18 e os 30 anos. É dada preferência ao pessoal feminino, exceto nas
especialidades de urologia e psiquiatria. Neste decreto surgem as especialidades de
enfermagem psiquiátrica e materno-infantil e fala-se na formação de enfermeiros-chefes e
monitores.

É no Decreto-Lei nº 37:418 de 1949 que se fala pela primeira vez na carreira de enfermagem,
fazendo referência à categoria de Enfermeiro Geral (ao qual eram atribuídas as funções de
orientação e fiscalização do serviço de enfermagem de um hospital), de Enfermeiro-chefe e
sub-chefe (com as funções de superintender a enfermagem de um serviço, pavilhão ou
enfermaria), Enfermeiro de 1ª e 2ª classe, Auxiliares de enfermagem (respondem
solidariamente pela conservação das roupas e todos os objetos que constituam os
equipamentos dos serviços a seu cargo), e Estagiário. Este documento fala também dos
concursos existentes para permitir a progressão na carreira. Apesar de estarem legisladas,
estas categorias não se aplicavam em todos os hospitais.

1.4 – Década de 50

No início da década de 50, verifica-se um enorme atraso, quer ao nível do ensino quer ao nível
do exercício profissional, comparativamente com outros países. Os enfermeiros nesta época
eram iletrados, os doentes tinham péssimas condições de higiene, as instalações eram
precárias chegando, em alguns casos pontuais, a existir dois doentes por cama, ou até mesmo
deitados num colchão, no chão.

Quanto à posição da classe médica, não existia confiança nos enfermeiros, mas aquela lutava
para que estes ficassem cada vez mais preparados. Por este meio, são elaborados os Decretos-
Lei nº 38.884 e nº 38.885 em 1952, para combater esta iliteracia. O preâmbulo destes
documentos refere o sucesso do D.L. nº 36219 de 1947 e afirma-se que “nada há a rever ou a
emendar” apesar de considerarem ser fundamental melhorar a preparação técnica e elevar o
seu nível social e profissional. A Enfermagem é considerada “uma profissão essencialmente
vocacional”.

Destes documentos retém-se como ideia principal a criação de outras escolas oficiais e a
conferência de autonomia técnica e administrativa, nas quais são incluídos os requisitos para a
admissão nas escolas de enfermagem, nomeadamente:
 Idade superior a 18 e inferior a 30 anos (admite-se com idade inferior ou superior
mediante autorização especial do Ministro do Interior, e dispensável no caso dos cursos
complementares e de monitores)
 Robustez física e outras condições necessárias reconhecidas por inspeção média;
 Habilitações literárias comprovadas documentalmente e em exame de aptidão;
 Comportamento moral irrepreensível;

São definidos os cursos de auxiliares de enfermagem, curso de enfermagem geral, curso de


enfermagem complementar e de monitor, e os cursos de enfermeiro ou de auxiliar
especializados.

1.5 – Década de 60

Os anos 60 foram influenciados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), resultando em


ganhos para a saúde em Portugal e na Europa, assim como para a Enfermagem. É
recomendado, por esta organização, na Assembleia Mundial de Saúde de 1964, uma melhor
preparação dos enfermeiros, bem como a criação de um Serviço Nacional de Enfermagem para
cada país.

Dr. Neto de Carvalho, Ministro da Saúde de então, mediante estas recomendações, teve um
papel preponderante para a mudança na área da saúde no nosso país, nomeadamente na
enfermagem, revendo toda a formação dos enfermeiros bem como a carreira, criando
melhores condições para a formação e exercício destes. É elaborado o Decreto nº 46:448 de
1965, cujo preâmbulo afirma que “o ensino da enfermagem sofreu uma evolução nos últimos
anos (...), como consequência de novas exigências derivadas das ciências e das técnicas da
própria enfermagem”. Procura-se que todos os profissionais estejam aptos para o trabalho de
base em qualquer dos campos da saúde e elevam-se as habilitações necessárias para o
ingresso. Permite uma transição de 5 anos devido à alteração nas condições de admissão, com
o intuito de não diminuir a afluência às escolas. Refere a necessidade de estabelecer uma
escola experimental do ensino de enfermagem para ensaiar novos métodos e observar os
resultados (programa submetido à OMS). É neste documento legislativo que é criada uma
escola destinada para a preparação de pessoal com cargos de chefia e de ensino de
enfermagem. O decreto afirma ainda que a carência de professores-enfermeiros é uma
limitação.

Na sequência da reestruturação implementada pelo Dr. Neto de Carvalho, em 1967 surge o


Decreto-Lei nº 48166 que estrutura as carreiras de Enfermagem Hospitalar (as categorias
existentes nesta carreira são: Enfermeiro superintendente, enfermeiro-geral, enfermeiro-
chefe, enfermeiro sub-chefe e enfermeiro de 1ª e 2ª e auxiliares de 1ª e 2ª), Saúde Pública (as
categorias existentes nesta carreira são: Chefe de serviço de enfermagem regional, subchefe
de serviço de enfermagem regional e enfermeiro de saúde pública, e auxiliares de 1ª e 2ª) e
Ensino (as categorias existentes nesta carreira são: Director de escola, monitor-chefe,
enfermeiro-professor, monitor e auxiliar de monitor). Refere que “o exercício da profissão é
bastante exigente, implica graves responsabilidade, e impõe horários de trabalho que vão até
às oito horas diárias”. São impostos os horários de trabalho para as diferentes carreiras, de “8
horas diárias ou 48 horas semanais nos serviços hospitalares”, de “7 horas diárias ou 42 horas
semanais, nos serviços de saúde pública”, e de “6 horas diárias ou 36 horas semanais, nos
serviços de ensino”.

