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Filosofia e Educação - Aproximações e Convergências - CEB - 2012
Filosofia e Educação - Aproximações e Convergências - CEB - 2012
AÇ
APROXIMAÇÕES E CONVERGÊNCIAS
FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
APROXIMAÇÕES E CONVERGÊNCIAS
Immanuel Kant
4
Copyright © 2012
ISBN
978-85-65531-01-6
Inclui bibliografia.
5
Conselho Editorial
Prof. Dr. Agemir de Carvalho Dias – FEPAR
Prof. Dr. Edilson Soares de Souza – FTBP
Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz – PUCSP
Prof. Drª Etiane Caloy Bovkalovski – PUCPR
Prof. Dr. Euclides Marchi – UFPR
Prof. Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI
Prof. Dr. Jean Lauand – USP
Prof. Dr. Jean-Luc Blaquart – Universidade Católica de Lille (França)
Prof. Dr. João Carlos Corso – UNICENTRO
Prof. Dr. Joaquín Silva Soler – PUC-Chile
Prof. Drª Karina Kosicki Bellotti – UFPR
Prof. Dr. Lafayette de Moraes – PUCSP
Prof. Drª Márcia Maria Rodrigues Semenov – UNISANTOS
Prof. Drª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla – PUCPR
Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira – PUCPR
Prof. Dr. Silas Guerriero – PUCSP
Prof. Dr. Uipirangi Franklin da Silva Câmara – FTBP
Prof. Drª Wilma de Lara Bueno – UTP
6
Nota do Organizador
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO [10]
APRESENTAÇÃO
O empenho filosófico destina-se não somente à
compreensão do mundo e do homem, mas também, ainda que
implicitamente, à educação deste mesmo homem, cuja vida se
desenrola na relação com o mundo. A prática educativa, por
sua vez, encerra em seu interior uma determinada visão do
homem e do mundo e, portanto, inclui uma posição filosófica
definida, mesmo que tal posição nem sempre seja objeto da
consciência dos atores envolvidos no processo educativo. Não
se pode negar, portanto, as íntimas relações que se
estabelecem entre Filosofia e Educação. Trata-se, certamente,
não de sobreposições ou interferências arbitrárias, mas, isso
sim, de mesclas teórico-conceituais que se foram tecendo
juntas (o que corresponde ao sentido literal da palavra
complexo ou complexidade), como os diferentes fios que se
juntam para constituir uma única peça.
Dos antigos gregos aos filósofos dos nossos dias,
percebem-se muitas trilhas de aproximação entre os distintos
campos do saber filosófico e da ciência pedagógica,
evidenciando-se, desse modo, as possibilidades inauditas de
entrecruzamento e de diálogo, de convergências e de
aproximações entre os habitantes destes dois espaços de
teorização-compreensão da vida, do homem e do mundo. Dos
Pré-Socráticos a Popper, os mais destacados filósofos também
se dedicaram, de uma forma ou de outra, a atividades de
ensino e docência; por outro lado, a maior parte dos grandes
pensadores da educação, como Rousseau, Vygotsky, Piaget,
11
Gramsci e Paulo Freire, por exemplo, também se revestiu de
uma bagagem filosófica significativa.
Os ensaios reunidos neste volume estão assentados,
precisamente, nesta perspectiva dialógica e convergente entre
Filosofia e Educação. Objetivam, desse modo, servir aos
intelectuais que se dedicam aos dois campos do saber, porque
são filósofos-educadores ou educadores-filósofos. Destinam-
se, ainda, aos estudantes de Filosofia e de Educação que, no
esforço rigoroso e específico de suas áreas de investigação,
sentem a necessidade de compreender sempre mais as
interconexões entre o amor ao saber e a dedicação em educar. Não
se trata de uma obra que encerra todas as questões nem que
apresenta uma visão exaustiva de toda a história do
pensamento filosófico em suas relações com o saber
pedagógico. Mesmo assim, tem-se aqui uma abordagem
bastante ampla de toda a filosofia, dos filósofos pré-socráticos
aos pensadores atuais, em 22 diferentes perspectivas.
Como o leitor poderá verificar, na sessão Sobre os
Autores, os co-autores desta obra têm a mais alta qualificação
em seus respectivos campos de investigação, o que confere a
este trabalho um elevado grau de profundidade dos temas
tratados. Quero ressaltar, ainda, que todos estes co-autores são
profissionais profundamente comprometidos ao mesmo
tempo com a Filosofia e com a Educação, não só na tarefa de
elaboração teórica destes dois campos, mas na própria
atividade profissional de pesquisa e de ensino.
A cada um dos co-autores, quero manifestar minha
mais profunda gratidão por todo o empenho na construção
desta obra coletiva. Sem a presença generosa de cada um
deles, este livro seria apenas mais um habitante do mundo da
utopia. Mas, em razão de seu comprometimento, esta obra
tornou-se realidade e, hoje, pode ser oferecida ao público
brasileiro.
Agradeço também ao Círculo de Estudos Bandeirantes,
Órgão Cultural afiliado à Pontifícia Universidade Católica do
12
Paraná, que acolheu este trabalho para publicação. Ressalto,
com esta referência, que o Círculo de Estudos Bandeirantes,
nas primeiras horas do século XX, foi a instituição responsável
pelo surgimento das primeiras escolas superiores de Filosofia
em Curitiba e no Estado do Paraná, contribuindo para fazer
nascer a Universidade Federal do Paraná e a Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Esta entidade é um exemplo
vivo do quanto a Filosofia e a Educação andam de mãos dadas
nas trilhas da história.
Fazemos votos de que as propostas aqui apresentadas
sejam como sementes plantadas em terreno fértil, permitindo
que brotem novos horizontes para a Filosofia e para a
Educação neste nosso país, tão carente de ambas.
SOBRE OS AUTORES
BARBARA BOTTER
Licenciada em Filosofia e Doutorado em Filosofia Antiga pela
Universidade Ca’Foscari de Veneza, desenvolvido em co-tutel
na Universidade Charles de Gaulle-Lille III. Pós-doutoramento
na Universidade de São Paulo. Foi Professora da PUC-Rio
entre os anos de 2008 a 2010.
RICARDO TESCAROLO
Possui doutorado em Educação pela USP, mestrado em
Educação pela PUC-SP, graduação em Letras Português-Inglês
e em Pedagogia. É professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação da PUCPR, onde também exerce o cargo de Pró-
Reitor Comunitário.
JEAN LAUAND
Professor Titular Sênior da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Educação da FEUSP. Professor do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de
São Paulo. Fundador e Presidente do CEMOrOc – Centro de
Estudos Medievais Oriente e Ocidente, do EDF-FEUSP.
ERICSON FALABRETTI
Possui graduação em Filosofia pela UFPR, mestrado e
doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São
Carlos. Atualmente é Professor Titular e coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR.
LAFAYETTE DE MORAES
Possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo,
graduação em Matemática pela Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil, especialização em
Filosofia e mestrado em Filosofia (Lógica) pela Universidade
de São Paulo. Tem doutorado em Filosofia (Lógica) pela PUC-
SP e pós-doutorado pela Universidade de Munchen.
Atualmente, é professor titular da PUC-SP e da Faculdade São
Bento.
BORTOLO VALLE
Possui graduação em Filosofia e Especialização em Filosofia
da Educação e em Didática do Ensino Superior pela PUC-PR.
Tem mestrado em Filosofia e doutorado em Comunicação e
Semiótica pela PUC-SP. Atualmente, é Professor do Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, e docente do
UNICURITIBA e da FAVI.
CÉLIA KAPUZINIAK
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de
Santa Catarina e mestrado em Educação pela Universidade
Federal de Uberlândia. Foi professora de Filosofia da PUCPR.
É co-autora de Docência: uma construção ético-profissional
(Papirus).
Capítulo 1
A PEDAGOGIA ANTES DA PEDAGOGIA
Barbara Botter
1 A palavra paideia foi criada pelos Sofistas para indicar a natureza do seu ensino.
22
3 Aristóteles, Política, 1253a: “É evidente que a polis é natural, e que o homem é por
natureza um animal político e que o apolide por natureza e não por acidente é menos
ou mais que um homem” (tradução nossa).
4 Para uma panorâmica exaustiva do assunto, ver Ferreira (1993).
28
exercícios físicos, são procurados por muitos adultos que
gozam da beleza e do espetáculo oferecidos pelos mais novos,
e lhes dão dicas de vida. Sócrates escolhia frequentemente
estes lugares para ensinar5. Finalmente, a Ágora é um
importante centro cívico e comercial. Lá ficam os mais
importantes edifícios públicos, vários templos, altares e
estátuas. Lá se realizam as sessões da Ecclesia, a Assembleia, da
Boulê, o Conselho dos Quinhentos, e dos Tribunais da Helieia.
No edifício do Pritaneu, encontram-se gravados na pedra
diversos documentos, o mais notório dos quais é o código de
Sólon. A Ágora é, portanto, um local de grande afluxo, que os
atenienses usam para conversar e transmitir a cultura
(FERREIRA, 1993, p. 32).
É evidente que esta evolução da política ateniense do
regime monárquico ao regime democrático permitiu a
participação nos órgãos coletivos de governo a um número
infinitamente maior de cidadãos e por isso as técnicas de
argumentação se tornaram de grande importância. A essa
exigência responderam prontamente aqueles filósofos que
podem ser considerados mestres do discurso e professores de
homens, visto que erigiam o homem em alvo de seu
ensinamento: os Sofistas6. Embora os sofistas tenham sido
considerados por muito tempo personagens negativos e falsos
pedagogos, eles despertaram considerável entusiasmo entre os
jovens da Atenas democrática (PLATÃO, Protágoras, 310a-
311a; 314b-315d). Finalmente, foram eles que cunharam a
palavra paideia para indicar a natureza essencialmente
pragmática de seu ensino, o qual permitiu a muitos jovens
atenienses intervir nas relações públicas graças à habilidade
dialética e retórica. Na época da Grécia clássica, os Sofistas
7 Sobre as razões do escândalo que o ensino dos Sofistas provocou ver Rocha Pereira
REFERÊNCIAS
Capítulo 2
SÓCRATES E A FORMAÇÃO DO MESTRE: VIRTUDE, ÉTICA E
ESPIRITUALIDADE
Ricardo Tescarolo
8 Michael Polany, por exemplo, refere-se a essa razão latente como “conhecimento
tácito” (The Tacit Dimension. The University of Chicago Press, 1996, p. 4), na medida
em que “we can know more than we can tell” (“sabemos mais do que reconhecemos”).
33
O primeiro texto dos diálogos de Platão, em ordem
cronológica, a mencionar a maiêutica de Sócrates é o Simpósio.
Neste diálogo, relatado por Platão, Sócrates repete as palavras
da sábia sacerdotisa Diotima de Mantinéia, que sugere que a
alma dos homens está grávida e quer dar à luz. No entanto, o
parto não pode se realizar. Por essa razão, o mestre, tal qual o
obstetra, deve ajudar o educando a dar à luz a verdade
(aleteia).
Portanto, o mestre não é o que enche a mente do
discípulo com informações, como se sua mente fosse uma
caixa vazia. Na maiêutica, o mestre ajuda o discípulo a
alcançar o conhecimento mediante um diálogo questionador.
Foucault (2004) adverte que o mestre não pode mais se limitar
a ser “o mestre da memória”, mas o mediador “na formação
do indivíduo como sujeito” (p. 160), em que “o ato do
conhecimento permanece ligado às exigências da
espiritualidade” que vincula este ato à conversão do sujeito
(idem, p. 267), condição que será atingida pela prática da aretê
(virtude). Por conseguinte, o mestre de virtudes pressupõe o
mestre virtuoso.
Mas será a virtude ensinável? A virtude pode ser
ensinada, sim, mas menos pelos discursos e textos do que pelo
exemplo, que se funda na ética e se nutre da sabedoria
dedicada à construção da reciprocidade e do respeito à
alteridade e à diversidade. A ética deve se constituir, pois, na
sustentação da ação humana, integrada pela vontade e pelo
livre-arbítrio, assumindo sentido mais radical como
responsabilidade pelas consequências das iniciativas humanas
e servindo de referência para o diálogo de cada pessoa com a
própria consciência e com as consciências dos outros,
despertando-os de uma eventual indiferença em relação à
agressão à vida e à dignidade da pessoa.
Assiste-se hoje à substituição do paradigma social por
outro que decorre de um processo de “dessocialização”
(TOURAINE, 2007, p. 23), acompanhado por uma “penetração
34
generalizada de uma violência de mil formas e faces, que
rejeita todas as normas e os valores sociais” e a “escalada das
reivindicações culturais, tanto sob a forma neocomunitária
como sob a forma de apelo a um sujeito pessoal e à
reivindicação de direitos culturais” (ibidem). E, no esforço de
criação de “instituições e regras de direito que sustentarão a
liberdade e a criatividade das pessoas, estão em jogo a família e
a escola” e, em seu centro, os modelos educacionais (idem, p.
240).
Por isso, a atualização dos mestres na concepção da ética
assume atualmente importância crucial. De fato, a eficácia da
escola será principalmente resultado da virtuosidade da
intervenção docente em seu interior. E apenas no contexto
mais amplo da função social de formação do mestre é que as
questões da sua intervenção ética terão sentido. Sua formação
priorizará, destarte, o manejo mais amplo dos saberes, como
projeto solidário e construção coletiva, alimentado pela
profundidade e pelo confronto constante e convergente e
considerando a aprendizagem em suas implicações
emocionais, afetivas e relacionais.
A formação do mestre passa, então, a ser afetada pela
natureza complexa do paradigma emergente, implicando o
desenvolvimento das capacidades de identificar, analisar e
operacionalizar sua ação tendo em conta, de um lado, as
complexas circunstâncias contemporâneas. Os mestres, assim,
aptos a elaborar e atualizar os saberes pedagógicos, não
ficarão reduzidos a executores de projetos alheios ou planos
acabados.
Enfim, a visão do mestre não pode se limitar a fixar o
olhar no dedo que aponta, mas estender sua perspectiva para
aquilo que o dedo aponta: a constelação das novas
possibilidades nascidas no interior das novas, ricas, complexas
e dinâmicas circunstâncias contemporâneas, mas que também
se alimenta de perplexidade e consternação.
35
Impõe-se, pois, a articulação de novos conhecimentos
com novos objetivos e formas de aprendizagem e de ensino,
pelo desenvolvimento de uma cartografia de relevâncias que
funcione como um radar capaz de perscrutar uma nova
epistemé fundada em dois eixos: a ética planetária e a
espiritualidade.
REFERÊNCIAS
Capítulo 3
AGOSTINHO DE HIPONA: A VERDADE, OS SENTIDOS
E O “MESTRE INTERIOR”
Augustin et la fin de la culture antique. Paris: E. De Boccard, 1958 (1ª. ed. 1938),
capítulos I-III.
47
imagens, as metáforas, as metonímias, a verve, a erótica e,
enfim, a sedução e a beleza do dizer, ou do como dizer10.
Com relação à figura de Proteu que Agostinho evoca
nessa passagem, não se pode deixar de pensar naquele registro
do real que Lacan amarrará borromeanamente com os outros
registros do imaginário e do simbólico. O real não pode ser
concebido sem um e sem outro, todavia, ele permanece hostil
a toda tentativa de captação, porquanto é de natureza
proteiforme. Com efeito, pela experiência da fala e, portanto, da
falha, da falta, dos ditos e dos inter-ditos que não cessam de
reenviar a este impossível, o real se manifesta como aquele
dado bruto que está continuamente a retornar e a se oferecer à
simbolização, na medida mesma em que escapa, se elide e se a
subtrai à significação enquanto tal. É o próprio Lacan quem
chama a atenção para este paradoxo fundamental: “O real, ou
aquilo que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente
à simbolização” (LACAN, 1975, p. 80). Isto quer dizer que a
nossa percepção dos fenômenos só se dá, ou só se escreve,
através das próprias sinuosidades e ambiguidades que
atravessam, marcam, pontilham e informam o mundo dos
sentidos.
10 No parágrafo 128 de Para além de bem e mal, Nietzsche dirá: “Quanto mais
abstrata for a verdade que queres ensinar, tanto mais deverás seduzir para ela os
sentidos” (NIETZSCHE, 1988, p. 95).
48
Consequentemente, a principal objeção que se poderia
levantar contra os céticos consiste no seguinte: conquanto eles
se empenhem em demonstrar que as coisas podem ser
diferentes do modo como aparecem aos nossos sentidos, elas
não podem deixar de parecer aquilo que parecem ser (Cf. ibid.,
p. 165). É certo, pois, dizer que os sentidos percebem o falso;
certo não é, porém, afirmar que nada percebem, porquanto
não há como negar que o universo aparece aos nossos olhos
como aquilo que contém o céu e a terra, ou que é visto como
sendo o céu e a terra. Portanto, forçoso é concluir que o erro
não reside nos sentidos – na medida em que os sentidos
sentem somente aquilo que sentem – mas no julgamento que
se dá de maneira precipitada, irrefletida, sobre aquilo que nos
aparece como tal. Inversamente, não haverá engano quando
não se der o seu assentimento além do necessário para
persuadir alguém de que uma determinada coisa parece ser
deste ou daquele outro modo (Cf. ibid., p. 169)11.
Para fundamentar a tese de que não se deve exigir dos
sentidos mais do que eles podem perceber, Agostinho recorre
à analogia que há entre o estado de vigília e o do sono. Sabe-se
efetivamente que, no sono, as coisas se aproximam ainda mais
do falso do que no estado de vigília. Se, pois, não se pode
conhecer com certeza nem mesmo o fato de estarmos
acordados, esta impossibilidade se revelará a fortiori quando se
consideram os fenômenos do universo onírico. Todavia,
retruca Agostinho, se os mundos se compõem de um mais
seis, é patente que os mundos formam sete em qualquer
situação ou estado em que nos encontrarmos. De igual modo,
que nove sejam três vezes três e forme um quadrado de
números inteligíveis, é necessariamente verdadeiro mesmo se
toda a humanidade estivesse a ressonar. De sorte que os
sentidos não devem ser acusados ao constatar-se que os
11 Convém, porém, lembrar que Agostinho não acusa os Acadêmicos de terem negado
valor aos sentidos. O que ele ressalta é justamente não ter neles encontrado nenhuma
crítica contra os sentidos (Cf. ibid., p. 167-169).
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delirantes são afetados por falsas visões, nem tampouco pelo
fato de, quando sonhamos, percebermos coisas falsas (Cf. ibid.,
p. 167).
Essas ponderações nos conduzem quase
irremediavelmente para as Meditationes de prima philosophia, de
René Descartes, e, mais precisamente, para a Primeira
Meditação, onde o filósofo francês realiza – deslavada e
despudoramente – mais um de seus numerosos plágios sobre
as intuições que, doze séculos antes, já havia avançado e
desenvolvido o teólogo africano. Assim, baseando-se quase
nos mesmos exemplos, Descartes assevera: “Seja que me
encontre acordado ou dormindo, a soma de dois mais três é
sempre cinco e o quadrado não tem mais que quatro lados”
(DESCARTES, 1999, p. 408). Voltarei a esta problemática na
terceira e última seção deste capítulo. Por enquanto,
sublinhemos mais uma vez que, para Agostinho, o erro não
reside nos órgãos dos sentidos, mas tão somente nos juízos
que, irrefletidamente, emitimos sobre aquilo que parece ser.
Donde o clássico exemplo da ilusão ótica, na qual o remo
imerso na água parece quebrado ou oblíquo. Um epicureu –
lembra Agostinho – poderia observar: “A respeito dos
sentidos, nada tenho a lamentar, pois seria injusto deles exigir
mais do que podem. Assim, tudo o que podem ver os olhos,
estes veem algo verdadeiro. É então verdadeiro o que veem a
respeito do remo na água?” (AGOSTINHO, 2006, p. 167).
Para Agostinho, não há dúvida de que é verdadeiro
aquilo que aparece aos nossos olhos como sendo um remo
quebrado. Verdadeiro também é o fato de que, para os
navegantes, as torres, vistas de longe, parecem mover-se.
