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A evolução da persistência da lactase

1. O que é a persistência da lactase?

A lactase é a enzima que digere o açúcar do leite, a lactose. Esta enzima quebra a ligação
entre a glucose e a galactose, as subunidades que constituem a lactose. A digestão da lactose é
fundamental para a absorção dos açúcares e previne a sua acumulação no intestino, onde será
consumida por microrganismos. A capacidade para digerir a lactose permite que o leite fresco,
não fermentado, seja consumido e que sejam absorvidas as proteínas, as gorduras, os minerais
e as vitaminas nele contidas sem sofrer os sintomas da malabsorção, tais como, a diarreia.

A persistência da lactase é um fenótipo que corresponde à presença da enzima lactase no


organismo adulto. Na maioria das populações humanas predomina o fenótipo não-persistência
da lactase, que é comum a todos os mamíferos. O fenótipo não-persistência da lactase
caracteriza-se pela ausência de produção da enzima lactase no estado adulto.

Diversos estudos populacionais mostraram que, no fim da infância e na adolescência, ocorre


uma transição importante no processo de digestão da lactose. Abaixo dos 3 anos de idade,
predomina o fenótipo persistência da lactase. Entre os 3 e os 11 anos de idade, inicia-se uma
transição para o fenótipo não-persistência da lactase, que é controlada geneticamente.

O método utilizado para definir o fenótipo “persistência da lactase” tem, como referência,
a capacidade para digerir 50 gr de lactose, que é equivalente a cerca de 1 litro de leite fresco,
quantidade superior à que qualquer pessoa consome de uma só vez.

2. A distribuição geográfica da persistência da lactase

A distribuição geográfica da persistência da lactase no mundo é muito heterogénea


(Figura 1): é muito frequente em Europeus e nalgumas comunidades de pastores africanos, tais
como os Beja do Sudão (mais de 70%). É moderadamente frequente (30-70%) no Médio Oriente,
em torno do Mediterrânio e na Ásia Central e do Sul. Na população de Nativos Americanos e das
Ilhas do Pacifico, a frequência é muito baixa. Também é baixa na região Africana para lá do
Sahara e no Sudeste Asiático.
Figura 1. Frequência (em percentagem) de casos de malabsorção da lactose em diversos
grupos populacionais residentes nos Estados Unidos da América. Fonte:
https://www.sciencedirect.com/topics/nursing-and-health-professions/lactase

Como explicar a heterogeneidade da distribuição geográfica do fenótipo “persistência


da lactase”? Este parece ser mais frequente nas populações com uma história antiga de
consumo de leite fresco e menos frequente nas populações que não partilham a mesma história.
Foi com base nesta observação que a persistência da lactase foi considerada uma adaptação à
dieta. A dieta humana sofreu uma alteração profunda com a introdução da agricultura e da
criação de animais, há aproximadamente 10 mil anos, no próximo Oriente e em África.
Figura 2. O mapa, representando o Velho Mundo, mostra a frequência do fenótipo persistência
da lactase em diferentes populações. Os pontos representam os locais de recolha de voluntários
que participaram no estudo, e as cores representam valores de frequência (a cor azul está
próxima de zero e a cor vermelha está próxima de 1 (Fonte:
https://bmcevolbiol.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2148-10-36).

3. A relação entre a persistência da lactase e a mutação -13910C>T

Na Eurásia, o fenótipo persistência da lactase está associado à presença de uma mutação


pontual situada no gene MCM6, a mutação -13910 C>T. No local 13910 da sequência do gene
MCM6, o nucleótido C foi substituído pelo nucleótido T. A presença do nucleótido T tem
influência na expressão do gene LCT, o gene que codifica a enzima lactase. Mais concretamente,
a mutação permite a ligação de um factor de transcrição (Oct) que impede que o gene LCT
reduza a sua expressão com o avanço da idade.

A frequência da mutação -13910 C>T aumentou muito na região do Cáucaso, num tempo
em que os animais produtores de leite foram domesticados, e depois espalhou-se para as
regiões de latitude mais elevada, muito provavelmente acompanhando a disseminação do
pastoralismo, um tipo de organização social baseado no pastoreio como principal atividade
económica.

4. A evolução da persistência da lactase

A hipótese adaptativa parte do pressuposto que a não persistência da lactase corresponde


a um estado ancestral, comum aos restantes mamíferos (também eles têm o fenótipo não-
persistência da lactase). Partindo do pressuposto que a persistência da lactase é uma adaptação
à dieta, diversas hipóteses foram sugeridas para justificar a distribuição diferencial deste
fenótipo nas populações humanas:

i) Valor nutricional. A lactose presente no leite fresco fornece calorias importantes


para complementar a dieta.
ii) Água. O leite fornece uma quantidade adicional de fluídos muito importante nas
regiões áridas. Para alguns nómadas do deserto, o leite pode ser a única fonte de
água disponível nalgumas partes do ano. Neste caso, a diarreia, como consequência
da intolerância, seria muito desvantajosa. Adicionalmente, os fluídos fornecidos
pelo leite estão livres de agentes patogénicos.
iii) Reforço da absorção de cálcio. Esta hipótese foi sugerida para explicar o aumento
rápido do fenótipo persistente no Norte da Europa. As populações de latitudes mais
para ao Norte podem ser suscetíveis ao raquitismo e à osteomalacia.

Figura 3. Associação dos genótipos observados no polimorfismo LCT-13910C>T aos


resultados de um teste.

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