1.6 – Década de 70

Os anos 70 são caracterizados por inúmeras iniciativas promovidas pelos sindicatos. A


Federação dos Sindicatos Nacionais de Enfermagem, a Associação Portuguesa de Enfermeiros,
e a Associação Católica de Enfermeiros e Profissionais de Saúde, realizam o I Congresso
Nacional de Enfermagem em 1970. De entre algumas conclusões que emergiram deste
congresso, “destacaram-se a integração do ensino de enfermagem no sistema educativo
nacional, a transformação em ensino superior e a defesa do estatuto profissional”. Surge a
ideia da criação de uma Ordem, que só se concretizará em 1998.

No ano seguinte é publicado o Decreto-Lei nº 414/71, cujo preâmbulo faz várias referências à
situação política e social do país. Neste decreto verificamos que se “Estabelece regime que
permite a estruturação progressiva e o funcionamento regular de carreiras profissionais”, fala
no “desenvolvimento da ciência e ao progresso das técnicas (…). Reclamam-se habilitações
apropriadas à diferenciação de tarefas e de uma atualização permanente, aliás segundo ritmos
cada vez mais acelerados”. Refere que tal estruturação e funcionamento regular de carreiras
confere um fator segurança. A um nível social, refere que a “juventude parece interessada em
participar mais intimamente na causa social, convém, sobretudo, que se lhe não neguem as
possibilidades de atuação no quadro das instituições da sociedade organizada, as quais, por
isso mesmo, hão-de abrir-se-lhe e oferecer-lhe as devidas oportunidades”. Deste ponto de
vista, a reforma que procuram colocar em prática tem como objetivo a diminuição da afluência
da população ao nível hospitalar, para passarmos a ter uma afluência ao nível de saúde
pública.

A revolução dos cravos trouxe alterações profundas à Enfermagem em Portugal, e prova disso
é o Decreto-Lei nº 440/74. Este decreto, para além de referir que existiu um súbito acréscimo
de mão-de-obra hospitalar (devido à procura crescente dos serviços hospitalares,
complexidade progressiva dos cuidados prestados, a utilização dos estabelecimentos públicos
por extratos populacionais mais exigentes e a limitação dos horários de trabalho) e uma
tendência para a desproporção entre as necessidades de pessoal apto e o número de
pretendentes à frequência de um curso, afirma também que os auxiliares de enfermagem
possuíam uma excessiva formação técnica e que estes executavam trabalhos que deveriam
competir aos enfermeiros. Como tal, extingue-se o curso de auxiliares de enfermagem, dando-
lhes a equivalência a enfermeiros de 3ª. A atribuição de um título de enfermeiro só seria
possível mediante um período de prática profissional. Este mesmo decreto refere que os
cursos deverão ter três anos para permitir uma diferenciação cultural e aquisição de
conhecimentos.

Em 1976 é realizada pela primeira vez uma greve, toda ela planeada quase ao pormenor, que
tinha como objectivo primordial a estabilidade e o aumento de conhecimentos. Esta foi única
até os dias de hoje, na medida em que teve uma adesão quase total.

A partir deste ano, há um aumento exponencial na tentativa de ingresso nas escolas de


Enfermagem (que se encontra fora do Sistema Educativo Nacional).
Verifica-se então a necessidade de reconverter as escolas de Enfermagem em escolas
superiores, surgindo a Lei nº 61/78 que refere que “Até ao início do ano lectivo de 1979-1980
serão definidas por lei, as condições em que as escolas de enfermagem deverão ser
reconvertidas em escolas superiores de enfermagem”.

1.7 – Década de 80

Os anos 80 caracterizam-se pelo aparecimento dos Cursos de Especialização.

É publicado em 1981, o Decreto-Lei nº 305/81, que introduz alterações à carreira de


enfermagem, de forma a garantir uma melhor qualidade dos cuidados e eficiência dos
serviços. Procura-se com este decreto, mais perspectivas de realização e progressão
profissionais. É exigido o desenvolvimento do nível de formação pelas “convenções e
recomendações de organizações internacionais” como a OMS, bem como pelos “progressos
técnicos e científicos na profissão”. O regime de horário de trabalho passa a 36 horas semanais
e os auxiliares de enfermagem deixam de estar contemplados nesta nova carreira, permitindo
aos enfermeiros um maior poder dentro das unidades hospitalares. Surgem os seguintes graus
de carreira: Grau 1 – Enfermeiro; Grau 2 – Enfermeiro-graduado e enfermeiro-monitor; Grau 3
– Enfermeiro especialista, enfermeiro-chefe e enfermeiro assistente; Grau 4 – Enfermeiro
supervisor e enfermeiro professor; Grau 5 – Técnico de enfermagem.