Verdadeiro igualmente é o fenômeno indicando que a
plumagem de certas aves muda de cor conforme o ângulo do
qual ela é observada. De sorte que não se poderia confutar
aquele que declarasse: “Sei que isto me parece branco, sei que
meu ouvido encontra deleite nisto, sei que para mim isto tem
50
um odor agradável, sei que para mim isto tem um doce sabor,
sei que isto para mim é frio” (Ibid., p. 169).
Moustapha Safouan, no livro, L’échec du principe du
plaisir, chama a atenção para algumas consequências que o
problema da percepção acarretou para três filósofos: Platão,
Berkeley e Kant. Em Berkeley, a aparência ou a percepção se
teria anexado ao próprio eu, de modo que, ao reduzir-se o ser a
esta mesma percepção, não se poderia evitar a consequência
de negar o ser e, destarte, desprover a percepção de sua
própria realidade ou de seu caráter de ser real. Quanto ao
autor da Crítica da razão pura, existiria também uma anexação
da aparência ou da percepção, não ao eu, mas ao sujeito do
conhecimento, cuja função, através da influência que exercem as
formas puras da intuição sobre as percepções, é a de organizar
ou constituir o objeto como tal. Com relação à coisa mesma,
esta permanece como que subtraída ao nosso conhecimento e,
portanto, como uma coisa em si, um não-objeto. Isto equivale a
dizer que o ser, o não-eu, é mantido, mas sem nenhuma
identidade verificável para nós. Em outros termos, embora
mantido, este ser continua sendo indeterminado e
indeterminável (Cf. SAFOUAN, 1979, p. 23).
Em Platão, a percepção de que as coisas se apresentam
numa perpétua instabilidade, mobilidade e mutabilidade – o
mesmo remo, por exemplo, aparecendo ora inteiriço ora
quebrado, ora mais longo ora mais curto, ora num lugar ora
noutro – teria conduzido o filósofo a deslocar todos esses
fenômenos, não para o percipiens, mas para as próprias coisas
percebidas. Mas, assim fazendo, Platão as teria privado de
todo status ontológico, de sorte que as realidades sensíveis –
por se transformarem continuamente – não podem ser
apreendidas pela razão enquanto conceitos. Quanto ao
verdadeiro ser, este reside no reino das Ideias, ou das
essências inteligíveis, que são divinas, porque inascíveis,
imperecíveis, imutáveis, eternas. Assim, conclui Safouan, todo
o problema do platonismo consiste em saber como é possível
51
situar o verdadeiro ser acima do mundo sensível e, portanto,
fora de nós, reivindicando ao mesmo tempo – em contraste
com a incognoscibilidade da coisa-em-si kantiana – a
possibilidade mesma de conhecê-lo. Por conseguinte, a
distinção entre a aparência e a realidade que, na perspectiva
idealista, é assimilada à distinção entre o que pertence ao
sujeito e o que reside fora do sujeito, ou do alcance de seu
conhecimento, já se acharia enunciada em Platão. Todavia, ela
se exprime aqui sob a modalidade de uma separação entre as
mutações do mundo sensível – que encerram uma aparência de
ser – e o ser verdadeiro (Cf. ibid., p. 23-24).
Ora, na minha perspectiva, o que está em jogo, tanto em
Platão quanto em Kant, não é – pelo menos em primeiro lugar
– a cognoscibilidade ou a incognoscibilidade de uma dessas
duas esferas, mas, sobretudo, o espaço por onde possam
articular-se, melhor, entrelaçar-se, entressachar-se, imbricar-se,
ou entre-mear-se, o inteligível e o sensível. Refiro-me,
evidentemente, ao vínculo, ao meio ou ao entre-dois – Lacan
diria a letra ou o real – pelo qual se efetua, ou não para de se
efetuar, a significação e, consequentemente, a descarga da
tensão que todo desejo encerra. É neste sentido que Roland
Sublon afirma que a alma platônica e o esquema kantiano já se
revelam como uma construção que tenta conjugar o idêntico e
o diferente. De resto, é a manipulação da fita unilateral de
Moebius que permite mostrar uma estrutura de borda, onde
um registro não cessa de passar para o outro, ou pelo outro, no
topos mesmo de uma linha sem ponto (Cf. SUBLON, 2004, p.
34).
Mas o objetivo que Moustapha Safouan realmente visa
alcançar parece ser este: em Freud – que não questiona nem a
realidade nem a veracidade da percepção – assiste-se a uma
reviravolta radical, na medida em que o princípio do erro é
colocado não no objeto, mas no próprio sujeito. Um sujeito –
convém lembrar – ao qual o inventor da psicanálise atribui
uma tendência originária, primordial, para a alucinação. Eis a
52
razão pela qual a concepção freudiana da percepção estaria
mais próxima daquela de Agostinho que daquelas de Platão,
Berkeley e Kant. É o que deixa claramente pressupor o
analista, ao explicar:
REFERÊNCIAS
Capítulo 4
TOMÁS DE AQUINO: FILOSOFIA E PEDAGOGIA
Jean Lauand
INTRODUÇÃO
Tomás de Aquino (1224[5] – 1274) é, sem dúvida, o mais
importante pensador medieval. Sua filosofia – indissociável da
teologia, em sua época – tem importantes projeções
pedagógicas, também para o educador de hoje, para além do
interesse meramente histórico. Neste estudo, destacaremos
três aspectos, de especial atualidade, do pensamento
tomasiano: a valorização do mundo material; a afirmação da
primazia da virtude da prudentia; e sua perspectiva negativa em
filosofia.
A vida de Tomás de Aquino está centrada no século XIII.
Desde o século anterior – um século de renascimento cultural,
após um longo período de aridez intelectual – já se
estabeleciam as condições que possibilitariam as profundas
inovações trazidas pelo pensamento do Aquinate.
De fato, com a queda do Império Romano no Ocidente
(consumada em 476) e consequente instalação de reinos
bárbaros no espaço geográfico da extinta Roma, a primeira
Idade Média encontrava-se em condições precárias de cultura
e educação. O esplendor da cultura clássica foi substituído
pela “idade das trevas”: tribos bárbaras, não só analfabetas,
58
mas (até há pouco) ágrafas, são a nova realidade dominante na
Europa.
Do ponto de vista cultural e pedagógico, alguns autores,
como Josef Pieper, preferem estabelecer o ano 529 como marco
inicial da Idade Média. Nesse ano, ocorrem dois fatos
emblemáticos: o imperador Justiniano (o império romano no
Oriente permanecerá até 1453) fecha a Academia de Atenas: já
não haverá lugar para a cultura pagã. E São Bento funda o
mosteiro de Monte Cassino: não por acaso, os primeiros
séculos medievais são, na História da Educação, chamados de
“Idade Beneditina”.
Os mosteiros beneditinos serão, em meio à desolação
cultural da primeira Idade Média, o refúgio onde se alojará e
conservará o pouco conhecimento que restou do fim da
Antiguidade, graças a educadores como Boécio e Cassiodoro.
Boécio, o “último romano”, um dos mais importantes
nomes da história da educação, foi encarregado pelo rei
Teodorico de organizar a cultura no reino ostrogodo.
Conhecedor profundo da ciência e da filosofia gregas, Boécio
empreende um projeto pedagógico realista: uma cultura de
resumos. Ele sabe que o esplendor das culturas grega e
romana desapareceu e que a nova realidade são os ostrogodos,
incapazes de ascenderem às alturas do mundo clássico. E
empreende, na corte do rei, uma pedagogia de traduções e
conteúdos mínimos: a imponente geometria de Euclides, a
aritmética, a astronomia... são reduzidas a livrinhos super
elementares e sumaríssimos. Embora suas ambições para a
filosofia fossem muito maiores, sua trágica morte (em 525,
quatro anos antes do aparecimento da ordem beneditina)
deixou o Ocidente sem traduções de Platão e com muito pouco
de Aristóteles.
Boécio, uma inteligência superior, tinha talento para
muito mais do que para resumos e traduções, mas, como
grande educador, optou pela tarefa exigida por sua época: o
trabalho obscuro e pouco original de elaboração de sementes
59
secas, que pudessem um dia, em futuro longínquo, germinar,
florescer e frutificar.
Cassiodoro, também um culto romano, colega de Boécio
na corte de Teodorico, percebeu que não havia condições de
cultivo do saber na tumultuada corte do reino bárbaro e, em
555, funda o mosteiro de Vivarium, marco importante na
história da educação. Curiosamente, os bárbaros, em geral,
respeitavam o espaço sagrado do mosteiro e Vivarium torna-
se um paradigma para a Europa: a partir de então, o mosteiro
será não só um lugar de oração, mas também de cultura: de
estudo e cópia de livros e de ensino elementar.
Nos séculos XII e XIII, ocorrem mudanças significativas:
intensifica-se a urbanização e muda também o centro de
gravidade da educação: das escolas monásticas para as escolas
catedrais e as nascentes universidades. Surgem as ordens
mendicantes, os dominicanos (à qual Tomás se filiará) e os
franciscanos; renascem as ciências e redescobre-se Aristóteles
(inicialmente por meio de traduções do árabe na Espanha
reconquistada) etc.
Se, na primeira Idade Média, o pensamento estivera
praticamente limitado aos livros de Sentenças, compilação de
pensamentos dos santos padres, e à preservação com pouco
desenvolvimento daquela “cultura de resumos”, legada por
Boécio, Cassiodoro ou Isidoro de Sevilha; agora, com o
renascimento cultural do século XII, já podem ser elaboradas
as Sumas, grandiosas sínteses pessoais, como a Suma Teológica
de Tomás.
Nesse ambiente de efervescência intelectual é que se
desenvolve, contra a corrente, o pensamento de Tomás, um
dos primeiros membros da ordem dominicana e um dos
primeiros grandes professores da Universidade de Paris,
ambas fundadas em 1215.
Os três pontos do pensamento de Tomás que aqui
destacaremos, por seu interesse pedagógico, estão, na verdade,
interligados em torno do conceito central de Criação. Porque o
60
mundo é criação, o corpo, a matéria são essenciais ao ser que
Deus deu ao homem. Tomás assume corajosamente o ser
corporal do homem em todas as suas dimensões, que incluem,
evidentemente, o conhecimento, a aprendizagem e a educação.
Por ser criado, por ter recebido esse ser corpóreo, acentua-se o
caráter negativo da filosofia e da teologia: nosso conhecimento
(e nossa linguagem) não consegue abarcar Deus nem as coisas,
que foram criadas pelo Logos, a Inteligência divina. Assim, se a
realidade é mistério para o homem, suas decisões de ação, que
ainda por cima estão inseridas na concretude do “aqui e
agora”, não podem ser diretamente guiadas por certezas
abstratas, mas pela virtude pessoal do discernimento da
decisão certa: a prudentia.
13 Nec prudentia vera est quae iusta et fortis non est (I-II, 65, 1).
65
O nosso tempo, que se esqueceu até do verdadeiro
significado da clássica prudentia, atenta contra ela de diversos
modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o
real, por exemplo, aumentando o ruído - exterior e interior –
que nos impede de “ouvir” a realidade) e em sua dimensão
prescritiva, no ato de comandar: o medo de enfrentar o peso
da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois,
insistamos, a prudência toma corajosamente a decisão boa!).
A grande tentação da imprudência (sempre no sentido
clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão
que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há
diversas formas dessa abdicação: do abuso de reuniões
desnecessárias à delegação das decisões a terapeutas,
comissões, analistas e gurus, passando por toda sorte de
consultas esotéricas.
Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar
a realidade (ou seja, a renúncia à prudentia) é trocar essa fina
sensibilidade de discernir o que, naquela situação concreta, a
realidade exige por critérios operacionais rígidos, como num
“Manual de escoteiro moral” ou, no campo do direito, num
estreito legalismo à margem da justiça. É também o caso do
radicalismo adotado por certas propostas religiosas. Tal como
o “Ministério do Vício e da Virtude” do antigo regime Taliban,
algumas comunidades cristãs - em vez de afirmar o direito (e o
dever) do fiel de discernir o que é bom em cada situação
pessoal concreta - simplificam grosseiramente: em caso de
dúvida, é pecado e pronto!
O Tratado da Prudência de Tomás é o reconhecimento de
que a direção da vida é competência da pessoa e o caráter
dramático da prudência se manifesta claramente quando
Tomás mostra que não há “receitas” de bem agir, não há
critérios comportamentais operacionalizáveis, porque - e esta é
outra constante no Tratado - a prudência versa sobre ações
contingentes, situadas no “aqui e agora”.
66
É que a prudência é virtude da inteligência, mas da
inteligência do concreto: a prudência não é a inteligência que
versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!;
ela olha para o “tabuleiro de xadrez” da situação “aqui e
agora”, sobre a qual se dão nossas decisões concretas, e sabe
discernir o “lance” certo, moralmente bom. E o critério para
esse discernimento do bem é: a realidade! Saber discernir, no
emaranhado de mil possibilidades que esta situação me
apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não
compro?, caso-me ou não?, devo responder a este e-mail? etc.),
os bons meios concretos que me podem levar a um bom
resultado, à plenitude da minha vida, minha realização
enquanto homem. E para isto é necessário ver a realidade
concretamente. De nada adiantam os bons princípios
abstratos, sem a prudentia que os aplica - como diz Tomás - ao
“outro pólo”: o da realidade (que significa “amar o próximo”
nesta situação concreta?).
A condição humana é tal que - muitas vezes - não
dispomos de regras operacionais concretas: sim, há um certo e
um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas
decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom
lance no xadrez, há até critérios gerais objetivos... mas, não
operacionais concretos!
Por mais que nosso tempo insista em querer eliminar a
verdade objetiva, no fundo sabemos que há certo e “errados”
objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de
recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por
quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por
que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de
uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de
razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral,
dizemos: “Que absurdo!” (falta razão).
Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma
justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A
prudência decide bem, mas com a espontaneidade da virtude.
67
Aliás, segundo Tomás, a função da virtude (como a de todo
hábito em geral) é precisamente a de permitir realizar o ato
com facilidade, “espontaneamente”, com certo “automatismo”
que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria
a espontaneidade adquirida - após árduos esforços - dos
hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua
estrangeira ou andar de bicicleta?).
Trata-se, portanto, de uma “inteligência” moral, da
insubornável fidelidade ao real, que aprende da experiência e,
portanto, como víamos, requer a memória como virtude
associada: a memória fiel ao ser. No artigo dedicado à virtude
da memoria, Tomás observa que não pode o homem reger-se
por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in
pluribus (geralmente).
Note-se que esta é também a razão da insegurança em
tantas decisões humanas: a prudentia traz consigo aquele
enfrentamento do peso da incerteza, que tende a paralisar os
imprudentes.
É dessa dramática imprudência da indecisão que falam
alguns clássicos da literatura: do “to be or not to be...” de Hamlet
aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer
decisão), passando pelo Grande Inquisidor de Dostoiévski, que
descreve “o homem esmagado sob essa carga terrível: a
liberdade de escolher” (DOSTOIÉVSKI, s.d., p. 226) e
apresenta a massa que abdicou da prudência e se deixa
escravizar, preferindo “até mesmo a morte à liberdade de
discernir entre o bem e o mal” (Ibidem, p. 225). E, assim, os
subjugados declaram de bom grado: “Reduzi-nos à servidão,
contanto que nos alimenteis” (Ibidem, p. 224).
É interessante observar que, desde a tenra infância, o
drama da decisão era-nos proposto sob diversas formas.
Éramos advertidos de que a vida - fortuna velut luna... - era
uma ciranda na qual “vamos todos cirandar”, e que junto com
juras de amor eterno vinham anéis de vidro:
68
O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou.
14 Josef Pieper, talvez o melhor intérprete de Tomás em nosso tempo, afirma: “Não
pode haver um ‘tomismo’ porque a grandiosa afirmação que representa a obra de S.
Tomás é grande demais para isso (...). S. Tomás nega-se a escolher algo; empreende o
imponente projeto de ‘escolher’ tudo (...). A grandeza e a atualidade de Tomás
consistem precisamente em que não se lhe pode aplicar um ‘ismo’, isto é, não pode
haver propriamente um ‘tomismo’ (‘propriamente’, isto é: não pode haver enquanto
se entenda por ‘tomismo’ uma especial direção doutrinária caracterizada por
asserções e determinações polêmicas, um sistema escolar transmissível de princípios
doutrinais)” (Thomas von Aquin: Leben und Werk. München: DTV, 1981, p. 27).
15 Quia de Deo scire non possumus quid sit sed quid non sit, non possumus considerare de Deo
quomodo sit, sed potius quomodo non sit - Summa Theologica I, 3 prologus.
70
qual se tenha dado espaço àquele pensamento, expresso por
Tomás em seu Comentário ao De Trinitate de Boécio16: o de que
há três graus do conhecimento humano de Deus. Deles, o mais
fraco é o que reconhece Deus na obra da criação; o segundo é
o que O reconhece refletido nos seres espirituais e o estágio
superior reconhece-O como o Desconhecido: tamquam ignotum!
E tampouco encontra-se aquela sentença das Quaestiones
disputatae: ‘Este é o máximo grau de conhecimento humano de
Deus: saber que não O conhecemos’, quod (homo) sciat se Deum
nescire17. E, quanto ao elemento negativo da philosophia de
Tomás, encontramos aquela sentença sobre o filósofo, cuja
dedicação ao conhecimento não é capaz sequer de esgotar a
essência de uma única mosca. Sentença que, embora esteja
escrita em tom quase coloquial, num comentário ao Symbolum
Apostolicum18, guarda uma relação muito íntima com diversas
outras afirmações semelhantes. Algumas delas são
espantosamente ‘negativas’ como, por exemplo, a seguinte:
Rerum essentiae sunt nobis ignotae; ‘as essências das coisas nos
são desconhecidas’19. E esta formulação não é, de modo
algum, tão incomum e extraordinária, quanto poderia parecer
à primeira vista. Seria facilmente possível equipará-la (a partir
da Summa Theologica, da Summa contra Gentes, dos Comentários
a Aristóteles, das Quaestiones disputatae) a uma dúzia de frases
semelhantes: Principia essentialia rerum sunt nobis ignota20;
formae substantiales per se ipsas sunt ignotae21; differentiae
essentiales sunt nobis ignotae22. Todas elas afirmam que os
‘princípios da essência’, as ‘formas substanciais’, as ‘diferenças
essenciais’ das coisas, não são conhecidas.
16 I, 2 ad 1.
17 Quaest. Disp. de potentia Dei, 7, 5 ad 14.
18 Cap. I.
19 Quaest. Disp. de veritate 10, 1.
20 In De Anima 1, 1, 15.
21 Quaest. disp. de spiritualibus criaturis, 11 ad 3.
22 Quaest. Disp. de veritate 4, I ad 8.
71
“Não há nenhum argumento de razão, naquelas coisas que são
de fé23“.
E na questão: “Se Deus teria se encarnado se não tivesse
havido o pecado do homem”, Tomás recolhe como objeções os
argumentos tradicionais na Escolástica: “Sim, a Encarnação
necessariamente ocorreria, pois a perfeição pressupõe a união
do primeiro - Deus - com o último, o homem”; ou: “Seria
absurdo supor que o pecado tivesse trazido para o homem a
vantagem da Encarnação e que, portanto, necessariamente,
teria havido Encarnação, mesmo sem o pecado”... Tomás, em
sua resposta, refuta categoricamente essas objeções,
afirmando: “A verdade sobre esta questão só pode conhecê-la
Aquele que nasceu e se entregou porque quis (In III Sent. d 1, q
1, a 3, c.)”24.
Nesse quadro “negativo”, pode-se compreender melhor
o significado da prudentia em Tomás: porque não conhecemos
completamente as coisas, não podemos ter a certeza
matemática nem critérios operacionais para discernir o bem;
para a boa decisão moral, precisamos das (frágeis e incertas)
luzes da prudentia: ter a memória do passado, examinar as
circunstâncias (e as circunstâncias como fonte de moralidade
detonam qualquer tentativa de espartilhar a conduta em
“manuais de escoteiro” morais), recorrer ao conselho (não por
acaso, com a supressão da prudentia na pregação da Igreja
contemporânea, “conselho” deixou de significar aconselhar-se
a si mesmo e passou só a significar conselho dado por outro),
etc.
