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De Felipe Moura02420
INTRODUÇÃO
Há um personagem bíblico que quase ninguém conhece, mas que era extremamente
popular e conhecido nos tempos dos antigos israelitas.
E a razão para que ele não seja conhecido é por causa de ajustes feitos pelos massoretas
no texto bíblico entre os séculos século 7 e 10 d.e.c..
Observe essas duas passagens do livro de Ezequiel traduzidas, bem como o Texto
Massorético logo abaixo:
“Ainda que estivessem no meio dela estes três homens, Noé, Danel e Jó, eles pela sua
justiça livrariam apenas as suas almas, diz Eterno SENHOR.” (Ezequiel 14:14)
“Eis que tu és mais sábio que Danel; e não há segredo algum que se possa esconder de ti.”
(Ezequiel 28:3)
Na tradução acima, utilizei o termo original: Danel ()דנאל. Porém, no texto massorético há
uma nota para que onde está Danel, se leia Daniel ()דניאל. Esse tipo de ajuste no texto,
conhecido como Ketiv e Qerê (i.e. como está escrito e como se lê) aparece em alguns
trechos da Bíblia Hebraica, onde a leitura original não fazia sentido para os massoretas.
É tentador sucumbir a teorias conspiratórias. Mas, a razão mais provável que levou os
massoretas a fazerem isso é simples de entender: Quando o texto massorético foi
compilado, a memória de Danel já havia desaparecido do povo judeu e, por isso,
provavelmente os massoretas imaginaram que se tratava de uma glosa. E o único
personagem bíblico importante o suficiente para ser mencionado assim seria Daniel.
A HISTÓRIA DE DANEL
Felizmente, porém, a Arqueologia resgatou a história desse importante personagem, citado
por duas vezes nas Escrituras. Porque tanto um texto encontrado nas cavernas do mar
morto, o Livro de Jubileus, quanto as cartas ugaríticas, ambos encontrados na primeira
metade do século 20, trouxeram nova luz a esse personagem misterioso.
O nome Danel significa literalmente “juiz de El”. Era um personagem bastante importante da
mitologia cananéia, sendo objeto de diversos contos. Essa mitologia influenciou o povo de
Israel, que o adotou como personagem.
Isso não era incomum entre os israelitas. Os outros dois personagens citados por Ezequiel
também foram herdados de outras culturas. A narrativa de Jó, por exemplo, é de origem
não-israelita, ao passo que Noé é, na realidade, uma releitura monoteísta dos mitos
diluvianos sumérios.
No único texto parcialmente completo sobrevivente, o Épico de Aqhat, Danel é descrito
como um juiz justo, sábio e íntegro, e um servo de El. Ao lado, a tábua da história de Danel,
datando de cerca de 1350 a.e.c. e encontrada em Ugarit, hoje parte do acervo do Museu do
Louvre, em Paris.
Sendo assim, não é difícil entender como o personagem de um juiz justo e íntegro, sábio
em seus caminhos, e um servo de El, acabaria sendo tomado emprestado pela cultura
israelita.
No Épico de Aqhat, pouco se fala sobre Danel, pois o texto se foca em Aqhat, um filho que
nasceu a Danel depois que esse clamou a El, mas que acaba sendo morto por Anat, deusa
cananéia da guerra e esposa de Ba’al. Danel aparece apenas pedindo pelo filho no Templo
de El e, depois, pranteando-o, pedindo ajuda a Ba’al para encontrar seu corpo e
enterrando-o na Galiléia.
A VERSÃO ISRAELITA
Certamente que na versão israelita dos contos populares, Danel teria se tornado um
monoteísta, servo exclusivo do Eterno. É certamente a tais contos populares que alude o
profeta Ezequiel. Infelizmente, esses contos não sobreviveram.
A figura de Danel também acabou se tornando base para o próprio personagem bíblico
Daniel, especialmente em seus feitos heróicos em Dn. 1-6 que, na realidade, são textos
figurativos. A Jewish Study Bible, em sua introdução ao livro de Daniel, assim comenta:
Embora essa seja a forma mais conhecida de como Danel se tornou parte da cultura
israelita, não é a única a sobreviver. No período do Segundo Templo, as lendas de Danel
ainda eram bastante populares, ao ponto de Danel ter se tornado tio e sogro de Enoque, no
livro de Jubileus:
“E no décimo segundo jubileu, na sétima semana, ele tomou para si uma esposa, e seu
nome era Edna, a filha de Danel, a filha do irmão de seu pai, e no sexto ano nesta semana
ela lhe deu um filho e ele chamou seu nome de Matusalém.” (Jubileus 4:16)
CONCLUSÃO
Quando entendemos quem foi Danel, então percebemos que em Ezequiel 14, nenhum dos
três justos mencionados hipoteticamente era israelita.
Isso certamente é de propósito, pois o Eterno estava insatisfeito com Judá e essa era uma
forma sutil de dizer que nenhum justo havia em Israel naquele momento.
Isso também mostra que o pensamento sobre haver justos nas nações era muito mais forte
e presente em Israel do que em tempos posteriores. Especialmente quando comparados
com livros como Jonas, produzidos com objetivo de confrontar o ultra-nacionalismo
pós-exílico que chegava a supor que o Eterno não se importava com outras nações.
E para nós, leitores modernos, fica a mesma lição: Embora Israel seja uma nação-modelo,
escolhida pelo Eterno para mostrar à humanidade o que seria uma sociedade justa, nas
relações individuais com pessoas, não havia a noção de que as pessoas pertencentes ao
povo judeu eram de alguma forma melhores ou superiores às outras.