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Píramo e Tisbe

Ovídio, por Bocage

Píramo, singular entre os mancebos,


E Tisbe, superior em formosura
A todas as donzelas do oriente,
Tinham contíguas as moradas suas
Lá onde é fama que de ingentes muros
Semiramis cingiu alta cidade.
A amor a vizinhança abriu caminho,
Neles foi com a idade amor crescendo,
E unir-se em doce nó votaram ambos,
O que injustos os pais não permitiram.
Em vivo, igual desejo os dois ardendo,
(Que isto os pais evitar-lhes não puderam)
Sem confidente algum, só por acenos,
Por sinais se entendiam, se afagavam.
Quando amor se recata, é mais ativo.
Parede, que os dois lares dividia,
Rasgada estava de uma tênue fenda
Desde o tempo em que foram fabricados.
Ninguém tinha notado este defeito;
Mas que não sente Amor, que não adverte?
Vós, amantes fiéis, vós o notastes,
E dele se valeu sagaz ternura.
Soíam por ali passar sem medo
Brandas finezas em murmúrio brando.
De uma parte o mancebo, e Tisbe de outra,
Prestando unicamente, e recebendo
Seu hálito amoroso, assim carpiam:
“Invejosa parede, a dois amantes
Por que, por que te opões? Ah! Que importava
Que perfeita união nos consentisses?
Ou, se isto é muito, ao menos franqueasses
Aos ósculos de amor lugar bastante?
Mas não somos ingratos, confessamos
Que os nossos corações a ti só devem
Doce conversação, que os desafoga.”
Separados assim, e em vão diziam.
Dando um saudoso adeus já quase à noite,
Ao partir cada qual suave beijo
Na parede insensível empregava,
Nem que o terno penhor chegar pudesse
Aonde o dirigia o pensamento.
Um dia quando, roto o véu noturno,
Tinha ante os lumes da serena Aurora
Desmaiado nos céus a luz dos astros,
Febo com seu raio ia secando
Sobre as ervas sutis o frio orvalho,
Ao lugar do costume os dois volveram.
Depois de mutuamente se queixarem
Da pesada opressão, que os constrangia,
Com mais cautela ainda, em tom mais baixo
Concertam entre si que em vindo a noite
Haviam de iludir os pais e os servos,
De seus lares fugindo, e da cidade;
Que, por não se perderem vagueando
Pelo campo espaçoso, ao pé da antiga
Sepultura de Nino ambos parassem,
Postos à sombra de árvore frondosa.
Esta árvore, que ali ao ar se erguia,
Carregada de frutos cor de neve,
(Então da cor de neve até maduros)
Era a grata amoreira: amena fonte,
Fervendo junto dela, o chão regava.
Quadrou o ajuste, e nas cerúleas ondas
Caindo tardo o sol para os amantes,
E donde o sol caiu surgindo a noite,
Achada ocasião, por entre as sombras
Tisbe astuta das portas volve a chave,
Engana os seus, e sai. Cobrindo o rosto,
Caminha para o túmulo de Nino,
Chega, e debaixo da árvore se assenta:
Dava Amor ousadia à linda moça.
Eis que feroz leoa, ensangüentada
De recente matança a boca enorme,
Assoma, e vem depor na fonte a sede.
Porque o pleno luar cobria o campo
A vê ao longe a babilônia Tisbe,
E com tímidos pés em gruta umbrosa
Vai sumir-se, correndo, e palpitando,
E na carreira o véu lhe cai por terra.
Depois que o torvo bruto a sede ardente
Nas águas apagou, tornando aos bosques
O solto véu sem Tisbe acaso encontra,
E no sangüíneo dente o despedaça.

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