E é que também no que se refere à prudentia, estão, como
pano de fundo, os dois elementos-chave de Tomás: mistério e
liberdade. Afirmar a prudentia é afirmar que cada pessoa é a
protagonista de sua vida, só ela é responsável, em suas
decisões livres, por encontrar os meios de atingir seu fim: a
REFERÊNCIAS
Capítulo 5
BOAVENTURA E A FILOSOFIA: O ENSINO UNIVERSITÁRIO
(BLAISE, 1998). Com relação aos termos medievais, utilizamos, sempre que possível, o
Lexicon de A. Blaise (1998) e, no que concerne especificamente a Boaventura, o Lexique
de J. G. Bougerol (1969).
28 Em todas as quatro Faculdades, a trajetória estudantil findava pela obtenção da
33 Lecionar, disputar, pregar. A tradução mais correta para disputatio seria, de acordo
com Blaise (1998), o termo discussão. Preferimos, contudo, traduzir por disputa para
manter o aspecto agonístico que caracterizava esta atividade, principalmente na sua
forma “quodlibética”. De fato, enquanto nas questões disputadas, em suas duas formas,
privada (privata ou in scholis) ou pública (publica ou ordinaria), há um único tema em
discussão, normalmente escolhido pelo mestre, nas quaestiones de quodlibet os assuntos
eram livres, variados e propostos por qualquer um dos presentes. Cf. Solère, 2006, p.
1304-1305; Ong-Van-Cung, 1998, p. 7-9 e Desbiens, 2009, p. 16-21. Este último está
disponível na internet (ver referências bibliográficas).
34 Talvez o termo seja exagerado e devêssemos substituí-lo por combinação.
35 Com respeito à cronologia da recepção do corpus peripatético no ocidente cristão,
começo temporal do mundo deva ser definido como artigo de fé. O texto não deixa
margem a dúvidas: “Firmiter credimus et simpliciter confitemur, quod unus solus est verus
Deus, aeternus, (...) unum universorum principium: (...) qui sua omnipotenti virtute simul ab
initio temporis utramque de nihilo condidit creaturam, spiritualem et corporalem”. [“Nós
acreditamos firmemente e professamos absolutamente que há apenas um único Deus,
eterno, (...) princípio único de todas as coisas, (...) que, por sua virtude onipotente,
criou do nada e no começo do tempo a criatura espiritual e a corporal”] (tradução
nossa). Concilium Laterense IV, 1215, De Trinitate, sacramentis, missione canonica, etc.,
cap. 1, De fide catholica in: Denzinger, Enchiridion Symbolorum, n. 800, apud MICHON,
2004, p. 353.
81
contrariedades – e restrições subsequentes37 – tenham
inegavelmente obtido êxito em retardar a difusão, não foram
capazes, todavia, de impedir que as ideias de Aristóteles e as
de seus comentadores circulassem, cada vez mais, no interior
da Universidade de Paris38, ao longo do segundo quarto do
século XIII. De fato, certos mestres em teologia – de Alexandre
de Halès a Alberto Magno – contribuíram, de maneira
decisiva, para a superação da resistência de seus pares,
trazendo para suas próprias reflexões algumas problemáticas
originadas pela leitura do corpus peripatético. Graças a esse
estudo sistemático, estabelece-se um conjunto de temas e de
argumentações a partir dos textos de Aristóteles –
comportando remissões e comparações às fontes greco-latinas
e greco-árabes – sobre o qual se edificarão o debate e o ensino
universitários da segunda metade do século39. Mas dessa
efervescência conceitual, presente tanto na Faculdade de
Artes40 quanto na de Teologia41, emergem dois problemas que
estarão, mais tarde, implicados nas condenações promulgadas
pelo Bispo de Paris, Étienne Tempier, em 1270 e 127742, e na
gênese do estatuto da Faculdade de Artes, adotado em 1° de
Piché, 1999. Com relação à crise na Universidade de Paris, na década de 1270, cf.
Libera, 2003, p. 191-220.
82
abril de 127243: a tese da eternidade do mundo, atribuída a
Aristóteles44, e a tese da unidade do intelecto possível (dito
material) em todos os homens, atribuída a Averróis45. Como
veremos mais adiante, Boaventura não as poupará de suas
críticas.
BOAVENTURA E A FILOSOFIA
Como o doutor seráfico considera a filosofia? Qual o seu
estatuto perante outros tipos de conhecimento? Qual a sua
eternidade do mundo, cf. Michon, 2004, p. 35-47. Cyrille Michon tem razão em
remeter o leitor aos três trabalhos a seguir: a exposição mais detalhada do problema
feita por Dales, 1990, p. 50-85; e os artigos de Brown, 1991 e de Long, 1998 (sobretudo
p. 52-67), que tratam dessas discussões na Universidade de Oxford. Para o contexto
parisiense, indicamos a obra clássica de Mandonnet, 1911, p. 23-39.
45 Com relação à história dessa questão e de seus desdobramentos filosóficos e
(prol. n. 1).
53 Com efeito, a inteligibilidade em si identifica-se com a inteligibilidade divina; a
obscurecido pelo pecado, ver Boaventura, 1885, p. 545 (II, d. 23, a. 2, q. 3, concl.).
56 Cf. Boaventura, 1967, p. 124-125 (c. 12, n. 4).
57 Cf. Boaventura, 1971, p. 48-49 e 60-61 (prol., n. 1 e p. 1, n. 5).
86
se capaz de descobrir os significados por trás dos signos que
os escondem, reconquistar a sabedoria que as ciências teimam,
em vão, substituir: essa é a tarefa que se impõe. A partir da
condição humana em seu estado de pecado, como inventar os
meios para se alcançar a iluminação que salva? A questão que
Boaventura se coloca no De reductione artium ad theologiam e
que repete até na última de suas Collationes é se a filosofia tem
e qual seria o seu papel no caminho da reparação.
No seu De reductione artium ad theologiam, Boaventura
propõe uma classificação dos saberes, onde inicia de maneira
clássica, referindo-se ao Didascalicon de Hugo de São Vitor,
como se fosse estabelecer, a exemplo do que fora tradicional
no século XII, uma lista das artes e scientiae de seu tempo. Com
efeito, o doutor seráfico divide o conhecimento próprio às artes
mechanicas – isto é, às técnicas inventadas pelo homem para
compensar as deficiências inerentes ao corpo – em sete tipos,
acompanhando assim a divisão anteriormente estabelecida por
Hugo. Mas, as semelhanças entre as duas classificações
terminam sem demora, logo suplantadas pelas diferenças de
abordagens. Ao contrário de seus predecessores que se
interessavam pela repartição criteriosa das artes e scientae
existentes de maneira a formar um quadro coerente, quase
escolar, Boaventura se interroga, sobretudo, pelas condições
necessárias à existência de cada disciplina. Em outras palavras,
que modo cognitivo está implicado na atividade formadora de
tal ars ou tal scientia?
Mas, essa orientação já estava de certa maneira presente
no Prólogo do De reductione. Assim como em outras de suas
obras58, Boaventura lembra Jacó e o tema da fonte de toda
perfeição e excelência que caracteriza o dom: a figura do Pai
das luzes (1971, p. 48-49). A identificação de Deus à luz
incriada que ilumina é correlata àquela que une luz e
segundo Boaventura, em oposição à passividade que lhe deve ser atribuída de acordo
com Tomás de Aquino, ver Wéber, 1974, p. 52-60, assim como o texto clássico de
Gilson, 1953, p. 275-291.
88
verdade que salva [Ibid., p. 60-63 (P. 1, n. 5)]. Assim, essas
quatro luzes cobrem a totalidade do conhecimento humano.
Mas, como a iluminação do conhecimento filosófico divide-se
em três, a classificação final de Boaventura estabelece seis
iluminações [Ibid., p. 62-63 (P. 1, n. 6)].
Embora cada uma das iluminações e seus respectivos
conhecimentos não pareçam estar necessariamente
interconectados, Boaventura considera que, na verdade, cada
uma delas representa uma etapa e, enquanto tal, prepara-nos
para a seguinte. Mas, essa complementaridade – expressão de
uma ordem e de um sentido mais profundos – não nos é
evidente, em razão do pecado original. Por isso, o estudo das
Escrituras é fundamental. Entretanto, não adianta saber as
passagens de cor, não basta conhecer a intimidade das
palavras, pois de certo modo a letra é muda. É preciso ir além,
tornar-se capaz de ler o texto através do seu sentido literal,
para apreendê-lo em seu triplo sentido espiritual: o alegórico
nos ensina em que acreditar; o moral, o modo correto de viver;
o anagógico, a recuperar o que nos liga a Deus. Ao termo
desse processo, constata-se que todos os outros conhecimentos
já se encontram de alguma forma contidos no texto sagrado.
Desse modo, cada um deles só exprime o seu verdadeiro
sentido quando entendemos que ele espera, desde a noite dos
tempos, pelo olhar espiritual capaz de reconhecê-lo61.
Por outro lado, o estudo das Escrituras requer, da parte
do leitor, o domínio dos outros saberes, em especial o da
filosofia. Mas, o aliado pode se transformar em traidor se não
compreende a sua verdadeira razão de ser, colocando-se então
como fim em vez de meio, recusando-se a prosseguir nessa
jornada que ultrapassa os limites de sua própria
62 Sobre a história dos sophismata e de sua similaridade com as disputationes, cf. Libera,
2006.
91
filósofo que não incorra em erro se não contar com o auxílio da
luz da fé63.
Mas, estas teses ou erros Boaventura os conhece há
muitos anos. No seu Comentário das Sentenças de Pedro
Lombardo, escrito nos anos 1250-52, ele os estuda para melhor
refutá-los. Sua argumentação é filosófica e fundamenta-se em
considerações sobre o infinito. Dos seis argumentos
apresentados, quatro remetem diretamente a Aristóteles (arg.
1, 2, 3 e 5)64. Entre estes, um é especialmente importante para o
entendimento da correlação entre as duas teses e de suas
consequências, muitas vezes inaceitáveis, para a organização
das crenças inerentes à espiritualidade cristã do período.
Trata-se do argumento de número 5, onde Boaventura se
inspira na objeção aristotélica relativa ao infinito em ato [Física
63 Esta é uma convicção que o acompanha desde 1250: “Necesse est enim, philosophantem
in aliquem errorem labi, nisi adiuvetur per radium fidei.” (“Com efeito, aquele que filosofa
cai necessariamente em algum erro, exceto se ajudado pelo raio [de luz] da fé”)
[tradução nossa]. Boaventura, 1885, p. 448 (II, d. 18, a. 2, q. 1, ad 6).
64 O primeiro afirma que é impossível acrescentar ao infinito [Do céu I, 12, 283a 9-10].
Averróis, as origens de sua concepção da alma e o problema que a sua tese da unidade
do intelecto material (possível) representou para a promessa cristã da salvação
pessoal, na segunda metade do século XIII, ver Cruz, 2008, p. 318-353.
94
estão, todos, proibidos aqui”(Ibid., p. 72). Em 1268, retoma o
problema, ainda sem citar nomes, num tom menos enfático,
mas com a escolha da imagem certa, aquela que toca a quem
escuta e reforça a autoridade de quem a profere: a tese da
unidade do intelecto postula a identidade substancial da alma
de Cristo e da alma de Judas [cf. BOAVENTURA, 1891, p. 497
(coll. 8, n. 16)]. Não se pode imaginar maior injustiça.
Já em 1273, na última de suas Collationes, Boaventura
reencontra as duas teses, mas desta vez, não denuncia nem
comove: argumenta. Retoma o raciocínio empregado no
Comentário e aponta as possíveis consequências de um mundo
eterno: infinidade de almas, almas corruptíveis, transmigração
de almas de corpo em corpo, ou então a unidade do intelecto
em todos. Mas, diferentemente de 1267 e 1268, ele afirma, sem
hesitação, mais enfaticamente que há vinte anos, que a tese da
eternidade do mundo é genuinamente aristotélica e que a da
unicidade do intelecto é o erro atribuído ao Filósofo
(Aristóteles) segundo a interpretação do Comentador
(Averróis)[Cf. BOAVENTURA, 1991, p. 213 (coll. 6, n. 4)].
Mas, é apenas no fim dessas conferências que
Boaventura parece revelar a natureza de sua relação à filosofia.
Para ele, não se chega a compreender toda a riqueza das
Escrituras sem proceder a um estudo sério, ordenado e
assíduo. É preciso então abordar os dois Testamentos antes de
passar aos trabalhos da Patrística, às sumas e aos filósofos.
Primeiro, deve-se conhecer bem o texto das Escrituras. O
estudo da Patrística ajuda nesse trabalho, mas nela
encontramos temas difíceis que exigem o auxílio das sumas e
dos filósofos. Nas sumas não é difícil se perder, então é melhor
se restringir às opiniões mais comuns. Mas, no estudo dos
filósofos, a prudência é boa companhia. Embora
indispensável, a filosofia constitui o maior perigo, porque a
beleza dos discursos dos filósofos pode nos tirar o gosto pela
95
leitura das Escrituras. A prudência aconselha, então, a
restringir seu estudo ao estritamente necessário66.
Por tudo o que vimos, podemos concluir que a relação
do doutor seráfico com a filosofia é tão complexa quanto
ambígua. Ora etapa, ora obstáculo, parece-nos que a filosofia
tem nessa oscilação uma das principais características do seu
estatuto no pensamento de Boaventura. E embora nós, pós-
modernos, pós-morte de Deus, tenhamos pouco em comum
com suas aspirações, acreditamos que, ao menos em um
ponto, Boaventura tenha sido atemporal: a filosofia realmente
nos seduz.
REFERÊNCIAS
_______.La Faculté des arts et ses maîtres au XIIIe siècle. Paris: Vrin, 1971.
98
SOLÈRE, J.-L. “Scolastique” in: GAUVARD, C., LIBERA, A., ZINK, M. (dir.),
2006.
_______.La ‘disputatio’ dans les Facultés des arts au Moyen âge. Turnhout:
Brepols, 2002.
Capítulo 6
MONTAIGNE: CETICISMO E EDUCAÇÃO
humanista ou um cético, com relação à sua filosofia, como é comum acontecer com as
obras dos grandes pensadores, as comparações, venham de onde vierem, nunca serão
completamente válidas.
102
conhecimento: aquele capaz de reunir virtude e felicidade.
Mesmo se este saber só possa se oferecer como probabilidade e
nunca como algo dado, pois somente por meio de um esforço
de formação simultâneo de si mesmo e do aluno/leitor
segundo uma perspectiva que considera experiência,
compreensão e comunicação como interdependentes pode ser
realizado: e por isso a centralidade do problema educacional.
Quando Montaigne expõe suas ideias acerca da
sabedoria, da verdadeira cultura e da autêntica virtude, o faz,
como é comum em seu tempo, sob a forma de princípios
pedagógicos. Todavia, o ensaísta não quis criar uma filosofia
da educação como tal ou uma teoria pedagógica em si mesma.
Nos Ensaios, o conhecimento do homem é mais importante que
sua formação, esta advindo daquele: “Os outros formam o
homem; eu o recito” (E. III, 2, 804). E poder-se-ia resumir em
uma frase toda a intenção montaigniana neste sentido: educar
pela filosofia (E. I, 26, 158 e seq.). O ensaísta não é um
pedagogo, como também não é especialista em nenhum
domínio, e não se cansa de dizê-lo: “Meu ofício e minha arte é
viver” (E. II, 6, 379). Isto, aliás, talvez forme a exigência central
de suas convicções sobre a educação: evitar, em primeiro
lugar, o constrangimento e a limitação de qualquer
especialização e/ou saber determinado e estático. Sempre
tomando como base as singularidades individuais em sua
permanente evolução, Montaigne busca a formação do homem
como um todo; não de um guerreiro, de um teórico, de um
diplomata, de um artista ou de um príncipe, mas de todos
estes juntos em uma só personalidade, segundo o ideal do
homem universal70 renascentista. Ao contrário, porém, da
aspiração enciclopédica humanista característica da época, a
ênfase deve ser posta na liberdade, na ideia de uma educação
liberal que prepara o indivíduo para o mundo, seja este um
71 Schonberger, 1975, p. 495; Villey, 2004, p. 145. Para outro testemunho da época, que
isto: et ceux ausquels ma condition me mesle plus ordinairement, sont, pour la pluspart, gens
qui ont peu de soing de la culture de l’ame, et ausquels on ne propose pour toute beatitude que
l’honneur, et pour toute perfection que la vaillance.
73 Cf. Nakam, 1993, p. 77. Os detalhes da educação primorosa que em seguida recebeu
Montaigne, como sua alfabetização em latim ou os instrumentos musicais com que era
despertado, são por demais conhecidos para que nos alonguemos sobre eles. Acerca
disto pode-se consultar Trinquet (1972) e Frame (1965), entre outros.
105
modelos de conduta os camponeses (E. II, 17, 660, por
exemplo).
Além da especialização, o dogmatismo é o outro grande
inimigo de uma boa educação (E. III, 11, 1030). Contudo, se até
mesmo os céticos têm seus “dogmas” (E. II, 12, 502), o que se
recusa aqui não são exatamente princípios metodológicos ou
definições estritas em si mesmas, mas em geral uma maneira
de pensar que impeça a pesquisa contínua que deve ser toda
ciência e toda filosofia. A má educação nos Ensaios é
principalmente definida como aquela que toma como matéria
um conhecimento baseado em princípios ou definições pré-
estabelecidos e inquestionáveis para meramente fixá-los pela
memória, conteúdo vazio sem aplicação prática. Para inverter
tal tendência, Montaigne não vai apenas preconizar uma
educação voltada para prática: a própria educação clássica
então em voga regurgita de preceitos acerca do valor de um
saber prático. O que se vai recomendar e empreender nos
Ensaios é uma verdadeira revolução pedagógica em que
prática e teoria nunca se separam.
A pedagogia renascentista é determinada pela
admiração do mundo greco-romano enquanto experiência
humana exemplar: a Antiguidade é tomada então como
modelo. Nisto, o que costumamos chamar hoje de
“humanismo”, desempenhou um papel fundamental. Um
humanista74 é um homem ocupado com os studia humanitatis, as
quais incluíam grammatica, rhetorica, poetica, historia e
philosophia moralis (na forma em que tais designativos eram
então entendidos), sempre caminhando a par da renovação da
compreensão da Antiguidade; um estudioso das maneiras de
usar a linguagem e de viver – e das implicações entre uma
coisa e outra. No alto Renascimento – sob o impacto fascinante
da redescoberta da verdadeira amplitude e profundidade do
74O termo ‘humanista’ foi cunhado em fins do século XV para designar um professor
e um estudante das ‘humanidades’: Cf. Kristeller, 1992, p. 113; Garin, 1995, p. 28 e 41.
106
saber antigo – muitas vezes serão confundidas sabedoria,
eloquência e mera repetição dos autores antigos. O colégio em
que Montaigne estudou a partir dos seis anos era dedicado à
tarefa de ensinar o latim; visava-se a assimilação do estilo e do
espírito dos antigos. Para tanto, a técnica pedagógica central
envolvia o uso de cadernos de anotações conhecidos como
“livros de lugares-comuns”, nos quais o vasto corpo da
literatura antiga era gradualmente posto à disposição, filtrada
e organizadamente. O lugar-comum, espécie de provérbio útil,
servindo como guia de conduta e referencial retórico,
constituía-se como fio condutor, tanto para a escrita, como
para a vida.
É uma hipótese plausível a de que o ensaísta tenha
composto os Ensaios com a ajuda de seus próprios cadernos de
lugares-comuns (cf. VILLEY, 1933). No entanto, seu autor
emprega suas anotações menos como recurso mnemônico do
que como instrumento de uma filosofia na qual pensamento e
ação, arte e vida, ética e estética não cessam de interagir. O
ensaísta subverte a noção de lugar-comum em virtude de uma
maneira de argumentar que lhe era peculiar trabalhando com
a justaposição de oposições, arguindo “de ambos os lados” ou
“em ambos os sentidos” – in utramque partem75. O resultado
final é a transformação, no ensaio, deste instrumento do
ceticismo acadêmico no de um ceticismo ainda mais radical, e
que possibilita a Montaigne reformular o programa humanista
de educação. A principal serventia do modo in utramque
partem de raciocínio consistia em ensinar a aplicar normas
relativas à conduta humana em situações particulares.