Em 1985 é introduzido o Decreto-Lei 178/85 que retifica os anteriores documentos em aspetos


pontuais. Este decreto fala em quadros ou mapas de instituições dependentes do Ministério
da Saúde (e não Ministério dos Assuntos Sociais), e a carreira é única com 3 áreas de atuação:
Prestação de cuidados; Administração; Docência.

Em 1986 surge a nova Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86, que vai distinguir o
Ensino Universitário de Ensino Politécnico, sendo que este último visa “proporcionar uma
sólida formação cultural e técnica de nível superior, desenvolver a capacidade de inovação e
de análise crítica, e ministrar conhecimentos científicos de índole teórica e prática e as suas
aplicações com vista ao exercício de atividades profissionais”.

É em 1988 que se integra o Ensino de Enfermagem no Sistema Educativo Nacional, ao nível do


Ensino Politécnico, através do Decreto-Lei nº 480/88. Esta medida introduz uma série de
componentes, relativamente às condições de admissão (os candidatos teriam de possuir o 12º
ano), às equiparações a bacharel em enfermagem e aos estudos superiores especializados.
Permite o desenvolvimento da Enfermagem como disciplina científica e passa a existir
autonomia pedagógica das escolas.

1.8 – Década de 90

Em 1990 é publicada a Lei de Bases da Saúde, Lei nº 48/90. O sistema de saúde é “ constituído
pelo Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam actividades
de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades
privadas (…)”. O Ensino de Enfermagem passa, neste momento, a ser tutelado pelo Ministério
da Educação.
Neste ano inicia-se o Mestrado em Ciências de Enfermagem no Instituto de Ciências
Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), e os enfermeiros da função pública passam a ter um horário
de 35 horas semanais ou 42 horas em regime de horário acrescido (opcional).

Uma nova revisão da carreira surge através do Decreto-Lei n.º 437/91, onde passam a existir
três áreas de atuação:

Área 1 – Prestação de cuidados (Enfermeiro, Enfermeiro Graduado, Enfermeiro Especialista)

Área 2 – Gestão (Enfermeiro-Chefe, Enfermeiro Supervisor e cargo de Enfermeiro Diretor)

Área 3 – Assessoria Técnica (Assessor de Enfermagem)

E três níveis de categoria:

Nível 1 – Enfermeiro e enfermeiro graduados

Nível 2 – Enfermeiro especialista e enfermeiro-chefe

Nível 3 – Enfermeiro Supervisor

A ausência de um instrumento jurídico levou à necessidade de aprovação de um Regulamento


do Exercício Profissional dos Enfermeiros (REPE), que apenas surge em 1996, pelo Decreto-Lei
nº 161/96 (alterado pelo D.L. nº 104/98). Este documento permite uma evolução ao nível da
formação de base e refere a “complexificação e dignificação do exercício profissional”,
desenvolvendo os direitos e normas deontológicas específicos da enfermagem, com o intuito
de proporcionar cuidados de enfermagem de qualidade aos cidadãos.

Para além de clarificar conceitos, o regulamento caracteriza os cuidados de enfermagem,


apresenta as intervenções autónomas e interdependentes, especifica as competências dos
profissionais e define a responsabilidade, os direitos e os deveres dos enfermeiros.

A Lei nº 115/97 vai permitir uma futura transição do bacharelato para a Licenciatura. Esta Lei
foi bem aproveitada pelos líderes de enfermagem, numa visão estratégica, uma vez que o que
é alterado nesta Lei possa ser aplicado também a outros grupos profissionais, levando a que
em 1999 o curso de Enfermagem passe a Licenciatura.

Após 18 anos do I Congresso Nacional de Enfermagem é criada a Ordem dos Enfermeiros, pelo
Decreto-Lei nº 104/98. O seu preâmbulo refere que a partir da 2ª metade do Séc. XX as
competências exigidas e o nível de formação académica e profissional dos enfermeiros,
traduzem-se numa prática profissional cada vez mais complexa, diferenciada e exigente.
Considera, também, os enfermeiros como uma comunidade profissional e científica, na
medida em que existe uma delimitação de um corpo específico de conhecimentos, e que tem
ocorrido uma afirmação da individualização e autonomia da enfermagem.

A um nível social é referido que a evolução da sociedade e do seu nível de exigência levou a
expectativas de acesso a padrões de cuidados de enfermagem da “mais elevada qualificação
técnica, científica e ética”.

Desde o final da década de 60 que se sente a necessidade da criação de uma associação


profissional de direito pública, bem como a adoção de um código deontológico e um estatuto
disciplinar. Como tal, é criada a Ordem, que tem como objetivo promover a regulamentação e
disciplina da prática dos enfermeiros, de forma a assegurar o cumprimento das normas
deontológicas, garantir a prossecução do interesse público e a dignidade do exercício da
enfermagem.

É neste decreto que é integrado o Código Deontológico, sendo a Ordem responsável pela
revisão do REPE.

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