Metamorfoseando-o, Montaigne irá, em vez de construir
lugares-comuns, destruí-los, para observar e expor seus
mecanismos de formação. Em síntese, o ensaísta transforma
um instrumento de estabelecimento e exploração de verdades
aristotélica, sua história, sua voga na Renascença, sua assimilação e transformação por
Montaigne, ver Schiffman, 1984, p. 163.
107
em uma maneira de procurar a verdade. O movimento de
crítica e aprofundamento simultâneos que perfaz o ensaio
remodela o ceticismo para fazer deste um instrumento de
pesquisa. Note-se que a própria concepção do ensaio já trazia
em si o ensejo de um refazer constante em vistas de seu
aperfeiçoamento contínuo, a composição dos Ensaios tendo se
realizado segundo um processo de “aluvionamento” (segundo
a expressão consagrada pela crítica), ou seja, de adições e
remanejamentos ao longo dos 20 anos em que foi escrito. Já
aqui encontramos o exemplo fundamental de como o ensaísta
procura tornar concreto seu saber, fazendo com que forma e
conteúdo se relacionem sempre muito intimamente para unir a
teoria à prática. Através de uma autocrítica constante, que traz
para o movimento da escrita o tempo vivido, fazendo de seu
próprio texto o lugar e o instrumento do aprimoramento de
suas ideias76.
Pois que se trata de criar uma educação que seja voltada
para a prática (que por meio desta e para esta se realize,
portanto), isto exige criar formas de arrancar seus atores da
alienação em que se encontram mergulhados com relação
tanto ao seu verdadeiro papel social, como quanto àquele que
deveria ser o seu papel como educadores e pesquisadores – o
que deve acontecer paralelamente à busca de uma nova forma
de propor os fins e os meios de seus esforços.
Já o título de um dos grandes textos dos Ensaios
versando sobre este assunto – o capítulo Du pedantisme (I, 25) –
é importante para entender como uma disposição cética com
relação às formas da educação então tradicional se impôs para
que se pudesse cunhar uma nova pedagogia: no francês
da Rosa.
109
para isso a prosperidade da pré-burguesia emergente e,
notadamente, a projeção dos humanistas e sua importância
política79 nas cortes renascentistas – fatos que devem ser
justificados pela formação de uma nova ideologia acerca da
noção de nobreza. Assistimos no Renascimento a um novo
arranjo das ciências e dos saberes, e – claro – das classes sociais
e seus ideais80.
Logo no início de Do pedantismo, Montaigne cita um
provérbio medieval que também se encontra em Rabelais
(Gargântua, XXXIX): “magis magnos clericos non sunt magis
magnos sapientes”. Traduzindo: “os maiores letrados não são os
maiores sábios”. Notemos a ambiguidade do termo clericos que
pode significar tanto clérigos, monges, como eruditos,
letrados, sabedores; este duplo sentido é medieval (BLAISE,
1994) – embora a palavra seja de origem grega (ERNOUT e
MEILLET, 1994) – e foi preservado pela língua francesa –
mantendo até mesmo um caráter irônico no francês moderno
(clerc). Ora, a ciência foi, ao longo da Idade Média, e era então
ainda na maior parte, afazer do clero, de onde também saem,
em primeiro lugar, os homens ocupados com o ensino
(CHATEAU, 1971, p. 122, n. 4). Logo, não é de surpreender
aquela identificação linguística; e aqui temos mais um
elemento da crítica social montaigniana. Mas o que mais
importa aí é a determinação da diferença, corriqueira nos
Ensaios, entre erudição e sabedoria, onde o sçavant (que se
pode traduzir por ‘erudito’ ou, mais diretamente, ‘sabedor’)
não se confunde com o sage, o ‘sábio’. Toda a filosofia
montaigniana é um esforço de compreensão e expressão
simultâneos do que seja a sabedoria – conceito fundamental
79 Cf. Kristeller, 1992, p. 123. Note-se, de novo, que especialmente na França acontece
pode ser explicada como um dos sintomas da transição sofrida pelo sistema de valores
nas sociedades renascentistas, marcadamente no século XVI: cf. Elias, 1990, vol.1, p. 91
e 94.
110
para a filosofia do Renascimento (RICE, 1958) –,
frequentemente através da marcação de suas diferenças com
relação à pura e simples cultura livresca que não conduz, por
si só, a agir ou a pensar melhor. Este afastamento de um saber,
agora percebido como presunçoso, debilitante e estéril, corre
em paralelo à tentativa de obter um conhecimento que
aproxime da virtude, do bem-viver, da felicidade. Vejamos um
exemplo deste ensaio mesmo:
[...] e creio que vale mais dizer que o mal provém da maneira
ruim com que eles se aplicam às ciências; e que, pelo modo
como somos instruídos, não é de maravilhar se nem os
estudantes nem os mestres se tornem mais capazes, embora se
façam mais doutos. A dizer a verdade, o cuidado e as
despesas de nossos pais não visa senão a nos mobiliar a cabeça
de ciência; do julgamento e da virtude, poucas notícias.
Apregoai de um passante ao nosso povo: ‘Olha o homem
sabedor!’ E de um outro: ‘Olha o homem bom!’ Não faltará
quem torne os olhos e seu respeito para o primeiro. Seria
preciso um terceiro pregão: ‘Olha os cabeças pesadas!’
Gostamos de perguntar: ‘Sabe ele grego ou latim ? Escreve em
verso ou em prosa?’ Mas se tornou melhor ou mais avisado,
que era o principal, isso fica para trás. Seria preciso se
perguntar quem sabe melhor e não quem sabe mais.
Esforçamo-nos unicamente para encher a memória, e
deixamos o entendimento e a consciência vazios (E. I, 25, 136).
Ora, o saber não deve ser pregado na alma, mas deve ser
incorporado a esta; não deve regá-la, deve tingi-la; e, se não a
muda, nem melhora seu estado imperfeito, mais vale
certamente que o deixemos onde está. É um gládio perigoso,
que embaraça e fere o dono, quando empunhado por mão
fraca e que não lhe sabe manejar, “de sorte que fora melhor
nada ter aprendido84.
83 L’essay du sens (E. I, 25, 140). Note-se como, neste trecho mesmo, o ensaísta joga com
85 Logan, 1975, p. 621. É bem verdade que tal crítica do saber deita suas raízes na Idade
REFERÊNCIAS
Capítulo 7
DESCARTES, MÉTODO E CONHECIMENTO
89O conteúdo dessa série de três sonhos é narrado por Adrienne Baillet, biógrafo de
Descartes, em seu livro La vie de M. Des-Cartes (Paris: Horthemels, 1691). O que
ainda restou do texto original, está publicado em AT X, 213 [C. Adam e P. Tannery
(orgs.), Oeuvres de Descartes (Paris: Vrin/CNRS, 1964-76)].
124
de pensar que seria uma disciplina contendo “os primeiros
rudimentos da razão humana” e que deveria “se estender à
descoberta de verdades em qualquer que seja o campo
teórico”, é a matemática universal. Essa disciplina, entretanto,
não consiste nas matemáticas particulares como a aritmética e
a geometria, que são apenas exemplos de como o método é
aplicado, mas sim em uma ciência mais universal que expressa
a própria natureza da razão. O método universal não é uma
generalização das matemáticas particulares, mas a expressão
em regras da natureza do pensamento, cuja clareza se
manifesta nas matemáticas particulares, e deve se aplicar a
todo tipo de conhecimento. Há uma identidade entre o
método – a matemática universal – e a razão, e não entre o
método e as matemáticas. Nas palavras de Descartes (Regra
IV),
REFERÊNCIAS
Capítulo 8
LOCKE, O CONHECIMENTO E A EDUCAÇÃO
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Neste capítulo, nós nos encarregaremos de elaborar uma
explanação pontual sobre algumas categorias pelas quais o
filósofo inglês John Locke (1632-1704) estrutura o seu
pensamento filosófico-educacional, razão pela qual se torna
imperativa a necessidade de explicitar de que maneira teria
sido feito o desenvolvimento de tais categorias, pois a
compreensão da sua articulação é de fundamental importância
para se compreender melhor a forma e o conteúdo dos quais
este eminente pensador ter-se-ia servido, à guisa de conferir
maior consistência, coerência e coesão, tanto à sua teoria
filosófica, em geral, quanto à sua proposta pedagógica, em
particular.
Outrossim, aqui foram selecionados alguns dos
conceitos-chave presentes na obra Ensaio sobre o Entendimento
Humano91 (1690), obra capital da epistemologia lockeana, a
qual, por sua vez, constitui a síntese magna de suas
elucubrações acerca da origem, dos fundamentos, dos
princípios, dos limites, da extensão, da possibilidade, da
validade e da finalidade do conhecimento em geral e, em
particular, do conhecimento filosófico-científico, sob a
94 Távola rasa, ou seja, mesa vazia. Tal metáfora não é originalmente lockeana, já que
95 O inatismo (também conhecido como racionalismo) cartesiano leva tal epíteto por
causa de seu fundador, René Descartes (1596-1650), cujo nome, em latim, é Renatus
Cartesius. De acordo com ele, a mente é dotada de três tipos de ideias, a saber: ideias
inatas, ideias adventícias e ideias fictícias: “Mas dessas ideias umas me parecem
inatas, outras adventícias, outras feitas por mim” (DESCARTES, 1993, p. 13-14).
149
afigura-se-me quase uma contradição dizer que há verdades
impressas na alma que podem não ser conhecidas: imprimir,
neste caso, se significa alguma coisa, significa precisamente
tornar conhecido; pois a impressão, no espírito, de verdades
que o espírito ignore, dificilmente terá algum sentido. E assim,
se as crianças e os idiotas têm alma (ou espírito), com os tais
princípios nela impressos terão forçosamente de se aperceber
deles, e de conhecer e aceitar, necessariamente, a sua verdade.
Ora, como tal não acontece, é evidente que não existem
impressões desse gênero (LOCKE, 2005, p. 33, grifo do autor).
existência de Deus pode ser deduzida a partir da certeza da existência que o indivíduo
tem de si mesmo.
154
nosso assentimento, porque tem que ver tanto com o
conhecimento como com a opinião, e é necessária para auxiliar
todas as nossas outras faculdades intelectuais, e na verdade
contém duas delas, a saber: sagacidade e ilação (LOCKE, 2005,
p. 929, grifos do autor).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, apontamos algumas das mais relevantes
categorias epistemológicas do pensamento de John Locke,
selecionadas com o intuito de prover uma concepção
panorâmica e introdutória em relação ao pensamento deste
egrégio filósofo empirista que, por sua vez, apresenta ideias
acerca da educação iluminadas por suas ideias acerca do
conhecimento.
Em suma, ao discorrer sobre a experiência, a mente, o
entendimento, a razão e a ideia, Locke elabora a sua concepção
de conhecimento de maneira a estabelecer uma hierarquia
entre os seus três modos, de acordo com o seu grau de certeza
mais ou menos imediata, hierarquia essa que poderia ser
expressa nestes termos: no supremo patamar, a intuição, cuja
certeza é incontestável, por ser imediatamente evidente; no
patamar intermediário, o conhecimento sensitivo, cuja
característica é ser mais incerto que a intuição e menos
duvidoso que a demonstração, não sendo mais tão imediato
quanto a intuição, nem carecendo de tantas provas quanto a
demonstração; no ínfimo patamar, a demonstração, cuja
certeza é a menos imediata em relação aos demais (intuição e
conhecimento sensitivo), já que se trata do tipo de
conhecimento que mais necessita de provas, dele fazendo o
tipo de conhecimento que não é imediatamente evidente.
160
Por ser um dos principais teóricos do empirismo
britânico, Locke advoga em todo o processo de construção do
conhecimento o primado da experiência, porquanto sem ela
não há ideias e, sem elas, não há conteúdos mentais, o que, ipso
facto, paralisa toda e qualquer atividade mental e, portanto,
todo o conhecimento. Por este motivo e em decorrência de tal
perspectiva, é impossível conceber a educação prescindindo
da experiência, por tratar-se de uma atividade por meio da
qual o corpo e a mente do ser humano devem ser
disciplinados para conhecer e agir, nunca se perdendo de
vista, é claro, a virtude, elemento indispensável para a
formação do ser humano, o qual é materializado por Locke em
seus escritos sobre educação na figura do gentil-homem, cuja
nobreza de caráter e de conduta apenas terá a virtude por
prova inconteste. Assim, a superioridade humana só poderá
ser garantida ou legitimada se houver um comportamento
racional o bastante para demonstrar a sua capacidade de
superar os obstáculos impostos por suas inclinações
animalescas, ou seja, em Locke, pode-se admitir que, em se
tratando de educação: Nulla salus ex virtute99!
REFERÊNCIAS
Capítulo 9
KANT E A TAREFA DA EDUCAÇÃO
I – INTRODUÇÃO
Embora não seja um dos fatos mais discutidos pelos
comentadores de sua filosofia, Immanuel Kant (1724-1804) foi
um filósofo que, ao longo de sua vida, ocupou-se, ora de
forma mais explícita ora de forma menos explícita, com
questões e temas ligados à educação. Em geral, ele é mais
lembrado por sua preocupação inicial com questões ligadas à
ciência e à metafísica, o que o levou à elaboração de suas obras
pré-críticas e críticas. Mas, diferentemente de muitos filósofos
que o antecederam, Kant foi professor durante toda a sua vida
e viveu do ensino que praticava, seja como tutor nas casas das
famílias abastadas (1748-1754), seja como Privatdozent - título
que se dava àqueles que ensinavam nas universidades, mas
cujo ensino era pago diretamente pelos alunos que
frequentavam os cursos e não pela Universidade – seja,
finalmente, como Professor da Universidade de Königsberg, o
que aconteceu a partir de 1770. Além de ter sido professor
durante toda a sua vida, Kant ministrou quatro cursos sobre
pedagogia, o que o levou a tratar explicitamente de temas
ligados à educação. As anotações feitas para esses cursos
foram dadas a T. Rink, seu amigo e ex-aluno, para que ele as
editasse e publicasse, o que foi feito em 1803, um ano antes da
163
morte do filósofo, com o título Über Pedagogik100. Kant ainda
escreveu outros textos nos quais explicita suas posições a
respeito da educação. Num deles, em que apresenta sua
proposta para seus cursos de inverno de 1765 e 1766, faz uma
crítica da educação dada aos jovens101; em outros dois,
publicados em 1766 e 1767, refere-se, elogiando, à educação
dada no Instituto Philantropinium102. Em suas obras críticas de
filosofia prática, aborda temas que vão influenciar
profundamente sua concepção de educação: o de liberdade e o
de autonomia103.
Segundo Foley Rhys Davids, o fato de a educação ter
tido um destaque especial no ensino universitário na época de
Kant, razão pela qual foram introduzidos na universidade os
cursos de pedagogia, se deve à atenção crescente dada à
questão dos direitos humanos e à crença no valor do indivíduo
e da criança, temas que ganharam força no final do século
XVIII. No que concerne aos direitos da criança, é incontestável
a influência de Rousseau. Este chamou a atenção para a
100 Über Pedagogik. In: Kant´s gesammelte Schriften, Königlich Preussichen Akademie der
Wissenschaften, Berlin-Leipzig, 1923, Ak, 9: 441-499. As letras Ak indicam o volume e
a página da edição da Academia de Ciências de Berlim. Em português, Sobre a
pedagogia. Tradução para a língua portuguesa de Franscisco Cock Fontanella.
Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006. Daqui em diante, SP.
101 Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765-
1766. Ak, 2:306-307. Há uma tradução desse texto para a língua inglesa com o título
“M. Immanuel Kant´s announcement of the programme of his lectures for de winter
semester 1765-1766”. In: Theoretical Philosophy. Cambridge: Cambridege University
Press, 1992, p. 291-2.
102 “Essays regarding the Philanthropinum”. In: Anthropology, History and Education.
104 Ver: Kant and Education. Source: Introduction to Kant on Education (Ueber
Pedagogik), trans. Annete Churton, introduction by C.A. Foley Rhys Davids (Boston:
DC. Heath and Co., 1900).
105 A respeito da influência recebida de Rousseau, Kant diz o seguinte: “Sou um
106 Moralphilosophie Collins, Ak, 27:470-1, apud Robert Louden, Anthropology, History
hereditário, tem uma conotação empírica, mas está relacionado àquele de natureza,
que tem uma conotação mais filosófica. Na FMC Kant afirma que “toda coisa na
natureza atua segundo leis” (p. 183; Ak, B36; 4:412).
166
se relaciona imediatamente com a vontade, a razão prática.
Esse conceito, segundo Kant, leva-nos a pressupor a ideia de
liberdade109. A ideia de liberdade foi sendo paulatinamente
formada; ela é decorrente da filosofia crítica kantiana, que
investiga a possibilidade de certos conceitos e ideias. Em sua
filosofia crítica, Kant justifica a possibilidade de pensarmos a
liberdade sem o risco de contradição em relação ao
determinismo da natureza física, pois ela é uma ideia que
pertence ao domínio do pensamento, que concerne ao supra-
sensível110. Não há na modernidade, segundo Kant, uma
concepção de moralidade que tome a liberdade como uma
ideia, isto é, como um tipo de representação que possibilita ao
ser humano determinar suas escolhas em função da lei da
razão111, e que faça, por sua vez, dessa mesma lei uma
máxima112 para sua vida independentemente de outras
influências que ele possa sofrer113.
A razão, tomada de um modo geral, é a faculdade pela
qual o ser humano procura princípios e conceitos suficientes
para justificar a possibilidade de certos fatos. Do ponto de
109 Kant estabelece a distinção entre conceito e ideia da seguinte maneira: conceito é
uma representação universal por meio da qual podemos pensar as coisas e também
conhecê-las. A ideia é uma representação por meio da qual podemos apenas pensar
certas coisas, mas não podemos conhecê-las. Para haver conhecimento de um objeto é
preciso que tenhamos experiência sensível desse objeto. A ideia é um conceito cujo
objeto representado não pode ser encontrado na experiência. Nesse sentido, não
podemos encontrar a liberdade na experiência. A respeito da distinção entre conceito
e ideia, ver de I. Kant, Prolegômenos, §40. Tradução para a língua portuguesa de Tânia
Maria Bernkopf. São Paulo: Coleção Os pensadores. Editora Abril Cultural, 1974. Ak,
4:328.
110 Crítica da razão pura, tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
humano quero ser [...]. Elas contêm o sentido de minha vida; [...] Nesse sentido, como
regra de vida, está sua procurada universalidade (Allgemeinheit). [...] [A máxima é o]
princípio determinante de uma vida”. “Máximas”. In: Studia kantiana 5 (2003):14-15.
113 CRPr, p. 97-103; A, 51-54; Ak, 5: 29-30.
167
vista meramente lógico, a razão é a faculdade por meio da
qual, de proposições mais gerais, inferimos proposições menos
gerais, ou que, inversamente, das menos gerais, buscamos
aquelas mais gerais. Do ponto de vista prático, ou seja, do
ponto de vista da determinação da vontade, ela é a faculdade
dos princípios em função dos quais podemos realizar coisas as
quais, sem esses princípios, não poderiam ser realizadas. Os
princípios da razão pura se manifestam a nós como deveres114.
O dever determinado pela própria razão é a autonomia115.
Nesse sentido, ao afirmar que o fim da educação é o
aperfeiçoamento moral da raça humana, Kant está propondo
que o fim da educação seja ensinar àqueles que pertencem à
raça humana, em especial as crianças e os jovens, a fazerem
uso de sua liberdade e autonomia.
A concepção de razão prática significa uma ampliação
do uso da razão, pois por meio dessa concepção, Kant acabou
se dando conta de que a razão humana não tem apenas uma
função cognitiva, como se costuma admitir. E é justamente a
concepção prática da razão que dá a Kant a possibilidade de
considerar a educação como aperfeiçoamento moral. O papel
final da educação é levar o ser humano a reconhecer o valor de
sua vida como ser racional. O reconhecimento desse valor
contribui para a formação do seu caráter. O caráter do ser
humano é formado não só pelos princípios que ele adota, mas
também pelo propósito que faz para mantê-los. O caráter é,
segundo Kant, “uma consequente maneira de pensar prática
segundo máximas imutáveis”116. Isso quer dizer que o caráter
não concerne apenas à escolha dos princípios, mas também à
118 Lógica. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
(CRP, A644-45/B672-73). Uma ideia em seu uso regulativo não vale para o
conhecimento de objeto algum, mas vale para nos orientar numa maneira de lidar com
certos dados. Nesse texto, Kant não está atribuindo valor cognitivo ao seu conteúdo,
mas apenas oferecendo um modo possível de se lidar com a história da humanidade
de um ponto de vista filosófico. Cf. Lewis White Beck, Kant Selections. New York:
Macmillan Publishing Company, 1988, p. 413.
120 Essa concepção de uma natureza que contribui para o desenvolvimento da espécie
121 Os textos em que Kant trata do conceito do sublime vão nessa direção. Ver
especialmente o §28 da CFJ, p.106, B102; Ak, 5:260.
122 Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução de Rodrigo
V – A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Pelo tratamento que dá às questões levantadas pelos
pensadores da modernidade; pelo fato de ter sido professor
durante toda a sua vida; e, especialmente, pelos conceitos que
formou no decorrer de sua filosofia crítica, conceitos de razão,
de natureza humana, de história, de progresso, e
especialmente, aqueles de liberdade e de autonomia, que
131 CRPr, p. 417; A,211; Ak, 5:117. Virtude para Kant é seguir a lei da razão.
176
possibilitam que a razão humana seja considerada de uma
forma ampliada, Kant foi um filósofo que contribuiu para o
reconhecimento do valor e da dignidade que os homens
podem alcançar por serem racionais. Esses valores, por tudo
aquilo que trazem consigo, dizem respeito à educação humana
e ao fim mais importante que ela visa atingir: a formação do
caráter e a prática da virtude.
REFERÊNCIAS
_______. Metafísica dos costumes (1797), tradução de Edson Bini, São Paulo:
Edipro, 2003.
Capítulo 10
ROUSSEAU: A EDUCAÇÃO DOS SENTIMENTOS
E DAS VIRTUDES
Ericson Falabretti
REFERÊNCIAS
_______. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural,
1978b.
Capítulo 11
HEGEL, HISTÓRIA DA FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
133 Nas suas considerações sobre a noção de história da filosofia, diz Hegel a respeito
da opinião: “O que nós podemos em primeiro lugar considerar como consequência
daquilo que precede, é que em história da filosofia nós não lidamos com opiniões. Na
vida comum, é verdade, temos opiniões, isto é, ideias a respeito das coisas exteriores;
um pensa isso, o outro pensa aquilo. Mas o trabalho do espírito do universo é mais
sério; lá se encontra a universalidade. Trata-se aqui das determinações gerais do
espírito; não é questão aqui de opiniões referentes a isso ou aquilo” (HEGEL, 1990, p.
145).
134 Ainda contra a visão histórica, veja-se o seguinte comentário de Hegel: “Aquilo que
é histórico, a saber, do passado, não é mais, está morto. A tendência histórica abstrata,
201
que Hegel quer afirmar em contraponto à atitude histórica, “o
espírito vivo, que habita numa filosofia, requer, para se
revelar, ser gerado por um espírito de mesma família
(verwandt)” (HEGEL, 1968, p. 9). Uma filosofia não é um
conhecimento morto, objeto de uma curiosidade indiferente,
pois, como acabamos de ver, ela é dotada de vida, e para que
haja o reconhecimento daquilo que existe de vivo nela, é
preciso assumir uma outra atitude – da qual somente é capaz
um espírito que reconhece o espírito vivo de uma filosofia – no
que concerne ao relacionamento a ser estabelecido com essa
filosofia.
No que respeita ao segundo momento da crítica à visão
histórica, Hegel se dirige fundamentalmente a Reinhold.
Vejamos, agora, por que a concepção filosófica de Reinhold
pode ser considerada uma forma de atitude histórica.
Segundo a exposição hegeliana, trata-se na filosofia (de
Reinhold) de um desenvolvimento contínuo da mesma
mediante o surgimento, a cada vez, de um novo sistema
filosófico que, com maior abrangência, prolonga a tarefa que
os anteriores sistemas começaram. Cada sistema é uma visão
particular que busca realizar a tarefa que os anteriores não
conseguiram. O êxito da nova visão particular na sua tarefa de
“penetração na realidade do conhecimento humano” (HEGEL,
1968, p. 10) está vinculado ao estudo das tentativas (Versuche)
anteriores, talvez para ver o que pode ser aproveitado e o que
não pode, e onde acertaram de modo que se evite o
135 A tarefa da filosofia “consiste nisto, unificar as pressuposições, pôr o ser no não-ser
como vir-a-ser; a cisão no absoluto – como seu fenômeno; o finito no infinito – como
vida” (HEGEL, 1968, p. 16). Ou ainda: “O absoluto deve ser construído para a
consciência, [tal] é a tarefa da filosofia” (HEGEL, 1968, p. 16).
204
si mesma (HEGEL, 1968, p. 11-12). A essência racional da
filosofia está presente em toda filosofia verdadeira. Assim,
cada filosofia não pode ser tomada como essencialmente
diferente da outra. A especulação filosófica, partindo desse
pressuposto, qual seja, do reconhecimento do espírito vivente
que habita toda filosofia verdadeira (cf. HEGEL, 1968, p. 9),
não vê cada sistema como uma particularidade essencialmente
diferente de outras particularidades. A especulação “deve
encontrar a si mesma através das formas particulares”
(HEGEL, 1968, p. 12). Podemos dizer, então, que cada filosofia
assume uma forma particular e, assim, difere, no plano da
forma, das outras filosofias particulares, ao mesmo tempo que,
na sua essência, todas elas se identificam, pois são obras da
mesma razão una desdobrando-se no processo histórico e que
as reconhece como seus frutos. O espírito da filosofia pode
então encontrar a si mesmo em cada filosofia, na forma que ele
toma segundo a época na qual se originou. Segundo tal
concepção da essência da filosofia, não é sua história um
conjunto de opiniões mortas, que nada mais têm a nos dizer.
Todo sistema é digno de interesse filosófico porque expressa a
forma em que a razão se organizou numa figura com o
material fornecido por uma época particular. Interessar-se por
uma filosofia particular significa querer compreender de que
maneira o absoluto nela se exprimiu. Tal como uma autêntica
obra de arte, que se basta a si mesma, devemos interessar-nos
por ela.
Já Lukács salientava a importância filosófica que, em
Hegel, tinha a história da filosofia para a filosofia: “Ele é o
primeiro no qual a história da filosofia ultrapassou o nível da
simples enumeração dos fatos ou a crítica abstrata. Uma tal
superação já se encontra conscientemente consumada na
Diferença”136. Para Hegel, “a filosofia possui uma longa história
136 Lukács ainda nota que Hegel foi o primeiro a tomar a sério a questão da história da
filosofia, que para tornar mais contundente seu ponto de vista, o recurso à história da
filosofia servia para iluminar todos os aspectos possíveis do problema que o
205
unitária na qual ela se desenvolve, história que representa o
desdobramento da razão unitária” (LUKÁCS, 1981, p. 419-
420).
Também Martial Guéroult atentou para essa importância
da dimensão filosofante da história da filosofia em Hegel:
REFERÊNCIAS
Capítulo 12
AS CRÍTICAS DE MARX E HUME À FILOSOFIA COMO
FUNDAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO
Samuel Mendonça
INTRODUÇÃO
Embora muito se tenha produzido no Brasil sobre Marx
e a educação, nos últimos anos, Saviani (2008 e 2010),
Lombardi (2008), Sanfelice (2008), Duarte (2008 e 2010), Sousa
Junior (2010), nem por isto o autor de O Capital deixou de ser
uma referência importante para a educação. O esforço de
diversos intelectuais brasileiros e de outros países tem
evidenciado a atualidade de Marx para as questões da
educação nos tempos hodiernos. Então, a crise do capitalismo,
especialmente a de Wall Street, em 2008, revelou a atualidade
dos escritos de Marx para a compreensão da dinâmica da vida
social (HOBSBAWN, 2011).
David Hume (1999), por sua vez, tem sido fonte de
estudos em filosofia e diversas áreas do conhecimento
sistemático, especialmente em virtude dos pressupostos do
empirismo. A ciência da educação recepciona os pressupostos
do empirismo quando em relação ao pragmatismo e, embora
não se pretenda discorrer sobre autores desta corrente
educacional, é preciso reconhecer em Dewey (1985) sua maior
expressão.
209
Com efeito, a nossa preocupação, neste capítulo, gira em
torno da crítica de Marx à filosofia, que se dá por meio da
crítica à ideologia alemã, da mesma forma que a ponderação
de David Hume em relação à filosofia será objeto de
investigação. Isto posto, pretendemos argumentar que tanto a
crítica de Marx ao idealismo alemão quanto a de Hume à
filosofia e, neste caso, à metafísica, constituem-se fundamentos
da educação, na medida em que, por educação, entendemos as
possibilidades de intervenção do homem na contínua
transformação da sociedade e, neste sentido, as construções
abstrusas não parecem auxiliar neste processo. De forma
específica, formulamos a pergunta deste capítulo nos
seguintes termos: as críticas de Marx e Hume à filosofia
constituem-se elementos para a fundamentação da educação?
É preciso dizer que Marx e Hume não possuem posições
sequer próximas sobre o Estado, a Política a Economia ou a
Educação, e não é pelo fato de que faremos a aproximação
pontual quanto à questão da metafísica e da ideologia que isto
possa significar a aproximação teórica dos referidos autores.
Embora em contextos distintos, veremos que as críticas
destes pensadores às formulações abstrusas são as razões da
ausência de uma perspectiva mais efetiva na educação, na
consideração da vida humana. Embora não tenha sido este o
olhar deles, então, utilizamos de seus argumentos para
fundamentar a nossa posição de que os fundamentos da
educação devem ser repensados. Dito de outro modo, não se
encontram em Marx ou em Hume elementos da construção
que pretendem fundamentar a educação a partir da crítica da
metafísica e da ideologia e, portanto, o risco de equívocos
desta aproximação é exclusivo do autor137.
137Os estudos de Marx e de Hume foram feitos em contextos distintos. Hume e Marx
foram lidos na graduação em filosofia, mas Hume foi lido enfaticamente por ocasião
do mestrado, também em filosofia, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas. No doutorado em educação, reli Marx, especialmente com professores do
210
Uma concepção de educação que tenha como ponto de
partida o ‘ideal’ de educação já evidencia – embora não se
tenha definido que ideal é este – a ausência de ações concretas,
seja quanto à concepção de educador e mesmo quanto ao
perfil do aluno que está em formação. Fala-se em ideal de
educação e este posicionamento é, muitas vezes, apolítico, no
sentido de que não inclui as vicissitudes da vida social. Por
concepção ‘ideal’ de educação concebe-se a comodidade:
afinal, que ações concretas são reivindicadas a partir de um
ideal de educação? Ações ideais, ou seja, mais uma vez a
ausência das contradições sociais, dado que, no plano ideal,
elas são equacionadas e equacionáveis. Não queremos com
isto afirmar que não se pode ter ideal por educação. O que
argumentamos é que o ideal que não aponta para o mundo
humano e material certamente será insuficiente para
equacionar os problemas determinados e concretos da
educação.
Enquanto o filósofo escocês terá a metafísica como alvo,
Marx, por outro lado, terá Hegel como o seu principal foco de
crítica. Com estes elementos propedêuticos, que dizem
respeito à concepção de homem e de mundo, isto é, a partir da
definição de conhecimento que considera a experiência o seu
leitmotiv, para o primeiro autor, e também considerando a
concepção de trabalho para Marx, então, a nossa concepção de
educação será apresentada no contexto da práxis social.
Do ponto de vista formal, investigaremos os termos
crítica e superação em Descartes (1983) e em Kant (1999),
justamente com o propósito de oferecer ao leitor elementos de
nossa compreensão daquilo que julgamos ser o essencial para
a fundamentação da educação, isto é, a noção de crítica.
Podemos afirmar que o racionalismo de Descartes é superado
pelo empirismo de Hume. Kant ‘acorda’ do sono dogmático
139 Parte destas reflexões foi examinada em meu Projeto e Monografia Jurídica (2009).
217
Ideias, da obra, Investigação acerca do Entendimento Humano,
evidencia algumas de suas principais concepções dentro dessa
corrente da teoria do conhecimento clássica. Cabe observar,
também, que sua obra acabou por influenciar correntes
importantes do pensamento moderno, com destaque para o
positivismo, pondo em relevo a necessidade de
fundamentação de um conhecimento seguro, objetivo e
científico e, neste sentido, fundado nos sentidos humanos.
Embora Marx critique os empiristas, é nítida a influência deles
no pensamento do filósofo de Os Manuscritos.
Hume estava convencido de que a ciência da natureza
humana era mais importante do que qualquer outra ciência,
justamente em virtude de que qualquer investigação científica
depende, necessariamente, da natureza do homem. Neste
sentido, pensamos a partir do filósofo que, se
compreendermos as relações entre as ideias, ou ainda, se
conseguirmos atingir com propriedade a elucidação do
conhecimento humano, então teremos alguns dos elementos
necessários para o conhecimento em física ou em outras
ciências. Em outros termos, na perspectiva do filósofo, será
possível estabelecer uma teoria do conhecimento quando
desvendarmos a ciência da natureza humana. Ora, a
construção de fundamentos da educação se coloca exatamente
neste contexto, na medida em que o que se pretende é a
construção de balizas seguras para possibilitar a
transformação social.
Esta ciência da natureza humana evidencia um tipo de
filosofia que Hume denomina filosofia da natureza humana.
Uma filosofia que se pauta na experiência sensível do homem
e não na especulação sobre as ideias, base fundamental para a
compreensão da educação. Ele insere na investigação
filosófica, então, um aspecto que não era usual para a filosofia
na sua época, a saber, o caráter pragmático da filosofia. A
seguir, apresentaremos os argumentos sobre os quais Hume
sustenta este novo filosofar.
218
A contribuição de David Hume quanto a uma definição
de filosofia aponta para elementos que influenciaram a
modernidade no que diz respeito à construção do
conhecimento. Evidentemente, não é nosso propósito neste
capítulo aprofundar esta influência, mas não poderíamos
deixar de explicitar quais os fundamentos que balizam a
estruturação do conhecimento deste autor, a ponto de
influenciar escolas filosóficas como o positivismo e o
materialismo histórico de Marx, por exemplo.
O positivismo140, em virtude da sua base teórica,
sustenta-se na ideia de que a ciência positiva é aquela que
parte da natureza humana. Que natureza é essa? A que será
explicitada por Hume, ou seja, aquela que considera a
experiência sensível como condição do conhecimento. A
perspectiva de Marx141 também trabalha com esta perspectiva
de conhecimento pragmático, na medida em que critica o
conhecimento metafísico e afirma que o conhecimento deve
ser necessariamente condição de mudança do mundo, fazendo
das relações econômicas o fundamento das relações humanas
e sociais.
140 “Este termo foi utilizado pela primeira vez por Saint-Simon, para designar o
método exato das ciências e sua extensão para a filosofia. [...] Foi adotado por Augusto
Comte para a sua filosofia e, graças a ele, passou a designar uma grande corrente
filosófica que, na segunda metade do século XIX, teve numerosíssimas e variadas
manifestações. A característica do positivismo é a romantização da ciência, sua
devoção como único guia da vida individual e social do homem, único conhecimento,
única moral, única religião possível” (ABBAGNANO, 1999, p. 776), e ainda: “Doutrina
que rejeita a metafísica e fundamenta o conhecimento nos fatos” (CUVILLIER, 1969, p.
124).
141 “Engels designou o cânon de interpretação histórica proposta por Marx, mais
142 Lê-se no original: “It is easy for a profound philosopher to commit mistake in his
subtitle reasoning’s; and one mistake is the necessary parent of another, while he
pushes on his consequences, and is not deterred from embracing any conclusion, by
its unusual appearance, or its contradiction to popular opinion. But a philosopher,
who purposes only to represent the common sense of mankind in more beautiful and
more engaging colors, if by accident he falls into error, goes no farther; but renewing
his appeal to common sense, and the natural sentiments of the mind, returns into the
right path, and secures himself from any dangerous illusions” (HUME, 1999, p. 88).
221
Supõe-se que o tipo mais perfeito se encontre no meio
caminho entre estes dois extremos, dando provas de igual
capacidade e gosto pelos livros, pela sociedade e pelos
negócios; mostrando na conversa esse discernimento e
delicadeza que decorrem das belas-letras; e, nos negócios, essa
probidade e exatidão que são o resultado natural de uma justa
filosofia (HUME, 1972, p. 130)143.
Cultiva a sua paixão pela ciência, diz ela, mas que tua ciência
seja humana e tenha aplicação direta à ação e à sociedade.
Quanto ao pensamento abstruso e às investigações profundas,
143 No original se lê: “The most perfect character is supposed to lie between those
extremes; retaining an equal ability and taste for books, company, and business;
preserving in conversation that discernment and delicacy which arise from polite
letters; and in business, that probity and accuracy which are the natural result of a just
philosophy” (HUME, 1999, p. 89).
222
eu os proíbo e os castigarei severamente com a cismadora
melancolia que eles provocam, com a interminável incerteza
de que nunca te poderá livrar, e com a fria acolhida que terão
tuas pretensas descobertas quando as quiseres comunicar. Seja
filósofo, mas, em meio de toda a tua filosofia, não te esqueças
de ser homem (HUME, 1972, p. 130)144.
144No original, se lê: “Indulge your passion for science, says she, but let your science
be human, and such as may have a direct reference to action and society. Abstruse
thought and profound researches I prohibit, and will severely punish, by the pensive
melancholy which they introduce, by the endless uncertainty in which they involve
you, and by the cold reception which your pretended discoveries will meet with,
when communicated. Be a philosopher; but, amidst all your philosophy, be still a
man” (HUME, 1999, p. 90).
223
Nunca é demais reafirmar que não se trata de considerar Marx
um empirista ou Hume um materialista, mas de perceber que
os dois referenciais teóricos partem da crítica de fundamentos
ideológicos e provenientes da imaginação. Suas perspectivas
partem do homem e da vivência social. Marx (2007) assevera:
145 Em que pese o fato de que Marx critique os empiristas abstratos, entre os quais
Hume é partidário, em contraposição aos empiristas materialistas, dentre os quais
podemos citar Hobbes e Bacon, por exemplo, no sentido de que os primeiros negam
que a natureza corresponda à origem da experiência, mesmo assim, no que se refere à
crítica específica da filosofia de Hume, percebemos o ponto de diálogo segundo o qual
justifica a nossa aproximação entre estes dois clássicos da filosofia (BACKES, 2007, p.
49).
226
especulação, quer dizer na vida real, começa também a ciência
real e positiva, portanto, a representação da ação prática, do
processo prático de desenvolvimento dos homens (MARX,
2007, p. 49).
146 Lê-se no original: “The most lively thought is still inferior to the dullest sensation.
We may observe a like distinction to run through all the other perceptions of the
mind. A man, in a fit of anger, is actuated in a very different manner from one who
only thinks of that emotion. If you tell me, that any person is in love, I easily
understand your meaning, and form a just conception of his situation: but never can
mistake that conception for the real disorders and agitations of the passion” (HUME,
1999, p. 96).
228
argumento num primeiro momento, mas se observarmos mais
de perto e de forma criteriosa, concluiremos que Deus existe,
de fato, como ideia e, neste sentido, resta investigar a sua
origem que, segundo o pensador, reside tão somente na
experiência humana. Ou seja, temos clareza dos conceitos de
bondade e de sabedoria formulados com base na experiência
no universo humano. Para formar a ideia de Deus, basta
aumentar em grau infinito estes conceitos e chegaremos à ideia
de um ser infinitamente bondoso e sábio. Isto é, Deus é o
resultado da nossa faculdade de aumentar a experiência
vivida e uma criação do homem, não sendo, para Hume,
objeto da ciência e, portanto, deve ser deixado de lado por não
oferecer elementos objetivos e pragmáticos para a sua
formulação. A respeito da proposição de que a origem das
ideias reside na experiência sensível, provoca o autor:
147No original se lê: “Those who would assert, that this position is not universally true
nor without exception, have only one, and that easy method of refuting it; by
producing that idea, which, in their opinion, is not derived from this source. It will
then be incumbent on us, if we would maintain our doctrine, to produce the
impression or lively perception, which corresponds to it” (HUME, 1999, p. 98).
229
nas ideias simples e que, por sua vez, toda ideia simples tem
origem em uma experiência sensível, assegura que uma pessoa
privada de um dos órgãos dos sentidos não consegue ter ideia
correspondente à experiência advinda daquele órgão. Um
surdo, por exemplo, que tenha nascido surdo, não tem ideia
dos sons, ou ainda um cego de nascença não consegue saber a
diferença entre as cores. Considerando o argumento válido,
então parece possível afirmar que a sua teoria tem uma base
de sustentação forte, pelo menos no que diz respeito ao que ela
se propõe demonstrar, ou seja, a origem das ideias está nas
sensações e a ausência de um dos sentidos interrompe a
possibilidade de sensação daquele sentido e, portanto, de
formação de quaisquer conhecimentos derivados dele. Quais
as implicações desta teoria para fundamentar a educação? É
preciso partir da experiência dos sentidos para pensar e
repensar a educação. É também fundamental que possamos
nos valer da possibilidade de construir fundamentos que
sejam efetivamente necessários à vida humana.
Hume insere um elemento contraditório à sua teoria
logo após a construção destes dois argumentos. Para a nossa
reflexão, trata-se de uma estratégia para fortalecer a sua teoria
e não para contradizê-la. Este fenômeno contraditório talvez
prove, “não ser de todo impossível que uma ideia surja sem a
correspondente impressão” (HUME, 1972, p. 135).
Admitindo que uma pessoa possa inserir uma
tonalidade de azul em um feixe que apresenta ausência da
quaisquer tons, em uma sequência lógica do mais forte para o
mais fraco, de um espectro luminoso de cor azul, sem ter tido
a experiência anterior desta tonalidade específica, parece
configurar uma contradição à teoria segundo a qual a
experiência é fonte das ideias. O autor formula:
148 Conforme o original: “Let all the different shades of that color, except that single
one, be placed before him, descending gradually from the deepest to the lightest; it is
plain, that he will perceive a blank, where that shade is wanting, and will be sensible,
that there is a greater distance in that place between the contiguous colors than in any
other. Now I ask, whether it be possible for him, from his own imagination, to supply
this deficiency, and raise up to himself the idea of that particular shade, trough it had
never been conveyed to him by his senses? I believe there are few but will be of
opinion that he can: and this may serve as a proof, that the simple ideas are not
always, in every instance, derived from the correspondent impressions; though this
instance is so singular, that it is scarcely worth our observing, and does not merit, that
for it alone we should alter our general maxim” (HUME, 1999, p. 99).
231
outro elemento, mas justamente a experiência anterior
advinda da experiência sensível.
Este argumento do elemento contraditório é muito
interessante para que possamos repensar a educação; afinal,
partimos das concepções de educação que temos para
diagnosticar as ações necessárias ao aprimoramento da
educação, contudo, o que concebemos partindo do que já
temos são ideias fantasiosas e distantes da realidade
educacional stricto sensu. Neste sentido, a pergunta
fundamental que devemos fazer, para fundamentar a
educação a partir de outras balizas, não é aquela que questiona
sobre o que é a educação, mas, devemos colocar em relevo
para quê concebemos a educação. Se a educação não busca a
sua teleologia, então, qual é o seu sentido?
Logo, percebemos que Hume sustenta a sua teoria
mesmo considerando a possibilidade de críticas. E o desafio
está dado: se alguém acredita que a experiência sensível não é
fonte das ideias, então, deverá apresentar um exemplo de ideia
que tenha vindo de outra fonte. O mesmo raciocínio deve ser
formulado no contexto da educação, isto é, se alguém não está
satisfeito com a educação como temos nos tempos atuais,
então, deve buscar as alternativas que sejam as balizas de uma
nova educação.
Entendemos que tanto o exemplo do elemento
contraditório, como, igualmente, a fundamentação da origem
das ideias de Hume, apresentados de forma breve neste
capítulo, aproximam-se da crítica de Marx à ideologia alemã,
na medida em que as fantasias, a imaginação e as ideias
abstrusas são preteridas.
A preocupação de Marx, neste contexto, é com a
especulação e, por esta razão, a filosofia é o seu alvo. Aliás, ele
é enfático ao dizer que
A QUESTÃO DO TRABALHO
Evidente que a concepção de trabalho exaustivamente
analisada, dissecada e esquadrinhada por Marx em Formações
Econômicas Pré-capitalistas e também em outros escritos refere-
se a um momento histórico distinto do nosso. As necessidades
do operário do século XIX são as mesmas do operário dos
tempos atuais? Qual a importância de se pensar a distinção
entre trabalho mecânico e trabalho intelectual? Enfim, as
críticas de Marx e Hume à filosofia constituem-se de
elementos para a fundamentação da educação? Temos
observado, ao longo destas reflexões, que as críticas de Marx e
Hume à filosofia podem se constituir em fundamentos da
educação, todavia, a noção de trabalho também é importante
233
neste processo. Não se pretende discutir as relações de
trabalho, embora tratemos também delas, mas examinar as
correlações deste conceito com a construção de fundamentos
para a educação.
A noção de trabalho não tem seu nascedouro com o
desenvolvimento do capitalismo. Seja como maldição divina
no contexto da Bíblia Sagrada, ou no sentido de transformar
intencionalmente a realidade e, portanto, tendo como premissa
a relação entre o homem e a natureza, a noção de trabalho
remete ao período antigo. A distinção entre trabalho manual e
atividade intelectual remonta à filosofia clássica e, somente a
partir do século XV, o trabalho manual passa a ser também
reconhecido (ABBAGNANO, 1999, p. 964). Os pensadores
modernos divergiam quanto à importância do trabalho
manual, tendo Bacon ascendência ao experimentalismo, mas
Descartes não considerava o trabalho manual, dada a sua
compreensão de que é a razão humana a fonte e procedimento
do conhecimento; por outro lado, Leibniz foi uma exceção,
dado que “insistia na importância do trabalho dos artesãos,
dos agricultores, dos marinheiros, dos comerciantes, dos
músicos, não só em proveito da ciência, mas também da vida e
da civilização” (ABBAGNANO, 1999, p. 965).
A partir do romantismo, começou-se a estabelecer a
relação entre o trabalho e a natureza do homem. É curioso
notar que a formulação que será objeto de críticas de Marx tem
o seu nascedouro na formulação de Hegel, na medida em que
o filósofo da Fenomenologia, em virtude de sua ênfase na
questão da história, inseria o trabalho como mediador entre o
homem e o mundo. O homem se humaniza na satisfação de
suas necessidades e isto se dá pelo trabalho. Observamos o
terreno fértil segundo o qual Marx irá se desenvolver
posteriormente. Com efeito, Hegel considerava que o bárbaro
era preguiçoso e, portanto, o trabalho vinculava-se à dimensão
da civilização. De todo modo, a formulação hegeliana de
trabalho, que inclui a percepção de que este leva à substituição
234
do homem pela máquina, foi aceita por Marx como um
presente. O autor de O Capital, no entanto, divergia de Hegel
no sentido de estabelecer a distinção natural e material do
trabalho, enquanto o filósofo idealista atribuía-lhe caráter
espiritual. Crítico da metafísica, como já observamos no item
anterior, Marx assevera que os homens distinguem-se dos
animais pela capacidade de construção de seus bens materiais.
O homem não é homem por ser da espécie dos hominídeos,
mas porque transforma a sua vida. Aliás, na última tese contra
Feuerbach, diz Marx: “os filósofos se limitaram a interpretar o
mundo diferentemente, cabe transformá-lo” (MARX, 1978, p.
53). Evidente que a concepção de homem está presente nesta
tese e, portanto, a noção de trabalho é a espinha dorsal desta
concepção. Ora, se a noção de trabalho é fundamental para a
antropologia marxiana, então, a concepção de educação de
Marx, necessariamente, inclui a noção de trabalho.
Embora a obra A Ideologia Alemã diga respeito à crítica da
filosofia em sentido geral, o conceito de trabalho também é
nela examinado. Marx acentua ainda mais a noção de trabalho,
ao enfatizar que o homem não se humaniza individualmente,
mas exatamente na coletividade, isto é, é preciso o outro
homem para que, por meio do trabalho, nas relações sociais,
desenvolva-se a própria dimensão da consciência. Este
posicionamento se sustenta quanto ao trabalho não alienado,
dado que o trabalho alienado refere-se ao distanciamento do
homem como sujeito, tendo acepção de objeto ou de
mercadoria. Com efeito, problematizamos: é o trabalho que
humaniza o homem ou o homem que, por meio do trabalho, se
humaniza? A ênfase de Marx deixa esta lacuna e, em que pese
o fato de que o problema possa parecer linguístico, é preciso
reconhecer que a ênfase do pensador de Os Manuscritos está no
homem, em última instância, e não no trabalho, dado que não
há trabalho em si, mas o trabalho existe em virtude do homem.
Neste sentido, haveria uma essência do homem para Marx?
Esta questão é complexa e evidencia que a crítica a Hegel
235
parece não resolver o problema anunciado por Marx; afinal, é
o homem o sujeito do mundo.
Com efeito, a noção de trabalho é aquela segundo a qual
o homem pode transformar a sociedade; na perspectiva
marxiana, então, a fundamentação da educação deve indicar
mais este aspecto, isto é, o trabalho na perspectiva de
transformação social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pudemos perceber, embora Marx não tenha
escritos específicos sobre educação, na consideração do ensino
ou da prática pedagógica, e embora Hume tenha sido utilizado
neste capítulo para fortalecer a crítica de Marx à filosofia,
considerando a influência que este recebeu dos empiristas, há
muitas contribuições que podem fundamentar a educação a
partir da crítica desses autores à filosofia.
De forma precisa, a discussão do conceito de crítica
realizada a partir de Descartes e Kant, da mesma forma que a
argumentação de Hume quanto à filosofia e de Marx quanto à
ideologia, constituíram-se de bases teóricas que propiciaram a
construção de resposta à pergunta deste capítulo, qual seja: as
críticas de Marx e Hume à filosofia constituem-se elementos
para a fundamentação da educação? Observamos que sim, e
estes elementos podem ser aqui retomados: (i) a crítica como
procedimento a ser utilizado por todos os sujeitos dispostos a
repensar a educação, (ii) a compreensão do homem na sua
dinâmica social, (iii) a percepção do conhecimento como
constructo do homem, a partir das relações sociais, (iv) as
condições materiais como base da concepção de homem e do
mundo e, por fim, (v) a noção de trabalho como fundamental
para a humanização do homem.
Por derradeiro, essas reflexões não pretendem inserir
Marx e Hume como interlocutores de problemas sociais ou
educacionais e, como já dissemos, a responsabilidade pela
236
imprecisão ou mesmo pela ousadia de aproximar Marx e
Hume deu-se exclusivamente em virtude de que muito já se
produziu sobre Marx e a educação e não faria sentido
apresentar um capítulo no contexto da obra Filosofia e
Educação: aproximações e convergências, sem que se apontasse
para alguma possibilidade de originalidade.
REFERÊNCIAS
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
237
LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval (orgs.) Marxismo e
Educação: debates contemporâneos. 2.ed. Campinas: Autores Associados,
2008.
Capítulo 13
GOTTLOB FREGE E O ENSINO DA MATEMÁTICA
Lafayette de Moraes
Carlos Roberto Teixeira Alves
A CARREIRA EM JENA
Friedrich Ludwig Gottlob Frege nasceu em Wismar, no
estado de Mecklenburg, na Pomerânia, à época sob controle da
Suécia e que atualmente faz parte da Alemanha (O’CONNOR
e ROBERTSON, 2002), no ano da Primavera dos Povos, em
1848, quando os ventos da democracia obrigavam as velhas
monarquias europeias a adotarem constituições mais liberais.
Parece que a mãe de Frege, Auguste Bialloblotzky, era de
origem polonesa e que seu pai, Alexander Frege, mesmo
sendo de origem alemã, não era ainda assim de Wismar, mas
estava ali na época do nascimento de Frege a serviço, como
diretor de uma escola para garotas, direção que seria mais
tarde assumida por Auguste após a morte de Alexander, em
1866 (SLUGA, 1980, p. 41).
Frege ingressou na Universidade de Jena em 1869, uma
instituição pequena, mas que já tinha renome. Frege escolheu a
matemática, mas também cursou química e filosofia. Sua
capacidade foi logo notada por seu professor Ernst Abbe,
grande matemático. O apadrinhamento de Abbe foi
importante para a estabilidade da carreira de Frege dentro de
Jena (SLUGA, 1980, p. 41). O doutorado de Frege foi na
Universidade de Göttingen, em 1873, com a dissertação Über
241
eine geometrische Darstellung der imaginären Gebilde in der Ebene,
a respeito das leis que fundamentam parte da geometria
(O’CONNOR e Robertson, 2002). Na época, a prova de
habilitação para se ascender a um cargo de professor dentro
das universidades alemãs passava pela apresentação de uma
tese de habilitação. O cargo de Privatdozen veio com a tese de
habilitação Echnungsmethoden, die sich auf eine Erweitung des
Grössenbegriffes gründen, que tratava dos grupos abelianos149.
Em 1879, quando publicou o primeiro volume de sua grande
obra, o Begriffsschrift, eine der arithmetischen nachgebildete
Formelsprache des reinen Denkens (Notação conceitual, uma
linguagem formal modelada sobre a aritmética, para o
pensamento puro), conseguiu, por recomendação de Abbe, o
cargo definitivo de ausserplanmässinger Professor (SLUGA, 1980,
p. 42).
O LOGICISMO
Frege conhecia o trabalho de Peano desde antes do
Congresso de Paris de 1900. Percebeu no projeto de Peano que
a matemática estava sendo reduzida a uma aritmética, o que
era bom, pois eliminava toda geometria e afastava as
concepções muito vagas de Euclides. A redução da Aritmética
a cinco pequenos axiomas e a redução da matemática a essa
245
aritmética enxuta estava exatamente no rumo pretendido por
Frege. Uma simbologia rígida, precisa, bem definida e
facilmente manipulada segundo regras claras de inferência. A
isso poderia ser reduzida a matemática. Esse projeto ficou
conhecido como tese logicista ou logicismo.
O logicismo foi enunciado pela primeira vez por Frege e,
depois, redescoberto independentemente por Russell, que com
Whitehead escreveu o Principia Mathematica, com o objetivo de
efetivar o logicismo (BARKER, 1969, p. 107). Em linhas gerais,
essa tese logicista ensinava que havia uma relação entre a
aritmética, juntamente com todo o restante do edifício
matemático, e a lógica. Mas não poderia ser a lógica de
Aristóteles. Seria necessária uma lógica mais ampla,
extremamente formalizada (isto é, baseada em símbolos) e
rigorosa (com definições precisas). O projeto, então, exigia que
todos os símbolos não-lógicos da Teoria dos Números fossem
definidos com rigor, de modo que não se pudesse confundir
dois símbolos ou ter uma interpretação ambígua de qualquer
deles. Assim, seria necessário definir rigorosamente aquelas
expressões usadas por Peano, como sucessor imediato, zero, etc.,
que não têm a natureza lógica das conexões, como a soma (+)
ou o produto (x). Em outras palavras, seria necessário criar
uma lógica que fornecesse definições de onde se pudesse
deduzir todos os Axiomas de Peano (BARKER, 1969, p. 107-
108).
Desse modo, Frege pretendeu uma matemática toda
baseada em uma teoria dos números, cujo cerne seria uma
teoria dos números naturais, segundo os Axiomas de Peano.
Conhecer e estudar matemática passava por um aprendizado
da ideia e da natureza do que é um número.
246
O APRENDIZADO DA MATEMÁTICA A PARTIR DA IDEIA DE
NÚMERO
Frege preocupou-se com o ensino da matemática,
porque ele sabia do esforço genial que muitos matemáticos
faziam para subirem de nível a partir de um conhecimento
historicamente precário e confuso das noções básicas da
matemática. Ele criticou o modo displicente e presunçoso com
que se trata a noção básica de toda matemática, a noção de
número inteiro:
150Frege está se referindo à seguinte passagem da obra de Mill (as sílabas em itálico
são de Mill) [MILL, 1974, p. 256]: “A expressão ‘duas pedrinhas e uma pedrinha’ e a
247
expressão ‘ três pedrinhas’, representam o mesmo estado físico. Eles são nomes dos
mesmos objetos, mas desses objetos em dois estados diferentes: embora denotem as
mesmas coisas, sua conotação é diferente”. Mill retorna ao problemas das pedrinhas
mais adiante e diz que cada nome de número denota um fenômeno físico e conota
uma propriedade física desse fenômeno (MILL, 1974, p. 256), e acrescenta (MILL,
1974, p. 611): “Que coisa é, então, que é conotado pelo nome de um
número? Naturalmente, alguma propriedade pertencente ao aglomerado de coisas
que chamamos pelo nome, e essa propriedade é a maneira característica de que a
aglomeração é composta, e pode ser separada de parte.”
248
249
151 As notas 106 e 107 que aparecem no trecho são do próprio Frege. Na nota 106, ele
acrescenta que “a própria observação já implica uma atividade lógica”. Na nota 107,
ele faz referência à obra de Baumann: “Baumann, Die Lehren von Zeit, Raum und
Mathematik, vol. II, p. 670”.
252
REFERÊNCIAS
Capítulo 14
NIETZSCHE: PARA UMA PEDAGOGIA DA AMIZADE
152 Nesse capítulo, usaremos as siglas convencionais para citação dos escritos de
Nietzsche: FT (A Filosofia na época trágica dos gregos); Co. Ext. I (Primeira Consideração
Extemporânea – Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino); Co. Ext. III (Terceira
Consideração Extemporânea – Schopenhauer como Educador); HH (Humano, Demasiado
Humano); A (Aurora); GC (A Gaia Ciência); KSA (Sämtliche Werke. Kritische
Studienausgabe - edição crítica em 15 volumes, organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari – a sigla será seguida do número do volume, número do fragmento, ano de
escrita e página da edição); BM (Além de Bem e Mal); CW (O Caso Wagner); EH (Ecce
Homo); CI (Crepúsculo dos Ídolos). Seguindo as letras, para as obras publicadas,
constarão os números arábicos referentes ao número do aforismo da obra.
258
mas se beneficia da aristocracia espiritual predefinida pela
própria natureza. De um lado, Nietzsche expõe um
diagnóstico contundente que aponta os resultados maléficos
da extensão da educação e da cultura para todos; de outro, ele
evidencia a urgência de que a Filosofia e as Artes sejam
retomadas como experiências existenciais. A Filosofia é a
estratégia contra a divisão do trabalho científico que passou a
marcar a educação como um ensinar por disciplinas,
atomizando e fragmentando o saber. O exemplo contrário é a
cultura clássica, na qual a Filosofia garantia a unidade entre
conhecimento e vida, cultura e natureza. A mera erudição
jamais seria capaz de ver e tratar os verdadeiros problemas da
cultura, os mais profundos. Só uma educação aristocrática,
baseada na Filosofia, que valorizasse e promovesse a liberdade
espiritual em alto grau, poderia oferecer alguma saída para a
crise cultural. Para isso, o saber deveria ser despido de sua
erudição esvaziada e deveria ser vivido como experiência
vital. É como vida que o conhecimento retomaria o seu caráter
transformador e efetivo, dirigindo-se para o estabelecimento
de castas intelectuais que realizariam assim a tarefa da
educação.
É claro que as ideias de Nietzsche podem soar bastantes
esdrúxulas para um tempo, como o nosso, no qual a educação
é anunciada como direito de todos e dever do Estado. O
filósofo alemão é bastante conhecido pelo uso frequente de
uma linguagem dura e intensa para compensar a solidez com
que os valores estão impregnados na sociedade. Ele acredita
que sua luta pela renovação da cultura precisa interferir e
desacomodar e, para isso, o modo de expressão de sua
filosofia também vai se fazendo cada vez mais cortante,
incisivo e perigoso. O que talvez seja evidente em seus textos
sobre a educação, entretanto, seja o diagnóstico (mesmo que
discordemos de sua receita), que é também uma denúncia que
faz ver o quanto, por detrás dos discursos oficiais que tentam
garantir educação para o maior número de pessoas possível,
259
esconde-se um processo de empobrecimento da cultura. Em
outras palavras: as políticas governamentais de promoção da
educação prezam pela quantidade e bem pouco pela
qualidade; o que é para todos acaba sendo desqualificado,
fraco e nivelado. Enquanto se entretém o povo com pouco, a
velha elite (que nem sempre é uma elite espiritual) acaba por
se alojar em núcleos educacionais de razoável qualidade, lugar
a partir de onde implementa sua estratégia de domínio. Ao
denunciar esse modelo, Nietzsche também explicita como essa
elite econômica ainda não é uma elite cultural e que a ideia de
uma “aristocracia espiritual” nada tem a ver com esse tipo de
sistema social de dominação pela via do poder político ou das
benesses econômicas. O modo de pensar nietzschiano sempre
se manteve avesso a essa hipótese. Sua preocupação é com a
mediocridade cultural promovida por esses grupos políticos e
econômicos que se mantém num status quo ainda de forma
grosseira, ao qual chamam de verdadeira cultura ou de cultura
nacional. Isso não passaria de uma mentira erudita.
153 No Íon, Platão escreve: “Assim também a Musa: só a Musa forma os inspirados, e
por meio desses constitui uma cadeia de outros, tomados pela inspiração divina.
Todos os bons poetas épicos, não pela sua arte, mas porque possuídos e inspirados
pela divindade, exprimem todos aqueles belos cantos seus, assim como os bons poetas
mélicos; e, como aqueles agitados por furor coribântico, dançam, tendo perdido todo
freio racional, assim os mélicos, perdido todo o freio racional, compõem aquelas suas
belas poesias. Apenas alcançam uma harmonia e um ritmo, agitam-se todos por um
furor báquico possuídos pela divindade; e como bacantes que chegam a rios de mel e
leite, quando são possuídos pela divindade, tendo então perdido toda a razão, assim a
alma dos poetas mélicos – o que eles mesmos contam” (PLATÃO, Íon, 533e-504a.)
264
tratamento que ele conferia aos deuses e heróis, tem por trás
de si uma tradição muito anterior a Platão. Xenófanes já
reconhecia que, “desde o início, todos aprenderam seguindo
Homero” (1996, p. 70, Frag. 10), reconhecimento que não o
impede de criticar o conteúdo de tais ensinamentos: “Tudo aos
deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quanto entre os
homens merece repulsa e censura, roubo, adultério e fraude
mútua” (1996, p. 70, Frag. 11). Heráclito, por sua vez, censura
Homero em termos ainda mais ásperos: “Homero merecia ser
expulso dos certames e açoitado, e Arquíloco igualmente”
(1996, p. 89, Frag. 42). Diógenes Laércio também relata que
Heráclito costumava dizer que “Homero merecia ser afastado
dos concursos a pauladas, como também Arquíloco”. Segundo
o mesmo Diógenes Laércio, Xenófanes “escreveu versos
épicos, elegias e jambos contra Hesíodo e Homero e se fez
censor de suas afirmações sobre os deuses” (IX, 18). Sexto
Empírico dá uma versão de versos atribuídos a Xenófanes: “Os
deuses são acusados por Homero e Hesíodo de tudo o que
entre nós é vergonhoso e repreensível e vemo-los cometer
roubo, adultério e empregar entre eles a mentira”. No geral,
esses depoimentos dão conta da importância da poesia para a
educação grega mas, ao mesmo tempo, testemunham a
mudança de concepção que atinge seu auge na condenação
dirigida por Platão à poesia e ao poder inebriante da palavra,
segundo ele a maior representante do pensamento do vulgo,
dos que não pensam, dos oportunistas e demagogos. Cultura
essa que repousava em grande parte sobre as palavras dos
poetas, que gozavam de um imenso prestígio e que eram
frequentemente utilizadas para nortear a vida e a ação política
dos cidadãos. A condição dessa crítica, obviamente, tem a ver
com o processo de laicização da palavra, que perde
gradativamente seu tom de sacralidade na pólis grega. Se antes
a palavra poética era inquestionável, o projeto socrático
pretende levar os jovens a não admitir as palavras que lhes são
transmitidas sem submetê-las ao exame da razão.
265
A razão, para Platão, é o que estimula o homem a resistir
aos impulsos irracionais da alma, mantendo “a calma em meio
aos infortúnios” e entendendo que “não vale a pena levar
muito a sério nenhuma das coisas humanas” (PLATÃO, A
República, 604c). Entendendo a razão como “a nossa melhor
parte”, Platão não vê outro caminho para a educação senão a
sua afirmação e, consequentemente, a negação da arte:
COMUNIDADE DE SOLITÁRIOS
Só entre amigos ele pode se mostrar sem dissimulação.
Na amizade, os indivíduos mostram-se “abertos e francos”
como se estivessem em frente a si mesmos. O amigo é outra
forma de eu, um terceiro com o qual o próprio eu pode
dialogar. É o amigo, como uma necessidade, que faz suportar
a solidão. É na amizade que Nietzsche vislumbra a
possibilidade de experimentação desse seu projeto educativo:
o amigo resgata o eu de sua profundidade avassaladora,
aquela que deixa surgir o perigo da dissolução do próprio eu,
que transforma cada indivíduo numa “erupção vulcânica”:
“Retirem deles estes amigos, e vocês provocarão um perigo
maior ainda” (Co. Ext. III, 3), adverte o filósofo que viveu em
solidão, tendo inventado para si mesmo os espíritos livres
como figuração dos amigos impossíveis:
AMIZADE EXPERIMENTAL
A amizade é tida por Nietzsche como uma espécie de
reunião de solitários numa “espécie de claustro para ‘espíritos
livres’” (KSB 5, p. 188). Se a solidão e a extemporaneidade são
as marcas do filósofo educador nos escritos do chamado
primeiro período, no segundo período a solidão é a condição
para a liberdade do espírito e possibilita ao homem um
excesso de alegria consigo mesmo que o leva em direção aos
amigos, fazendo da amizade não só um lugar de celebração
dos espíritos livres, mas, sobretudo, um espaço de partilha da
alegria.
Numa carta a Erwin Rohde, datada de 15 de dezembro
de 1870, Nietzsche escreve: “Eu não suportarei por muito
tempo a atmosfera das universidades. Assim, um dia ou outro,
nós romperemos esse jugo: para mim esta é uma coisa decidida.
E nós fundaremos então uma nova Academia grega”. A nova
Academia é uma alternativa à vida nas universidades, cuja
instituição não desperta mais o interesse do jovem professor,
279
tamanha a sua descrença em relação à possibilidade de que a
educação de sua época favoreça a elevação da cultura. Além
disso, como Academia grega, a nova experiência teria como
marca fundamental justamente a amizade, como uma
comunidade de iguais que se autoeducassem a si mesmos,
numa perspectiva aristocrática. O que Nietzsche vislumbra é
um tipo de “centro espiritual”154, no qual se pudessem
livremente produzir e em que se favorecessem “as inclinações
que temos para criar no domínio da arte e da literatura” (Co.
Ext. I, 1). Como escreve Nietzsche, em carta a Rohde, de 15 de
dezembro de 1870,
REFERÊNCIAS
_______. Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2ª ed., 2000.
_______. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. 2ª ed.; 3ª reimpressão.
_______. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio; São Paulo:
Loyola, 2007.
_______. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições 70, 1995.
_______. Genealogia da Moral. Uma polêmica. São Paulo: Cia. das Letras,
2002.
Capítulo 15
FREUD E O IMPOSSÍVEL OFÍCIO DA EDUCAÇÃO
Fátima Caropreso
Essas pulsões parciais, segundo Freud, podem ser ditas “perversas”, no sentido de
156
157 Consequentemente, maior seria a propensão para ocorrer uma regressão libidinal,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o pensamento freudiano, a educação,
como representante do princípio de realidade, das normas e
exigências culturais, não poderia ser exercida sem o
reconhecimento dos limites impostos a cada indivíduo pela
sua própria natureza, isto é, pela sua constituição, assim como
sem a consideração dos desejos, da realidade psíquica da
criança. Em algumas ocasiões, Freud defende que apenas o
adulto analisado e que “reencontrou sua própria infância”
seria capaz de compreender o psiquismo infantil e, portanto,
só ele estaria apto para educar. No entanto, Freud reconhece
os limites da educação e a dificuldade ou mesmo
impossibilidade de se definir especificamente onde e como o
educador deveria intervir. Apesar de encontrarmos nos textos
freudianos algumas dicas acerca de como o educador não
deveria agir, muito pouco ele diz a respeito de como
positivamente o educador deveria atuar. As próprias
premissas de sua teoria impedem o estabelecimento de uma
proposta positiva que permitisse guiar a educação. No texto
sobre o pequeno Hans, Freud afirma:
REFERÊNCIAS
Capítulo 16
EDUCAÇÃO, VIDA E COTIDIANO: UMA LEITURA A PARTIR
DA PRAGMÁTICA DE LUDWIG WITTGENSTEIN
Bortolo Valle
158“A virada linguística (...) foi um passo definitivo para sepultar a herança platônica,
cartesiana e kantiana, de que há um intelecto com uma capacidade de inteligibilidade
(ascese platônica), um sujeito com uma mente cognitiva com capacidade de produzir
por si só o pensamento (conhecimento calcado na certeza cuja fonte é o cogito
cartesiano, entendido como substância sem extensão, mental), e um ser dotado de
uma razão cujos princípios puros, a priori, armam uma rede para toda e qualquer
apreensão racional do mundo (intelectualismo kantiano)” (ARAÚJO, 2004, p. 107).
302
conhecimento e passa a ser a condição de sua possibilidade e
constituição. Parece, então, que a linguagem de matriz
objetivista, designativa e instrumentalista perde seu lugar de
preferência, abrindo espaço para a recuperação do dinamismo
da linguagem ordinária na elaboração de nossas proposições.
Wittgenstein parece estar ciente de que o ideal de exatidão da
linguagem é um entre tantos mitos filosóficos. Esta postura
inovadora imprime, há seu tempo, novos rumos também à
árdua tarefa de fundamentação da Educação.
Admitindo-se que a linguagem expressa um mundo sem
nenhum vínculo com situações concretas de uso, ela é
destituída de qualquer sentido, conforme podemos perceber
nas anotações do parágrafo 88 das Investigações, quando o
autor argumenta em a favor das necessárias condições de uso:
“o ideal de exatidão não é unívoco, não sabemos como o
devemos conceber, a não ser que tu próprio determines o que
é que receberá esse nome; mas vai-te ser difícil fazer uma
determinação destas; uma que te satisfaça” (WITTGENSTEIN,
1995b, § 88).
Aqui, o filósofo se mostra convencido de que é
impossível determinar a significação das palavras sem a
necessária consideração do contexto sócio-prático em que são
utilizadas. O autor tem convicção, também, de que a
linguagem é sempre ambígua, uma vez que suas expressões
não são possuidoras de uma significação definitiva. Toda
pretensão de uma exatidão linguística faz cair numa ilusão
metafísica. Esta mudança de direção exige reconsiderar toda a
pretensão do isomorfismo (a linguagem igual ao mundo). A
partir dela também podemos recolher um material que
permite rever as estruturas basilares de um discurso educativo
específico, aquele produzido pelas bases positivas que
pretendiam inserir a educação numa concepção científica do
mundo.
Apresentaremos, a seguir, alguns conceitos-chave,
emanados de Investigações Filosóficas, com o objetivo de
303
visualizar possibilidades inovadoras e alternativas à educação
de matriz científica. As noções de jogos de linguagem,
seguimento de regra e formas de vida permitem um alargamento
das bases epistemológicas que sustentam a educação.
INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS
No Tractatus, Wittgenstein tinha como objetivo resolver
os problemas da Filosofia que, segundo ele, resultavam da má
compreensão da lógica de nossa linguagem. Ao final de seu
escrito, estava o filósofo tão satisfeito e tinha o forte
convencimento de ter chegado a um ponto de certeza
definitiva e intocável. Desse modo, assim escreve no prefácio:
“Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados
parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião
que, no essencial, resolvi de vez os problemas”
(WITTGENSTEIN, 1995a, p. 28).
No entanto, em Investigações Filosóficas, Wittgenstein
reconhece os limites daquilo que havia exposto no Tractatus,
de tal forma que tinha a intenção de ver esta sua nova obra
publicada junto com a primeira. Seu desejo repousava na
necessidade de mostrar que esta só poderia ser entendida à luz
daquela. Nas Investigações, é evidente o esforço para corrigir os
limites antes não percebidos no Tractatus (por isso a obra era
intocável e definitiva). Podemos considerar, então, que entre
308
uma obra e outra não existe uma ruptura quanto à temática de
fundo, qual seja, a intenção clarificadora de nossas
proposições da linguagem. Wittgenstein continua tentando
responder à mesma pergunta: como se pode falar sobre o
mundo?
162 No prefácio do volume sobre Wittgenstein, na coleção “Os Pensadores” (São Paulo:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Das análises depreendidas que se estendem dos jogos
de linguagem, passando pela noção de seguimento de regras,
semelhanças de família, forma de vida e chegando às noções
de gramáticas superfical e profunda, podemos recolher ideias
matrizes que nos permitem três linhas de raciocínio. A
primeira nos conduz ao reconhecimento da renovação
produzida por Wittgenstein sobre suas primeiras convicções.
As Investigações efetuaram uma modificação definitiva no
modelo de isomorfismo pretendido no Tractatus. A linguagem
formal não abarca a totalidade de nossas expressões. Não cabe
dizer que aquela linguagem tenha se tornado invalidada,
caberia, antes, afirmar que é apenas uma entre tantas outras
possibilidades de dizer o mundo. Se o Tractatus sustentou a
positividade da Verdade Jurídica, as Investigações, por seu
turno, permitem o rompimento das amarras que mantêm
cativa a Ontologia. A escola, como espaço privilegiado para a
educação formal, não pode ser o local de uma linguagem
engessada.
Uma segunda linha de raciocínio permite-nos afirmar
que a mudança constatada imprimiria um sentimento de
desassossego nas pretensões de uma concepção científica do
mundo, conforme os auspícios do Círculo de Viena. A utopia
de uma ciência unificada sob a égide de uma linguagem
formalizada e do recurso à verificação empírica elitiza apenas
um procedimento – o bom procedimento – em detrimento da
pluralidade dos demais recursos de nossa linguagem. Além
disso, o modelo matemático melhor adaptado às ciências duras,
não poderia ser transposto com tanta facilidade para as
ciências humanas, jurídicas e sociais. A noção de jogo de
326
lingagem coloca-nos frente à pluralidade das linguagens,
sendo nenhuma delas suficiente. A escola, como lugar de
ciência, é também lugar da vida. Uma cientificização do
mundo e da linguagem estaria a serviço do progresso, mas por
outra via, seria o palco da morte do espírito.
A terceira linha de reflexão, resultado das duas
anteriores, é aquela que nos oferece condições para uma crítica
às pretensões de elencar os elementos formais como melhor
critério para a elaboração de nossos currículos. A educação é
uma forma de vida. Nela, os jogos de linguagem se sucedem.
Não há primado entre os jogos, uma vez que não existe uma
linguagem melhor que a outra. Não há uma hierarquia entre
eles. Um jogo não possui autoridade sobre outro. A pretensão
de verdade se limita à regra do jogo.
Finalmente, a concepção pragmática de linguagem,
defendida por Wittgenstein, desenha um contexto
epistemológico desafiador. A Educação não se sustenta sobre
uma linguagem única, universal, com pretensão de
exclusividade. A comunidade educativa não pensa na verdade
teoricamente, ela vê a verdade que pratica. Mais do que lutar
por uma verdade definida, a base educativa que emerge das
reflexões do autor sugere atenção ao contexto intersubjetivo
experimentado por seus protagonistas.
É posssível afirmar que a Educação é ela mesma um jogo
de linguagem. Por extensão, suas partes contitutivas podem
ser entendidas como jogos dentro de jogos. A verdade, mais
do que dependente de um estatuto privilegiado conferido
tanto ao Sujeito quanto ao Objeto, é encontrada em suas regras
constituintes. Existe uma variedade de jogos de linguagem na
Educação e seu sentido é determinado pela diferença de suas
regras. Cada jogo é independente. Nada existe de comum
entre as regras a não ser a semelhança de família. Talvez
Wittgenstein, com a renovação, seja alento para um incursão
mais aberta sobre as questões de partes significativas do
discurso educativo numa sociedade de contornos complexos
327
como esta de nossos tempos. É fundamental uma modificação
na maneira de olhar a Educação. O olho não pode modificar o
objeto, tem de modificar a si mesmo.
REFERÊNCIAS
Capítulo 17
GASTON BACHELARD: ESPÍRITO DE ESCOLA E SOCIEDADE
IDEALISMO E LEITURA
Se, como vimos, rigor e precisão, marcas facilmente
reconhecíveis no trabalho do cientista, pertencem igualmente à
atividade poética, a leitura não é exclusividade desta, como se
poderia imediatamente pensar: ela caracteriza da mesma
forma o pensamento científico. E é esta leitura que melhor
caracteriza o idealismo bachelardiano. Em Idéalisme discursif,
texto emblemático a este respeito, publicado inicialmente na
163Cf. Bachelard (1970a, p. 23): “Eis então a tese filosófica que vamos defender: o
espírito científico deve se formar contra a Natureza, contra o que é, em nós e fora de
nós, o impulso e a instrução da Natureza, contra o arrebatamento natural, contra o
fato colorido e variado”.
331
revista Recherches philosophiques, em 1934, e retomado na
coletânea póstuma intitulada Etudes, encontramos valiosas
indicações para se compreender o significado desta afirmação.
O que Bachelard coloca em jogo aí é o problema geral da
objetividade exigida pela racionalidade científica frente à
realidade do mundo, frente à natureza. Esta questão será
marcante em Le nouvel esprit scientifique e, de fato, o não-
cartesianismo da ciência moderna introduz nas fundações da
certeza este elemento desestabilizador que é o discurso, a
comunicação, o diálogo. “O pensamento”, escreve Bachelard,
“começa por um diálogo sem precisão em que sujeito e objeto
se comunicam mal, pois são ambos diversidades
desencontradas”. E continua: “É tão difícil reconhecer-se como
sujeito puro e distinto, quanto isolar centros absolutos de
objetivação” (BACHELARD, 1970b, p. 86). Idealismo discursivo,
como bem sugere Georges Canguilhem, em sua Apresentação
da coletânea de 1970 (p. 8-9), prepara os espíritos para que
recebam as lições do novo espírito científico. Mais do que uma
leitura da atividade científica, então, o que a epistemologia
bachelardiana parece empreender é o esforço em mostrar que
a ciência ela mesma se constitui como uma leitura do real e,
com isso, se define, no sentido mais próprio do termo, como
theoria164.
164 Vale mencionar aqui o conhecido artigo de 1963, “Perspectives sur l’histoire des
sciences”, publicado como último capítulo de seus Études d’histoire de la pensée
scientifique, em que Alexandre Koyré afirma, em resposta a Henry Guerlac, que o
acusava de idealista: “De fato, acredito que (e se nisso há idealismo, estou pronto a
assumir o opróbrio de ser um idealista e suportar as críticas e reprimendas de meu
amigo Guerlac) que a ciência, a de nossa época bem como a dos gregos, é
essencialmente theoria, busca da verdade, e que por isso ela tem e sempre teve uma
vida própria, uma história imanente, e que somente em função de seus próprios
problemas, de sua própria história, é que ela pode ser compreendida por seus
historiadores” (KOYRÉ, 2007, p. 398-399).
332
Esta explicação prolixa espanta o filósofo que quer sempre que
toda explicação se limite a desdobrar o complexo, a mostrar o
simples no composto. Ora, o verdadeiro pensamento científico
é metafisicamente indutivo. Como mostraremos
insistentemente, ele lê o complexo no simples, ele diz a lei que
corresponde ao fato, a regra que corresponde ao exemplo
(BACHELARD, 1937, p. 6).
Lecourt (1974, p. 125). O estudo de Lecourt mereceria uma leitura mais cuidadosa
166
que não pode ser feita aqui. Suas hipóteses acerca do pensamento de Bachelard são,
quase todas, muito precisas e lúcidas.
337
mostraremos causas de estagnação e até de regressão, é aí que
descobriremos causas de inércia que denominaremos
obstáculos epistemológicos (BACHELARD, 1970a, p. 13).
REFERÊNCIAS
Capítulo 18
FOUCAULT, A EDUCAÇÃO E AS RESISTÊNCIAS
AGONIZANDO A MÁQUINA PANÓPTICA
170 Sobre o Panóptico e a disciplina, ver o livro Vigiar e punir: nascimento da prisão.
346
localiza o arquivo do saber com suas técnicas que captam o
indivíduo e seu comportamento.
Tendo em vista que o panóptico e a disciplina são as
duas principais formas que se desenvolvem na estrutura da
sociedade ocidental, pelo menos nos últimos três séculos,
através da fórmula “ver sem ser visto”, que gera o poder para
o observador, e, também a partir da demonstração de Foucault
em seus últimos escritos em que aponta a “crise das
instituições disciplinares”171, o fracasso de algumas ou a
tentativa de abolição de outras, queremos aqui, para pensar a
escola e o sistema educacional, problematizar esta fórmula do
“ver sem ser visto”, que foi a fórmula por excelência para que
se produzissem as relações de poder-saber nos “micro-
diagramas”172 que se encontram em nossa sociedade. Ou seja,
queremos mostrar que talvez esta fórmula funcione não
somente para quem observa, mas também para as
multiplicidades constantemente vigiadas, e que,
possivelmente, pode ser este um dos motivos que levaram
essas estruturas à derrocada – não à crise generalizada – pois,
o que as coloca em crise são os novos mecanismos da
“sociedade de controle”173 que surgem depois da Segunda
Guerra Mundial; no entanto, o fato de que o indivíduo
observado também observa pode estar, há muito tempo,
contribuindo para o fracasso de algumas delas.
171 Foucault aponta a crise das instituições disciplinares em uma entrevista com o
título “A sociedade disciplinar em crise”, que se encontra no livro Ditos e Escritos IV
da tradução brasileira.
172 Para se entender ou conhecer melhor o conceito de diagrama, ver o livro Foucault
174 Sobre a vigilância e normalização, ver o livro Vigiar e Punir, de Michel Foucault,
onde ele dedica um capítulo para mostrar como se fundamenta esse sistema do século
XVII em diante, mas, principalmente, a partir do final do século XVIII.
354
tempo, passa a colocar em xeque a estrutura educacional pela
resistência ativa e constante nos espaços da escola. Este xeque
dado pelo aluno acontece em todas as instâncias e em toda a
rotina escolar, pois no momento em que ele percebe que
simplesmente faz parte de um conjunto de números para
quem governa, ele instaura sua resistência.
Portanto, nessa resistência já está implícita a ideia ou o
desejo de mudanças, mutações ou rupturas de algo que ele
não deseja mais, e, consequentemente, já estão presentes, neste
momento, as relações de forças que passam a atuar em formas
variadas de resistências, e, como afirma Foucault, elas podem
acontecer de forma silenciosa ou a partir de agitações ou
movimentos, seja onde for, em instituições ou em qualquer
forma da organização da sociedade, e emerge de forma plural
devido ao aspecto relacional das correlações de poder. Como
mostra Foucault, em suas manifestações, as resistências
REFERÊNCIAS
Capítulo 19
REFLEXÕES A PARTIR DO TEXTO
“RACIONALIDADE E REALISMO” DE JOHN SEARLE
177 O termo é usado pelo próprio Searle, porém o autor deixa claro que esse conceito
não está bem definido, e nem bem coerente. O uso do termo é estabelecido a partir da
ideia de que seriam aceitos pelos próprios partidários desse tipo de universidade
(SEARLE, 1993, p. 2).
371
temas filosóficos centrais, tais como a missão da universidade
ou suas bases epistêmicas, metafísicas ou políticas. Entretanto,
não há esse debate entre a universidade tradicional e a
universidade do pós-modernismo. E se é realizado, ao menos não
é explícito. É possível que haja muitos debates sobre questões
específicas, tais como quotas para raças ou políticas do Estado
para a Universidade, porém há pouca discussão sobre os
pressupostos da universidade tradicional e de suas
alternativas.
Sobre as características principais entre a universidade
tradicional e o discurso do pós-modernismo, Searle (1993, p. 4)
afirma que
institucionais, que são partes do mundo real, fatos objetivos do mundo, fatos que
somente existem devido ao acordo humano. Nesse sentido, há coisas que existem
somente porque cremos que existem. Há também o que Searle chama de fatos brutos,
que são os fatos que não necessitam das instituições humanas para existirem.
Contudo, para enunciar um fato bruto, o homem necessita da instituição da
linguagem. Porém, é distinto o fato enunciado do enunciado do mesmo. A partir,
portanto, da instituição da linguagem é que se estrutura a realidade social. Ver Searle
(1997b, p. 21-27 e 196-202) e (2000, p. 105-108).
180 Fato institucional é uma subclasse especial de fatos sociais que se constituem a
partir das instituições humanas. Um fato social é qualquer fato que se relacione à
intencionalidade coletiva, de acordo com a conduta coletiva. São fatos institucionais a
compra e venda pelo dinheiro, o matrimônio, a propriedade, a escola ou a
universidade, etc. Ver Searle (1997b, p. 21-27).
376
Existe uma realidade que independe de qualquer
representação humana, mas a partir da instituição da
linguagem, que é um fato que existe somente pelos acordos
humanos (fatos institucionais), tal realidade pode ser
representada. O vocabulário ou sistema de representações,
pelo qual é possível formular verdades, é uma criação
humana; “e as motivações que nos levam a investigar tais
matérias são características contingentes da psicologia
humana” (SEARLE, 1993, p. 9).
Para melhor entender a questão da linguagem, vejam-se
os seguintes princípios básicos da metafísica ocidental, tal
como os compreende Searle:
181O conceito de ato de fala ocupa a primeira fase dos trabalhos escritos de Searle. Uma
apresentação sintética desta noção pode ser encontrada em Searle (2000, p. 133-140).
378
apresentado, é uma questão de representação precisa de uma
realidade independente. A subjetividade não tem nenhum
mérito na construção do conhecimento ou ao menos na sua
validade. Sobre esse quarto princípio, o autor ressalta a
distância tomada entre o pesquisador e sua pesquisa. Esse
distanciamento é decorrente do critério da importância da
pesquisa, ou seja, esta é relevante se descrever com precisão
uma realidade cuja existência é independente do sujeito
pesquisador. A pesquisa sobre essa realidade baseia-se nos
critérios de verdade por correspondência. Naturalmente, o
conhecimento é representado pela linguagem e quem faz as
representações são os investigadores particulares, com sua
subjetividade. Assim, a verdade por correspondência
eliminaria qualquer ato de sentimentalismo, visto que o
conhecimento de algum fato é possível apenas sob o aspecto
objetivo. A intenção de Searle não é afirmar que há uma
incoerência na metafísica tradicional, por destacar o
conhecimento objetivo como o único válido. A possibilidade
de não existir uma verdade objetiva supõe um relativismo, ou
seja, uma falta de conexão essencial tanto com a verdade
quanto com a falsidade. O conhecimento, no entanto, que está
em pauta nessa discussão (o conhecimento objetivo como o
único válido), enquadra-se nos pressupostos da metafísica
ocidental.
182 O termo neutralidade, nesse texto, está sendo usado no sentido de que quem aplica
os critérios de avaliação objetiva não tem qualquer interferência, pois o que está em
questão é algo independente do sujeito.
381
Com esses princípios básicos da metafísica ocidental é
possível desenvolver uma reflexão sobre as condições de
realização da pesquisa no ensino superior em relação a seus
critérios de avaliação. Existe, portanto, uma concepção
consistentemente formada de conhecimento, verdade, significado,
racionalidade, realidade e os critérios para avaliar as produções
intelectuais, com um entrelaçamento entre elas.
De acordo com a concepção de realismo externo, o
conhecimento, a linguagem, a verdade, a realidade, a
racionalidade e a lógica se completam. Ou seja, para a
metafísica tradicional, o conhecimento descreve uma realidade
representada por uma linguagem; seus critérios de verdade
são julgados de acordo com a correspondência entre as
proposições e a realidade representada. Por fim, a
racionalidade e a lógica são os critérios utilizados para a
avaliação do processo, que pode ser de caráter objetivo ou
intersubjetivo.
A metafísica ocidental, segundo Searle, é a base da
tradição intelectual e educativa nas universidades que se
dedicam à pesquisa, pois “o ideal acadêmico da tradição é o
do investigador imparcial entregue à indagação do
conhecimento objetivo que tenha validade universal”
(SEARLE, 1993, p. 16). Contudo, esse ideal de pesquisa
acadêmica é rechaçado pelo discurso do pós-modernismo.
O impasse entre a universidade tradicional e a universidade
do pós-modernismo está basicamente nas avaliações da
produção intelectual delas decorrentes. Esse é o centro da
reflexão de Searle em seu artigo Rationality and Realism. O
impasse surge devido ao não comprometimento, por parte da
universidade do pós-modernismo, com as pretensões de
imparcialidade e objetividade da universidade tradicional.
Torna-se claro que a aceitação da metafísica ocidental na
organização dos conteúdos e métodos do ensino superior
atinge a maior parte das disciplinas acadêmicas, inclusive as
disciplinas que dependem da representação humana como a
382
arte, a literatura, a história, etc. O objetivo da aceitação da
metafísica ocidental é aplicar os padrões de racionalidade,
conhecimento e verdade a tais disciplinas, o que é contrariado
pelo discurso da universidade do pós-modernismo.
Os ataques aos ideais tradicionais da universidade têm
uma origem que não é epistemológica, mas sim política, como
mostra Searle:
sólidos que sustente e afirme a base da verdade de uma afirmação, como apresenta
Searle (1993, p. 25).
387
Searle não tem a intenção de defender a ideia da
metafísica tradicional como plenamente válida, rejeitando a
universidade para fins políticos. O conjunto de pressupostos
da metafísica ocidental pode conter incoerências para
representar a relação entre sujeito e a realidade, porém deve
haver alternativas a serem encontradas. Alguns de seus
pressupostos, segundo Searle, não poderão jamais ser
refutados ou ignorados, como por exemplo, a ideia de que
existe um mundo independe da vontade humana (o realismo
externo).
Certamente, a tradição acarreta, em alguns casos,
exageros (e por isso que em seu conjunto não é perfeita), como
a forte ênfase na objetividade. Porém, remeter-se ao outro
extremo, o da subjetividade, em que tudo depende do sujeito,
também parece incoerente.
Searle não condena o fato de as universidades conterem
certos objetivos políticos. Mas não aceita o fato de que elas
sejam usadas com finalidades exclusivamente políticas,
rejeitando por completo a metafísica ocidental em favor de um
discurso pós-moderno. A crítica, portanto, deixada por Searle
é de que pensadores atuais que negam o realismo, dizendo
que a realidade é uma construção humana, “negaram uma das
condições da inteligibilidade das nossas práticas linguísticas
comuns sem terem fornecido uma concepção alternativa dessa
inteligibilidade” (SEARLE, 1993, p. 26).
A concepção de universidade é tema de muitas
discussões em educação, mas seus debates são mais
acentuados na esfera política. Por isso, a contribuição de Searle
está em promover a discussão sobre os temas centrais que
dizem respeito à missão da universidade mediante suas bases
epistêmicas e metafísicas.
388
REFERÊNCIAS
Capítulo 20
SARTRE, EXISTENCIALISMO E EDUCAÇÃO
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987.
Capítulo 21
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA
GRAMSCIANA NO PENSAMENTO DE DERMEVAL SAVIANI
Célia Kapuziniak
INTRODUÇÃO
Os textos escritos sobre a teoria (ou pedagogia) histórico-
crítica, em geral, - pelo menos aqueles que chegaram às nossas
mãos -, relacionam o pensamento de Dermeval Saviani com a
teoria marxista, - até porque o mesmo o faz diretamente – e em
alguns casos fazem um exaustivo estudo da influência do
pensamento de Marx-Engels na construção da teoria histórico-
crítica. No entanto, não levam suficientemente em conta a
influência do pensamento de Gramsci, de forma específica. Em
muitos escritos, o filósofo é olimpicamente ignorado. Saviani,
segundo nossa compreensão, tem uma concepção do papel da
educação, e da escola, especificamente, na transformação da
sociedade e vice-versa, que deita suas raízes no pensamento
de Gramsci, quando reflete sobre o papel da educação na luta
de hegemonias e na transformação das relações sociais.
Inclusive, encontramos diversas citações da obra de Gramsci
em seus escritos.
Tentando contribuir para sanar esta lacuna,
procuraremos mostrar neste capítulo, ainda que não de forma
exaustiva, uma íntima relação entre os dois pensadores. Será
dedicado um espaço maior à exposição do pensamento do
406
filósofo italiano por ser, talvez, o menos conhecido do público
leitor. Já a teoria de Saviani é muito conhecida nos meios
educacionais brasileiros e não precisa, em nossa opinião, de
ampla descrição. Por este motivo, limitamo-nos a estabelecer
seus pontos de articulação.
184 Na verdade foi libertado antes de sua morte, mas em um estado de debilidade tal
que veio a falecer pouco depois. Sua libertação deveu-se ao medo – por parte dos
fascistas - de que, morrendo na prisão, se tornasse um mártir comunista.
185 A edição completa dos Cadernos do Cárcere começou a ser publicada pela primeira
vez no Brasil em 1999. Pode-se encontrar hoje em: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do
Cárcere, 6 vols. Edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio
Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2002.
407
transformar-se num simples materialismo, e um materialismo
determinista que acaba levando a um fatalismo. Sua intenção é
“de pôr em relevo como o fatalismo não é senão um
revestimento por débeis de uma vontade ativa e real” e
mostrar a futilidade do determinismo mecânico que se trata
de uma “filosofia ingênua da massa e apenas enquanto
elemento intrínseco de força [...] se torna causa de passividade,
de imbecil auto-suficiência (GRAMSCI, 1978a, p. 33).
Para ele, a concepção mecanicista (e aí pode entrar o
marxismo dogmático que está criticando) pode ser comparada
a uma religião de subalternos. Para Gramsci, a realidade
humana está enraizada, orgânica e dialeticamente, no mundo
e na cultura. O positivismo é um pseudo-subjetivismo e o
materialismo (não dialético) despersonaliza o homem,
tornando-o, por consequência, incapaz de ação.
Gramsci foi chamado de filósofo da superestrutura e
criticado por entender o Estado de uma forma distinta daquela
dos marxistas ortodoxos, e, nesta perspectiva, entender que a
educação tem uma função importante na conscientização e na
libertação das massas. Os marxistas ortodoxos entendem que
somente com a mudança da infra-estrutura, do modo de
produção, através de uma revolução, ou tomada do poder, é
possível haver mudança social. Indo na contramão, Gramsci
desenvolverá ideias sobre o conjunto da sociedade. Na
verdade, Gramsci não põe a política acima da economia, mas
entende – como para Marx – que a economia não é a simples
produção de objetos materiais, mas sim o modo pelo qual os
homens associados produzem e reproduzem não só objetos
materiais, mas suas próprias relações sociais globais. Ele
reconhece o papel determinante das relações econômicas, mas
entende que as estruturas e as superestruturas formam um
“bloco histórico”. Isto significa dizer que o conjunto das
relações sociais de produção se reflete no conjunto complexo e
contraditório das superestruturas. Um elemento essencial na
determinação da especificidade e da novidade da teoria
408
política de Gramsci é o conceito de “sociedade civil” como
portadora material da figura social da hegemonia, como esfera
de mediação entre a infraestrutura econômica e o Estado em
sentido restrito.
A TEORIA HISTÓRICO-CRÍTICA
Segundo Libâneo, a pedagogia histórico-crítica foi sendo
tecida
417
REFERÊNCIAS
Capítulo 22
ÉTICA E EDUCAÇÃO: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA NOÇÃO
DE CONHECIMENTO FALÍVEL EM KARL POPPER
EDUCAÇÃO E CONHECIMENTO
Qual é o objetivo da educação? Não se pode responder
apressadamente a esta questão fundamental sem, antes,
oferecer solução a outra pergunta de igual relevo: o que é o
conhecimento? Ora, todo o processo pedagógico está
profundamente imbricado com o problema do conhecimento:
a educação é, sempre, uma forma sistematizada de trabalho
com a matéria-prima do saber humano socialmente construído
e conservado. Em decorrência, os processos pedagógicos serão
sempre o reflexo de uma determinada “teoria do
conhecimento”.
Segundo Popper (1975, p. 313-315), há, basicamente, dois
modos de se compreender o conhecimento (e, em
consequência, o processo educativo ou, como se prefere dizer
atualmente, o processo ensino-aprendizagem): 1) a “teoria do
balde mental” e 2) a “teoria do holofote”.
A “teoria do balde mental” afirma que, previamente à
formulação do que sabemos, é preciso acumular uma série de
percepções e experiências sensíveis acerca do mundo. Só
depois, então, de posse destas sensações assimiladas,
separadas e classificadas é possível formular teorias, ou seja,
explicações da realidade. Esta é a base da doutrina empirista,
cuja influência é sentida de forma profunda na tradição
científica (e pedagógica) do ocidente, a partir da Modernidade,
na esteira do pensamento de Bacon, Locke, Hume e outros
filósofos empiristas.
A “teoria do holofote”, por sua vez, advoga o papel
decisivo da observação, ao invés da simples percepção. Uma
424
observação é uma percepção, mas não é uma percepção
espontânea, senão uma percepção planejada e preparada. À nossa
solicitação para um estudante “fazer observações”, ele
perguntará, antes de mais nada: “Observar o quê?”. Por isso,
conclui Popper, “sempre uma observação é precedida por um
interesse em particular, uma indagação, ou um problema – em
suma, por algo teórico” e, por isso, “as observações são sempre
seletivas e pressupõem alguma coisa como um princípio de
seleção” (POPPER, 1975, p. 314). Neste sentido, continua
Popper (1975, p. 318), “as observações são secundárias às
hipóteses”. As observações, embora não sejam o ponto de
partida, são o segundo passo, e assim “desempenham um
papel importante como testes que uma hipótese deve
experimentar no curso do exame crítico que fizermos dela”
(POPPER, 1975, p. 318). Portanto, nossas conjecturas ou
hipóteses servem, precisamente, como holofotes a iluminar o
campo de nossas observações.
A teoria do conhecimento, na perspectiva popperiana,
portanto, não se conforma a uma visão estática e definitiva da
ciência, mas propõe uma compreensão dinâmica, anti-
dogmática e crítica do saber científico. Para ele, “a ciência de
hoje se edifica sobre a ciência de ontem (e assim é o resultado
do holofote de ontem); e a ciência de ontem, por sua vez, se
baseia na ciência do dia anterior” (POPPER, 1975, p. 318).
Portanto, a educação não é um “encher cabeças” (balde
mental), com saberes e conhecimentos definitivos (pois não
existem conhecimentos e saberes que possam pretender ou
merecer tal designação). Ao contrário, a educação é um
processo que deve tornar as pessoas críticas diante da ciência e
do próprio conhecimento. A adoção da atitude crítica, chave
central do racionalismo crítico, como Popper designa sua
filosofia, é a principal razão do empenho pedagógico do
mestre. Mas, assumir tal atitude não é, em si, também, um fim:
trata-se de uma posição necessária para que se possa chegar ao
que realmente deve marcar a nossa história pessoal, ou seja,
425
“lutar por um mundo melhor” (POPPER, 1999, p. 17). Aqui
está um aceno para a dimensão ética da epistemologia (e da
pedagogia) de Popper.
REFERÊNCIAS
_______. Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper. São Paulo:
Paulus, 2011.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São
Paulo: Ed. da UNESP, 1996.
Copyright © 2012